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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v.12, e21, Ed. Especial: Schopenhauer e o pensamento universal, 2021
Submissão: 02/09/2021 • Aprovação: 27/09/2021 • Publicação: 28/12/2021
Schopenhauer e o pensamento universal
A concepção schopenhaueriana de arrependimento e angústia de consciência
The Schopenhauer’s concept of regret and anguish of conscience
RESUMO
O arrependimento [die Reue] é uma noção que surge na filosofia de Schopenhauer quando ele trata da possibilidade de um indivíduo aprimorar a manifestação do seu próprio caráter, que é aquilo que constitui o caráter adquirido. Cada um de nós possui um caráter que não pode ser mudado, mas o conhecimento sobre ele pode se aprimorar, o que permite que um indivíduo possa aperfeiçoar o conhecimento ou a consciência daquilo que ele é. Sendo o caráter a expressão daquilo que cada um quer, nós não nos arrependemos do que nós queremos, mas do que fizemos, exatamente porque consideramos que a nossa ação não foi condizente com a nossa vontade. Portanto, o arrependimento resulta do conhecimento que permite adequar o fazer ao querer. O objetivo será esclarecer a importância da primazia da vontade sobre o intelecto para a compreensão do arrependimento, assim como indicar a diferença entre o arrependimento e a angústia de consciência [die Gewissenangst].
Palavras-chave: Arrependimento; Angústia de consciência; Caráter adquirido; Schopenhauer
ABSTRACT
Keywords: Regret; Anguish of conscience; Acquired character; Schopenhauer
Quando procuramos compreender o arrependimento que cada um de nós sente ou já sentiu em algum momento da vida, podemos descrevê-lo como um sentimento incômodo, que provoca mal-estar, muitas vezes profundo e persistente, que surge em consequência de uma ação que praticamos ou deixamos de praticar, de modo que o arrependimento envolve um ato ou uma omissão, assim como as suas consequências. Esse sentimento surge quando consideramos que cometemos um erro ao agir de uma determinada maneira em uma situação específica, ao mesmo tempo em que pressupomos que haveria uma outra conduta, que seria a correta ou apropriada, mas que não foi a adotada por nós, motivo pelo qual esse erro nos faz sofrer.
A concepção de arrependimento presente na filosofia de Schopenhauer se assemelha, em alguns aspectos, à forma de pensar que acabamos de descrever, visto que também para ele o arrependimento é um sentimento de pesar ou um tipo de sofrimento decorrente da nossa compreensão sobre a inadequação de nosso ato em relação ao fim que pretendíamos alcançar, o que também pressupõe a necessidade de uma mudança na nossa conduta. Para Schopenhauer, o arrependimento surge pela “via de um conhecimento mais preciso” quando, “conduzidos por falsas noções” (W I, § 55, p. 383), nós agimos de maneira diferente daquela que seria adequada à satisfação da nossa vontade.
Um aspecto essencial do modo como Schopenhauer define o arrependimento se refere à constatação de um erro na nossa maneira de agir, que resulta do fato de termos sido motivados por um conhecimento impróprio ou incompleto na busca da satisfação da nossa vontade. Ao colocarmos em evidência o aspecto cognitivo da definição de arrependimento, vamos inicialmente mostrar a ruptura representada pela concepção schopenhaueriana de erro em relação à tradição filosófica que, tendo Santo Agostinho entre os seus representantes, concebe o mal e o erro como negação, carência ou falta de ser ou de perfeição. Mesmo Descartes – que posteriormente defendeu que o erro não seria pura negação, isto é, não seria uma “carência ou falta de alguma perfeição que não nos é devida, mas a privação de algum conhecimento que deveríamos possuir” (DESCARTES, 1979, p. 116) – ainda preservou em sua concepção de erro a necessidade de conformar a vontade ao entendimento (DESCARTES, 1979, p. 121). Este é exatamente o ponto que Schopenhauer vai contestar, ao defender que o entendimento não seria capaz de exercer um controle efetivo sobre a vontade, porque, para ele, é a vontade que exerce um domínio sobre o entendimento.
Na interpretação cartesiana, o erro é considerado a privação de um conhecimento, que surge em consequência da nossa vontade ser muito mais ampla e extensa que o nosso entendimento, sendo por isto estendida às coisas que não compreendemos, se perdendo muito facilmente, escolhendo o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro (DESCARTES, 1979, p. 119). A causa dos erros, segundo Descartes, se refere à relação entre duas potências humanas: o poder de conhecer e o poder de escolher. Porém cada uma destas potências, dadas a nós por Deus, isoladamente, não pode ser considerada a causa do mal. Pois somente pela ação conjunta do entendimento e da vontade é que podemos explicar a razão de estarmos sujeitos ao erro, visto que o entendimento possuiria limites, ao contrário da vontade que seria ilimitada. De acordo com Descartes, “a luz natural nos ensina que o conhecimento do entendimento deve sempre preceder a determinação da vontade” (DESCARTES, 1979, p. 120). Para ele, a privação que constitui a forma do erro está no mau uso que fazemos do livre-arbítrio, que acontece quando decidimos agir sem subordinar a vontade ao entendimento (DESCARTES, 1979, p. 120).
Apesar de podermos admitir uma possível concordância de Schopenhauer com Descartes quando este defende que o erro seria a privação de algum conhecimento que deveríamos possuir, que o entendimento é limitado e a vontade é sem limites e que a origem do erro estaria em uma deficiência do entendimento, haveria, porém, uma discordância essencial entre esses dois filósofos relacionada à possibilidade, presente na concepção cartesiana, da ação do entendimento ser prioritária em relação à vontade. Para Schopenhauer, “o erro fundamental dos filósofos é, por assim dizer, tomar o acidente pela substância” (W II, 2014, Cap. 16, p. 313). Schopenhauer defende com veemência que
em todos os seres animais, a vontade é a coisa primária e substancial. O intelecto, por outro lado, é algo secundário e adicional; na verdade é um mero instrumento a serviço da vontade, que é mais ou menos completo e complicado conforme as exigências desse serviço (W II, 2014, Cap. 16, p. 312).
A origem do equívoco cometido pelos filósofos estaria, segundo Schopenhauer, no fato da consciência do ser humano estar contínua e predominantemente ocupada com pensamentos. Esta preponderância dos pensamentos na consciência seria uma consequência de que
No homem, não só a força de representação da intuição (...) atinge o mais alto grau de perfeição, mas também a representação abstrata, o pensamento, ou seja a razão (Vernunft) é adicionada, e, com ela, a reflexão [Besonnenheit]. Através desse aprimoramento importante do intelecto e, portanto, da parte secundária da consciência, ele obtém uma preponderância sobre a parte principal, na medida em que se torna a partir de agora a parte predominantemente ativa. Assim, enquanto no animal a percepção imediata da satisfação ou insatisfação de seus desejos constitui de longe a parte principal da consciência (...), com o homem ocorre o oposto. Intensos como os seus desejos podem ser, mais intensos até do que os de qualquer animal e subindo ao nível das paixões, sua consciência, não obstante permanece contínua e predominantemente ocupada e preenchida por representações e pensamentos. Sem dúvida, é principalmente isto o que deu origem àquele erro fundamental de todos os filósofos, em virtude do qual eles fazem do pensamento o elemento essencial e primário da chamada alma, em outras palavras, da vida interior e espiritual do homem, colocando-o sempre primeiro, e, em contrapartida, consideram a vontade como um mero produto do pensamento, portanto, como algo secundário, adicional, posterior (W II, Cap. 19, 2014, p. 313).
Segundo Schopenhauer, os seres humanos são os únicos capazes de formar representações abstratas. Estas representações são compostas por pensamentos e conceitos e elas são consideradas “representações de representações” [Vorstellungen aus Vorstellungen] (G, 5º. Cap., § 26, p, 225), porque a razão extrai necessariamente as representações abstratas das representações intuitivas, sendo que estas só podem ser obtidas pelo intelecto. A atividade reflexiva [Besonnenheit][1] consiste em um desdobramento do conhecimento obtido a partir das representações abstratas, que permite relacionar pensamentos e conceitos entre si e, assim, promover o afastamento progressivo do intelecto da sua função primordial de conhecer o intuitivo. Este afastamento acontece justamente pelo fato do intelecto estar permanentemente preenchido por pensamentos e conceitos, e ocupado em fazer as relações entre eles. Portanto, é a prevalência dos pensamentos no intelecto humano que o afasta da sua função primordial de conhecer as representações intuitivas, assim como é aquilo que nos dá a falsa impressão de que o intelecto domina a vontade, como se a parte da consciência que conhece predominasse sobre a parte que deseja. Mas, para Schopenhauer, o aparente domínio do intelecto sobre a vontade só pode ser considerado relativamente a uma consciência, cuja clareza é prejudicada pela atividade dos pensamentos que nela prepondera.
Schopenhauer considera que a vontade é o essencial e, portanto, é ela que domina e comanda o intelecto. Apesar disto, ele admite que, de modo eventual e apenas em raros casos, existe a possibilidade de ocorrer uma separação entre o intelecto e a vontade. Esta separação, apesar de não ser capaz de inverter a dominação da vontade sobre o intelecto, pode chegar a interromper a relação existente entre eles:
A predominância relativa da consciência que conhece sobre a desejante, e, consequentemente, da parte secundária sobre a primária, que aparece no homem, pode, em certos indivíduos anormalmente favorecidos, ir tão longe que, em momentos de supremo aprimoramento, a parte secundária (ou que conhece) da consciência fica totalmente separada da parte desejante, e passa por si mesma para a livre atividade; em outras palavras, inicia uma atividade não estimulada pela vontade e, portanto, já não a serve. Assim, a parte conhecedora da consciência se torna o puramente objetivo e claro espelho do mundo, e a partir disto surgem as concepções de gênio que são o objeto do nosso terceiro livro (W II, Cap. 19, 2014, p. 313-314).
Porém, a ocorrência desse evento extraordinário – que só pode acontecer em certos indivíduos anormalmente desenvolvidos – não altera a relação hierárquica original entre a vontade e o intelecto que se estabelece necessariamente na afirmação da vontade e na qual vigora o conhecimento submetido às formas do princípio de razão. Por isto, nesta forma de conhecimento, a primazia da vontade sobre o intelecto é sempre preservada, mesmo quando observamos em nosso interior o que Schopenhauer denomina “a peculiar alternância” (W II Cap. 19, 2015, p. 251) do jogo entre a vontade e o intelecto. Esta alternância seria algo que nos ilude, na medida em que parece colocar o intelecto no comando, como se o intelecto tocasse e a vontade tivesse que dançar conforme a música (cf. W II Cap. 19, 2015, p. 251). Essa atividade ilusória, que acontece na nossa consciência, pode ser observada quando
ponderamos [überdenken] sobre os nossos assuntos pessoais e presentificamo-nos vividamente a ameaça de um perigo realmente existente e a possibilidade de um desenlace infeliz; então, de imediato, a ansiedade comprime o nosso coração e o sangue congela nas veias. Mas, se logo o intelecto passa à possibilidade do desenlace oposto, e deixa a fantasia pintar a felicidade longamente esperada e alcançada, então de imediato o pulso segue um batimento saudável e o coração sente-se leve como uma pluma (W II, Cap. 19, 2015, p. 251).
Segundo Schopenhauer, essa modificação nas nossas emoções, que provém diretamente da vontade, é provocada pelo intelecto e
baseia-se no fato de que a vontade em si mesma é desprovida de conhecimento, mas o entendimento que a acompanha é desprovido de vontade. Por isso ela comporta-se como um corpo que é movimentado, já o intelecto como as causas que a colocam em movimento, pois ele é o médium dos motivos. Em que pese tudo isso, o primado da vontade de novo torna-se distinto quando esta, apesar de, como vimos, dançar a música do intelecto e assim permitir-lhe conduzi-la, faz-lhe sentir em última instância a sua supremacia ao proibir-lhe certas representações e ao impedir terminantemente que certas séries de pensamento venham à tona, porque sabe, isto é, experencia pelo intelecto mesmo, que seria colocada em alguns dos movimentos emocionais acima expostos: ela o frena agora e o compele a direcionar-se a outras coisas. (...) Isto se chama “ser senhor de si mesmo”: aqui o senhor é a vontade; o servo, o intelecto; pois em último caso a vontade sempre está no comando e, portanto, constitui o núcleo propriamente dito, a essência em si do ser humano (W II, Cap. 19, 2015, p. 252).
A supremacia da vontade faz com que ela jamais seja determinada pelo intelecto, pois este “é tão somente o gabinete daquela soberana” (W II, Cap. 19, 2015, p. 270). Eis porque Schopenhauer defende que uma ética que pudesse modelar e melhorar a vontade seria impossível:
Pois toda doutrina faz efeito apenas sobre o conhecimento; este, entretanto, jamais determina a vontade nela mesma, isto é, o caráter fundamental do querer, mas meramente a sua aplicação nas circunstâncias existentes. Um conhecimento corrigido só pode modificar a conduta na medida em que demonstre mais precisamente à vontade os objetos acessíveis à sua escolha e a permita julgar mais corretamente; com o que a vontade, doravante, avalia mais corretamente a sua relação com as coisas, vê mais distintamente o que quer e, por conseguinte, está menos submetida ao erro no momento da sua escolha. Mas sobre o querer mesmo, sobre a sua orientação capital, ou sobre a sua máxima fundamental, o intelecto não tem poder algum. Acreditar que o conhecimento determine efetiva e radicalmente o querer é acreditar que a lanterna que alguém segura à noite é o primum mobile de seus passos (W II, Cap. 19, 2015, p. 270).
A ênfase que Schopenhauer dá à supremacia da vontade sobre o intelecto é fundamental para a compreensão do seu conceito de arrependimento, porque este sentimento nunca se origina de uma mudança da Vontade, mas de uma mudança do conhecimento; assim, nunca me arrependo do que eu quis, mas apenas do que eu fiz. Quando nos arrependemos, nós temos a oportunidade de fazer o ajuste cognitivo entre a nossa ação e o fim almejado pela vontade.
Porém, a finalidade da vontade não nos é dada a conhecer a priori, mas somente empiricamente, após a realização de nossas ações, através dos sentimentos de prazer ou desprazer que elas nos proporcionam. Assim, se eu alcançar a finalidade da minha vontade através da realização de uma ação, então eu sentirei prazer e satisfação; mas, ao contrário, se minha ação não corresponder a essa finalidade, então eu sentirei o desprazer que caracteriza o arrependimento, ou seja, o desajuste entre o querer que caracteriza a minha vontade e aquilo que eu fiz.
Nesse processo de conhecer a vontade pela experiência, ou seja, pelos atos que denotam o seu querer, é fundamental que se perceba que a finalidade da vontade, ou aquilo que ela quer, não pode se referir a algo que possa ser válido para todos. Isto significa que não há um critério que possa ser colocado como referência universal do bem, ou daquilo que deve ser querido por todos, capaz de orientar nosso agir e, assim, evitar que alguém se arrependa. Pois o arrependimento não será consequência de uma avaliação da nossa ação com base em um ordenamento exterior à nossa vontade, estabelecido, por exemplo, com base em um preceito legal, religioso ou moral. Pois o arrependimento se refere apenas à adequação da ação em relação a um modo de satisfação que se aplica à constituição do querer imutável de um caráter considerado individualmente.
A constituição desse querer é definido por Schopenhauer através de três motivações fundamentais, sendo que “só por meio do estímulo delas é que agem todos os outros motivos possíveis” (E II, § 16, p. 130). Essas motivações são o egoísmo, a maldade e a compaixão (E II, § 16, p. 131). De acordo com elas, e considerando a necessidade de adequar a ação à finalidade determinada pelas motivações morais fundamentais, as ações adequadas ao caráter egoísta serão aquelas capazes de nos fazer obter o nosso próprio bem; aquelas motivadas pela maldade serão aquelas capazes de nos fazer obter o mal alheio, e aquelas adequadas ao caráter compassivo serão aquelas capazes de nos fazer obter o bem alheio.
Essas motivações morais precisam ser levadas em conta quando Schopenhauer afirma que a mudança do conhecimento que caracteriza o arrependimento “se estende não só à sabedoria de vida, à escolha dos meios, ao julgamento do fim mais adequado à minha vontade, mas também ao ético propriamente dito” (W I, § 55, p. 383). Ao exemplificar o aspecto ético do arrependimento, Schopenhauer defende não só a possibilidade de alguém agir mais egoisticamente do que seria adequado ao seu caráter, mas também o contrário, ou seja, a possibilidade de alguém ser levado a agir menos egoisticamente do que seria adequado ao seu caráter, “com isso preparando um arrependimento de outro gênero” (W I, § 55, p. 384).
Este outro gênero de arrependimento, chamado por Schopenhauer de egoístico [egoistische Reue], pode contribuir, por exemplo, para aprimorar a expressão de um caráter moralmente mau, quando indica que uma ação demasiadamente nobre não é adequada a esse tipo de caráter, na medida em que não teria nascido de um impulso puro, imediato, mas de um conceito ou de um dogma estranhos à vontade desse tipo de caráter (cf. W I, § 55; p. 393). A possibilidade de sermos motivados a agir de um modo inadequado à satisfação da nossa vontade torna necessário esclarecer a diferença entre motivos imediatos ou intuitivos, que afetam sobretudo a vontade dos animais irracionais, e os motivos provenientes das abstrações, que, por serem mediados pela razão, afetam apenas a vontade humana.
O fato dos animais irracionais serem motivados unicamente por representações intuitivas isenta-os do arrependimento, visto que o tipo de conhecimento que permite detectar o erro que dá origem a esse sentimento, por ser dependente da razão, é inacessível a eles. Já os seres humanos, como já esclarecemos anteriormente, podem ser motivados não só pelas representações intuitivas, mas especialmente pelas representações abstratas, que são um tipo de representação secundária, obtida pela razão a partir das representações empíricas fornecidas pelo intelecto, e que dão origem a toda forma de pensamento (incluindo os conceitos e dogmas), assim como permitem a relação dos pensamentos entre si. Segundo Schopenhauer,
O animal é sempre motivado apenas por uma representação intuitiva; o homem, ao contrário, esforça-se em excluir completamente esse tipo de motivação, ao procurar determinar-se exclusivamente por motivos abstratos, utilizando assim sua prerrogativa da razão em vista da maior vantagem possível e, independente do momento presente, não escolhe nem foge da fruição ou da dor passageiras, mas pondera [bedenkt] as consequências delas. Na maioria das vezes, tirante as ações inteiramente insignificantes, são os motivos abstratos e pensados que nos determinam, não as impressões do momento presente. (W I, § 55, p. 386-387).
As representações abstratas constituem, portanto, os principais motivos para a vontade dos seres humanos e elas são o fundamento do arrependimento, que é um sentimento que pode surgir após uma decisão eletiva [Wahlentscheidung]. Esta decisão acontece como resultado do exercício da capacidade de deliberação [Deliberationsfähigkeit] humana, que consiste em promover, na consciência,
um conflito duradouro entre vários motivos, até que o mais forte determine com necessidade a vontade. Para isso os motivos têm que ter assumido a forma de pensamentos abstratos, pois só por estes é possível uma deliberação propriamente dita, isto é, uma avaliação de fundamentos opostos para o agir (WI, § 55, p. 385)[2].
Ao proporcionar a deliberação, os pensamentos resultantes da abstração também permitem que cada pessoa possa diferenciar os desejos que são possíveis a todos os seres humanos daquilo que é querido pessoalmente. Como aquilo que cada um quer só pode ser conhecido empiricamente através de uma decisão que se manifesta pela indicação do motivo mais forte, e que a força de um motivo depende do caráter sobre o qual ele atua, cada um de nós constitui seu caráter individual de um modo único e sempre distinto do caráter das outras pessoas, assim como do caráter geral da sua espécie:
O aparecimento do caráter individual distinto e decidido (...) é igualmente condicionado pela escolha entre diversos motivos, possível apenas por meio de conceitos abstratos. Pois somente após prévia escolha são as diferentes decisões de diferentes indivíduos um signo desse caráter individual, diferente em cada um (W I, § 55, p. 387-388).
Além da importância de se considerar a diferença entre os desejos que são possíveis a todos os seres humanos e aquilo que é querido individualmente, são aspectos fundamentais para a determinação do caráter individual a distinção entre desejo e decisão e, principalmente, a consideração de que é somente através da ação que a decisão se manifesta:
Exclusivamente no homem é a decisão, não o mero desejo, uma indicação válida de seu caráter, para si mesmo e para os outros. Mas, tanto para si mesmo quanto para os outros a decisão só é certa pelo ato (W I, § 55, p. 387-388).
A vinculação entre decisão e ação é fundamental para que se possa compreender o arrependimento. Porque este sentimento surge em consequência de um erro relacionado à forma de agir que corresponde a uma decisão na qual a força dos impulsos imediatos, provenientes diretamente da vontade, foi capaz de vencer a força dos contramotivos representados abstratamente. A possibilidade de uma vitória desses impulsos no momento de uma decisão advém do fato de eles serem compostos por paixões e afetos, os quais são considerados inclinações que, por sua vez, são definidas como “toda acentuada receptividade da vontade para motivos de certo tipo” (W II, cap. 47, 2015, p. 707). O que diferencia a paixão do afeto é o grau da receptividade da vontade ao motivo, assim como a consideração dessa receptividade como absoluta ou momentânea. O afeto diz respeito a uma receptividade da vontade ao motivo que é irresistível, porém passageira; já as paixões seriam uma forma de receptividade não só irresistível, mas também permanente. Porém Schopenhauer considera que as verdadeiras paixões são extremamente raras e aquilo que nomeamos comumente como paixão costuma ser algo possível de ser suplantado pela ação dos contramotivos:
Paixão é uma inclinação tão forte que os motivos que a despertam exercem sobre a vontade uma violência mais forte que a exercida por qualquer outro contramotivo possível, pelo que o domínio da paixão sobre a vontade faz-se absoluto e assim esta relaciona-se com a paixão de um modo passivo, sofrendo. Deve-se, no entanto, observar que paixões que correspondem perfeitamente ao grau de sua definição são raríssimas, mas antes recebem o seu nome como meras aproximações desse grau; há então, contramotivos que conseguem também exercer o seu efeito travador, caso apenas entrem em cena distintamente na consciência. Já o afeto é uma excitação igualmente irresistível, porém passageira da vontade, através de um motivo que tem a sua violência não numa inclinação profundamente enraizada, mas simplesmente em que, subitamente entrando em cena, exclui momentaneamente o contrafeito de todos os outros motivos, na medida em que consiste numa representação que, através de sua excessiva vivacidade, eclipsa completamente todas as demais, ou as obscurece devido a sua excessiva proximidade, de maneira que as demais representações não entram em cena na consciência e não podem fazer efeito sobre a vontade, com o que, por conseguinte, a capacidade de ponderação [die Fähigkeit der Überlegung] e com esta a liberdade intelectual são em certo grau suprimidas (W II, cap. 47, 2015, p. 707-708).
A decisão capaz de evitar o arrependimento deve ser proveniente de um processo de deliberação no qual todos os motivos abstratos capazes de fazer oposição aos motivos constituídos por essas inclinações estejam presentes na consciência. Por isto, os motivos abstratos são os principais antídotos para controlar a poderosa força que as paixões e os afetos exercem na deliberação. A importância de se combater essas inclinações está em que elas impedem que o intelecto apreenda claramente os contramotivos e os apresente à vontade no momento da sua decisão. Essa incapacidade do intelecto de apreender os contramotivos é um indicativo da sua fraqueza, na medida em que ele se deixa perturbar pela vontade, justamente quando ele deveria cumprir a função primordial de torná-la suscetível ao motivo da ação capaz de promover a sua verdadeira satisfação e, consequentemente, evitar o arrependimento moral. Segundo Schopenhauer:
Um arrependimento moral é condicionado pelo fato de, antes do ato, a inclinação para este não deixar ao intelecto espaço de manobra, na medida em que não lhe permite apreender distinta e completamente os contramotivos do ato, mas antes reconduz sem cessar o intelecto aos motivos que favorecem o ato. Esses motivos, entretanto, após o ato consumado, são neutralizados pelo ato mesmo, portanto, tornam-se ineficazes. Agora a realidade traz diante do intelecto os motivos opostos, como consequências reais recém-advindas do ato praticado, com o que o intelecto doravante reconhece que estes motivos poderiam ter sido mais fortes se ele os tivesse apreendido e ponderado [erwogen] convenientemente. A pessoa torna-se, então, ciente de que o que ela praticou não era propriamente conforme à sua vontade: esse conhecimento é o arrependimento. Pois a pessoa não agiu com plena liberdade intelectual, na medida em que nem todos os motivos chegaram a atuar. O que excluiu os motivos opostos ao ato foi, no caso dos atos precipitados, o afeto; no caso dos atos ponderados [überlegten], a paixão (W II, cap. 47, 2015, p. 708).
Para Schopenhauer, um modo de fortalecer a ação do intelecto na apresentação dos contramotivos é a utilização da fantasia, de modo que essa apresentação não fique restrita ao uso da abstração[3]. Pois a fantasia fornece o apoio de imagens para a apresentação do “pleno conteúdo e a verdadeira significação do ato” (W II, 2015, p. 708), com isto fortalecendo a liberdade intelectual. Porém esta liberdade significa apenas a possibilidade do intelecto exercer de modo pleno e suficiente a sua tarefa de promover o conflito entre os motivos e os contramotivos na consciência, a fim de evitar que a força das inclinações se sobreponha àquela dos contramotivos dados apenas in abstracto:
Exemplos do que foi dito são os casos em que vingança, ciúme, avareza levam ao assassinato; depois que o assassinato foi cometido, aqueles são extintos e agora justiça, compaixão, lembranças da amizade pregressa elevam a sua voz e dizem tudo o que teriam dito antes, se a palavra lhes tivesse sido concedida. Então entra em cena o amargo arrependimento, que fala: “se não tivesse acontecido, jamais aconteceria” (...). – De maneira análoga, o descuido com o próprio bem-estar pode produzir um arrependimento egoísta: por exemplo, quando se contraiu um casamento desaconselhado, que se consumou como consequência de uma paixão amorosa, que precisamente agora extingue-se, com o que então entram em cena na consciência os contramotivos do interesse pessoal, da independência perdida, etc., e falam como antes deveriam ter falado se a palavra lhes tivesse sido concedida. – No fundo, todas as ações desse tipo nascem de uma fraqueza relativa ao intelecto, na medida em que este deixa-se dominar pela vontade, justamente ali onde, sem deixar-se perturbar por ela, deveria ter cumprido a sua função de apresentação dos motivos. Aqui a veemência da vontade é só mediatamente a causa, na medida em que tal veemência trava o intelecto e assim prepara para si mesma o arrependimento (W II, 2015, p. 708-709).
Portanto, o arrependimento pode ser evitado através da deliberação na qual as representações abstratas e o uso da fantasia atuam como contramotivos suficientes para as inclinações, constituindo um tipo de conhecimento que, entretanto, ainda permanece submetido ao princípio de razão e cuja finalidade é a satisfação da vontade. Por causa disto, por mais que essa forma de conhecimento se aperfeiçoe, o intelecto permanece ligado à vontade e sob o seu domínio.
Matthias Koβler, ao esclarecer o papel da atividade reflexiva [Besonnenheit] na filosofia de Schopenhauer, afirma que há diversos graus dessa atividade, “cujo aumento está ligado à separação entre vontade e intelecto” (KOβLER, 2015, p. 23) e que sua determinação pode acontecer de diferentes modos, dependendo do âmbito de investigação considerado:
Na teoria do conhecimento, o discernimento [Besonnenheit] é a capacidade característica do homem enquanto homem de ter representações independentes da impressão do presente em conceitos e pensamentos. Nesse sentido, o discernimento [Besonnenheit] é próprio de todos os seres humanos e todas as outras formas são derivadas dele, pois se trata assim de sua determinação fundamental (KOβLER, 2015, p. 23).
Segundo Koβler, o discernimento [Besonnenheit], quando aplicado ao contexto da ética, possibilitaria
por um lado, o desenvolvimento [die Herausbildung] do caráter e da individualidade, na medida em que por meio dele são postos à escolha vários motivos. Por outro lado, ele é pressuposto para a negação da vontade de viver, na medida em que a visão do “todo da vida” é uma condição para a negação (KOβLER, 2015, p. 23).
Ao situarmos o arrependimento no interior da ética schopenhaueriana, constatamos que ele é uma consequência do desenvolvimento do caráter e da individualidade; porém o grau da atividade reflexiva [Besonnenheit] que ele exige não pertence àquele mais elevado, visto que, no arrependimento, o intelecto mantém a sua posição de submissão em relação à vontade e a sua função de satisfazê-la. Ao longo desse texto, vamos procurar mostrar que é possível distinguir o arrependimento de outro sentimento de pesar que surge do autoconhecimento: a angústia de consciência; e que uma das formas de distinguir esses dois sentimentos é através do grau da atividade reflexiva [Besonnenheit] que eles pressupõem, visto que, diferentemente do arrependimento, essa angústia exige o seu mais alto grau, o qual corresponde à separação completa entre o intelecto e a vontade.
O grau supremo da atividade reflexiva [Besonnenheit] é capaz de interromper o domínio da vontade sobre o intelecto e representa uma mudança essencial na forma de conhecimento. Porém, depois desta mudança, o intelecto não se torna capaz de dominar a vontade e pode apenas anular o domínio da vontade sobre ele. A anulação deste domínio caracteriza a sua liberdade, cujo significado se refere à possibilidade de o intelecto deixar de exercer o papel de satisfazer a vontade, voltando-se apenas ao ofício de conhecer de modo desinteressado.
Como já mencionamos, o arrependimento seria decorrente de um grau da atividade reflexiva [Besonnenheit] que apenas desenvolve e aperfeiçoa o conhecimento submetido ao princípio de razão. Apesar disto, o arrependimento constitui um elemento importante do autoconhecimento e contribui fundamentalmente para a construção daquilo que Schopenhauer denomina caráter adquirido. Pois a construção desse caráter consiste no aperfeiçoamento da manifestação da nossa individualidade, que nos permitir identificar, entre tudo o que é possível de ser querido e feito pelo ser humano em geral, aquilo que cada um de nós quer e pode fazer.
A circunscrição da própria individualidade exige o uso da sua razão, e este uso nos permite estabelecer a distinção entre o caráter empírico e o caráter adquirido. Isto acontece porque a razão e, consequentemente, a atividade reflexiva [Besonnenheit] dela decorrente, não participa da manifestação do caráter empírico. Pois, segundo Schopenhauer, o caráter empírico é a manifestação espaço-temporal do caráter inteligível, que surge “como simples impulso natural” (W I, § 55; p. 391), sem a intervenção da razão. Esta informação é importante para que se possa constatar que os animais irracionais também manifestam um caráter empírico, que será condizente com aquele de uma mesma espécie, apresentando pouca diferença entre os indivíduos que a compõem. Já nos seres humanos a exteriorização do caráter empírico é, segundo Schopenhauer,
perturbada [gestört] pela razão, tanto mais quanto alguém possuir maior clareza de consciência [Besonnenheit] e força de pensamento [Denkkraft] a fazerem pairar diante de si aquilo que diz respeito ao homem em geral, enquanto caráter da espécie, em termos tanto de desejo, quanto de realizações (W I, § 55, p. 391-392).
Assim, por um lado, a atividade reflexiva [Besonnenheit] e a força de pensamento [Denkkraft] podem atrapalhar a percepção da própria individualidade, ao permitir que se considere erroneamente como possíveis, a cada um de nós, tudo o que é possível ao homem em geral; e
dessa maneira, torna-se difícil a intelecção daquilo que, devido à individualidade, uma pessoa quer e pode em meio a tantas coisas. Dentro de si encontra disposições para todas as diferentes aspirações e habilidades humanas; contudo, os diferentes graus destas na própria individualidade não se tornam claros sem o concurso da experiência (W I, § 55, p. 392).
Mas, por outro lado, a atividade reflexiva [Besonnenheit] e a força de pensamento [Denkkraft] são aquilo que nos permitem analisar o impacto da experiência sobre a nossa vontade, através dos sentimentos de prazer e desprazer que se relacionam àquilo que fazemos ou deixamos de fazer, e conhecer o que cada um pode querer e fazer em meio a tudo aquilo que o homem em geral pode querer e fazer. Assim, se a razão atrapalha a percepção da individualidade na manifestação do caráter empírico, por outro lado ela é fundamental para o conhecimento da individualidade que constitui o caráter adquirido.
Quanto maior for o conhecimento da individualidade e, consequentemente, quanto melhor for a aquisição do conhecimento sobre o nosso próprio caráter, maior será a diferença entre um caráter em particular e as possibilidades que se atribuem ao caráter da espécie humana. Esta diferenciação é importante, pois, segundo Schopenhauer:
só podemos seguir com seriedade e sucesso alguma aspiração determinada, seja por prazer, honra, riqueza, ciência, arte ou virtude, após descartarmos todas as aspirações que lhe são estranhas, renunciando a tudo o mais. Para isso o mero querer e a mera habilidade em fazer não são suficientes em si mesmos, mas um homem também precisa saber o que quer, e saber o que pode fazer (W I, § 55, p. 392).
O arrependimento é um sentimento que relaciona esses dois saberes e, por isto, ele é primordial na manifestação da nossa individualidade, a qual será considerada como um elemento importante para se distinguir o arrependimento [die Reue] da angústia de consciência [die Gewissenangst].
Se considerarmos que a nossa individualidade é a manifestação da nossa essência, nós podemos definir o arrependimento como o sentimento de dor que surge ao conhecermos que, em certa circunstância, não fomos capazes de agir de acordo com o nosso si-mesmo, ou seja, com aquilo que somos como Vontade; já a angústia de consciência consiste na “dor sobre o conhecimento de nosso si mesmo, ou seja, como Vontade” (cf. W I, § 55, p. 384).
Para fazer notar algumas diferenças entre esses dois sentimentos de dor, podemos especificar que a angústia de consciência surge a partir de uma visão retrospectiva de nossa vida (cf. W I, § 55, p. 391), através da qual nós conhecemos a totalidade que corresponde à essência da nossa vontade. Porém, esta totalidade não se limita apenas à visão retrospectiva dos nossos atos, mas à significação que atribuímos a essa visão. Neste sentido, Schopenhauer afirma que
nossos atos serão um espelho de nós mesmos. Daí se explica a satisfação ou o peso de consciência [Seelenangst] com que olhamos retroativamente para nosso caminho de vida. Os dois não nascem de os atos passados ainda possuírem existência: eles passaram, foram e não são mais; contudo, a grande importância deles para nós se deve à sua significação, ao fato de serem a expressão do caráter, o espelho da Vontade, no qual miramos e reconhecemos o nosso si mesmo, o núcleo da nossa vontade (W I, § 55 p. 390-391).
Essa significação não pode ser obtida a priori, mas somente depois de termos alcançado “o conhecimento mais acabado possível da própria individualidade” (W I, §55, p. 394), que resulta do processo empírico de aquisição do nosso caráter e para o qual o arrependimento contribui significativamente. Mas esse processo empírico não é suficiente para alcançarmos o conhecimento da totalidade que configura o nosso ser em si. Por isto a nossa hipótese é que o conhecimento dessa totalidade só pode ser obtido através da atividade reflexiva [Besonnenheit], que nos permite atribuir um significado moral ao conjunto dos atos que constituem a nossa individualidade. A atribuição desse significado, que corresponde a um julgamento moral a respeito do que somos, é feito pelo estabelecimento de um fim para uma vontade que, ao manifestar-se empiricamente, possibilitou que determinados atos fossem praticados.
Assim, se na aquisição empírica da nossa individualidade procuramos adequar cada ação a um fim que supomos ser aquele capaz de satisfazer a nossa vontade, no conhecimento do nosso ser em si atribuímos um significado moral a essa individualidade, como forma de responsabilizá-la pelo conjunto de atos que ela representa. Por isto este significado tem por base as três motivações morais fundamentais, para que se possa atribuir à individualidade ou um fim egoísta, ou compassivo, ou malvado.
A compaixão é a única motivação moralmente boa, enquanto que o egoísmo extremo e a maldade são as motivações moralmente más. A angústia de consciência é um sentimento que denota o profundo sofrimento que surge pelo reconhecimento – feito não pelo outro, mas por nós mesmos – de que somos moralmente maus e que, portanto, agimos para obter ou o nosso próprio bem ou – o que ainda é moralmente pior – para obter o mal alheio. Ao alcançarmos essa forma de autoconhecimento, nós nos tornamos responsáveis não apenas pelo mal que efetivamente fizemos, mas também por todo mal que, de acordo com aquilo que somos, somos potencialmente capazes de fazer.
Por esta razão, a angústia de consciência deve ser concebida em uma instância metafísica, na qual o conhecimento ultrapassa as circunstâncias relativas àquilo que foi efetivamente vivido, permitindo que a vontade seja julgada e condenada, não só pelo que ela fez, mas essencialmente pelo que ela é. O conhecimento que dá origem a essa angústia não pode ser aquele em que a vontade domina o intelecto e o obriga a satisfazê-la; pois, por exigir o grau máximo da atividade reflexiva [Besonnenheit], essa forma de conhecimento é capaz de anular a relação de subordinação do intelecto em relação à vontade, libertando-o do domínio da vontade.
Ao libertar-se, o intelecto não chega a dominar a vontade, já que a relação hierárquica entre vontade e intelecto não pode ser alterada, mas apenas anulada. Caso ocorra essa anulação, o intelecto, livre do domínio da vontade, torna-se capaz de conhecer independentemente dos interesses da vontade e, então, pode julgá-la moralmente e, assim, responsabilizá-la pelo seu querer. Por outro lado, a vontade, por ter perdido seu domínio sobre o intelecto, não pode evitar a angústia que advém do conhecimento sobre o seu ser em si, especialmente no caso em que ela é julgada como moralmente má. E, assim, a vontade, que não pode mudar a sua essência, agora tem, como única alternativa para reagir a esse sofrimento, apenas a possibilidade de deixar de ser, o que nos permite supor que a angústia de consciência constitui um tipo de sofrimento que pode conduzir a vontade em direção à autonegação.
DESCARTES, R. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
KOβLER, M. Sobre o Papel do discernimento [Besonnenheit] na estética de Arthur Schopenhauer. Tradução de Flamarion Caldeira Ramos. Dogmatismo & Antidogmatismo: filosofia crítica, vontade e liberdade / Uma homenagem a Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. Curitiba: Editora UFPR, 2015.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação, primeiro tomo. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação, tomo II: complementos, volume I. Traduzido por Eduardo Ribeiro da Fonseca. Curitiba: Ed. UFPR, 2014.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação, segundo tomo: suplementos aos quatro livros do primeiro tomo. Tradução de Jair Barboza. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
SCHOPENHAUER, A. Sobre o Fundamento da Moral. Tradução de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
SCHOPENHAUER, A. Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente. Tradução de Oswaldo Giacoia Jr. E Gabriel Valladão Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019.
Contribuição de autoria
Doutora em Filosofia
https://orcid.org/0000-0002-6941-7029 • selma.bass@gmail.com
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Como citar este artigo
BASSOLI, Selma Aparecida. A concepção schopenhaueriana de arrependimento e angústia de consciência. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 12, e21, 2021. DOI 10.5902/2179378667524. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378667524. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] A tradução para a língua portuguesa do termo alemão Besonnenheit apresentará algumas variações nesse artigo, dependendo da edição escolhida para a citação. Clareza de consciência foi o termo utilizado por Jair Barboza em sua tradução dos tomos I e II da obra de Schopenhauer O mundo como vontade e como representação. Discernimento foi o termo utilizado por Flamarion Caldeira Ramos na tradução do texto de Matthias Koβler intitulado “Sobre o papel do discernimento [Besonnenheit] na estética de Arthur Schopenhauer”. Capacidade de reflexão ou apenas reflexão foram os termos utilizados por Eduardo Ribeiro da Fonseca na sua tradução em dois volumes do tomo II de O mundo como vontade e representação. A opção nesse texto para as citações indiretas foi a expressão “atividade reflexiva”, a qual sempre estará acompanhada do termo Besonnenheit entre colchetes. No caso das citações diretas, o termo em português será aquele escolhido pelo tradutor da obra citada, também acompanhado do original em alemão entre colchetes. Por causa disso, a tradução para Besonnenheit irá variar ao longo do texto, motivo pela qual toda vez que esse termo for citado em língua portuguesa, direta ou indiretamente, ele virá acompanhado do seu correspondente em alemão. A escolha pela expressão “atividade reflexiva” para as citações indiretas se deve à tentativa de atribuir ao termo alemão Besonnenheit o caráter de uma atividade que predomina na consciência, que possui diferentes graus e que se manifesta em diferentes âmbitos do conhecimento, como, por exemplo, na Ética, em que o maior grau de Besonnenheit constitui, para Schopenhauer, uma forma de conhecimento que é exigida para a ocorrência da negação da vontade.
[2] Segundo Schopenhauer, “semelhante capacidade de deliberação no homem também pertence às coisas que tornam a sua existência tão mais atormentada que a do animal, pois em geral nossas grandes dores não se situam no presente, como representações intuitivas ou sentimento imediato, mas na razão, como conceitos abstratos, pensamentos atormentadores, dos quais os animais estão completamente livres, pois vivem apenas no presente, portanto num estado destituído de preocupação e digno de inveja” (W I, § 55, p. 385-386). O arrependimento e a angústia de consciência podem ser incluídos entre os sentimentos que resultam dos “pensamentos atormentadores” que só acometem os seres humanos.
[3] “Todo pensar, no sentido mais amplo do termo, portanto, toda atividade intelectual interna em geral, carece ou de palavras ou de figuras da fantasia; sem uma das duas, o pensar não tem qualquer ponto de apoio” (G, 5º. Capítulo, § 28, p. 235).