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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v.12, e20, Ed. Especial: Schopenhauer e o pensamento universal, 2021
Submissão: 01/09/2021 • Aprovação: 27/09/2021 • Publicação: 28/12/2021
Schopenhauer e o pensamento universal
O filósofo e seu leitor na exposição do pensamento único em Schopenhauer
The philosopher and his reader in Schopenhauer's exposition of the single thought
I Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil
RESUMO
O presente estudo tem por fim analisar alguns aspectos da relação entre autor e leitor em “O mundo como vontade e representação”, explorando as concepções de matéria, forma e organismo.
Palavras-chave: Organismo; Pensamento único; linguagem
ABSTRACT
This study aims to analyze some aspects of the relationship between author and reader in “The World as Will and Representation”, exploring the conceptions of matter, form, and organism.
Keywords: Organism; Single thought; Language
O ponto de partida para o presente estudo vem de uma relação estabelecida no prefácio à primeira edição do Mundo como vontade e representação, a saber: entre forma, matéria ou estofo e organismo. Schopenhauer afirma nesse prefácio que o seu pensamento único, que guarda a mais perfeita unidade, para ser comunicado, deve ser dividido em partes. Essas partes, que podem ser entendidas como os livros que compõem a obra, devem guardar uma coesão orgânica, ou seja, formalmente, as partes conservam o todo e são por ele conservadas. Todo e partes sustentam-se mutualmente, sem que haja um primeiro e um último na ordenação dos fundamentos do seu pensamento. Mas, em vista de sua comunicação, esse pensamento tem de ser decomposto em partes, e ordenado, de tal modo que, como afirma Schopenhauer: “um livro tem de ter [...] uma primeira e uma última linha; nesse sentido, permanece sempre bastante dessemelhante a um organismo, por mais que a este sempre se assemelhe em seu conteúdo” (W I [2005], p. 20). Para comunicar o pensamento único, a linguagem modifica a forma original desse pensamento: agora dividido em partes que se ordenam sequencialmente. A linguagem, que teria por função expor formal e materialmente a organicidade do pensamento, acabaria por deformá-lo. Fracassaria em sua função?
Chamamos a atenção aqui para os termos matéria, forma e função, pois parecem-nos fundamentais para se pensar a própria concepção de vida, segundo o que é enunciado em Sobre a vontade na natureza: “Vivo e orgânico são conceitos recíprocos; com a morte cessa o orgânico de ser como tal” (N, [1986b], p. 407). A deformação realizada pela linguagem é a própria morte do pensamento vivo do filósofo? A relação desses termos numa espécie de quid pro quo da vida não é original de Schopenhauer. Em um autor como Descartes, por exemplo, que poderíamos afirmar como o maior dos materialistas mecanicistas, da matéria e da forma do órgão corpóreo tinha-se a função desse órgão; o ato por ele realizado estaria subordinado à sua forma e à sua matéria. A precedência da matéria e da forma do órgão em relação à sua função se inverte, contudo, nos textos sobre a descrição da geração dos corpos humanos. Nesse caso, a função passaria a ditar a feitura do órgão, introduzindo na fisiologia cartesiana um problema que vai muito além dos preceitos da filosofia mecanicista, ao inverter a relação entre função e forma/matéria[1].
Não é aqui o lugar para se trazer a discussão com outros autores, até porque essas aproximações requerem muitas mediações que nos distanciariam dos propósitos do presente texto. Gostaríamos de reter apenas o problema de como o pensamento único, cuja coesão é orgânica, pode ser comunicado ao leitor, de tal modo que este o apreenda não como um agregado mecânico, mas como um organismo; como a linguagem, ainda que limitada, consegue cumprir sua função de comunicar ao leitor a perfeita unidade de pensamento, na integridade de sua forma e conteúdo?
A investigação da linguagem nessa situação específica, ou seja, na construção do discurso filosófico, deve ser acompanhada de uma investigação da própria razão. Isso porque o discurso é um instrumento específico da razão.
Ora, como sabemos, a razão não participa do conhecimento intuitivo, mas apenas do abstrato. Ela tem, assim, seu fundamento de conhecimento em outra representação, ao passo que a intuição, ao contrário, funda-se em algo diferente da representação. A apreensão do mundo efetivo, em seus elementos formais (espaço e tempo) e material (atividade ou causalidade) é feita mediante o conhecimento do efeito pela causa e essa função – de remeter um efeito a uma causa, é exclusiva do entendimento. Escreve Schopenhauer no § 4 do Mundo: “é o entendimento que liga o tempo e o espaço na representação da matéria, isto é, propriedade do fazer efeito” (W I [2005], p. 54). Os simples dados dos sentidos, subtraídos da lei da causalidade e das formas espaço-temporais, são sensações vagas e confusas das modificações do objeto imediato: o nosso corpo. Elas não remetem a nada, não têm qualquer significado para aquele que as sente. É o entendimento que as transforma em intuição do mundo efetivo (CACCIOLA, 1981, p. 49). As representações intuitivas, imersas nas relações pontuais do espaço, tempo e causalidade são permeadas de qualidades particulares: “Aquilo a ser determinado pela lei da causalidade não é, portanto, a sucessão de estados no mero tempo, mas essa sucessão em referência a um espaço determinado, não a existência de estados num lugar qualquer, mas neste lugar e num tempo determinado” (W I [2005], p. 51). No entendimento, o mundo efetivo é também o da heterogeneidade.
E o que faz a razão com essas infinitas determinações das representações intuitivas, com as inúmeras relações particulares dadas no espaço, no tempo e na causalidade? Ela eleva essas relações heterogêneas à homogeneidade do universal, ou ainda, fixa “em conceitos abstratos o conhecimento imediato do entendimento”, coloca-o “na condição de os outros o interpretarem, atribuírem-lhe significado” (W I [1986a], p. 55). Para isso, a razão se serve da linguagem.
Sendo representação de outra representação, ao tentar apreender o mundo como vontade (isto é, uma das metades do mundo, que comporia o pensamento único de Schopenhauer), a linguagem parece se distanciar cada vez mais daquilo que pretende comunicar, justamente por esta metade ser radicalmente oposta à representação. Se Schopenhauer limita a razão a uma mera faculdade cuja matéria viria da própria representação, e cuja função seria a de fixar o saber imediato em conceitos e colocá-lo na condição de ser compreendido por outro, por outro lado, a construção do discurso filosófico não pode ser uma articulação qualquer entre representações intuitivas, com a perda de suas particularidades. Ao contrário, deve poder comunicar, com toda a sua força e significado, a vontade que se manifesta no sujeito enquanto querer. A dificuldade está, tal como entendemos, na tradução dessa apreensão imediata do querer para o discurso filosófico. A conversão do particular para o que se torna público ou comunicável deve passar necessariamente pela razão e pelo seu instrumento, a linguagem. Mas a vida que se tornou conceito perde o que tem de essencial, isto é, a heterogeneidade que a caracteriza como tal. Nas palavras de Cacciola:
A vida filtrada pelos conceitos se instaura num outro domínio e, depois de conceitualizada, não mais permite o caminho da volta para a experiência. Perdem-se as nuanças e as diferenças e, embora ainda no terreno subjetivo, o que se tem é uma imagem esquemática do que é real. (CACCIOLA, 2003, p. 13).
Voltamos ao problema colocado anteriormente: Se os conceitos da razão nada mais fossem além de uma cópia mal feita, que perdeu a riqueza de detalhes do modelo original, a filosofia seria apenas letra morta. Ao que nos parece, o esforço do filósofo em dizer o mundo é o de traduzir toda a sua riqueza e significado para um estofo completamente diferente do original. A coesão orgânica que o filósofo arduamente busca comunicar deve poder repetir o outro lado do fenômeno em conceitos sem, contudo, corromper a sua natureza. Nossa suposição é a de que deve haver, então, outro uso da razão – e consequentemente da linguagem – que permitiria reter, ainda que apenas o conteúdo, da organicidade do mundo, e de algum modo conciliar o heterogêneo com a homogeneidade do conceito. Mais uma vez, Cacciola nos aponta um caminho possível:
Mas se a filosofia é o saber do imediato daquilo que se apresenta para o sujeito como sua essência, o querer-viver, ela é também inevitavelmente linguagem e seu instrumento é o conceito. Porém, se é bem-sucedida na sua tarefa de explicar o mundo, seus conceitos ou nomes têm de referir-se, em última análise, a algo imediato dado na experiência de cada um. Esse critério é que permite a exatidão desse saber como ciência, mas não é o único e apoia-se, aliás, em outro: o modo que esse saber se constitui como linguagem. A arte – estando intimamente ligada à filosofia – é a instância de avaliação que detecta o logos do gênio, a sua capacidade de traduzir a verdade do mundo; é a clareza e concisão de seu discurso [...] que permite “julgar” a correção de sua filosofia. É, pois, o corpo do texto que revela o pensamento de seu autor e a sua adequação para decifrar o enigma do mundo. (CACCIOLA, 2003, p. 14).
Mais do que se colocar como mera repetidora de representações na forma universal, tal como qualquer disciplina científica, a filosofia deve também se colocar como arte. O logos do gênio, a que Cacciola faz referência, permite-nos pensar que há, para o gênio, um uso especial da razão, e consequentemente do discurso, segundo a etimologia apontada por Schopenhauer n’O mundo (razão, ratio, logos, discurso), que compõe as representações abstratas em um arranjo orgânico. Dito de outro modo, que no corpo do texto conseguiria dar corpo ao gênio.
Mas tal como nos indica Schopenhauer, nas artes plásticas, por exemplo, parece haver uma adequação entre a matéria trabalhada pelo artista e a forma que nela se imprime. Tal como escreve o autor:
[Que o artista] entende a natureza em suas meias palavras e, então, expressa puramente o que ela apenas balbucia; que imprime no mármore duro a beleza da forma que a natureza falha em mil tentativas. Ele a coloca diante da Natureza e, por assim dizer, brada-lhe: “Eis o que tu querias dizer!”, e ressoa do conhecedor: “Sim, era isso”. (W I [1986a], p. 313-314)
O artista antecipa, assim, a experiência da beleza: ele ouve o que a natureza não conseguiu expressar e comunica o inaudível superando a natureza em sua exposição. Esta adequação entre a intuição do que se alcança apenas idealmente e a comunicação artística disso parece, contudo, não se encaixar bem no discurso filosófico. Apesar de um de seus aspectos ser o de arte, a filosofia conta com um fator de limitação e parece perder muito em plasticidade até para o mármore duro.
Seu pensamento, como afirmamos acima, deve guardar a mais perfeita unidade e, consequentemente, uma relação de proporção entre ambos os elementos; entretanto, o instrumento de que se serve, a linguagem, parece ser um entrave para dar unidade ao corpo do texto e deixar transparecer a unidade de pensamento. A advertência ao leitor feita no prefácio à primeira edição, de que é necessário ler a obra duas vezes, e o apelo que faz à sua reflexão parecem, ao menos em uma primeira aproximação, fragilizar ainda mais a autonomia do discurso filosófico, como uma espécie de exercício artificial para alcançar o que deveria ser dado imediatamente, distanciando a construção discursiva definitivamente da orgânica.
Em uma contribuição a esse respeito, Matthias Kossler (2016, p. 237 e ss.) volta-se também para os aspectos tratados no terceiro livro do Mundo. Ele afirma que a apreensão da vontade e do mundo como um todo e a analogia formal entre ambos não se dá pelo sujeito que conhece, mas apenas pelo puro conhecer, na contemplação artística e na arte. Se ficássemos apenas nesse aspecto, já seria o suficiente para que a filosofia não pudesse ter apenas o aspecto de ciência.[2] O sujeito do conhecer é correlato do princípio de razão e este princípio é a expressão da vontade de viver. No conhecimento ordinário, entendimento, razão, sensibilidade, consciência de si relacionam todos os objetos (representações) ao interesse da vontade individual; ele se colocando, portanto, sempre a serviço dela. O intelecto se limita, desse modo, a conhecer o que o ser humano quer aqui e agora; nunca o querer em geral. Submetido às exigências da vontade, o sujeito conhece apenas partes, jamais a totalidade da verdade das representações. Seus ouvidos estão, assim, tapados para o que a natureza poderia lhe sussurrar.
Para ouvir o que a natureza apenas balbucia e apreender o todo nas partes e as partes no todo, o sujeito deve se libertar dos interesses da vontade e, consequentemente, das formas do princípio de razão. Kossler afirma no artigo citado que estando livre do espaço, do tempo e da causalidade, tal apreensão só pode se dar de um só golpe, por uma Besonnenheit do mundo. O sujeito aqui não é mais aquele que relaciona objetos (indo do efeito à causa), mas serve, ele mesmo, de espelho para o objeto; e este não é o objeto ordinário da ciência, mas o representante de todas as aparências singulares de uma espécie, isto é, Ideia. Isso só pode ser alcançado quando o objeto é tirado de sua relação habitual e posto em destaque, excluído do princípio de razão. Esta Besonnenheit remete a uma visão intuitiva de todo o mundo que é conservada em conceitos. Nesse sentido, se podemos falar em partes, é apenas enquanto estas representam inteiramente a Ideia e estão em unidade intrínseca com ela. Ao que nos parece, conservando a intuição da totalidade do particular em conceitos abstratos, a Besonnenheit revela no gênio um uso especial da razão (um logos do gênio, para retomarmos as palavras de Cacciola) para lidar com a reciprocidade entre todo e parte.
No § 15 do Mundo, Schopenhauer escreve que a filosofia deve trabalhar com elementos intuitivos e expô-los abstratamente sem corromper a sua verdade:
[cada um] é o próprio sujeito do conhecimento, cuja representação é o mundo [...]. Somente esse conhecimento é intuitivo, é in concreto. Reproduzir o mesmo in abstracto, elevar as intuições sucessivas e variáveis, aliás, tudo o que o vasto conceito de sentimento abrange e meramente indica de modo negativo como saber não abstrato, obscuro, a um saber permanente, é a tarefa da filosofia. Esta, por conseguinte, tem de ser uma declaração in abstracto da essência do mundo inteiro, tanto em sua totalidade quanto em suas partes. Contudo, para não se perder em uma multidão infindável de juízos individuais, ela tem de se servir da abstração e pensar todo particular, e suas diferenças, novamente no universal. (W I [1986a], p. 135)
E um pouco adiante:
Ela [a filosofia] será uma repetição completa, por assim dizer, um espelhamento do mundo em conceitos abstratos, possível somente pela união do essencialmente idêntico em um conceito, e separação do diferente em um outro. (W I [1986a], p. 136)
A filosofia deve ser, portanto, um reflexo do mundo, aquilo em que o mundo, em sua totalidade, se mostra tal como ele é. Ela deve, contudo, conservar esse espelhamento de modo abstrato, como saber permanente. A vontade dá ao mundo unidade – ou seja, ela organiza e confere sentido para aquilo que se manifesta disperso na representação. Sem a vontade, o mundo não passa de um agregado, de um construto mecânico. Escreve Kossler em Sobre o papel do discernimento [Besonnenheit] na estética de Arthur Schopenhauer: “deve-se ainda – em estreita relação com a estética, mas diferente dela – nomear o papel do discernimento na filosofia, por meio do qual ela se coloca na condição de pôr a questão sobre a essência do mundo” (2015, p. 24), qual seja: “o que é tudo isso?”. Um pouco mais adiante, ele continua:
Na medida em que o pensamento submetido ao princípio de razão que está no fundamento da constituição da realidade empírica e objetiva é desmascarado como a forma fundamental do conhecimento que permanece a serviço da vontade, mostra-se que a objetividade empírica não é objetiva no sentido da independência da vontade. Por isso, ela é caracterizada como objetividade inadequada, pois se trata apenas de uma objetividade que diz respeito à forma do intelecto, que permanece a serviço da vontade, não, porém, à coisa mesma. Quando, ao contrário, as relações entre as representações nada têm a ver com meu interesse, então elas têm que surgir da essência mesma das coisas. Se todas as referências objetivamente identificadas de uma coisa a outra forem de tal maneira compiladas, então elas expressariam a essência própria ou o caráter da coisa. O que vem à expressão aqui por meio do discernimento [Besonnenheit] não é, portanto, como antes, o caráter do artista, mas o caráter do objeto apreendido e apresentado por ele. Esse caráter é a ideia.” (KOSSLER, 2015, p. 26-27).
A filosofia tem por tarefa conhecer e expor a unidade na multiplicidade e a multiplicidade na unidade. Mas como espelhamento do mundo, não pode apresentar o uno absolutamente, assim como seu outro lado: o múltiplo. Caso contrário, ao optarmos por apresentar apenas um dos lados, perderíamos o outro. O problema, pelo menos como entendemos até o momento, é como comunicar ao mesmo tempo as duas metades do mundo se servindo de um produto e instrumento da razão, ou seja, de algo que pertence a uma das duas metades do mundo. A tentativa de apresentar unidade e multiplicidade de maneira discursiva faz com que se tenha de fazer referência a lados que aparentemente se contradizem. É possível escapar dessas contradições? Talvez não. Talvez não seja possível e nem desejável, já que essas tensões refletem a totalidade do próprio mundo como representação. Nossa hipótese é a de que um discurso que pretendesse eliminar essas contradições muito provavelmente eliminaria também o caráter orgânico do mundo. Por essa razão, o discurso filosófico não deve tapar as lacunas do mundo.
No parágrafo 28 do Mundo, Schopenhauer escreve o seguinte:
[...] se todos os organismos apresentam sua Ideia por uma sucessão de desenvolvimentos consecutivos condicionados por uma variedade de partes diferentes simultaneamente, então só a soma das exteriorizações do caráter empírico é a expressão sumária do caráter inteligível; assim, essa simultaneidade necessária das partes e a sucessão de desenvolvimento não suprime a unidade da Ideia que aparece, a unidade do ato de Vontade que se exterioriza: pelo contrário, essa unidade encontra agora sua expressão na relação e no encadeamento necessários dessas partes e de seus desenvolvimentos entre si, de acordo com a lei de causalidade. Ora, sendo a Vontade única e indivisível, e justamente por isso condizente consigo mesma, e revelando-se em toda a Ideia como se se revelasse em um ato, então seu fenômeno, apesar de se separar em uma diversidade de partes e estados, tem de mostrar novamente essa unidade em uma concordância geral dos mesmos. (W I [1986a], p. 231)
Entendemos que é isto que o discurso filosófico deve fazer: embora entre em cena na diversidade de partes, tem de mostrar novamente aquela unidade na concordância perfeita entre as partes ou a coexistência necessária do todo e das partes e sua sucessão de desenvolvimentos segundo a lei de causalidade. Vale então a recomendação ao leitor: ler o livro duas vezes!
Perguntamos, enfim: a partir do que expusemos acima, qual o papel do leitor nisso tudo? Falamos aqui em sujeito do conhecimento e puro sujeito; a linguagem, ao que nos parece, não pode ser pensada como dissociada de um sujeito que esteja fora das figuras do princípio de razão. A filosofia, por outro lado, ao comunicar a unidade orgânica do mundo, sempre o faz no campo da representação. A linguagem, pertencendo ao mundo como representação, não ao mundo como vontade, nada mais pode revelar do que a vontade que se tornou objeto, isto é, representação. Forma e matéria permanecem em contradição na comunicação do pensamento único. É esse sujeito que deve, de maneira ativa, ouvir também ao que a natureza balbucia e dar conta do intuitivo e do abstrato ao mesmo tempo. Aqui é necessário examinar a possibilidade de um uso orgânico também das faculdades do sujeito, de modo que a razão, na construção do discurso, não esteja operando sozinha, mas organicamente com o entendimento, a sensibilidade e a consciência de si. Cabe, assim, nos perguntar por este que consegue ver a unidade originária nos fenômenos, ou ainda, pelo quem discursa. Seria o leitor a parte necessária para que a comunicação do pensamento único se realiza, e possa se reorganizar, ganhar sentido, ser interpretada, por outro intelecto para além daquilo que a linguagem apenas conseguiu apontar o caminho?
Como já afirmamos, forma e conteúdo estão em contradição em seu discurso, obrigando o autor a fazer um apelo àquele que lê: que reconstrua nele mesmo a unidade do mundo que a letra não consegue senão indicar o sentido. O autor aponta para a relação orgânica entre forma e conteúdo; o leitor, por sua vez, não é um destinatário meramente passivo. Ele deve ler e reler, e então formar diante de si o desenho dessa unidade, de maneira verdadeiramente objetiva. Esse procedimento também exige que o leitor possa se libertar, mesmo que momentaneamente, dos interesses da vontade e, assim como o autor, ser espelho para a vontade. Portanto, o leitor a quem se destina a obra de Schopenhauer é ativo e autônomo e deve poder contemplar o mundo tal como ele é:
Em cada um desses quatro livros tem-se de ter (o leitor) particularmente cautela para não perder de vista no meio dos detalhes que necessariamente serão tratados o pensamento principal ao qual pertence e a progressão da apresentação como um todo. – Com isso, é proferida a primeira, e como as seguintes, exigência imprescindível ao leitor inexperiente (ao filósofo, justamente porque o próprio leitor é um filósofo). (W I [1986a], p. 9)
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1 – Ana Carolina Soliva Soria:
Doutora em Filosofia pela USP. Professora do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar
https://orcid.org/0000-0002-7762-3981 • anasoliva@ufscar.br
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Como citar este artigo
SORIA, Ana Carolina Soliva. O filósofo e seu leitor na exposição do pensamento único em Schopenhauer. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 12, e20, 2021. DOI 10.5902/2179378667495. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378667495. Acesso em: dia mês abreviado. ano.