Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v.12, n.2, p. 01-31, mai./ago., 2021
DOI: 10.5902/2179378666521
ISSN 2179-3786
Recebido: 30/06/2021 Aceito: 23/08/2021 Publicado: 28/12/2021
Estudos Schopenhauerianos
Asseidade e orgulho: introdução à proposta de uma nova interpretação sobre a liberdade moral a partir da metafísica da vontade
Aseity and pride: introduction to a proposal for a new interpretation of moral freedom on the metaphysics of will
Rogério Moreira Orrutea FilhoI
I Mestre em Filosofia, Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Faculdade Dom Bosco, Londrina, PR, Brasil
e-mail: rogeriomofilho@gmail.com – ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6756-9603
RESUMO
Este artigo é dividido em dez seções. Das seções 1 a 4, faz-se uma reconstrução da teoria schopenhaueriana da liberdade. Será mostrado que Schopenhauer adota uma definição negativa de liberdade, sendo esta a simples ausência de necessidade. A partir da quinta seção, mostramos que esta definição é insuficiente, pois a liberdade negativa restringe-se à inação. Em seguida, busca-se a partir de Schopenhauer uma definição positiva de liberdade. Julgamos encontrá-la na identidade entre Ser e Querer, pela qual o agente quer-se de acordo com aquilo que se é, mas também é de acordo com aquilo que quer ser. Esta correspondência entre Ser e Querer — que também pode ser chamada de asseidade — encontra corroboração no sentimento de orgulho.
Palavras-chave: Asseidade; Liberdade; Orgulho
ABSTRACT
This paper is divided in ten sections. From the first to the fourth, it is presented a reconstruction about the schopenhauerian theory of freedom. Here, we shown that Schopenhauer adopts a negative definition of freedom, as simple absence of necessity. From the fifth section, we show that this definition is insufficient, as negative freedom is restricted to inaction. Then, based on Schopenhauer, a positive definition of freedom is sought. We think we find it in the identity between Being and Wanting, through which the agent wants himself according to what he is, but he also is according to what he wants to be. This correspondence between Being and Wanting — which can also be called aseity — finds corroboration in the feeling of pride.
Keywords: Aseity; Freedom; Pride
1 INTRODUÇÃO
O que significa dizer que alguém é moralmente responsável? A princípio, significa dizer que este alguém é o artífice de seus atos. Responsabilidade pressupõe liberdade, e liberdade é a capacidade de decidir os próprios atos. E se considerarmos que nossos atos são a expressão externa e fragmentada daquilo que somos, então liberdade tem de significar o poder de decidir aquilo que se é. Por isso, Schopenhauer escreveu que, caso queiramos nos considerar moralmente livres, então “nosso caráter deve ser visto como o desdobramento temporal de um ato extratemporal, portanto indivisível e imutável da Vontade” (W I, §55, p. 389/I 356).
Entretanto, esta formulação pode provocar mais dificuldades do que soluções. Afinal, o que poderia significar uma atuação extratemporal da vontade? Além disso, como posso ser considerado livre, se sou obra de uma decisão imutável, tomada “de uma vez por todas”, como Schopenhauer repetiu tantas vezes? Se sou o resultado de uma decisão extratemporal e imutável, isso significa que, caso eu queira assumir outro caráter, eu não poderei fazê-lo. Então como posso ser considerado livre? Dizer que, segundo Schopenhauer, não é o indivíduo que é livre, pois este atributo cabe apenas a uma certa vontade impessoal, não ajuda muito, pois: I) contraria os melhores argumentos de Schopenhauer em favor da liberdade moral que, como veremos, sustentam-se sobre o sentimento de responsabilidade por aquilo que nós somos; e II) com isso corre-se o risco de distanciar a filosofia de Schopenhauer do mundo real e verdadeiramente experimentado, pois ninguém julga moralmente alguém a partir das decisões de uma vontade impessoal1. Portanto, a dificuldade persiste, e por isso é com razão que Aguinaldo Pavão escreve:
Precisamos de mais informações sobre o que pode vir a significar “ato extratemporal da vontade”, que, segundo Schopenhauer, funda o caráter inteligível. Como devemos entendê-lo? Se pensarmos jogar alguma luz afirmando que se trata de uma metáfora [...], não logramos êxito. Ao menos, eu não entendo o que possa vir a significar alguém responder moralmente por algo que não fez, que não escolheu, por algo que não é seu ato no sentido comum do termo.2
Em grande parte, este trabalho dedica-se a solucionar esta dificuldade que o próprio Schopenhauer causou ao usar a metáfora do “ato extratemporal” como forma de explicar sua teoria da liberdade moral. Nossa hipótese é a de que a responsabilidade por aquilo que somos (e consequentemente, nossa liberdade moral) confirma-se I) pela posição privilegiada ocupada pelo sentimento de responsabilidade, em termos cognitivos, e II) pelo fato de que, embora não se possa falar de uma decisão inauguradora de nosso caráter, no entanto ainda devemos nos julgar responsáveis por este mesmo caráter, na medida em que somos cúmplices de nós mesmos. Eu chamarei esta cumplicidade de “orgulho”.
Antes de procedermos à exposição dos argumentos que corroboram estas assertivas, cabe aqui advertir o leitor de que este texto consiste em um trabalho de introdução a uma proposta de nova interpretação do problema da liberdade moral a partir da metafísica da vontade. Consequentemente, não se sustenta aqui a pretensão de oferecer uma exposição completa desta proposta, motivo pelo qual teremos de deixar de lado alguns dos mais difíceis problemas que se articulam nas discussões sobre a liberdade moral a partir da filosofia de Schopenhauer, tais como a relação entre vontade e consciência e a questão da ascese.
2 LIBERDADE MORAL E SENTIMENTO DE RESPONSABILIDADE
Em seus escritos sobre a liberdade, Schopenhauer adota como premissa fundamental uma conceituação meramente negativa de liberdade. Nestes termos, “liberdade” significaria apenas independência em relação a qualquer elo necessário imposto pelo princípio de razão suficiente:
Pelo conceito de liberdade só se pensa em geral a ausência de toda necessidade. Com isso, o conceito conserva um caráter negativo. [...] Uma vontade livre seria, portanto, aquela que não tivesse fundamentos, que não fosse determinada por nada, cujas manifestações exteriores (atos de vontade) fossem geradas originariamente a partir dela mesma, sem que fosse conduzida necessariamente por condições anteriores, portanto, sem também ser determinada através de alguma coisa, de acordo com uma regra. Por meio deste conceito elimina-se todo pensamento claro, e isso pelo fato de que o princípio de razão, em todos os seus significados, é a forma essencial de nossa total faculdade de conhecimento, mas aqui ele deve ser revogado (E I, I, p. 47-48)3.
Em poucas palavras: o princípio de razão suficiente significa que toda consequência segue-se necessariamente de seu fundamento; a liberdade só pode ser entendida como ausência de necessidade, logo, como ausência de razão suficiente e, portanto, “liberdade” é a negação da razão suficiente; porém, a razão suficiente é a forma geral de nossa faculdade de conhecimento, consequentemente, a liberdade é incognoscível, não podendo ser alcançada pelo “pensamento claro”.
Apesar do tom assertivo nessas considerações, o fato é que Schopenhauer supõe, no desenvolvimento de seus argumentos, a possibilidade de uma instância cognitiva que ultrapasse ou, ao menos, neutralize parcialmente a aparente onipresença do princípio de razão suficiente. Esta instância cognitiva é o nosso sentimento de responsabilidade. Por mais que nosso intelecto nos indique com total certeza a priori que todo fato (incluindo aqui as ações ou decisões humanas) é uma consequência necessária de uma razão suficiente, entretanto, nem por isso deixamos de nos sentir responsáveis por aquilo que somos. O princípio de razão suficiente não admite liberdade e, por isso mesmo, é difícil sustentar pensamentos “claros” sobre a liberdade. Porém, o que não pode ser provado in abstracto quando se busca expor a liberdade humana, pode ser provado in concreto a partir deste inegável fato empírico: todos nós possuímos um inafastável senso de responsabilidade por aquilo que fazemos. Não importa o conteúdo dos inúmeros argumentos filosóficos (incluídos aqui os do próprio Schopenhauer) que indiquem a ausência de liberdade de vontade ou o império da causalidade sobre nossas ações, bem como o determinismo vigente em todas as nossas escolhas, pois nada disso diminui em nós aquela convicção interna de que somos os únicos responsáveis por aquilo que fazemos (ou que deixamos de fazer)4. E tal como o sentimento de compaixão, também o sentimento de responsabilidade é apresentado por Schopenhauer não como uma simples reação psicológica, idiossincrática, mas como um tipo de conhecimento mais profundo, uma intuição moral que cumpre, no âmbito prático, a mesma função que os axiomas no âmbito teórico. É o que podemos depreender a partir da seguinte passagem:
Há, a saber, um fato da consciência que deixei de lado até o momento [...]. Este é o inteiramente claro e certo sentimento de responsabilidade por aquilo que fazemos, de capacidade de imputação por nossas ações, baseado sobre a certeza inabalável de que nós somos os artífices de nossas ações (E I, V, p. 134).
Tal sentimento não contradiz o determinismo de nossas ações que decorrem de nosso caráter sob a influência dos motivos — conforme o princípio de razão suficiente — pois ele se refere às nossas próprias ações apenas “imediatamente e ostensivamente”; em “fundamento”, o sentimento em questão refere-se ao nosso caráter: no fundo, sentimo-nos responsáveis por aquilo que somos (E I, V, p. 134). Para confirmar isso, Schopenhauer recorre à análise do conteúdo usual de juízos morais de louvor e censura:
E é também pelo caráter que os outros consideram-nos responsáveis, na medida em que seu juízo abandona a ação, em vista da fixação das qualidades do agente: “ele é um homem mau, um vilão”; “ele é um trapaceiro”; “ele é de uma alma pequena, falsa, vil”. Assim expressam seus juízos, e é sobre o caráter que recai suas recriminações (E I, V, p. 134).
Se minha responsabilidade recai sobre meu caráter, e sendo responsabilidade e liberdade noções ligadas analiticamente entre si5, disso se segue que minha liberdade, a “verdadeira liberdade moral” (conforme expressão utilizada por Schopenhauer no capítulo V de Sobre a liberdade da vontade), recai sobre meu caráter. Não as ações, mas o caráter do agente é livre. Se me sinto responsável por aquilo que sou, isso só pode significar “que eu poderia ser outro” (E I, V, p. 134).
Dizer que o caráter é livre equivale a dizer que a vontade é livre, pois o caráter é uma qualidade especialmente determinada de vontade (F, III, p. 87), isto é, o caráter é simplesmente vontade individual. Mas como atribuir liberdade ao caráter, se, como o próprio Schopenhauer supõe, ele é imutável (E I, III, p. 89)?
3 O CARÁTER INTELIGÍVEL
Schopenhauer julga que aquilo que é indicado pelo sentimento inabalável de responsabilidade, e que remete-nos inexoravelmente à liberdade contida no caráter, encontra esclarecimento teórico na teoria kantiana que contrasta caráter empírico e caráter inteligível.
Assim como o mundo é fenômeno e ao mesmo tempo coisa-em-si, assim também o caráter pode ser visto ao mesmo tempo, e sem contradição, por um lado como fenomênico, cujas reações se desdobram gradualmente no tempo sob o influxo dos motivos, e, por outro, como coisa-em-si, enquanto sustentáculo metafísico de sua manifestação empírica. E que este sustentáculo metafísico, livre das formas do princípio de razão suficiente (espaço, tempo e causalidade), há de existir, segue-se dos sentimentos e juízos morais que atribuem responsabilidade ao caráter e, assim, pressupõem liberdade no mesmo. Portanto, o caráter inteligível não é uma suposição arbitrária, mas surge como uma necessária pressuposição enquanto forma de explicar o inegável sentimento de responsabilidade que preenche nossa consciência. Pelo iter argumentativo trilhado por Schopenhauer em Sobre a liberdade da vontade, o caráter inteligível não é simplesmente posto como conceito pronto cuja realidade é, por si mesma, dada como certa, e a partir do qual deduz-se sinteticamente a liberdade moral. Antes, seguindo o método analítico, Schopenhauer parte de um conteúdo de experiência singular — o sentimento de responsabilidade — vivenciado na consciência, para só então, por meio desta experiência interior e inequívoca, poder extrair um pressuposto imperceptível, mas necessário, pois sem ele aquela experiência imediata, intuída, não teria sentido. Pois como já foi explicado, a liberdade é um conceito que só pode ser pensado negativamente, enquanto ausência de vigência das formas apriorísticas (em especial, a causalidade) que regem o mundo como representação. Deste modo, o caráter só pode ser livre porque ele não se reduz à sua forma empírica, mas deve possuir também uma dimensão metafísica, conforme aponta nosso sentimento de responsabilidade. Em suma, ao caráter empírico deve corresponder também um caráter inteligível, na condição de pressuposto teórico indispensável à explicação filosófica de nossos sentimentos e juízos morais, uma vez que estes pressupõem liberdade no caráter, e somente um caráter inteligível pode ser pensado como livre. Se revogado o conceito de caráter inteligível, o sentimento de responsabilidade e os juízos morais de louvor ou censura restariam inteiramente destituídos de sentido e de base. Seriam inexplicáveis. Reduzir-se-iam a sensações psicológicas, e a moral, a um psicologismo. Mas, de acordo com nossa interpretação, é justamente contra esta possibilidade que a filosofia de Schopenhauer insurge-se, uma vez que no contexto da mesma os sentimentos morais apontam para verdadeiras intuições morais igualmente metafísicas, porque dirigem nossa consciência para além dos limites impostos pelo princípio de razão suficiente. E não podemos ignorar o fato de que as formas do princípio de razão, isto é, espaço, tempo e causalidade, devem sua vigência à sua força axiomática. É impossível, segundo Schopenhauer, pensar uma causa primeira na ordem das causas infinitas dos fenômenos; ou o local onde o espaço encontre um fim; ou o instante, onde o tempo teve início (G, §20, p. 53). Isso significa que o princípio de razão e suas formas são tão aderentes à nossa consciência que com ela se confundem.
Entretanto, exatamente o mesmo ocorre com o sentimento de responsabilidade. Tal sentimento também pode ser considerado tão aderente à nossa consciência a ponto de com ela confundir-se. Afinal, é simplesmente impossível revogar in concreto tal sentimento, ainda que possamos negá-lo in abstracto, isto é, através de palavras, ou de páginas de livros — mas o mesmo pode ser feito em relação ao espaço, tempo e causalidade. Daí compararmos os sentimentos morais e as intuições que estão na base dos mesmos com a função desempenhada por axiomas no âmbito teórico. Sentimentos morais são a superfície de intuições morais, e estas funcionam como verdadeiros axiomas morais. Porém, o que é espantoso sobre tais sentimentos é o fato de que, apesar de tão aderentes à consciência quanto as formas do princípio de razão, tais conteúdos de consciência colocam-se em franca contradição entre si. Em outras palavras, há uma nítida tensão, dentro da consciência, entre conteúdos morais e conteúdos “teóricos”, por assim dizer, uma vez que tais conteúdos parecem ser preenchidos por princípios contrários entre si. O princípio da razão suficiente diz à nossa consciência que há causalidade. O sentimento de responsabilidade diz à nossa consciência que há responsabilidade, e, portanto, liberdade. E se considerarmos — como Schopenhauer o faz — que a dimensão metafísica e essencial do mundo só pode ser encontrada se nos desvencilharmos do “Véu de Maia”, isto é, do espaço, tempo e causalidade (em suma, das formas do princípio de razão suficiente), então o conteúdo moral de nossa consciência, na medida em que desafia aquelas formas, é o âmbito da mesma que revela-nos aquela dimensão metafísica, porque permite-nos vivenciá-la, ainda que a exposição abstrata desta vivência concreta seja extremamente desafiadora ao “pensamento claro”.
4 A IMUTABILIDADE É O SIGNO EMPÍRICO DA ATEMPORALIDADE
A que resultado chegamos até o momento? O de que nossa vivência moral supõe um caráter inteligível livre, enquanto que nossa faculdade teórica aponta para um caráter empírico imutável. Mas talvez seja possível arriscar dizer que Schopenhauer oferece uma espécie de “ponte” entre estas duas formas de percepção, eliminando, assim, o abismo deste dualismo. Pois uma análise mais profunda sobre aquelas qualidades que empiricamente são apreendidas como o inatismo e a imutabilidade do caráter aponta, paradoxalmente, para a dimensão inteligível e, portanto, livre, do caráter. E isso se deve ao fato de que Schopenhauer define o tempo como “a possibilidade de determinações contrárias em uma mesma coisa” (G, §18, p. 44).
Pois bem. O caráter não sofre determinações contrárias em si mesmo, afinal, ele é imutável. Empiricamente, o caráter apresenta-se inalterável, uniforme: o caráter não se torna outro. Logo, se o tempo é a possibilidade de determinações contrárias em uma mesma coisa, e se o caráter não pode sofrer determinações contrárias em si mesmo (do contrário, significaria que ele mudaria, precisamente o que Schopenhauer nega), disso se segue que o caráter não reside no tempo, ainda que, empiricamente, ele se manifeste no tempo, através de desdobramentos graduais das condutas e decisões que se seguem deste caráter sob a influência dos motivos.
É fundamental distinguir o “residir no tempo” e “manifestar-se no tempo”. “Residir no tempo” significa existir apenas como representação; “manifestar-se no tempo” significa tomar a forma de representação, sem dissolver-se inteiramente nela. Este é o caso do caráter: ao manifestar-se no tempo, ele assume sua versão empiricamente apreendida. Mas pelo fato de que ele é imutável, e de que o sentimento de responsabilidade pressupõe nele liberdade moral, pode-se dizer que aquele mesmo caráter não se esgota em sua manifestação empírica. Daí podermos justificadamente pressupor a dimensão metafísica ou inteligível deste mesmo caráter. E se o caráter é vontade, a partir disso é possível deduzir que a vontade manifesta-se no mundo como representação, sem que ela mesma seja representação:
Se um homem, sob condições iguais, pudesse agir ora de uma maneira, ora de outra, então nesse ínterim a sua vontade mesma teria mudado e, por consequência, residiria no tempo, visto que somente neste é possível a mudança: contudo, assim, ou a Vontade teria de ser um mero fenômeno, ou o tempo uma determinação da coisa-em-si. De fato, aquela disputa sobre a liberdade da ação particular, ou seja, sobre o liberum arbitrium indifferentiae, gira propriamente em torno do seguinte problema: se a Vontade reside no tempo ou não (W I, §55, p. 345).
Já sabemos que, segundo Schopenhauer, a vontade ou caráter não mudam. A vontade não sofre mudanças empíricas porque o conjunto de minhas manifestações volitivas, conjunto este que chamamos de caráter, é inteiramente uniforme. Logo, ela não reside no tempo. Portanto, ao seguirmos o fio destes argumentos, constatamos uma espantosa inversão (tal como ocorre ao final de muitos diálogos platônicos): o inatismo ou invariabilidade, que a princípio fortalecem as opiniões que compõem a tese do determinismo, passam agora a fundamentar a tese da liberdade moral. Pois, conforme Schopenhauer, aquilo que se apresenta empiricamente como inato e invariável é metafisicamente atemporal e, portanto, em si livre de uma das formas que predominam sobre nossas representações: o tempo. Consequentemente, a invariabilidade torna-se o signo empírico da atemporalidade metafísica da vontade. A vontade manifesta-se no tempo, sem residir nele6.
Com isso, podemos finalmente chegar com maior segurança ao principal resultado teórico proposto por Schopenhauer: aquele segundo o qual a vontade é a “coisa-em-si”, e que só a vontade vige em uma dimensão metafísica justamente porque sobre ela não se aplicam as regras apriorísticas que constituem nossas representações, impostas pelo princípio de razão suficiente. A vontade não possui contornos espaciais, o que é por si óbvio; a vontade não reside no tempo, pois o caráter, que nada mais é que um complexo uniforme de manifestações volitivas, não muda; e, por fim, a vontade não se submete à causalidade, pois nosso “inabalável” sentimento de responsabilidade pressupõe a liberdade de assumirmos outro caráter.
Agora, alguém também poderia apontar um outro aspecto referentemente a uma questão completamente diferente, mas que acompanha o tópico ora em andamento: como posso ter liberdade de ser outro (conforme pressuposto pelo meu sentimento de responsabilidade por aquilo que sou), se ao meu caráter não recai a possibilidade de determinações contrárias, uma vez que ele não se submete ao tempo? Não seria então o tempo a condição de liberdade, uma vez que esta é a faculdade de assumir outro caráter? A resposta para esta última questão teria de ser negativa, pois se o caráter estivesse no tempo, ele seria representação, e no mundo como representação não há qualquer liberdade. Afinal, qualquer mudança (e tempo se refere a mudanças) depende da lei da causalidade: toda mudança é causada. Logo, se eu mudasse meu caráter no tempo, assumindo empiricamente um outro caráter, tal mudança de caráter teria ocorrido apenas e tão somente em razão de um nexo causal, necessário.
5 A INSUFICIÊNCIA DE UMA CONCEITUAÇÃO MERAMENTE NEGATIVA DA LIBERDADE
Com base no exposto, a possibilidade de mudança pressuposta pelo sentimento de responsabilidade não pode ser uma mudança temporal, fenomênica. É preciso ser uma possibilidade de mudança não-fenomênica e extratemporal: “o caráter inteligível de cada homem deve ser considerado como um ato extratemporal, indivisível e imutável da Vontade” (W I, §55, p. 375). Aquilo que sou, é resultado de uma decisão tomada fora do tempo, portanto, trata-se de uma decisão livre das condições vigentes no mundo como representação (espaço, tempo e causalidade). A linguagem de Schopenhauer deve ser interpretada aqui como metafórica. Ele não pode estar se referindo literalmente a uma decisão fora do tempo, o que seria uma contradição nos termos, considerando que toda decisão é um ato e, enquanto tal, só pode ocorrer no tempo7. A fórmula “ato extratemporal da vontade” só pode significar que o caráter inteligível ou nossa vontade em si não se submetem às regras que constituem nossas representações e, por conseguinte, não podem ser explicados através destas mesmas regras. Tal fórmula tem um significado predominantemente negativo, porque descreve muito mais um “não é”, do que um “é”. Até aqui, a liberdade não ultrapassou sua negatividade.
Estas últimas considerações podem nos levar a uma situação profundamente paradoxal. Para que a vontade seja livre, ela não pode estar condicionada; mas agora, enquanto argumentávamos que a vontade é livre, concluímos que ela tão pouco condiciona. Ora, a noção de liberdade não teria de ser justamente o poder de condicionar, ou, conforme Kant, o de iniciar um efeito a partir de uma vontade, que por isso é um tipo de causalidade não causada8? Schopenhauer não pode concordar com esta definição positiva de liberdade, pois o “iniciar um efeito” significa colocar-se na ordem causal, unicamente na qual os efeitos são possíveis. Isso também implicaria em colocar a vontade no tempo. Portanto, o conceito negativo de liberdade, apesar de solucionar a aparente contradição entre liberdade e necessidade (as ações são necessariamente causadas, enquanto que o caráter é destituído de fundamento), parece ser insatisfatório. A liberdade negativa parece ser uma liberdade de inação. Uma restrição deste tipo não significaria justamente a ausência de liberdade?
6 LIBERDADE DEFINIDA COMO IDENTIDADE ENTRE SER E QUERER; A ASSEIDADE
Então retornemos algumas linhas. Dissemos que, no contexto da teoria de Schopenhauer, a vontade livre não se refere ao atuar. Em Schopenhauer, vontade livre refere-se ao ser. Sou livre não porque gero efeitos a partir de decisões minhas (pois isso me empurraria novamente para o âmbito dos fenômenos sob razão suficiente), mas sou livre porque eu já sou aquilo que quero: “seu caráter é originário, pois querer é a base de seu ser” (W I, §55, p. 379/I 345). Afinal, considerando aquilo que é pressuposto em meu sentimento de responsabilidade por aquilo que sou, isto é, que meu caráter é livre, então deve-se concluir que eu quero meu caráter do modo como ele é, e, portanto, eu já sou aquilo que quero. Logo, querer e ser identificam-se. Podemos encontrar uma indicação desta liberdade enquanto identidade entre Ser e Querer na seguinte passagem de Vontade na natureza:
Há de se levar ainda em consideração que liberdade e responsabilidade, estes pilares-mestres de toda ética, sem a pressuposição de asseidade [Aseität] da vontade, podem ser afirmadas com palavras, mas são simplesmente impensáveis. Quem quiser negar isso, antes terá de refutar o axioma operari sequitur esse (i.e., a partir da qualidade do ente se segue a sua atuação), já apresentado pelos escolásticos, ou provar ser falsa a consequência do mesmo, unde esse inde operari [tal como o ser, assim será o atuar]. Responsabilidade tem por condição a liberdade, e esta, a originalidade [Ursprünglichkeit]. Pois eu quero de acordo com aquilo que sou: por isso devo ser de acordo com aquilo que quero. Portanto, a asseidade da vontade é a primeira condição de uma ética pensada com seriedade (N, Hinweisung auf die Ethik, p. 338)9.
Esta fórmula deixa claro que a liberdade consiste nesta circularidade entre Ser e Querer: “eu quero de acordo com aquilo que sou: por isso devo ser de acordo com aquilo que quero”10. Entretanto, julgamos que o argumento de Schopenhauer está incompleto aqui, ao não destacar um elemento mediador que permanece implícito, e este elemento é justamente o sentimento de responsabilidade. Pois o “eu quero de acordo com aquilo que sou” segue-se do operari sequitur esse; entretanto, o que justifica o salto daquela primeira proposição para esta segunda: “eu devo ser de acordo com aquilo que quero”? O argumento completo teria de ser o seguinte: eu quero de acordo com aquilo que sou, e eu me sinto responsável por aquilo que sou; logo, eu devo ser de acordo com aquilo que quero. O meu esse tem de ser também uma espécie de velle, do contrário não faria sentido eu me sentir responsável pelo meu caráter.
Além disso, Schopenhauer extrai da mencionada identidade entre querer e ser o atributo da asseidade. A nosso ver, esta extração é analítica, pois se o meu ser já é o meu querer, disso se segue que o meu próprio ser é voluntário, como um ser que se faz a si mesmo, e se pensarmos que um fazer é um ato volitivo, então isso nos conduz à ideia de um ser que quer a si mesmo. Neste sentido, o esse é a se, vale dizer, um ente que se faz a partir de si mesmo, e portanto seu ato é não-fundamentado. Por isso, em seus manuscritos de 1832 (Cholerabuch) postumamente publicados, Schopenhauer define asseidade nos seguintes termos: “o que os escolásticos chamavam de asseidade de Deus, é, em essência, aquilo que atribuo à vontade, e que chamei de sua ausência de fundamento [Grundlosigkeit]” (HN, Cholerabuch, §48, p. 102). É verdade, porém, que em Sobre a vontade na natureza ele vincula asseidade mais à noção de originalidade. A distinção é apenas aparente. “Originalidade” significa “ausência de fundamento”. Um “original” é, por definição, o primeiro de uma sequência. Logo, é aquilo antes do qual não há um anterior para qualificá-lo como seu fundamento.
A identificação entre Ser e Querer pode ser encarada como o argumento definitivo de Schopenhauer em favor da liberdade e responsabilização por nossas ações. Diante dela, não há espaço para desculpas por ações intencionais; não há espaço para o “desculpe-me, eu sou assim”. Diante destas palavras, pode-se então responder com justiça: “mas sua maneira de ser é idêntica ao seu modo de querer”. Se esta conclusão parece extravagante, lembremo-nos de que ela decorre, como um pressuposto necessário, do “inabalável” sentimento de responsabilidade por aquilo que somos, bem como do fato de que nossas ações são igualmente acompanhadas da “consciência de poder próprio e originalidade” (Bewusstsein der Eigenmächtigkeit und Ursprünglichkeit), e que tal consciência “não engana”, na medida em que se refere, tal como o senso de responsabilidade, ao nosso “Seyn und Wesen”, Ser e Essência (E I, V, p. 138). Assim, Schopenhauer poderia responder ao cético: “se duvida que seu Ser é seu Querer, então desafio-o a tomar consciência de si como de um autômato”.
7 ASSEIDADE E ORGULHO
Aliás, para que não fiquemos apenas nos dados imediatos de consciência (algo como o “sinto-me responsável por aquilo que sou”), e, partir destes, nos puros postulados filosóficos (algo como “então meu caráter deve ser pensado como um ato extratemporal”), pode-se mencionar como uma possível prova empírica da tese de que nosso Ser e Querer são uma coisa só, o fato de que raramente nos arrependemos de verdade, enquanto com muito mais frequência cedemos ao orgulho. Pois tão logo alguém se comporte de modo reprovável (inclusive recebendo a reprovação da própria consciência moral), em geral aquele que errou prefere recorrer imediatamente a justificativas para seu comportamento, com o fim de inocentar o próprio caráter enquanto atribui a culpa às circunstâncias. Este estratagema tão comum significa nada mais que preferimos exigir desculpas gratuitas por nossas falhas a realmente querermos ser diferentes daquilo que já somos. E não podemos querer ser diferentes porque, a rigor, já somos aquilo que queremos. Nisso consiste o pecado do orgulho, e tanto quanto este é comum à humanidade, também é comum aquele tipo de escusa. Portanto, o orgulho é o atestado de nossa secreta e voluntária cumplicidade para com nossa própria essência, para com o fato de que raramente queremos ser outra coisa além daquilo que já somos, como se nosso Ser fosse mesmo o nosso mais decidido Querer. Daí nos esforçarmos tão pouco quando se trata de querer ser qualquer outra coisa além daquilo que nós mesmos já somos11.
Com base nisso, poderíamos definir o orgulho como o obstinado querer ser aquilo que já se é, justamente porque se é aquilo que quer ser. E se o orgulho é um incontestável fato humano, então a tese da identidade entre Ser e Querer também há de sê-lo12. Talvez alguém pudesse nos objetar dizendo que esta definição de orgulho, bem como a definição de liberdade que se sustenta sobre a circularidade entre Ser e Querer, apresentam uma autocontradição. No Banquete, Platão afirma que “quem deseja, deseja aquilo que lhe falta, mas, se nada lhe falta, não deseja nada”13. Então como ainda pode existir algo como uma circularidade entre Ser e Querer, uma completa compatibilidade entre aquilo que Sou e aquilo que Quero ser? Afinal, nos termos colocados por Platão, talvez alguém se sentisse encorajado a dizer que, justamente porque quero ser isso ou aquilo, então ainda não sou isso ou aquilo, pois só posso querer o que me falta, e não o que já possuo.
Entretanto, este conflito entre aquilo que aqui propomos a partir de Schopenhauer e aquela constatação de Platão é apenas aparente. Primeiro, vamos deixar de lado a distinção schopenhaueriana entre desejo e vontade na presente discussão, por ser irrelevante aqui. Quando Platão fala de um desejo/querer que é sempre desejo/querer de algo ainda não possuído, ele se refere a um objeto específico do querer. Mas aqui se deve colocar a seguinte questão: por que se deseja (ou se quer) este objeto específico e não qualquer outro? A resposta só pode ser que este objeto encontra acolhimento no caráter do querente, que o objeto é compatível com seu caráter (por exemplo, o avarento que sempre quer aumentar seu já rico patrimônio). Então o desejo de algo que falta pressupõe um caráter compatível com esse desejo. O caráter, por outro lado, é a totalidade das nuances volitivas de um indivíduo. Logo, para ele querer algo em particular que lhe falta, ele já tem de querer em geral, isto é, possuir um caráter. Portanto, pode-se dizer que a vontade humana transita entre, pelo menos, duas camadas, por assim dizer: o querer isto ou aquilo em particular, e o querer em geral, também chamado de caráter. Aquela circularidade entre Ser e Querer opera-se apenas nesta camada mais fundamental, a do caráter, e não naquela superficial, a que se refere Platão no Banquete, e que é um simples desdobramento fenomênico do caráter. Portanto, para eu querer algo em particular, é necessário que (1) este algo me falte e (2) que este algo faltante seja compatível com meu querer em geral, com minha constituição volitiva, vale dizer, com meu caráter. Mas para que eu seja este caráter, eu já tenho de querê-lo, do contrário eu não poderia ser moralmente responsável por ele; e, indubitavelmente, eu sou responsável por ele, conforme atesta minha consciência de responsabilidade por aquilo que sou. Portanto, embora a conclusão de Platão, de que o querer ou desejar é sempre o querer ou desejar de algo que falta, possa ser plenamente necessária — de modo que contrariá-la equivaleria a incorrer em uma contradição — entretanto, no que diz respeito ao caráter ou camada mais profunda de volição, esta conclusão já não pode manter-se, sob pena de contradizer uma informação ainda mais evidente, que é o sentimento de responsabilidade. Consequentemente, somos forçados a restringir aquela conclusão platônica ao âmbito do querer isto ou aquilo em particular, e afastá-la do âmbito do querer em geral. Esta seria também a resposta àquela crítica de Nietzsche exposta em Assim falava Zaratustra: “pois o que não existe, não pode querer existir; e como o que existe poderia ainda querer existir?”14.
Resolvida esta possível objeção, retomemos de onde paramos. Pelo exemplo do orgulho, podemos agora complementar as fórmulas de Schopenhauer. Não precisamos mais “dever pensar” a totalidade da essência pessoal de cada um “como um ato livre extratemporal”. Na medida em que nosso orgulho confirma que, no fundo, nossa essência é bastante querida por nós, disso se segue que em todo momento queremos não somente a realização de nossos atos singulares adequados ao nosso caráter, mas, principalmente, queremos precisamente o nosso caráter tal como ele é. Não queremos apenas de acordo com o que somos, mas também somos de acordo com aquilo que queremos. Se esta interpretação estiver correta, então a metáfora segundo a qual o caráter “deve ser pensado como” expressão de uma decisão extratemporal agora pode ser acompanhada (talvez, até mesmo substituída) pela descrição literal do fato de que nosso caráter realmente corresponde àquilo que queremos que ele seja, uma vez que a cumplicidade de si mesmo (e cada um de nós é o seu próprio e mais fiel cúmplice), também conhecida pelo nome de “orgulho”, significa afirmação de si mesmo, vale dizer: cada um quer a si mesmo e, portanto, cada um é para si mesmo o seu ente mais querido. Nestes novos termos, não faz mais sentido nos perguntarmos sobre quando decidimos querer ser aquilo que somos, não faz mais sentido procurar por um “ato extratemporal” que inaugurou, “de uma vez por todas”, nosso caráter. Àquele que está em dúvida sobre se seu caráter corresponde à sua vontade, podemos simplesmente indagar: “e quando foi que você realmente quis ser outro?”.
Mas e quanto ao suicídio? Não é ele a negação do amor próprio, o repúdio a si mesmo que se expressa na vontade de autodestruir-se? De nossa parte, assumimos aqui a hipótese de Chesterton:
O suicídio é [...] recusa em se interessar pela existência, a recusa em fazer o pacto de lealdade à vida. O homem que mata um homem mata um homem. O homem que se mata, mata todos os homens; no que lhe diz respeito, ele apaga o mundo. [...] O ladrão está satisfeito com diamantes, mas o suicida não está: esse é o seu crime. Ele não pode ser subornado, mesmo pelas pedras fulgurosas da Cidade Celestial. O ladrão elogia as coisas que rouba, se não o dono delas. Mas o suicida insulta tudo na terra por não roubá-la. [...] Um mártir é um homem que se importa tanto com algo fora dele que se esquece da própria vida. Um suicida é um homem que se preocupa tão pouco com qualquer coisa fora dele que quer ver o fim de tudo15.
Isso guarda alguma semelhança com aquilo que é dito por Schopenhauer: “o suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob as quais vive” (W I, §69, p. 504). O descontentamento do suicida não é com ele próprio, mas com as circunstâncias reais sob as quais vive. O suicida, com seu ato, não humilha a si mesmo, mas humilha o mundo. É como se o mundo não fosse digno dele. Ele simplesmente não consegue encontrar fascínio ou satisfação nas coisas que o mundo oferece. Seu padrão de gosto mostrou-se elevado demais, e por isso suas exigências não puderam ser satisfeitas. O ladrão, por esforçar-se em roubar as coisas do mundo, confessa com isso alguma humildade, pois querer o objeto pressupõe a valorização do mesmo. Já o suicida expressa a mais extrema altivez ao não se interessar por coisa alguma que o mundo possa oferecer. A frustração e o desespero seriam então sintomas de uma vontade insatisfeita, e que ao mesmo tempo julga-se digna de satisfação. Neste contexto, parece-nos correto deduzir que o suicida egoísta mata-se não porque ele próprio quer ser outro, mas porque quer que o mundo seja outro.
8 LIBERDADE PARA ALÉM DE SUA MERA NEGATIVIDADE
Percebe-se então que Schopenhauer alcança um significativo avanço em sua teoria da liberdade, ao transitar de uma definição meramente negativa — “ausência de necessidade” — para um atributo positivo (asseidade) e até mesmo para uma definição positiva, ao sustentar a liberdade sobre a identificação entre Ser e Querer, embora ele nunca tenha explicitamente se posicionado no sentido de que esta é uma definição de liberdade, o que não seria preciso, considerando que no trecho transcrito de Vontade na natureza fica claro que Schopenhauer apresenta a identidade entre Querer e Ser como um atributo da liberdade. Portanto, pode-se dizer que, em Schopenhauer, a liberdade não é apenas ausência de causalidade, embora a definição negativa constitua-se na premissa a partir da qual a enumeração posterior de atributos positivos seja possível.
Talvez alguém pudesse sentir-se inclinado a dizer que o atributo da asseidade não é positivo, com o a se significando apenas ausência de fundamento. Aliás, o próprio Schopenhauer o entendia desta forma, como podemos depreender a partir da citação do Cholerabuch, já transcrita acima. Embora ser a se implique ausência de fundamento, no entanto apenas isso não explica a asseidade. Pois esta, à parte de estar livre de fundamentos impostos pela razão suficiente, significa também uma correspondência entre aquilo que se é e aquilo que se quer. Certamente isso conduz a uma ampliação de nossa compreensão da liberdade, antes restrita à simples ausência de causalidade.
9 O PESO DE CONSCIÊNCIA E O ARREPENDIMENTO SÃO MANIFESTAÇÕES DO ORGULHO
Já argumentamos no sentido de que o orgulho, enquanto testemunho de nossa secreta cumplicidade para com aquilo que somos (fornecendo-nos assim uma indicação empírica da identidade entre Ser e Querer), demonstra que jamais somos realmente diferentes daquilo que queremos ser. Agora, apenas gostaríamos de complementar este argumento com as seguintes observações. Quando situamos um dos pontos nevrálgicos da liberdade na questão sobre “quando foi que alguém realmente quis ser outra coisa”, fizemos questão de acrescentar o advérbio “realmente”. Nossa intenção com isso foi a de evitar a confusão entre realmente querer ser outra coisa e frustrações episódicas consigo mesmo. É verdade que de vez em quando nos sentimos frustrados com aquilo que somos. Mas entre frustrar-se momentaneamente e de fato querer tornar-se outra coisa, há um abismo gigantesco. Tais frustrações episódicas geralmente se expressam através de dois sentimentos bastante comuns: o peso de consciência e o arrependimento. Nossa tese é a de que tais sentimentos, longe de denunciarem uma cisão entre Querer e Ser, na verdade constituem-se em sintomas daquela circularidade. Poderíamos ir ainda mais longe e dizer: é somente porque nosso Querer e Ser identificam-se, é que sentimos peso de consciência e eventualmente nos arrependemos de nossos atos.
Passemos a agora para a parte das justificativas destas asserções. Como Schopenhauer define o peso de consciência? Em poucas palavras, é a “dor sobre o conhecimento de nosso si mesmo” (W I, §55, p. 384/I 350). Este conhecimento, embora possa nos horrorizar, não implica em qualquer mudança em nosso comportamento ou em nosso modo de querer. Ao contrário, resulta justamente do fato de que, apesar de nossa constituição moral-volitiva ser tão reprovável, no entanto não queremos ser outra coisa, pois no peso de consciência conhece-se a “veemência da própria vontade, da violência com a qual se entregou e apegou à vida” (W I, §65, p. 466/I 432). Portanto, pelo peso de consciência, o homem mau reprova a si mesmo, sem que isso implique em um autêntico querer ser outra coisa. Antes, o peso de consciência não passa de uma temporária e circunstancial contemplação da imagem da própria vontade. E tal como aquele que contempla uma imagem não precisa estar necessariamente engajado na reforma da imagem contemplada, o mesmo pode ser dito sobre aquele que contempla momentaneamente seu próprio caráter ou (o que é o mesmo) constituição volitiva. Aliás, se ele não estivesse cônscio de que o seu caráter é a expressão de seu querer, não faria sentido sentir-se horrorizado: ele poderia muito bem despachar este sentimento ao querer ser outra coisa a partir de agora, enterrando para sempre seu antigo caráter. Logo, é justamente por não querer ser outra coisa que o peso de consciência tem seu lugar. Além disso, o peso de consciência é episódico porque o homem mau, cedendo ao orgulho (vale dizer, reassumindo sua condição de cúmplice de si mesmo), revogará aquele sentimento como ilusório, e recuperará seu conforto interior atribuindo a culpa às circunstâncias externas, ou até mesmo à própria vítima de seus atos. Na condição de orgulhosos e, portanto, de cúmplices de nós mesmos, sempre recorreremos à autoindulgência, pois nosso ser corresponde ao nosso mais íntimo querer e, por isso, mais vale silenciar a consciência moral ou até mesmo submeter-se ao autoengano do que desviar nossa vontade. É por isso que, no embate entre peso de consciência e orgulho, este último geralmente levará a melhor, sendo o primeiro bastante episódico, e o segundo, muito mais permanente. E tudo isso simplesmente significa: “eu não quero ser outra pessoa, quero continuar a ser o que sou”.
Diferentemente do peso de consciência, o arrependimento pode nos conduzir a uma reforma de nossas ações. Graças ao sincero arrependimento, a ação que alguém executou no passado não será novamente executada no futuro. Porém, isso não se deve a uma reforma no caráter, a um querer ser outro, mas a uma mudança no conhecimento: “arrependimento nunca se origina de a Vontade ter mudado (algo impossível), mas de o conhecimento ter mudado” (W I, §55, p. 383/I 349). Portanto, enquanto modalidade daquilo que aqui chamamos de “frustração episódica” consigo mesmo, o arrependimento resulta do fato de que o agente nota, posteriormente, que seus atos não se seguiram dos motivos mais adequados à sua constituição volitiva. O indivíduo se arrepende porque foi enganado pelo seu próprio intelecto ou pelas circunstâncias (W I, §55, p. 383/I 349). Após finalmente recuperar a completa noção da realidade, abolir as falsas representações, ou reconhecer os motivos mais adequados à sua constituição volitiva, o indivíduo então percebe que sua ação teria de ter sido outra; percebe que o motivo que o conduziu não era o mais coerente com sua vontade e, portanto, sua atuação não expressou aquilo que ele realmente quereria fazer caso tivesse verdadeiro conhecimento sobre as circunstâncias então presentes ou sobre os motivos mais adequados à sua vontade. Se seu conhecimento fosse outro, ele teria agido diferente — ainda que sua vontade permaneça sempre a mesma. Por tudo isso se depreende que o arrependimento não decorre de uma inadequação entre aquilo que alguém é e aquilo que quer ser, mas da inadequação entre aquilo que alguém quer e aquilo que julgou conhecer. Logo, o arrependimento, longe de indicar uma cisão entre Querer e Ser, apenas expressa a frustração pessoal daquele que dolorosamente concluiu mais tarde não ter sido suficientemente fiel a si mesmo.
10 UMA ÚLTIMA QUESTÃO A SER RESPONDIDA: É POSSÍVEL QUERER O QUERER SER?
Mas agora retomemos nossa linha de raciocínio para abordarmos um novo problema que pode surgir a partir daí. Quando Schopenhauer questiona se “podemos querer aquilo que queremos”, a resposta é negativa, pois constatou-se a imutabilidade do caráter, e a partir disso deduziu-se que eu ajo de acordo com aquilo que sou (operari sequitur esse), e como esse ser é imutável, então não sou livre. Porém, depois, depreendendo-se que me sinto responsável por aquilo que sou, concluiu-se que sou livre não em meus atos, mas naquilo que sou. E para eu ser livre naquilo que sou, eu tenho que querer aquilo que sou, isto é, tenho de ser de acordo com meu querer, e não apenas querer de acordo com aquilo que sou, do contrário meu Ser me seria imposto e, assim, eu não seria livre. Mas o meu Ser não me é imposto, porque eu de fato quero-me como sou, conforme foi mostrado em nossas digressões sobre o orgulho. Portanto, o universal sentimento de orgulho é o testemunho empírico daquilo que está implicado em meu sentimento de responsabilidade, de que eu sou aquilo que quero ser. Mas agora coloca-se a questão: e este querer ser, é ele também querido? Eu quero aquilo que sou, mas posso querer este querer aquilo que sou?
Aqui a resposta tem de ser novamente negativa. Porém, neste atual contexto, esta resposta negativa não significa que não sou livre. De um ponto de vista fenomênico (sob princípio de razão), o caráter não é decidido, pois aparece como um pressuposto para o princípio de razão suficiente, como uma qualidade oculta que fornece causalidade às causas — neste caso, ele seria uma qualidade oculta que fornece causalidade aos motivos. De um ponto de vista metafísico (fora do princípio de razão), o caráter é decidido. Mas este poder de decidi-lo não pode ser traduzido em atos singulares, pois a pluralidade de impulsos volitivos supõe uma sucessão de escolhas, o que não tem lugar senão sob o princípio de razão suficiente. Logo, fora da razão suficiente não há como se falar de um querer antes de um querer o ser. O ponto terminal de nossa compreensão fenomênica é o caráter, e quanto a ele só nos resta questionar se ele é querido. Se a resposta for positiva, então sou livre. Concluímos acima que a resposta é positiva. Logo, sou livre.
Portanto, quando Albert Einstein extrai um consolador determinismo a partir de Schopenhauer, por atribuir ao último a frase “der Mensch kann zwar tun was er will, aber kann nicht wollen was er will”, “o homem pode fazer o que quer, mas não pode querer aquilo que quer”16, ele revela com isso sua incompreensão do assunto, e em pelo menos dois níveis. Primeiro, o homem seria determinado justamente se ele pudesse querer o seu querer, pois nesse caso, haveria um ato de vontade anterior à sua vontade atual, logo, ele estaria se determinando através de um ato de vontade no tempo e, consequentemente, continuaria submetido à razão suficiente. Logo, a questão não pode girar em torno da possibilidade de querer anteriormente ao querer atual. O verdadeiro problema é sobre se aquilo que se é identifica-se com aquilo se quer, vale dizer, sobre se o atributo da asseidade está ou não está presente.
Segundo, ao extrair um determinismo total de Schopenhauer atribuindo esta frase a ele (que me parece ser apenas uma paráfrase elaborada pelo próprio cientista), Einstein ainda comete o erro de reduzir a totalidade da teoria schopenhaueriana sobre a liberdade a uma simples parte sua. O fato de eu não poder alterar minha atual constituição volitiva através de um outro querer só nos induz ao determinismo aparente, fenomênico, pois aquilo que se enuncia fenomenicamente como imutável revela-se metafisicamente como atemporal. Ao ampliarmos nosso horizonte de compreensão, percebemos que a imutabilidade do caráter, longe de ser prova de nossa escravidão, na verdade comprova nossa transcendência em relação ao modo de explicação que constitui toda relação de servidão a uma causa anterior: o princípio de razão suficiente. Pois, conforme conclusão nossa já exposta, em Schopenhauer, a imutabilidade deve ser interpretada como o signo empírico da atemporalidade. Portanto, a imutabilidade não é prova de nossa impotência, mas marca empírica de nossa transcendência em relação àquele modo de pensar (o princípio de razão suficiente) unicamente sob o qual podemos conceber o conceito de impotência, isto é, a nossa submissão a causas. E que o princípio de razão suficiente não constitui uma explicação total do mundo, mas apenas um modo particular de entendê-lo, confirma-se pela experiência moral e as intuições que informam esta mesma experiência. Tal experiência moral é tão real quanto a experiência empírica sob causalidade e, no entanto, é informada por outras categorias de intuição, sendo uma delas precisamente o sentimento de responsabilidade por aquilo que somos, sentimento este que não teria sentido se não fosse uma referência ao fato de que somos moralmente livres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta nossa análise talvez possa lançar nova luz sobre parte da extensão do significado de liberdade moral em Schopenhauer e nossa maneira de encará-lo. Afinal, o que significa dizer que a minha liberdade está no caráter? Para esclarecer isso, Schopenhauer lançou mão de uma fórmula inteiramente metafórica: a de que o caráter é inaugurado, “de uma vez por todas”, por um “ato extratemporal de vontade”. Mas se não compreendermos tal fórmula por aquilo que ela é — vale dizer, como uma metáfora, e talvez uma metáfora um tanto desajeitada — somos facilmente conduzidos a questionarmos sobre o momento exato em que escolhemos realizar semelhante escolha. Quando escolhi ser eu mesmo? Quando elegi meu caráter? Ora, é impossível apontar este momento no tempo. E nenhuma resposta é cabível porque a própria questão já está errada. Pois se o caráter fora inaugurado a partir de uma atuação fora do tempo, então não há um “quando” sobre o qual questionarmos. Por outro lado, deve-se admitir que a palavra “ato” encoraja-nos a fazer aquela mesma pergunta, pois um ato é sempre temporal. Se eu atuei, atuei em algum momento. E, no entanto, é precisamente isso que a metáfora elaborada por Schopenhauer nega.
Mas talvez possamos nos expressar de outra maneira. Talvez não precisemos recorrer sempre àquela fórmula metafórica do ato extratemporal. Talvez esta fórmula só seja cabível como explicação no contexto de um conceito puramente negativo de liberdade, isto é, liberdade como ausência de causalidade. Se liberdade é o atuar fora da causalidade, então minha liberdade só pode ser concebida como uma paradoxal atuação fora da causalidade e, portanto, também fora do tempo (afinal, tempo e causalidade são intimamente ligados, uma vez que entre causa e efeito tem de haver uma sucessão temporal). Ora, se for lícito extrair um conceito positivo de liberdade, o que acreditamos poder fazer ao defini-la como o Querer o próprio Ser, e vice-versa, então disso se segue a possibilidade de reformular aquele questionamento outrora feito. A pergunta a ser feita não seria mais sobre o momento em que decidimos nosso caráter, ou pelo ato inaugural do mesmo. Pois se a liberdade consiste na identidade entre Ser e Querer, àqueles que se contrapõem à teoria de Schopenhauer alegando que não se lembram de ter decidido tornar-se aquilo que eles são, pode-se responder: “e quando foi que você realmente quis ser outra coisa?”. Uma vez que Querer e Ser identificam-se, a resposta terá de ser “nunca quis realmente ser outra coisa”, do que se seguiria a conclusão: “precisamente; e é por isso que seu caráter é sua obra”. Nestes novos termos, somente sob a suposição de uma cisão entre Querer e Ser é que a liberdade é revogada. Somente sob esta cisão interior, pela qual Querer e Ser perdem sua identidade, é que podemos nos conceber como “escravos” de nós mesmos, como mandatários de um caráter que nos é imposto por forças estranhas, e assim, descrever nossa vida interior nos termos de uma intensa luta entre aquilo que queremos ser, e aquilo que de fato somos17. Entretanto, é exatamente contra essa possibilidade que se insurge o nosso orgulho.
Referências
ALIGHIERI, D. A divina comédia. Tradução de Fábio M. Alberti. Porto Alegre: L&PM, 2004.
BECKER, J. K. (org.). Briefwechsel zwischen Arthur Schopenhauer und Johann August Becker. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1.883.
BÍBLIA. Romanos. 50. edição. Tradução de Matheus Hoepers. São Paulo: Vozes, 2005.
CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Tradução de Francisco Nunes. Jandira, SP: Principis, 2019.
EINSTEIN, A. Como vejo o mundo. Tradução de H.P. de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
FAZIO, D. M. Um epistolário filosófico: a correspondência entre Schopenhauer e Johann August Becker. Tradução de Maria Eugenia Verdaguer. In: Voluntas: Revista Internacional de Filosofia - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 24-38.
KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução, introdução e notas de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial e Barcarolla, 2009.
LEWIS, C. S. Mere christianity. Fiftieth anniversary edition. Londres: HarperCollins Publishers, 2002.
NIETZSCHE, F. Menschlisches, Allzumenschlisches: ein Buch für freier Geister. 8. edição. Leipzig: C. G. Naumann, 1900.
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis: Vozes, 2016.
ORRUTEA FILHO, R. M. Sobre a distinção entre individualidade moral e individuação corpórea em Schopenhauer. In: PAVÃO, Aguinaldo; FELDHAUS, Charles; WEBER, José Fernandes (orgs.). Schopenhauer: metafísica e moral. São Paulo: DWW Editorial, 2014.
ORRUTEA FILHO, R. M. Individualidade em sentido moral e justiça eterna. In: Voluntas, Santa Maria, v. 10, n. 1, p. 186-198, jan./abr. 2019.
PAVÃO, A. Liberdade e imputação moral em Schopenhauer. In: PAVÃO, Aguinaldo; FELDHAUS, Charles; WEBER, José Fernandes (orgs.). Schopenhauer: metafísica e moral. São Paulo: DWW Editorial, 2014.
PLANCK, M. Where is science going?. Tradução de James Murphy. New York: W. W. Norton & Company 1932.
PLATÃO. O banquete. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2011.
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Rita Correia Guedes. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
SCHOPENHAUER, A. Der handschriftlicher Nachlass, Band 4, 1: die Manuskriptbücher der Jahre 1830 – 1852. Ed. de Arthur Hübscher. München: DTV GmbH & Co. KG.
SCHOPENHAUER, A. Die beiden Grundprobleme der Ethik. Zürcher Ausgabe (texto baseado na edição histórico-crítica de Arthur Hübscher). Zürich: Diogenes, 1977.
SCHOPENHAUER, A. Parerga und Paralipomena. Segundo tomo. Zürcher Ausgabe (texto baseado na edição histórico-crítica de Arthur Hübscher). Zürich: Diogenes, 1977.
SCHOPENHAUER, A. Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde. Zürcher Ausgabe (texto baseado na edição histórico-crítica de Arthur Hübscher). Zürich: Diogenes, 1977.
SCHOPENHAUER, A. Über den Willen in der Natur, Zürcher Ausgabe (texto baseado na edição histórico-crítica de Arthur Hübscher). Zürich: Diogenes, 1977.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, 1º tomo. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005.
SCHOPENHAUER, A. Sobre a vontade na natureza. Tradução de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013.
Contribuições de autoria
1 – Rogério Moreira Orrutea Filho
Contribuição: Autoria
1 Para conferir argumentos no sentido de que, em Schopenhauer, devemos considerar a individualidade humana para além do “princípio de individuação” e dos artifícios do “Véu de Maia”, ver ORRUTEA FILHO, Sobre a distinção entre individualidade moral e individuação corpórea em Schopenhauer, p. 155 e ss; e ORRUTEA FILHO, Individualidade em sentido moral e justiça eterna, p. 185 e ss.
2 PAVÃO, Liberdade e imputação moral em Schopenhauer, p. 103-104.
3 Todas as traduções de trechos da obra de Schopenhauer apresentados neste artigo são de minha responsabilidade. A única exceção são os trechos extraídos do primeiro tomo de O mundo como vontade e representação, traduzido por Jair Barboza.
4 A força axiomática deste sentimento está na base daquela grave acusação que Jean-Paul Sartre faz aos deterministas, ao qualificar os mesmos como “aqueles que dissimulam perante si mesmos a total liberdade” e, por isso, isto é, por se recusarem a serem autênticos, devem ser chamados de “covardes” e “canalhas” (SARTRE, O existencialismo é um humanismo, p. 20).
5 Segundo Schopenhauer, a relação entre responsabilidade e liberdade é uma de tipo analítico: “onde há culpa, há responsabilidade; e [...] este é o único dado que justifica concluir pela liberdade moral” (E I, V, p. 135). Portanto, são duas noções intrinsecamente ligadas entre si, de sorte que é impossível falar de liberdade sem ao mesmo tempo falar-se de responsabilidade, e vice-versa.
6 Podemos sempre opor a isso a hipótese de Nietzsche exposta no §41 de Humano, demasiado humano: e se a vida do homem fosse menos breve? E se vivêssemos por uns oitenta mil anos? Nosso caráter não seria aparentemente imutável apenas porque não temos tempo suficiente para mudá-lo? Se o caráter (isto é, a vontade) é imutável não porque transcende o tempo (como pretende Schopenhauer), mas justamente por causa do tempo ou, mais precisamente, por causa do limite imposto pelo mesmo (como alega Nietzsche), então a imutabilidade não pode mais ser, sem mais nem menos, o signo empírico da atemporalidade metafísica da vontade, e assim a tese de Schopenhauer sofre um terrível golpe. No máximo, ele teria por ponto de partida um simples argumento de verossimilhança, um “parece-me que o caráter não muda, mas não posso ter certeza disso”. Não podemos responder esta objeção no presente artigo, cujo fim restringe-se à discussão sobre se Schopenhauer limitou-se ao conceito negativo de vontade e, a partir disso, à propositura de uma nova interpretação da liberdade moral no contexto da metafísica da vontade. Por causa disso, tivemos de assumir aqui acriticamente alguns dos argumentos de Schopenhauer, sendo a tese da imutabilidade do caráter um destes argumentos. A hipótese de Nietzsche mereceria ser avaliada em um trabalho especialmente dedicado a este fim.
7 Em uma carta sua dirigida a Becker, escrita em 21 de setembro de 1844, Schopenhauer escreve: “eu nunca expus como verdade objetiva que o caráter inteligível de um homem é um ato de vontade extratemporal, ou como conceito adequado da relação entre coisa-em-si e fenômeno, mas meramente como imagem e metáfora, enquanto expressão figurativa para a questão, na medida em que eu disse que alguém poderia assim pensá-la para tornar a questão mais compreensível” (BECKER, Briefwechsel zwischen Arthur Schopenhauer und Johann August Becker, p. 22). Sobre o diálogo entre Schopenhauer e Becker acerca da questão da ascese, sugerimos a leitura do artigo “Um epistolário filosófico: a correspondência entre Schopenhauer e Johann August Becker”, de Domenico Fazio, que nos serviu de guia sobre o assunto.
8 Escreve Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes: “A vontade é uma espécie de causalidade de seres vivos na medida em que são racionais, e a liberdade seria aquela propriedade dessa causalidade na medida em que esta pode ser eficiente independentemente da determinação por causas alheias” (KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 347/Ak 446).
9 Na edição traduzida por Gabriel Valladão Silva, este trecho está na página 211.
10 Esta fórmula fora apresentada também em outras partes da obra de Schopenhauer, como, por exemplo, no segundo tomo de Parerga e Paralipomena: “o caráter individual de cada um tem de ser visto como um ato livre. Cada um é de uma tal maneira porque quer ser de uma tal maneira, de uma vez por todas” (P II, §116, p. 247). Também no primeiro tomo de Mundo com vontade e representação: “o que cada um QUER em seu íntimo, isto ele deve SER; e o que cada um É, precisamente isto ele QUER” (W I, §65, p. 467/I 433). No entanto, o contexto de sua aplicação neste último trecho citado é um pouco diferente. Não se trata de argumentar em favor da liberdade moral, mas de demonstrar o quão supérfluo é o suicídio e quão ilusórias são as coisas temporais: enquanto houver afirmação de vontade, haverá o Ser.
11 Claro, o orgulho pode comportar um sentido mais lato. Como bem nota C.S. Lewis (Mere christianity, p. 125 e ss.), devemos evitar confundir pelo menos dois sentidos que a palavra “orgulho” traz consigo. Por um lado, Lewis vê no orgulho o mais universal e capital dos pecados. Trata-se do “orgulho de si mesmo”. Por outro lado, é possível dizer que “um homem está ‘orgulhoso’ de seu filho, ou de seu pai, ou de sua escola, ou de seu regimento”, e que, portanto, “em tais sentenças a frase ‘está orgulhoso de’ significa ‘tem uma admiração afetuosa por’” (LEWIS, Mere christianity, p. 127). Não é a este último tipo de orgulho que nos referimos, e sim ao orgulho de si mesmo, que consideramos ser o orgulho em sentido estrito. Aliás, arriscamos dizer que o último tipo de orgulho mencionado é meramente derivado, e por isso é um acessório que acompanha o sentido principal e que só tem significado nesta relação de dependência. Dizer “tenho orgulho de meu filho” significa confessar a máxima admiração pelo filho, porque o orgulho é a máxima admiração, uma vez que não há admiração maior do que a admiração de si mesmo, e orgulho significa admiração de si mesmo. Então dizer “tenho orgulho de meu filho” equivale a dizer “admiro meu filho tanto quanto me admiro”. Dizer “sinto orgulho de você” significa “a admiração que sinto por você só encontra equivalente na admiração que sinto por mim mesmo... alegre-se, pois não há admiração maior”. Consequentemente, o orgulho de algo alheio não é a dissolução do Eu no Outro, mas a dissolução do Outro no Eu, pois julga-se a admiração pelo Outro a partir da admiração fundamental que se tem por si próprio. Logo, o orgulho no sentido de “orgulhar-se de alguém” seria uma ampliação, por analogia, do orgulho em sentido mais próprio (o orgulho de si mesmo), o único a conservar um núcleo semântico verdadeiramente definido. Nestes termos, confessar sentir orgulho de outra pessoa é uma forma de mensurar o afeto por alguém a partir do afeto que se tem por si mesmo.
12 A universalidade, bem como a profundidade das raízes do orgulho na alma humana, adquire expressão poética na Divina Comédia, através do temor manifestado por Dante Alighieri em relação ao primeiro recinto do purgatório onde padeciam os orgulhosos que, com o fim de pagarem por aquele pecado, eram condenados a carregar rochas gigantescas sobre suas costas, para que assim andassem curvados em vez de caminharem altivos. A confissão de Dante quanto à intensidade de seu próprio orgulho é feita quando o poeta chega ao segundo recinto, onde eram colocados os invejosos cujo castigo consistia em permanecerem com os olhos costurados: “os olhos eu também os terei ligados aqui, embora por tempo curto, pois grande não é minha falta no terreno da inveja. Bem maior é o receio que tenho do tormento que se conhece no primeiro círculo, e isso a ponto de já me parecer pesar-me sua carga” (ALIGHIERI, A divina comédia, p. 159). A universalidade do orgulho e o estrato fundamental que o mesmo ocupa nas camadas dos pecados também foram reconhecidos por C.S. Lewis (Mere christianity, p. 121-122): “há um vício do qual homem nenhum neste mundo está livre [...]. O vício do qual estou falando é o Orgulho [...]. O vício essencial, o mal definitivo, é Orgulho. Impureza, ódio, ganância, embriaguez, e tudo o mais, não são nada em comparação: foi através do Orgulho que o diabo tornou-se o diabo: o Orgulho conduz a todo outro vício: é o estado de mente completamente contrário a Deus”.
13 PLATÃO, O banquete, p. 85/200a.
14 NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, p 150.
15 CHESTERTON, Ortodoxia, p. 89-90.
16 “Recuso-me a crer na liberdade e neste conceito filosófico. Eu não sou livre, e sim às vezes constrangido por pressões estranhas a mim, outras vezes por convicções íntimas. Ainda jovem, fiquei impressionado pela máxima de Schopenhauer: ‘O homem pode, é certo, fazer o que quer, mas não pode querer o que quer’; e hoje, diante do espetáculo aterrador das injustiças humanas, esta moral me tranquiliza e me educa. Aprendo a tolerar aquilo que me faz sofrer” (EINSTEIN, Como vejo o mundo, p. 8). Em um debate com Max Planck e Murphy, Einstein reafirma suas convicções deterministas, baseando-as na mesma frase que ele atribui a Schopenhauer (cf. PLANCK, Where’s science going?, p. 201).
17 Talvez o comportamento ascético possa ser pensado como uma manifestação desta contradição, sobretudo se considerarmos aquelas palavras do apóstolo Paulo: “Não consigo entender o que faço, pois não faço aquilo que eu quero mas aquilo que detesto” (Romanos, 7, 14-15). Entretanto, o exame sobre se a ascese é uma manifestação dessa contradição e se, caso ela seja, se ela se encaixa neste novo esquema de interpretação por nós proposto, ou se viola-o, tal exame demanda um trabalho específico. Outro ponto que merece esclarecimento é a relação entre vontade e consciência em Schopenhauer. Afinal, até o momento, procurei demonstrar que a liberdade moral sustenta-se, a partir do sentimento de responsabilidade, sobre a identidade entre aquilo que se é e aquilo que quer ser, identidade esta que encontra corroboração empírica no sentimento de orgulho. Entretanto, se este querer e este ser são inconscientes – e certamente Schopenhauer nos encoraja a pensar que eles são inconscientes – como ainda poderíamos nos sentir moralmente responsáveis? Infelizmente, tive de deixar de lado, por ora, esse difícil problema. A apresentação total de minha proposta de reinterpretação da liberdade moral a partir da metafísica da vontade não poderia ser inteiramente exposta em um único artigo científico, e por isso este texto deve ser considerado como um trabalho de introdução a um empreendimento mais amplo, que é minha tese de doutorado em andamento.