Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v.12, n.2, p. 01-08, mai./ago., 2021

DOI: 10.5902/2179378666871

ISSN 2179-3786

Recebido: 24/07/2021 Aceito: 06/10/2021 Publicado: 28/12/2021

 

Resenha

Resenha do livro Kafka e Schopenhauer: zonas de vizinhança, de Maurício Arruda Mendonça

Pedro Carné I

I Doutor em Filosofia, Universidade Federal de Campina Grande, Unidade Acadêmica de Ciências Sociais, Campina Grande, PB, Brasil

e-mail: pedrohpcarne@gmail.com - ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7692-8441

O livro Kafka e Schopenhauer: zonas de vizinhança, escrito por Maurício Arruda Mendonça, investiga a maneira através da qual Kafka considerou a doutrina do pensamento único de Schopenhauer em suas criações literárias. Confiando nos relatos de Max Brod e de Gustav Janouch — que atestam a admiração de Kafka por Schopenhauer até o final de sua vida — e na pesquisa de Klaus Wagenbach — que, ao reconstituir a biblioteca particular de Kafka, apurou que, além de uma biografia de Schopenhauer, Kafka possuía nove dos doze volumes das obras completas de Schopenhauer —, o trabalho dedica-se à demarcação das zonas de vizinhança que existiriam entre os textos de ambos os autores.

Estruturado em seis capítulos, os capítulos inicial e final emolduram a demarcação destas zonas de vizinhança entre Kafka e Schopenhauer. Se, no primeiro, somos apresentados às questões inaugurais do estudo (por exemplo, uma exposição da biografia de Kafka, na qual aprendemos sua temática, sua relação com o judaísmo, com a língua alemã, com Schopenhauer etc.), no capítulo final acompanhamos a elaboração de uma espécie de mapa detalhado do pensamento schopenhaueriano — tal como poderíamos esboçá-lo a partir dos textos de Kafka (por exemplo, as imagens de “presídio a céu aberto”, “o tempo como repetição”, “fome de viver”, “o mundo como perdição”, bem como os temas do ascetismo e do pessimismo). Entre um e outro, circunscreve-se cada zona de vizinhança entre Kafka e Schopenhauer, auscultando os ecos da doutrina do filósofo em textos específicos de Kafka. Com efeito, analisa-se o romance O Castelo (1922), os Aforismos de Zürau e os Cadernos G e H (1917-1918), a novela Na Colônia Penal (1914) e o conto O Caçador Graco (1916-17).

Além das questões inaugurais do estudo empreendido, o primeiro capítulo explicita a metodologia utilizada no desenvolvimento de toda a análise. Em função disso, duas advertências são feitas de imediato: por um lado, que, com o conceito de “zonas de vizinhança”, pretende-se reconhecer um “percurso de suposições” capaz de sinalizar uma comunicação entre Kafka e Schopenhauer; por outro lado, que não se pretende demonstrar de maneira definitiva as “influências” de Schopenhauer sobre Kafka, uma vez que isso negaria a multiplicidade de sentidos e interpretações provocadas pela obra kafkiana.

A segunda advertência pereceu-me um pouco ambígua. Por um lado, penso que, ao se demonstrar a influência de Schopenhauer na sensibilidade de Kafka, isto é, ao se indicar que a sensibilidade de Kafka teria sido comovida pela doutrina de Schopenhauer, não se estaria negando a multiplicidade de sentidos e interpretações provocada por sua obra. Pelo contrário. A demonstração de que Schopenhauer foi um dos elementos movimentados por Kafka em suas criações (haja vista a reconstituição de sua biblioteca por Wagenbach e os relatos de Brod e Janouch) apenas indica que, em alguma medida e de alguma forma, Schopenhauer inspirou Kafka e que isto não pode ser ingenuamente menosprezado. Por outro lado, naturalmente, a especificação da maneira através da qual a sensibilidade de Kafka manifestou os traços de uma cultura filosófica schopenhaueriana manifesta o poder de uma pergunta aberta, uma pergunta que nos convida a ensaiar uma resposta que, de antemão, sabemos não ser definitiva.

Já a primeira advertência, por sua vez, é fundamental para compreendermos todo o movimento teórico do livro. O “percurso de suposições” que fundamentaria as “zonas de vizinhança” entre Kafka e Schopenhauer exige que acompanhemos cada capítulo da análise empreendida no livro, ou seja, exige que atravessemos a análise de cada criação de Kafka em particular. É como se, com o auxílio de tais conceitos, qualquer generalização no tocante à relação entre Kafka e Schopenhauer fosse bloqueada. Isto é, se quisermos compreender de que maneira a sensibilidade de Kafka foi comovida pela doutrina de Schopenhauer, precisamos observar como esta comoção expressa-se e atualiza-se em cada texto.

Assim, temos o seguinte esquema geral dos capítulos dedicados à demarcação das zonas de vizinhança entre Kafka e Schopenhauer: em primeiro lugar, apresenta-se um resumo da obra de Kafka; na sequência, alguns aspectos de sua criação (antecedentes materiais e biográficos, bem como aspectos formais-literários); depois, algumas questões interpretativas; e, por fim, a maneira através da qual a obra de Kafka e a obra de Schopenhauer convergiriam para uma “instância de questionamento”. Apresentarei, em linhas gerais, apenas as seções relativas à demarcação das zonas de vizinhança entre Kafka e Schopenhauer.

O trabalho analítico inicia-se com a atenção concentrada no romance O Castelo (1922). Maurício Arruda Mendonça ecoa em sua interpretação a opinião de diversos especialistas (por exemplo, T. J. Reed, Richard Sheppard, Sandro Barbera e John Zilcovski), para quem O Castelo seria a obra de Kafka que exibiria o maior número de intersecções com a doutrina schopenhaueriana. A razão para esse diagnóstico consiste no fato de que, neste romance, encontramos basicamente três ressonâncias das reflexões sobre a nossa relação com a coisa em si efetuadas por Schopenhauer: a imagem do castelo, os conceitos de “vontade” e de “representação”, bem como os conceitos de “gênio” e “homem comum”.

A imagem do castelo, com efeito, é utilizada por Schopenhauer no §17 do primeiro tomo de O Mundo como Vontade e Representação, como uma maneira de caracterizar a diferença entre seu movimento teórico em relação à essência das coisas e o movimento dos demais filósofos. Escreve Schopenhauer: “vemos, pois, que DE FORA jamais se chega à essência das coisas. Por mais que se investigue, obtêm-se tão-somente imagens e nomes. Assemelhamo-nos a alguém girando em torno de um castelo, debalde procurando sua entrada, e que de vez em quando desenha as fachadas” (W I, §17, p. 156). Na interpretação de Maurício Arruda Mendonça, esta imagem schopenhaueriana parece um resumo do romance de Kafka, pois nos remeteria imediatamente ao périplo do protagonista K., cuja entrada no castelo do conde de Westwest jamais se processaria.

A relação de uma imagem tão fundamental para a compreensão da intuição medular do pensamento de Schopenhauer com a temática do romance de Kafka sugere, pelo menos, duas importantes implicações. A primeira implicação consistiria na relação (alegórica, pode-se dizer) entre a vila e o castelo, no romance de Kafka, com os conceitos fundamentais de Schopenhauer, sejam eles os conceitos de “vontade” e “representação”; já a segunda consistiria na relação entre o protagonista do romance com as reflexões de Schopenhauer sobre o “gênio” e o “homem comum” que são elaboradas no §36 de O Mundo como Vontade e Representação.

O capítulo seguinte dedica-se à interpretação dos Aforismos de Zürau e os Cadernos G e H. Para o autor, este conjunto de aforismos dissiparia qualquer dúvida em relação ao conhecimento da doutrina de Schopenhauer nutrido por Kafka. Afinal, aqui encontraríamos as reflexões do escritor de Praga sobre morte, erro, sofrimento, positividade da dor, indestrutibilidade, justiça eterna e representação; reflexões que ecoariam não apenas o pensamento único elaborado pelo filósofo alemão, mas, especificamente, as teses por ele apresentadas em “Da morte e sua relação com a indestrutibilidade de nosso ser em si” (quadragésimo primeiro capítulo do segundo volume de O Mundo como Vontade e Representação), bem como em “Sobre a doutrina da indestrutibilidade de nosso ser verdadeiro pela morte” e “Acréscimos à doutrina do sofrimento do mundo” (décimo e décimo segundo capítulos de Parerga e Paralipomena). Assim como no caso do romance O Castelo, o desenvolvimento de cada uma dessas ressonâncias da obra de Schopenhauer em Kafka demanda uma cuidadosa elaboração. Podemos ter uma ideia da intensidade do zelo analítico requerido ao observarmos as seguintes citações de Kafka e Schopenhauer:

Após a morte de uma pessoa, um silêncio especial e benfazejo se instala por um tempo, mesmo sobre a terra à qual concerne a pessoa do defunto, uma febre terrestre cessou, não se vê mais a agonia, um erro parece eliminado, para os vivos é uma ocasião para recobrar o fôlego, é por isso que se abrem as janelas das câmaras mortuárias até que tudo se revele não ser mais que uma aparência e a dor e as lamentações comecem. (KAFKA apud MENDONÇA, 2020, p. 104)

Disso é para se concluir que todo o cessar do processo vital tem de ser, para a sua própria força motriz, um alívio maravilhoso: o qual talvez tenha participação na expressão de doce contentamento na fisionomia da maior parte dos mortos. Em geral, o instante da morte pode ser semelhante ao acordar de um grave pesadelo. (SCHOPENHAUER apud MENDONÇA, op. cit., p. 139)

Deve-se ressaltar que as ressonâncias que podemos perceber neste par de citações são qualificadas sem o apelo a simplificações apressadas.

Prosseguindo em seu exercício hermenêutico, o autor analisa as zonas de vizinhança entre Kafka e Schopenhauer na novela Na Colônia Penal. As diretrizes interpretativas, aqui, parecem ter sido oferecidas pelo próprio Schopenhauer, na medida em que ele se vale da expressão “colônia penal” para caracterizar nossa vida neste mundo (efetivamente, no §156 dos “Acréscimos à doutrina do sofrimento do mundo” da obra Parerga e Paralipomena). Kafka, aliás, ecoava esta imagem do mundo como uma penitenciária não apenas ficcionalmente, pois teria dito ao jovem Gustav Janouch que “o homem não está condenado à morte, está condenado a viver” (JANOUCH apud MENDONÇA, op. cit., p. 145).

Por fim, o trabalho analítico dedica-se ao conto O Caçador Graco. Maurício Arruda Mendonça julga que, neste breve conto, além de um jogo com os gêneros literários (pois Kafka teria parodiado a forma da lenda em sua narrativa), o escritor de Praga teria concentrado, na figura de Graco, algumas ideias de clara inspiração schopenhaueriana, tais como as da vida como erro fundamental, da relação entre culpa e justiça eterna, bem como da repetição. Consequentemente, a ressonância destas ideias faria com que os §32 e §63 de O Mundo como Vontade e Representação pudessem ser destacados como o outro polo fronteiriço das zonas de vizinhança cuidadosamente demarcadas entre os autores.

O estudo da demarcação das zonas de vizinhança entre Kafka e Schopenhauer inspirou-me na elaboração de algumas questões. Gostaria de encerrar esta resenha compartilhando especialmente uma.

Por um lado, a apresentação de Kafka nos ensina que ele, além de judeu, pertencia a uma linhagem de talmudistas e rabinos por parte de mãe, o que o fazia alegar possuir mais o sangue de sua mãe do que o de seu pai (cuja família era constituída por pessoas fortes, rudes e práticas). Aprendemos que, no final de sua vida, Kafka teria se aproximado do Hassidismo, “um movimento religioso no seio do Judaísmo ortodoxo que visou à promoção de uma maior espiritualidade por intermédio da popularização e mesmo internalização do misticismo judaico, como aspecto fundamental da fé dos judeus” (MENDONÇA, op. cit., p. 92). Ou seja, Kafka não apenas era judeu, como vivenciou seu judaísmo de uma forma bastante intensa.

Por outro lado, em seu texto “Sobre a Necessidade Metafísica da Humanidade”, Schopenhauer afirma que a necessidade metafísica da humanidade deriva diretamente ascensão da Vontade de viver em sua objetivação, a qual, após percorrer os reinos desprovidos de consciência, chegaria à humanidade, e, através dela, à pergunta sobre o que ela mesma, como essência íntima da natureza, é. Escreve o filósofo: “E o seu assombro se torna ainda maior quando se coloca com consciência pela primeira vez face a face com a morte, e além da finitude de toda existência, se lhe impõe em maior ou menor grau a inutilidade de todos os nossos esforços” (W II, XVII, p. 249). Mais adiante, o filósofo afirma que, sem sombra de dúvida, é o conhecimento da morte, trazendo consigo uma íntima relação com os sofrimentos e com as misérias da vida, que nos impulsiona de maneira decisiva à reflexão filosófica e às reflexões metafísicas do mundo. Um pouco mais à frente, Schopenhauer afirma não distinguir as religiões baseado em seu caráter monoteísta, politeísta etc., mas apenas em relação ao seu otimismo ou pessimismo, isto é, “se elas apresentam a existência neste mundo como justificada em si mesma e, consequentemente, louvam e recomendam isto, ou consideram-na como algo que pode ser concebido apenas como a consequência de nossa culpa, e, portante, realmente não deveria existir” (W II, XVII, p. 262). Com este raciocínio em vista, Schopenhauer avalia o judaísmo como uma religião “otimista” que teria sido “superada” pelo cristianismo, o qual, graças ao seu pessimismo, superou não apenas o otimismo judeu como também o otimismo pagão.

Ao longo da leitura, perguntei-me de que forma a avaliação do judaísmo feita por Schopenhauer conecta-se com a experiência do judaísmo de Kafka. Seria o judaísmo de Kafka “otimista” nos termos schopenhauerianos? Além disso: é notório que Schopenhauer cultivou uma íntima relação com o espírito milenar da sabedoria indiana. Será que esta relação foi suficiente para colocar em xeque as raízes hebraicas da cultura ocidental? Ou será que as zonas de vizinhança entre Schopenhauer e Kafka seriam capazes de iluminar profundas conexões que aproximam as culturas hebraica e indiana?

O livro de Maurício Arruda Mendonça, Kafka e Schopenhauer — zonas de vizinhança, amplia o escopo das investigações dedicadas à especificação da influência exercida pela doutrina de Schopenhauer nos mais variados artistas (escritores, músicos, pintores etc.) ao longo dos séculos XIX e XX. Fruto de sua pesquisa doutoral, o trabalho oferece-nos um valioso e indispensável retrato da maneira através da qual a doutrina de Schopenhauer foi considerada por Kafka em suas criações literárias. Talvez, como no caso de Tolstói, o interesse de Kafka por Schopenhauer tenha frutificado em virtude de ele, Kafka, ter visto confirmada pela doutrina de Schopenhauer suas intuições metafísicas mais íntimas, naquela comunhão dos grandes espíritos que, nos termos de Paulo Leminski, carregam o peso da dor como se portassem medalhas.

REFERÊNCIAS

MENDONÇA, M. A. Kafka e Schopenhauer: zonas de vizinhança. Londrina: EDUEL, 2020.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Ed. UNESP, 2005.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Tomo II. Vol. 1. Trad. Eduardo Ribeiro da Fonseca. Curitiba: Ed. UFPR, 2014.

Contribuições de autoria

1 – Pedro Carné

Contribuição: Autoria