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Universidade Federal de Santa Maria

 Voluntas, Santa Maria, v.12, e07, Ed. Especial: Schopenhauer e o pensamento universal, 2021

DOI: 10.5902/2179378666981

ISSN 2179-3786

Submissão: 30/07/2021 Aprovação: 27/09/2021 Publicação: 28/12/2021

1 O TEMA DA LOUCURA EM MACHADO DE ASSIS E ARTHUR SCHOPENHAUER. 2

2 A DEFINIÇÃO DE LOUCURA EM SCHOPENHAUER E A PERSONAGEM OFÉLIA DE SHAKESPEARE. 3

3 A EROTOMANIA DA PERSONAGEM RUBIÃO DE MACHADO DE ASSIS. 7

CONCLUSÃO.. 11

REFERÊNCIAS. 13

 

 Schopenhauer e o pensamento universal

 Loucura de amor

 Madness of love

 Jair Lopes BarbozaIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

RESUMO

 O presente texto examina a definição de loucura de amor em Schopenhauer para, a partir do exemplo literário da personagem Ofélia do Hamlet de Shakespeare, dado pelo Boddhishatva de Frankfurt, fazer uma conexão com a loucura de amor da personagem Rubião do romance Quincas Borba de Machado de Assis.

Palavras-chave: Loucura; Schopenhauer; Machado de Assis; Ofélia; Rubião

ABSTRACT

 The present text examines Schopenhauer's definition of madness of love in order, based on the literary example of Shakespeare's character Ophelia in Hamlet given by the Boddhishatva of Frankfurt, to make a connection with the madness of Machado de Assis’s character Rubião in novel Quincas Borba.

Keywords: Madness of love; Schopenhauer; Machado de Assis; Ofelia; Rubião

 1 O TEMA DA LOUCURA EM MACHADO DE ASSIS E ARTHUR SCHOPENHAUER

 O tema da loucura sempre fascinou Schopenhauer, que o trata mais especificamente na seção 36 de O mundo como vontade e como representação, e no suplemento 32, Tomo II, a essa obra. Sabemos também que o nosso Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, é outro autor fascinado pelo tema. Em seu romance da fase realista, Quincas Borba, a personagem principal, Rubião, em sua caracterização, é mostrado em todo o seu processo de enlouquecimento. Do começo ao fim da narrativa percebe-se como a personagem vai gradativamente ficando louca, até morrer, por causa de um amor não correspondido; e o seu cachorro, Quincas Borba, também morre louco. Ademais, Machado de Assis tem uma novela inteiramente dedicada ao tema, nomeadamente O alienista. Portanto, um assunto caro ao filósofo germânico e ao ficcionista brasileiro.

É interessante observar que Schopenhauer descende de uma linhagem familiar, enraizada na Holanda, com casos de instabiidade psíquica e de melancolia (depressão). Ele mesmo vivenciou uma experiência trágico-amorosa que foi a morte do seu pai, que caiu de uma janela, provavelmente suicídio. O pano de fundo deste acontecimento é a união de conveniência dos seus pais, uma então jovem com cerca de dezenove anos de idade, Johanna, que, objetivando ascensão social, casou-se como o rico comerciante, cerca de vinte anos mais velho, Heinrich Floris Schopenhauer. Porém, se com o tempo a jovem permaneceu nessa conveniência, a recíproca não foi verdadeira, e ele passou de fato a amá-la, não sendo correspondido no amor, que nascera dentro do casamento.

2 A DEFINIÇÃO DE LOUCURA EM SCHOPENHAUER E A PERSONAGEM OFÉLIA DE SHAKESPEARE

A definição de loucura, ao ser introduzida na seção 36 do terceiro livro de O mundo como vontade e como representação, curiosamente aparece no interior da metafísica do belo, ou seja, classicamente falando, no interior da estética, num contexto de averiguação e comprovação do parentesco entre o gênio, instituidor da obra de arte, e o louco.

Schopenhauer sempre desconfiou – inclusive por conta de suas visitas a manicômios com o intuito de estudar a loucura – que, pelos olhos do louco, há lampejos de gênio, bem como, noutra direção, é comum encontrar nas biografias dos artistas geniais a predominância de comportamentos amalucados. Basicamente a loucura ali definida é conceituada como um rompimento do fio da memória, que falseia o pensamento, isto é, o louco falseia as próprias lembranças. Loucura, conseguintemente, é uma doença da memória. Nesse sentido, o filósofo observa que o louco, parecido ao animal, vive quase que exclusivamente no tempo presente; todavia, esse tempo presente não é conectado corretamente ao passado, como as pessoas ditas normais o conseguem fazer. É que, no passado do louco, há muitas ficções misturadas com vivências reais. Por isso pode-se perfeitamente conversar com um louco, ele nos reconhece, convive com a gente, mas não se acredita em suas histórias, precisamente porque a narrativa envolvendo a sua vida pregressa, por conta das ficções alocadas em sua memória, é bastante duvidosa. O louco, apesar de fazer uso do entendimento e da faculdade de razão, ou seja, apesar de possuir reais intuições e corretos conceitos na mente, não se recorda bem do seu passado, ao contrário das pessoas ditas normais que, por mais que se esqueçam de eventos pregressos e haja ficções em sua memória justapostas a sonhos e imaginações, ainda assim conseguem de algum modo sedimentar um solo de vivências, que são separadas de ficções e conectadas ao presente, sem que, portanto, as ficções falseiem os momentos marcantes da sua biografia. Noutros termos, as pessoas ditas normais, ao contrário das loucas, estão aptas a traçar no fio condutor de sua biografia uma fronteira entre o efetivamente vivido e o apenas imaginado. Eu cito:

Nem a faculdade de razão nem o entendimento podem ser negados ao louco, pois eles falam e entendem, muitas vezes concluem de maneira bastante correta, também via de regra intuem o presente de modo acertado, vendo a conexão entre causa e efeito... Na maioria das vezes os loucos não erram no conhecimento do imediatamente PRESENTE; mas a sua fala errônea relaciona-se sempre ao que é AUSENTE ou PASSADO, e só através destes se conecta ao presente. Por isso me parece que sua doença atinge especialmente a MEMÓRIA; não que esta lhes falte completamente, pois muitos sabem muitas coisas de cor e às vezes reconhecem pessoas há muito não vistas, mas, antes, o fio da memória é rompido e as suas conexões contínuas são suprimidas, tornando impossível qualquer lembrança uniforme e coerente do passado. Cenas isoladas acontecidas lá se encontram corretamente, bem como o presente individual, mas na lembrança se encontram lacunas, as quais são preenchidas com ficções... [W I, § 36, pp. 221-22]

Como se vê, o louco pode entender e concluir corretamente, bem como observar a conexão entre causa e efeito no tempo presente. Contudo, a sua fala errônea denuncia que a correta representação de eventos sequenciais abrangendo presente e passado é comprometida, viso que ali, por algum motivo, originam-se lacunas que foram preenchidas com ficções. Se estas são sempre as mesmas, diz Schopenhauer, tem-se as “ideias fixas”; se variam continuamente, tem-se a “demência, fatuitas”. Eis por que, segundo o Boddhishatva de Frankfurt, é difícil interrogar um louco sobre a sua vida pretérita, porque há uma confusão em sua mente entre o verdadeiro e o falso, do que resulta uma ligação fingida do seu presente com o seu passado, ou seja, com as vivências reais, percebidas por ele e por outros. É por isso que o testemunho de um louco não é aceito nos tribunais, já que, sabe-se, estes exigem indivíduos confiáveis em suas falas.

Ora, tendo feito a definição de loucura nesse sentido estrito, Schopenhauer interroga-se: por que “veementes sofrimentos espirituais ou terríveis e inesperados eventos” – na linguagem psicológica e psicanalítica de hoje, por que acontecimentos traumáticos – levam à loucura?

Para responder, o filósofo monta uma argumentação sintética, lapidar, e deveras interessante, a saber: todo acontecimento doloroso, como, por exemplo, diga-se, a morte de um entre querido, é com o tempo assimilado como representação na nossa memória; pois conseguimos digeri-lo, e, assim, com ele conviver, na medida em que ele vai perdendo a sua energia originária de evento trágico, o que possibilita a normal convivência com a sua lembrança. Há pessoas, entretanto, que, devido a sua constituição psicofísica e história de vida, não conseguem realizar esse processo de catarse, e diante de vivências para elas demasiado violentas, tornam-se loucas. Em tais pessoas, a representação dolorosa de um acontecimento muito sofrido não sai da mente, encrava-se ali com a mesma intensidade do evento originário sofrido. Numa pessoa assim, por ela não suportar essa representação traumática, a natureza rompe o fio da sua memória justamente para tentar evitar a sua morte. Nesse sentido, a loucura é, para Schopenhauer, o “último meio de salvação da vida”. Ora, esse salutar esquecimento é precisamente a lacuna aberta na memória do louco, que, então, será preenchida com ficções. A loucura, em última instância, é um “refúgio” para o espírito torturado, que não consegue digerir vivências armazenadas na memória, as quais, como representações, ainda violentam a sua subjetividade.

Para ilustrar a sua teoria, o autor recorre a exemplos da literatura: as personagens Ajax, de Sófocles, e rei Lear e Ofélia, de Shakespeare. Justifica-os observando que as criações do autêntico gênio, universalmente conhecidas, “devem ser colocadas em pé de igualdade, em sua verdade, com pessoas reais”. Ademais, complementa, a experiência efetiva mostra o mesmo, visto que a vida, aristotelicamente falando (cf. Poética), imita a arte. Para Schopenhauer, o domínio da verdade metafísica, para além das verdades apreendidas na geografia do conhecimento empírico e temporal traçada pelo princípio de razão suficiente (tudo que existe tem uma razão por que existe), encontra-se na arte, que é exposição de Ideias, de arquétipos eternos das coisas temporalmente aparentes. Arquétipos esses que podem ser intuídos pelo puro sujeito do conhecimento na sua potência cognitiva que é o artista no seu processo de criação, isto é, de recriação da natureza efetiva.

Se destacarmos o caso de Ofélia, nota-se que Shakespeare a caracteriza como uma moça bastante encantada amorosamente pelo príncipe da Dinamarca, Hamlet, em verdade sua noiva, mas que teve o pai dela apunhalado pelo próprio príncipe da Dinamarca. Ocorre que este, embriagado pelo desejo de vingança do próprio pai, morto por seu irmão, que depois se casa com a rainha, cega-se para Ofélia e rejeita o seu amor, fingindo-se de louco. Esse comportamento errático do príncipe da Dinamarca é dolorido demais para Ofélia, que o interpreta ao mesmo tempo como uma recusa amorosa. A representação disso, associada à da morte do pai, é insuportável para ela. Como consequência, seriam estes os termos de Schopenhauer, ela rompe o fio da sua memória, expulsa dela tais representações doloridas, e cria nela lacunas que são preenchidas, e isso mostra Shakespeare, com um discurso desconexo. Foi o modo, portanto, que a natureza encontrou para salvá-la, pelo menos momentaneamente. Loucura, aqui, primariamente de amor, que consiste num expulsar algo da mente para em seguida colocar algo no seu lugar.

3 A EROTOMANIA DA PERSONAGEM RUBIÃO DE MACHADO DE ASSIS

No Tomo II de O mundo..., o autor retoma o tema da loucura, agora dedicando um suplemento especial a ele, o 32, “Sobre a loucura”. Abre-o sublinhando que “a saúde propriamente dita do espírito consiste na perfeita recordação”. Isto não no sentido de a memória ter de conservar tudo, mas sim no de que “todo evento característico ou significativo tem de ser novamente encontrado na lembrança” se o intelecto for “normal, forte e completamente saudável”. Depois – argumentação esta que mais me interessa aqui, em vistas de criar um vaso comunicante entre a sua filosofia e a literatura de Machado de Assis – Schopenhauer apresenta um outro caso de loucura, nomeado “erotomania”, que se origina de um colocar algo na mente expulsando ao mesmo tempo algo dela. Na erotomania alguém se apaixona por uma pessoa e não a tira da cabeça, a tal ponto que num dado instante isso vira uma ideia fixa, de modo que ao fim, por não ser correspondida, e para escapar do sofrimento insuportável, a loucura instala-se na sua cabeça. Neste caso há também um esgarçamento do fio da memória. E é justamente aqui que eu ponho em cena a literatura de Machado de Assis – para fazer companhia aos exemplos de autores dados por Schopenhauer (Sófocles e Shakespeare) – com a sua personagem Rubião do romance Quincas Borba. Se no caso da Ofélia temos um expulsar algo da mente para no seu lugar colocar algo outro, no caso de Rubião temos primeiro um colocar algo na mente, para dela expulsar algo outro. Diz Schopenhauer:

[...] pode-se, portanto, considerar a origem da loucura como um violento “expulsar da mente” alguma coisa, o que, todavia, só é possível por um “pôr na cabeça” outra coisa. Mais raro é o processo inverso, ou seja, que o “pôr na cabeça” venha em primeiro lugar e o “expulsar da mente” em segundo lugar. Não obstante, ocorre nos casos em que a pessoa conserva continuamente presente a ocasião pela qual tornou-se louca e não pode desvencilhar-se dela: dá-se, por exemplo, nas muitas loucuras de amor, erotomanias, em que a ocasião persiste indelével [...] [W II, § 32, pp. 479-80]

O doente agarra-se, neste último caso, convulsivamente ao pensamento da pessoa amada, que não lhe corresponde no amor. Todavia, em ambos os casos de loucura, a memória é comprometida, fica doente, e o indivíduo, por conta disso, não consegue mais lidar de maneira saudável com as situações da realidade e com as pessoas que nesta surgem, inapto que ficou para trabalhar com recordações uniformemente coerentes, “base de nossa sã e racional clareza de consciência”. Note-se mais uma vez que, independentemente do tipo de loucura, para o Boddhishatva de Frankfurt a saúde espiritual está de fato fundeada na boa e bem concatenada recordação do passado. Ele, inclusive, aconselhava que escrevêssemos diários, para evitar que eventos importantes esfumaçassem-se, e assim a nossa vida pretérita se tornasse uma indefinição entre aquilo que foi sonhado, imaginado e vivido, ou seja, uma confusão de quadros indistintos em sua criação. O próprio autor dá o exemplo, tendo sido um amante de diários, nos quais constavam os eventos mais significativos da sua vida, fossem eles filosóficos, econômicos, jurídicos, viagens etc., do que são testemunhos os seus diários da adolescência, as suas cartas e os seus manuscritos póstumos. [1]

De fato, no romance Quincas Borba, Machado de Assis nos apresenta Rubião, interiorano de Barbacena, estado de Minas Gerais, amigo do rico filósofo Quincas Borba, autor de uma original filosofia monista chamada humanitismo. Rubião era um interiorano que não sabia o que fazer da vida, e, para não ficar sem fazer nada, encostou-se na profissão de professor. Não compreendia o sistema de pensamento do amigo, nem mesmo o seu mote “ao vencedor, as batatas”. Ocorre que Quincas Borba fica louco, não por causa de um amor sexual, mas por causa do seu excesso de amor às ideais, talvez tributário de um problema cerebral que o narrador não aborda. Em todo caso, Quincas Borba é cognominado “náufrago da existência”. Depois de morto, descobre-se que o seu herdeiro universal é Rubião, porém com uma condição, uma única condição, a de cuidar do seu cachorro como se pessoa fosse. Dono dessa fortuna, o interiorano resolve mudar-se para a Corte no Rio de Janeiro (o romance se passa no período imperial brasileiro, em meados do século XIX). No trem que o leva de Vassouras para a Corte, encontra na cabine do seu assento um casal, Sofia e Cristiano Palha, e ali inicia-se um diálogo de apresentação recíproca. De imediato, sem freios na língua, diz Rubião que é herdeiro de uma grande fortuna, que um amigo lhe deixou como herança, e está indo para o Rio de Janeiro cuidar do inventário. Machado de Assis mostra que é precisamente nesse momento do encontro, inteiramente casual, que começa a desgraça de Rubião, porque este logo nota, encantado, a beleza de Sofia, num espanto que provavelmente não escapou ao casal, que, vai revelar o romance, são golpistas, e astutamente trabalham com a fraqueza da paixão amorosa de Rubião ali nascida.

Na Corte, esse universo de humanos animais peçonhentos, em que as cobras entredevoram-se, Rubião aceita a ajuda do casal Palha. É a sua tragédia. Apaixonado por Sofia – que, segundo o narrador, tinha olhos convidativos, mas só convidativos –, ele enfraquece-se psiquicamente, porque a sua paixão não é correspondida. Sua proposta de romance adúltero é rejeitada pela “dona astuta”. Para compensar a rejeição, demasiado dolorida, o professor passa a alimentar fantasias com Sofia, as quais saem do controle, a figura dela tornando-se uma obsessão. Rubião colapsa psiquicamente com essa ideia fixa.

Portanto, o romance Quincas Borba, de fio a pavio, explicita como se produz a loucura de Rubião mediante um primeiro “pôr na cabeça” algo, que só é possível através de um expulsar algo dela. É a assim chamada erotomania. Rubião compromete completamente a sua relação saudável com a realidade, devido ao seu passado que começa agora a ser falseado, logo, o seu discurso torna-se desconexo, sem sentido.

O Rubião de Machado de Assis, portanto, é um exemplo estético que eu contraponho à Ofélia de Shakespeare, citada por Schopenhauer na sua metafísica do belo. É um exemplo literário de erotomania, que Schopenhauer não fornece, mas que, como no caso de Ofélia, penso, ilustra bem a sua teoria da loucura.

Há em Schopenhauer uma passagem belíssima, do suplemento 32 do Tomo II de sua obra magna, que poeticamente sintetiza a sua teoria da loucura, nomeadamente a de que a loucura é o “Lete” dos sofrimentos insuportáveis, remetendo ao rio do esquecimento da mitologia grega. Em grego λήθη (léte) significa “ocultação”, “velamento”, “esquecimento”. É um termo que, na sua negação, origina αλήθεια, (alétheia), que significa “desvelamento”, isto é, tirar da ocultação, tirar do esquecimento, termo que também se traduz interpretativamente por verdade.

CONCLUSÃO

Por fim, penso que é teoricamente significativo conectar nesta conclusão a teoria da loucura de Schopenhauer com a sua Metafísica do amor sexual exposta no suplemento 44 de O mundo... Com efeito, o que temos aqui é a referência a um sem número de ações amalucadas e desastrosas que se pratica sob o império de Eros. Este deus faz os jovens empregarem quase todas as suas forças em paixões amorosas, põe em confusão as mais excelsas cabeças, faz pessoas inserirem seus bilhetes de amor nas pastas ministeriais e nos manuscritos filosóficos, por vezes estraga ou ceifa a vida dos envolvidos, como bem o expõem, diga-se, Shakespeare em Romeu e Julieta e Otelo, Goethe em Os sofrimentos do jovem Werther, Machado de Assis em Dom Casmurro. Eros muitas vezes corrompe relações valiosas e faz do virtuoso um inescrupuloso, do leal, um traidor, enfim, Eros é um “demônio hostil, que a tudo se empenha por subverter, confundir e passar a rasteira”. Por ser um negócio do coração e não da assim chamada “luz natural” (a razão), a pessoa enamorada é obnubilada por Eros, os graus de tragicidade (e comicidade) de suas ações variando, sendo que, nos baixos, a vida segue bem nos seus trilhos, mas no limite tem-se a loucura ou o suicídio, ou ambos.

Ao tratar da loucura e do amor sexual, mostrando como muitas vezes os dois interconectam-se, Schopenhauer sem dúvidas ousou filosoficamente. O assunto é raramente tratado pelos filósofos. Ele faz questão de sublinhar isso, observando que não é vergonhoso dissertar sobre o assunto no interior de um sistema de pensamento, ao contrário, vergonhoso intelectualmente é não aprofundar-se num tema tão importante, que ocupa a maior parte da vida de todos os indivíduos, sem excluir os anciãos. Schopenhauer surpreende-se que na história da filosofia os pensadores foram tão acanhados em tratar essa questão. Obviamente que ele tem a plena ciência do Banquete de Platão, todavia o aí abordado tem mais a ver com os mitos e com a pederastia grega. Ademais Platão não teria abarcado toda a esfera do conceito de amor. Segundo Schopenhauer, Rousseau no Discurso sobre a desigualdade, Kant no ensaio Sobre o sentimento do belo e do sublime, Espinosa na sua Ética, apenas escreveram coisas superficiais, falsas, insuficientes, e, no fundo, ironiza o filósofo (pensando em Kant), “sem conhecimento do assunto”. De modo que se sente como um pioneiro no profundo tratamento filosófico do amor, e das consequências do enamorar-se, ou seja, conectando-o ao tema da loucura.

Se, de um lado, o autor de O mundo... deteve-se na loucura psíquica, por outro, ele sabe perfeitamente, estudioso que foi do cérebro – em verdade um vanguardista na filosofia clássica alemã ao tratar em termos fisiológicos do conhecimento, a ponto de comparar o funcionamento do cérebro com o funcionamento do estômago, contrapondo-se assim a Kant e aos idealistas Fichte, Schelling e Hegel, que evitaram tratar da base biológica da cognição, porém antecipando Nietzsche –, que certos tipos de loucura originam-se de um fundo somático, mas muitas vezes, sabe, é a loucura psíquica que acarreta danos somáticos.

Abordei a origem psíquica da loucura como ela, pelo menos segundo todas as aparências, produz-se em pessoas saudáveis mediante uma grande infelicidade. No caso de pessoas já fortemente predispostas a ela em termos somáticos bastará uma mínima contrariedade: por exemplo, lembro-me de ter visto num manicômio um homem que foi soldado e enlouqueceu só porque o seu oficial o tratou como um subordinado, usando a terceira pessoa do singular “ele”... A loucura nascida de causas meramente psíquicas pode talvez, devido à violenta inversão do curso de pensamento gerado por ela, produzir algum tipo de paralisia ou outra degeneração de algumas partes do cérebro, que, se não tratada de imediato, torna-se permanente... [W II, § 32, pp. 480-81]

Em síntese, ao definir a loucura psíquica como “último meio de salvação da vida” para uma pessoa que não consegue conviver com a representação de um sofrimento, que não consegue digeri-lo e dessa forma incorporá-lo nas lembranças de sua memória, o filósofo, vimos, inclui aí a loucura de amor. Contudo, os exemplos literários dados por Schopenhauer, bem como o dado por Machado de Assis, são falsamente consoladores, são falsos meios de salvação da vida, porque, ao fim, Ofélia e Rubião morrem; são, portanto, sacrificados por Eros. Este foi vingativo por não ter sido satisfeito em suas diatribes.

A pergunta que não quer calar: seria possível que loucos de amor se salvem? Sim, desde que, paradoxalmente falando, não fiquem loucos, para que assim os desígnios da espécie sejam satisfeitos. Cabe aqui, pois, parafrasear Nietzsche: amar é dançar à beira de abismos; num dos quais pode-se ou não cair.

REFERÊNCIAS

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, Tomo I. 2. Ed. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Ed. Unesp, 2015.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, Tomo II. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Ed. Unesp, 2015.

SCHOPENHAUER, A. Et in Arcadia ego. Arthur Schopenhauer und Italien. Herausgegeben von Ernst Ziegler. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2018.

SPIERLING, V. Arthur Schopenhauer. Hamburg: Junius, 2002.

Contribuição de autoria

1 – Jair Barboza:

Doutor em Filosofia

jjairbarboza@gmail.com

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

BARBOZA, Jair. Loucura de amor. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 12, e07, 2021. DOI 10.5902/2179378666981. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378666981. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Além dos seus diários juvenis, nomeadamente Journal einer Reise von Hamburg nach Carlsbad, und von dort nach Prag. Rückreise nach Hamburg. Anno 1800 e Reisetagebücher aus den Jahren 1803-1804 (cf. Spierling, 2002, p 115), um outro bom exemplo encontra-se em Et in Arcadia ego. Arthur Schopenhauer und Italien (cf. Schopenhauer, 2018, pp. 51-81). Curioso é que, embora num contexto diferente, o do exame da origem da “culpa” e da “má consciência” constitutivas da moralidade escrava e que fundam o poder do sacerdote ascético, Nietzsche afirma na segunda dissertação da Genealogia da moral, contrariamente a Schopenhauer, que a saúde “forte” do espírito baseia-se na capacidade de esquecimento.