Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v.12, n.2, p. 01-33, mai./ago., 2021

DOI: 10.5902/2179378666517

ISSN 2179-3786

Recebido: 30/06/2021 Aceito: 21/10/2021 Publicado: 28/12/2021

 

O pensamento de Wittgenstein

Formas no Tractatus Logico-Philosophicus

Forms in the Tractatus Logico-Philosophicus

Luiz Henrique da Silva Santos I

I Mestre em filosofia, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

e-mail: luizh.filo@gmail.com – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4262-0836

RESUMO

O objetivo deste artigo é elucidar a ideia tractariana de forma lógica. Partimos da identificação de diferenças conceituais significativas entre ocorrências do termo “forma” no texto do Tractatus. Estas diferenças permitem a obtenção de dois conceitos distintos. O primeiro deles é a forma dos objetos; o segundo, a forma de afiguração. No interior desta última noção, é possível ainda identificar a ideia de uma forma lógica de afiguração, a qual é distinta da forma de afiguração devido à sua generalidade. Argumentamos que tanto a noção de forma dos objetos quanto a de forma lógica de afiguração (ou simplesmente “forma lógica”) podem ser entendidas sob a luz de uma reflexão sobre a apropriação wittgensteiniana do Princípio do Contexto de Frege. O uso relevante deste Princípio para a noção de forma lógica, o qual configura um expediente também utilizado por Frege numa explicação sobre a função de letras variáveis em matemática, envolve a noção tractariana de expressão [Aüsdruck]. Por seu turno, a forma dos objetos é um conceito que surge de uma espécie de intromissão ontológica do princípio na ontologia tractariana. Este movimento contraria um pressuposto de Frege quanto ao alcance do princípio, cuja aplicação está restrita à linguagem e não se estende à referência ou significado [Bedeutung] dos sinais linguísticos.

Palavras-chave: Primeiro Wittgenstein; Forma Lógica; Princípio do Contexto

ABSTRACT

The aim of this paper is to elucidate the tractariana idea of logical form. We get started from the identification of significant conceptual differences between occurrences of the term “form” inside Tractatus’ text. These differences allow the obtainment of two distinct concepts. The first of them is the form of objects; the second, the pictorial form. Inside this later notion it’s possible to identify the idea of a logico-pictorial form, which is distinct from pictorial form due to its generality. We argue that both the notion of form of objects and of logico-pictorial form (or simply “logical form”) can be understood under the light of a reflection about a Wittgensteinean appropriation of Frege’s Context Principle. The relevant use of this principle for the notion of logical form, which sets up an expedient also used by Frege in his explanation about the function of variable letters in mathematics, involves the Tractarian notion of expression [Aüsdruck]. In turn, the form of objects is a concept that arises from what seems an ontological intrusion of the principle in the Tractarian ontology. This movement counters Frege’s assumption about the principle’s range, whose application is restricted to language and isn’t extended to the reference or meaning [Bedeutung] of linguistic signs.

Keywords: Early Wittgenstein; Logical Form; Context Principle

1 INTRODUÇÃO

Uma distinção importante para a teoria da representação avançada pelo primeiro Wittgenstein (a assim chamada teoria da figuração) coloca, de um lado, nosso discurso significativo e, de outro, o discurso sobre as condições que tornam a linguagem significativa possível. A “máxima” que condensa esta distinção aparece no aforismo 4.1212 de seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921, doravante Tractatus), de acordo com o qual “o que pode ser mostrado não pode ser dito” (WITTGENSTEIN, 2017, p. 169). O discurso significativo — aquilo que pode ser dito — diz respeito ao âmbito das ciências naturais (T 4.11)[1]. A filosofia, por sua vez, concerne ao estabelecimento de limites para a esfera da ciência natural (T 4.113) e não se confunde com esta última (T 4.111). O objetivo da filosofia é a clarificação lógica dos pensamentos através de sua nítida delimitação (T 4.112).

Cumpre à proposição representar a realidade e, para tanto, ambas as esferas devem compartilhar algo entre si — algo que não pode ser representado justamente por ser aquilo que possibilita a representação. Este algo, o qual está do lado daquilo que pode ser somente exibido ou mostrado, é chamado por Wittgenstein de forma lógica (T 4.12-4.121). Para entender a ideia de acordo com a qual a linguagem exibe certos aspectos que não podem ser alcançados por meio de proposições significativas é preciso ter em mente que o objetivo de Wittgenstein é investigar aquilo que torna possível a representação da realidade. Segundo sua investigação, uma destas condições de possibilidade é a forma lógica da realidade.

É precisamente a noção de forma lógica nosso objeto de interesse nas páginas que seguem. Nosso objetivo é clarificar este conceito no interior da trama tractariana. A motivação principal da investigação é identificar se às diferentes ocorrências da noção de “forma” no decorrer do texto do Tractatus correspondem também diferenças conceituais que merecem ser elucidadas. Nosso exame fala em favor de tais distinções, as quais permitem a identificação de diferentes noções de forma. Esta sistematização manifesta a separação entre a forma dos objetos e a forma de afiguração. Há ainda que ser observada a distinção entre a forma de afiguração e a forma lógica de afiguração, esta última tomada como a forma lógica da realidade. Cada um destes conceitos possui características particulares que legitimam a distinção conceitual aqui avançada.

A elucidação da noção de forma lógica no Tractatus perpassa uma investigação sobre o papel do Princípio do Contexto, o qual deve ser melhor entendido a partir do resgate da influência de Gottlob Frege na filosofia do primeiro Wittgenstein. Argumento que tanto a forma dos objetos quanto a forma lógica de afiguração estão intimamente conectadas a diferentes versões do Princípio do Contexto no primeiro caso, o princípio envolve os nomes próprios tractarianos; no segundo, diz respeito a variáveis proposicionais. Cada um destes casos remete, como veremos, a um uso fregeano do princípio. Uma diferença importante deve, contudo, ser assinalada no tocante à forma dos objetos, conceito este que resultará da inobservância, por parte do primeiro Wittgenstein, de uma importante prerrogativa fregeana sobre a abrangência do Princípio do Contexto.

2 DOUTRINA DA FORMA LÓGICA

Para o primeiro Wittgenstein, a filosofia é a doutrina da forma lógica das proposições científicas (WITTGENSTEIN, 1969, p. 106). A ideia de acordo com a qual as proposições escondem sua forma lógica, remetida a Russell (T 4.0031), é incorporada à concepção wittgensteiniana. A verdadeira forma pode ser distinguida de uma forma apenas aparente graças ao trabalho analítico. A linguagem disfarça o pensamento como roupas disfarçam um corpo e não deixam que sua verdadeira forma seja observada (T 4.002). Cabe à análise, portanto, despir os trajes linguísticos do pensamento, revelando assim sua verdadeira forma lógica. No Tractatus, a primeira aparição da noção de forma se dá no aforismo 2.0141, no qual a mesma é apresentada como a possibilidade da ocorrência de um objeto em fatos atômicos. Esta noção está conectada a uma discussão ontológica, qual seja, a discussão sobre fatos atômicos que são constituídos por objetos simples (T 2.01, 2.0272).

Essa primeira caracterização de forma apresenta a noção modal de possibilidade. O aforismo 2.0141 é um adendo ao 2.014, de acordo com o qual a possibilidade de todas as situações está contida nos objetos. O aforismo 2.01 afirma que o fato atômico é uma ligação de objetos (coisas)” (WITTGENSTEIN, 2017, p. 129, tradução modificada) e os aforismos posteriores, que vão do 2.011 até o 2.0141, acrescentam considerações que elucidam esta afirmação. A corrente principal desta cadeia elucidativa pode ser identificada nos seguintes aforismos:

2.011 É essencial para a coisa poder ser parte constituinte de um fato atômico.

2.012 Na lógica, nada é casual: se a coisa pode aparecer no fato atômico, a possibilidade do fato atômico já deve estar prejulgada na coisa.

2.013 Cada coisa está como que num espaço de possíveis fatos atômicos. Esse espaço, posso concebê-lo vazio, mas não a coisa sem o espaço.

2.014 Os objetos contêm a possibilidade de todas as situações. (WITTGENSTEIN, 2017, p. 129-33)

A elucidação pretendida nestes fragmentos aborda uma característica essencial da coisa, a qual diz respeito precisamente à possibilidade de que esta seja uma parte constituinte de um fato atômico. Esta possibilidade é logicamente prejulgada na coisa e é neste sentido que ela está numa espécie de espaço de possíveis fatos atômicos sem o qual não pode ser concebida. Objetos possuem a possibilidade de todas as situações (ou seja, a possibilidade de todas as suas combinações possíveis) prejulgada em sua essência.

A elucidação que desemboca na afirmação feita no aforismo 2.0141 fornece um primeiro esboço de uma noção de forma avançada no Tractatus, a qual está imediatamente relacionada ao objeto tractariano. Estes objetos constituem aquilo que Wittgenstein chama de substância do mundo. Com efeito, a afirmação posterior ao aforismo 2.0141 estabelece que o objeto é simples (T 2.02). Os objetos não podem ser compostos justamente porque formam a substância do mundo (T 2.021). Deparamo-nos então com outra ocorrência da noção de forma nos aforismos 2.022-3:

2.022 É óbvio que um mundo imaginário, por mais que difira do mundo real, deve ter algo — uma forma — em comum com ele.

2.023 Essa forma fixa consiste precisamente nos objetos. (WITTGENSTEIN, 2017, p. 133)

Esse fragmento nos ensina que a forma fixa do mundo, a qual permite que um mundo imaginário compartilhe algo com o mundo real, é constituída pelos objetos. Dada a afirmação de que a substância é forma e conteúdo (T 2.025), podemos pensar que essa “forma fixa diz respeito à forma dos objetos aludida no 2.0141. Contudo, faz-se necessário averiguar mais detidamente a ideia de que a forma dos objetos, entendida como a possibilidade de sua ocorrência em fatos atômicos, é equivalente à forma fixa do mundo.

            De fato, objetos constituem uma unidade com o fixo e o subsistente (T 2.027) e é a sua existência que possibilita a forma fixa do mundo (T 2.026). Esta afirmação é importante, na medida em que os objetos são tomados como algo que possibilita a forma fixa do mundo, o que obviamente não é o mesmo que dizer que os objetos equivalem a esta forma fixa. A capacidade de aparição no fato atômico é a forma dos objetos. A ideia de uma forma fixa diz respeito ao mundo, e o mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas (T 1.1). Fatos atômicos são constituídos por objetos e, enquanto tais, são essencialmente diferentes destes últimos. A capacidade de combinação, considerada marca essencial do objeto, é o que torna possível a estrutura de um fato (T 2.033). Esta estrutura deve ser entendida como uma determinada maneira na qual objetos encontram-se efetivamente vinculados no fato atômico (T 2.032) (cf. FRIEDLANDER, 2001, p. 37). Tratam-se, deste modo, de duas possibilidades diferentes. A primeira envolve a possibilidade, inerente ao objeto enquanto tal, de ocorrer num fato; a segunda diz respeito à possibilidade de que um dado fato atômico apresente uma configuração ou estrutura específica. A segunda possibilidade repousa sobre a primeira, i.e., a possibilidade da estrutura de um fato atômico é garantida pela capacidade combinatória do objeto, i.e., sua forma. Uma tal capacidade, por seu turno, não depende de nada a não ser da essência mesma da substância.

            A partir do aforismo 2.1 Wittgenstein coloca com mais ênfase o tópico da teoria da figuração[2]. Logo no aforismo 2.15, deparamo-nos novamente com as noções de forma e estrutura:

2.15 Que os elementos da figuração estejam uns para os outros de determinada maneira representa que as coisas assim estão umas para as outras.

Essa vinculação dos elementos da figuração chama-se sua estrutura; a possibilidade desta, sua forma de afiguração. (WITTGENSTEIN, 2017, p. 137)

Como anteriormente, a ideia de forma está conectada à uma possibilidade. Contudo, é notável que os termos da explicação apresentada neste aforismo são ligeiramente diferentes daqueles enunciados anteriormente nos aforismos 2.032-3. A forma é considerada como possibilidade de uma estrutura nos dois casos, mas no primeiro a forma dos objetos é tomada como a possibilidade para a estrutura de um fato atômico, enquanto no segundo a forma de afiguração é a possibilidade da estrutura de uma figuração.

            Em que sentido a estrutura de uma figuração é comparável à estrutura de um fato atômico? Até então, sabemos que o fato atômico é uma combinação de objetos simples que compõe o nível mais básico daquilo que pode ou não existir. Devemos saber, deste modo, o que é uma figuração, estabelecendo assim uma base de comparação entre os dois conceitos. A respeito disso, Wittgenstein afirma:

2.14 A figuração consiste em estarem seus elementos uns para os outros de uma determinada maneira.

2.141 A figuração é um fato. (WITTGENSTEIN, 2017, p. 135)

Um modo plausível de conceber a figuração como um fato é entender que os signos linguísticos que representam o mundo estão, eles mesmos, situados no mundo. A figuração é um fato, assim como marcas escritas numa folha de papel o são. No entanto, observada a distinção tractariana entre fatos [Tatsachen] e fatos atômicos [Sachverhalte], esta passagem pode proporcionar a seguinte exegese: se uma figuração é um fato, então estamos autorizados a dizer que sua estrutura é constituída pelas estruturas de dois ou mais fatos atômicos (T 2.034)[3]. A forma dos objetos é a possibilidade da estrutura de um fato atômico, enquanto a forma de afiguração é a possibilidade da estrutura de um fato. Os elementos da figuração estão conectados de uma certa maneira, i.e., apresentam uma certa estrutura, e isto representa que as coisas no fato atômico estão conectadas da mesma maneira. Uma figuração é, sob essa perspectiva, um fato composto por ao menos dois fatos atômicos que compartilham o mesmo modo de combinação. A possibilidade desta equiparação estrutural é chamada de forma de afiguração (T 2.151).

            Apesar de a figuração ser ela mesma um fato, aquilo que ela representa é, por sua vez, não o fato atômico em si, mas a possibilidade de sua existência ou inexistência (T 2.201). Uma proposição elementar é composta pela combinação imediata de nomes próprios cuja função é a de se referir a objetos simples. O sentido veiculado pela figuração é uma representação da realidade que não depende da verdade ou falsidade de nenhuma proposição, mas da própria forma de afiguração (T 2.22). Em outras palavras, o sentido de uma proposição depende somente da possibilidade de que dois fatos atômicos compartilhem a mesma estrutura.

            A forma de afiguração desempenha um papel específico na teoria da representação do primeiro Wittgenstein. Sua elucidação filosófica situa o sentido proposicional no encontro de duas estruturas complexas ligadas por uma relação afiguradora. A forma de afiguração é aquilo que um fato [Tatsache] deve ter em comum com aquilo que é figurado para que seja considerado uma figuração da realidade (T 2.16-7), ensejando a relação de afiguração que consiste na coordenação entre os elementos da figuração e os objetos do fato atômico (T 2.1514). O que está em jogo nessa relação representacional é a própria conexão entre a proposição e a realidade (T 2.1511). Esta conexão proporciona o sentido proposicional e não diz respeito ao estabelecimento de um valor de verdade, pois este é efetivado através da comparação do sentido da figuração com a realidade (T 2.21).

É recorrente a aparição da noção de possibilidade no discorrer sobre a ideia de forma. A primeira possibilidade apresentada caracteriza a forma dos objetos, tomada como a capacidade de ocorrência em fatos atômicos. Para que algo seja um objeto, é necessário que sua combinação com outros objetos seja possível. Esta possibilidade, por seu turno, torna possível o arranjo estrutural de objetos que constitui o fato atômico. Se objetos devem poder ocorrer em fatos atômicos, então é possível que estes fatos possuam uma estrutura, um modo de combinação específico. Nesse sentido, a forma entendida em sua acepção modal de possibilidade de ocorrência em fatos atômicos possui também uma função transcendental de possibilitar a estrutura destes mesmos fatos. Com isso somos levados à terceira possibilidade, qual seja, a de que o fato atômico se encontre estruturado da mesma maneira que a proposição elementar. A coordenação entre nome e objeto baseia a relação de representação que se mantém entre a linguagem e realidade, a partir da qual ocorre a projeção do sentido proposicional. A figuração é um fato [Tatsache] cuja estrutura é formada pelas estruturas de fatos atômicos [Sachverhalte] que encontram-se configurados da mesma maneira. A forma de afiguração é a possibilidade desta estrutura, a qual pressupõe não apenas a conexão dos objetos no fato atômico como também uma relação de afiguração que conecta dois complexos estruturalmente idênticos.

Este breve exame sobre a teoria da figuração possibilita a identificação de distinções importantes entre dois tipos de forma, revelando também o modo pelo qual estes dois conceitos encontram-se conectados. Sendo um fato, a figuração é formada pelas estruturas de fatos atômicos e a possibilidade destas últimas é, deste modo, pressuposta pela primeira. A possibilidade de ocorrência do objeto em um fato atômico deve estar gravada em sua natureza. Se objetos podem ocorrer em fatos atômicos, então é possível que estes últimos possuam suas respectivas estruturas, resultantes da concatenação dos primeiros. Se a estrutura do fato atômico é possível, então também é possível que dois fatos apresentem a mesma estruturação. Quando isso ocorre, tais fatos são conectados por uma relação de representação que viabiliza a projeção do sentido de uma figuração. A forma dos objetos é, deste modo, condição para a formulação da noção de forma de afiguração. O contrário, contudo, não acontece a forma dos objetos não depende da forma de afiguração e não pressupõe a relação de afiguração que articula a coordenação dos elementos na figuração.

Figuração e figurado devem possuir algo de idêntico para que um seja a figuração do outro (T 2.161) e existem ao menos duas maneiras pelas quais a realidade pode ser figurada. A forma de afiguração é aquilo que a figuração deve ter em comum com a realidade para que possa figurá-la de uma maneira particular (T 2.17). Para representar um objeto espacial, a figuração deve compartilhar com este último a forma do espaço, e o mesmo vale para qualquer outro aspecto da realidade que se deixa figurar (T 2.171). Toda figuração é, contudo, também uma figuração lógica e por isso ela pode figurar a totalidade dos fatos (T 2.19). A figuração representa tanto um aspecto particular da realidade como a sua totalidade por meio de sua forma lógica (T 2.18). A forma de afiguração é a possibilidade de que ao menos dois complexos compartilhem a mesma configuração, permitindo que os elementos de um correspondam aos objetos do outro. Para figurar a realidade como um todo a figuração deve compartilhar o modo de combinação de seus elementos com a totalidade dos fatos.

Constatamos uma distinção adicional no interior do conceito de forma de afiguração que identifica duas maneiras pelas quais a figuração desempenha seu papel representacional. Nem toda figuração é cromática ela pode ser sonora, temporal ou espacial mas todas as figurações são lógicas (T 2.182). Quando a forma de afiguração equivale à forma lógica, a figuração é chamada figuração lógica (T 2.181). O conceito de forma lógica envolve, desta maneira, um outro conceito importante, pois a figuração lógica dos fatos é o que Wittgenstein chama de pensamento [Gedanke] (T 3). Como pode ser observado, as noções de forma dos objetos, forma de afiguração e forma lógica desempenham papéis diferenciados na elaboração de diferentes conceitos tractarianos. Uma explicação sobre apenas um desses conceitos não é suficiente para dar conta de todos eles. Esta distinção proporciona a identificação dos aspectos específicos que envolvem a explicação sobre a noção de forma dos objetos e diferenciam-na de outras referências à ideia de forma que ocorrem durante o Tractatus.

A proposição, que é a expressão linguística sensivelmente perceptível de uma figuração lógica (T 3.1), deve fornecer de antemão todo o espaço lógico, este último determinado pela armação lógica que envolve a figuração (T 3.42). O que permite que uma figuração percorra todo o espaço lógico e represente a totalidade dos fatos é a forma lógica de afiguração. A forma lógica depende somente da natureza da proposição e corresponde a um protótipo lógico (T 3.315), uma armação lógica que ajuda a proposição a descrever completamente a realidade (T 4.023). A forma dos objetos diz respeito a um aspecto essencial da substância e os representantes linguísticos dos objetos são os nomes próprios. Um nome não é uma figuração da coisa nomeada da mesma maneira que a proposição é uma figuração de uma situação, pois uma única palavra não pode ser verdadeira ou falsa e tampouco pode expressar o pensamento que concorda ou não com a realidade[4]. Os conceitos de forma dos objetos e forma lógica de afiguração pertencem, deste modo, a âmbitos distintos. O primeiro concerne a objetos, enquanto o segundo diz respeito a fatos. Do mesmo modo, a proposição que figura os fatos no mundo é distinta dos nomes, os quais se referem a objetos simples (T 3.203).

Para conhecer um objeto é necessário que sejam conhecidas suas propriedades internas (T 2.01231), e isto quer dizer que devemos nos atentar ao que nele há de essencial. Uma propriedade é interna caso seja impensável que seu objeto não a possua (T 4.1221). O que há de essencial no objeto é a sua possibilidade de ocorrência em fatos atômicos (T 2.011), i.e., sua forma (T 2.0141). A substância é forma e conteúdo e a forma dos objetos é sua propriedade interna e essencial. A distinção entre forma e conteúdo ocorre novamente na explicação tractariana sobre a natureza do sentido proposicional.  A proposição é colocada no limiar da relação projetiva que se mantém entre um signo proposicional, por meio do qual o pensamento é expresso, e o mundo (T 3.12). Wittgenstein chama as partes que caracterizam o sentido de uma proposição, assim como a proposição ela mesma, de expressão [Ausdrück]; esta última assinala, por sua vez, uma forma e um conteúdo (T 3.31).

A investigação sobre a noção de expressão e sua relação com as ideias de forma e conteúdo configuram um passo importante na elucidação das diferenças entre noções de forma no Tractatus. A centralidade deste exame é acentuada devido ao uso tractariano do Princípio do Contexto, o qual aparece diretamente relacionado a estes conceitos. Para entendermos o que está em jogo nessa discussão, examinaremos a maneira pela qual Frege utiliza seu Princípio do Contexto com o objetivo de fornecer uma base de comparação entre sua posição e a do primeiro Wittgenstein. Deste modo será possível entender o que está em jogo nos conceitos de forma e conteúdo de uma expressão, assim como avaliar como o Princípio do Contexto dá lugar à noção de forma dos objetos.

3 Frege, Wittgenstein e o Princípio do Contexto

A discussão que antecede a primeira ocorrência do Princípio do Contexto nos Grundlagen der Arithmetik[5] de Gottlob Frege tem como tema central a natureza dos números. Este princípio fornece os recursos necessários para a tarefa de análise e leva à introdução de extensões para conceitos (RICKETTS, 2010, p. 199). A necessidade do princípio surge da constatação de ambiguidades decorrentes de posições psicologistas sobre a noção de número.

            A reflexão de Frege escrutina a ideia de acordo com a qual uma unidade [Einheit] é cada uma das coisas que são enumeradas. A forma gramatical da palavra “um” influencia a ideia de que a unidade é uma propriedade e, como consequência, pode ser tomada como a caracterização de um objeto. Contudo, argumenta Frege, se a unidade é uma propriedade, todas as coisas devem possuí-la — o que torna sua atribuição a qualquer objeto incompreensível. Se um predicado não adiciona nada à descrição do sujeito, i.e., se por meio dele não é possível distinguir um objeto de outros, então seu conteúdo conceitual é nulo. Outro problema apontado por Frege é o fato de o predicado “um” não ser inteligível caso ocorra isoladamente. É possível combinar os enunciados “Sólon é sábio” e “Tales é sábio”, obtendo assim a frase “Sólon e Tales são sábios”. Apesar de ambos os sujeitos compartilharem a pretensa propriedade da unidade, a sentença “Sólon e Tales são um” não pode ser construída da mesma maneira. Quando descritos conjuntamente numa frase plural, Sólon e Tales não são um, mas dois (FREGE, 1974, p. 233-4).

            Essa crítica fregeana é “um exemplo de elucidação categorial sobre a natureza do número ‘um’ centrada na análise de possíveis ocorrências de sua expressão em sentenças típicas” (RUFFINO, 1990, p. 26). A conclusão é a de que a palavra “unidade” é só outro termo para designar uma coisa, pois todo objeto pode ser tomado como “um”. Frege argumenta contra uma definição do conceito de número em termos de um processo de abstração. Neste processo as características que distinguem duas coisas são ignoradas, com o objetivo de tornar idênticas coisas que antes eram diferentes. Segundo Frege, duas coisas nunca são completamente idênticas, apesar de podermos identificar aspectos comuns entre dois objetos. A abstração não fornece o conceito de número das coisas abstraídas, mas um conceito geral que se aplica igualmente aos objetos considerados. O conceito “gato”, que une dois gatos particulares distintos, é o resultado do processo de abstração daquilo que faz dois gatos particulares diferentes. Não é possível, a partir deste processo, tornar idênticas coisas distintas, pois seu resultado é uma coisa só — um só conceito satisfeito por dois objetos, que permanecem diferentes (cf. FREGE, 1974, p. 236.).

            Para que coisas possam ser enumeradas é preciso que elas sejam distinguíveis umas das outras. A abordagem que define números como unidades é identificada em grandes nomes da tradição filosófica, como Locke e Leibniz (FREGE, 1974, p. 238). A ideia de que unidades podem ser distintas acarreta, contudo, confusão conceitual. Frege aponta que conceber o número como uma anexação, conjunto ou pluralidade de unidades requer a conjunção de duas propriedades contraditórias: distinguibilidade e identidade. Como consequência, tomar números como resultado do ajuntamento de unidades é algo sem sentido. Se a unidade é o resultado de um processo de abstração que elimina tudo aquilo que é distinguível entre objetos, é difícil entender como o conceito de número, que pressupõe distinguibilidade, pode ser obtido nestes termos. As confusões filosóficas que envolvem a ideia de unidade são incitadas pela dificuldade em entender a gramática da palavra “um”. Como nome próprio de um objeto matemático, esta palavra não admite plural e, desta maneira, o número não pode ser concebido como uma coleção de unidades (FREGE, 1974, p. 244).

            A questão sobre o que é aquilo a que nos referimos quando proferimos enunciados sobre números permanece, deste modo, em aberto. A resposta fregeana para esta questão parte da prerrogativa, exposta no §46 dos Grundlagen, de que o número deve ser considerado no contexto de um juízo que desvela seu uso básico. A partir disso é possível observar que dois juízos terminologicamente diferenciados podem tratar sobre o mesmo objeto e que à diferença entre os termos da sentença corresponde uma modificação de seu conteúdo conceitual. Isso sugere que o conteúdo conceitual de um enunciado que envolve números é uma asserção sobre um conceito (FREGE, 1974, p. 236). A aplicação metodológica do Princípio do Contexto fregeano prepara o insight de que números são propriedades de segunda ordem, aplicáveis somente a outros conceitos. Ao atentar para o contexto do uso básico da linguagem, Frege estabelece uma distinção entre o conteúdo conceitual de um termo e o objeto ao qual este se refere. Com o amadurecimento da teoria semântica fregeana[6], a noção de conteúdo conceitual passará a ser chamada de pensamento [Gedanke] (BLACHETTE, 2012, p. 28). Um pensamento é o conteúdo de uma expressão linguística composta por nomes que possuem um significado [Bedeutung] e um sentido [Sinn], este último tomado como o modo de apresentação de um objeto.

            Apesar de o Tractatus repetir o Princípio do Contexto fregeano em alguns aforismos, sua teoria semântica possui trilhos próprios. De acordo com Frege, o sentido de uma sentença é uma entidade abstrata com a qual temos contato quando pensamos, enquanto para o primeiro Wittgenstein este sentido é uma possibilidade de existência ou não-existência de fatos atômicos. Frege defende que uma sentença gramatical bem formada, além de possuir um sentido equivalente ao pensamento por ela veiculado, possui também um significado, que é o Verdadeiro ou o Falso. Wittgenstein vai de encontro a esta ideia ao defender que proposições e nomes são diferentes porque as primeiras possuem apenas sentido, enquanto os últimos correspondem somente a seus significados (BAKER E HACKER, 2005, p. 161-162). Enquanto Frege considera proposições e nomes de maneira semelhante, pois ambos possuem sentido e referência, para Wittgenstein há uma diferença marcante entre o nome e a proposição. Sendo assim, o uso tractariano do Princípio do Contexto deve ser considerado pormenorizadamente, pois não se trata de uma mera reprodução da posição esboçada por Frege.

            A primeira aplicação do Princípio do Contexto nos Grundlagen exemplifica uma metodologia de investigação que observa o uso significativo da linguagem e propõe a distinção entre o conteúdo que a proposição veicula e os objetos aos quais ela se dirige. Trata-se, deste modo, de um “princípio guia na elucidação sintático-categorial” (RUFFINO, 1990, p. 23) da linguagem. A ideia de que uma atenção ao contexto básico de uso de uma expressão linguística revela algo sobre a gramática da linguagem e possibilita o alcance de aspectos essenciais da noção de significado é uma herança fregeana que constitui um aspecto central da filosofia wittgensteiniana. A versão metodológica do Princípio do Contexto é, com efeito, utilizada por Wittgenstein em sua distinção entre símbolo [Symbol] e sinal [Zeichen] (cf. CONANT, 2001, p. 24). Um sinal é qualquer aspecto perceptível da linguagem (T 3.32), como os pixels que são vistos na tela de um computador ou os relevos marcados em papel para leitura tátil. Por seu turno, o símbolo é qualquer parte da proposição que caracteriza seu sentido (T 3.31). Para que o símbolo determine uma forma lógica e possa ser identificado no sinal é preciso que nos atenhamos a seu uso significativo, seu emprego lógico-sintático (T 3.326-7).

A primeira ocorrência do dito fregeano preconiza a necessidade de considerarmos termos numéricos no contexto de um juízo que traz à tona seu uso básico, permitindo o alcance de um insight sobre a significatividade da linguagem. A análise que desemboca na concepção de número fregeana parte de uma afirmação mais forte do Princípio do Contexto, condicionando a significatividade de um nome ao contexto de uma sentença:

Deve-se porém atentar sempre a uma proposição completa. Apenas nela têm as palavras propriamente significado. [...] É suficiente que a proposição como um todo tenha sentido; isto faz com que também suas partes ganhem conteúdo. (FREGE, 1974, p. 253)

Essa diretriz possui um aspecto semântico determinante utilizado na explicação da tese epistemológica que motiva o logicismo fregeano, qual seja, a ideia de que a aritmética deve ser redutível à lógica (RUFFINO, 1990, p. 59). O significado de um termo numérico deve ser analisado não isoladamente, mas no contexto de uma proposição que assere a igualdade numérica entre dois conceitos. A partir do Princípio de Hume, esta igualdade será entendida como a correspondência biunívoca entre os elementos que compõem a extensão dos conceitos analisados (FREGE, 1960, p. 73-4). A identidade é tomada como uma relação entre dois conceitos que constituem o conteúdo de um juízo e correspondem a um mesmo objeto.

            No Tractatus, há duas ocorrências nas quais o Princípio do Contexto é tomado explicitamente como uma condição para que uma expressão linguística tenha significado:

3.3 Só a proposição tem sentido [Sinn]; é só no contexto da proposição que um nome tem significado [Bedeutung].

3.314 A expressão [Aüsdruck] só tem significado [Bedeutung] na proposição. Toda variável pode ser concebida como variável proposicional.

(Inclusive o nome variável). (WITTGENSTEIN, 2017, p. 145 e 147)

De acordo com Wittgenstein, o signo proposicional é um fato e somente fatos podem expressar um sentido (T 3.142-3). As situações figuradas pelas proposições não podem ser nomeadas (T 3.144) porque os nomes próprios, ou signos simples (T 3.202), significam objetos (T 3.203). A proposição pressupõe uma articulação estrutural definida e não é, deste modo, apenas um conjunto de nomes (T 3.141). O aforismo 3.314 apresenta, contudo, a ideia de um ”nome variável”, que deve ser concebido como uma variável proposicional. Uma expressão [Aüsdruck], assim como um nome, só possui significado [Bedeutung] no contexto de uma proposição. Este aforismo motiva a interpretação de que um objeto tractariano deve ser entendido como o valor de um nome variável, uma noção puramente lógica chamada de “conceito formal” (ISHIGURO, 1969, p. 27). Nas palavras de Ishiguro:

O que o 3.3 expressa é a tese geral sobre expressões e os objetos que elas designam, os quais claramente derivam dos Fundamentos da Aritmética de Frege, que não avança tais visões sobre nomes. Nós veremos que a noção de objeto simples de Wittgenstein fez ele tomar essa visão ainda mais seriamente. Não se pode procurar pela referência de nomes independentemente de seu uso em proposições.[7] (ISHIGURO, 1969, p. 22)

A ideia geral, de inspiração fregeana, seria a de que não é possível ver como um nome se refere a um objeto sem entender sua função em proposições (ISHIGURO, 1969, p. 23). Esta interpretação afirma que a tese do aforismo 3.3 concerne à relação entre expressões e os objetos por elas designados, pressupondo que a noção de expressão é equivalente à noção de nome. É preciso observar, contudo, que a relação entre uma expressão [Aüsdruck] e aquilo que ela designa não é exposta no aforismo 3.3, mas no 3.314. É importante entender porque Wittgenstein se preocupa em afirmar o Princípio do Contexto duas vezes, quase consecutivamente, com uma mudança terminológica significativa.

            A parte característica do sentido de uma proposição pode ser chamada tanto de expressão [Ausdrück] quanto de símbolo (T 3.31). A versão metodológica do Princípio do Contexto é incorporada ao Tractatus na ideia de que só no emprego lógico-sintático de um nome é possível identificar o símbolo no sinal. Distinguir dois símbolos que possuem o mesmo sinal é possível através da constatação de diferentes modos de significação (T 3.321). Um modo de significação é, por sua vez, um emprego lógico-sintático (T 3.323) (JOHNSTON, 2007, p. 369). A identificação do símbolo no sinal pressupõe uma versão heurística do princípio ao afirmar que um símbolo ou modo de significação só pode ser identificado no contexto de sua aplicação lógico-sintática (T 3.326). O que está em jogo nessa formulação não é a significatividade de um nome, mas a determinação de uma forma lógica (T 3.327).

            A formulação semântica do Princípio do Contexto, claramente afirmada no aforismo 3.3, estabelece que um nome só possui significado no contexto de uma proposição. No aforismo 3.314, fala-se que a expressão (não o nome) — possui significado na proposição (T 3.314). Estas observações proporcionam a enunciação de três ditames distintos:

P1: Somente no emprego lógico-sintático de um sinal a forma lógica pode ser determinada.

P2: Somente no contexto de uma proposição o significado de uma expressão pode ser determinado.

P3: Somente no contexto de uma proposição o significado de um nome pode ser determinado.

Observamos que P1, enquanto expressão da versão metodológica do Princípio do Contexto, não envolve diretamente a noção de significado. Não podemos, de fato, identificar a referência de nomes fora de sua função sintática em proposições. Com a atenção ao contexto de uso de um termo, contudo, alcançamos um símbolo, i.e., o emprego lógico sintático de um sinal (JOHNSTON, 2007, p. 370). A ideia de significado só aparece explicitamente nas duas formulações seguintes, respectivamente com respeito às noções de expressão e nome próprio.

            De acordo com o Tractatus, a relação que se mantém entre linguagem e mundo é estabelecida através da nomeação (T 4.0312). Entretanto, é notável o fato de uma descrição completa do mundo, por meio de proposições completamente generalizadas, dispensar a correlação de um nome com um objeto particular (T 5.526). Se a possibilidade do caráter determinado do sentido repousa sobre a postulação de signos simples que se referem a objetos também simples, é difícil explicar a sua dispensabilidade na descrição completa do mundo. A contradição que se instaura (nomes são ao mesmo tempo indispensáveis e dispensáveis) pode ser aplacada através da atenção quanto ao conceito de expressão, cujo significado difere substancialmente daquele pertinente aos nomes próprios: enquanto estes últimos se referem a objetos simples, uma expressão é uma variável cujos valores são proposições (T 3.313).

            Neste sentido, os valores de uma variável proposicional são o “significado” de expressões e são fixados a partir da descrição de proposições que contém a própria expressão. O nome é um sinal primitivo que não pode ser analisado por meio de definições (T 3.26) e seu significado é um objeto que não pode ser composto (T 2.021). A descrição das expressões, i.e., a descrição de todas as proposições que compõem o valor de uma variável, é pressuposta na sintaxe lógica e seu estabelecimento não depende do significado de nenhum sinal (T 3.33). É preciso lembrar que há uma diferença entre os modos de significação de um sinal complexo e de um sinal primitivo (T 3.261). O nome variável é um sinal complexo cujo significado é constituído por proposições. O objeto, enquanto significado de um sinal simples é irrelevante na descrição completa do mundo porque esta utiliza variáveis proposicionais, cujo ‘significado’ pressupõe somente descrições de classes de proposições.

            Cuter (2002, p. 91) entende que o conceito de expressão é utilizado por Wittgenstein para transformar o nome próprio numa variável proposicional, subvertendo o uso fregeano do Princípio do Contexto ao aplicá-lo a expressões linguísticas insaturadas. Para designar um objeto, além de substituí-lo no nexo proposicional, o nome deveria espelhar a sua forma lógica, esta última entendida como todas as suas possibilidades combinatórias. Um nome variável assinala uma forma, ao atuar como uma marca comum de uma classe de proposições (T 3.311), e um conteúdo, concernente à fixação dos valores da variável proposicional numa descrição que trata apenas de símbolos.

            Com efeito, se o nome é uma variável proposicional e a fixação dos valores desta variável trata apenas de símbolos, não de seu significado (T 3.317), como explicar a relação entre o nome e o objeto? Se o sinal simples denota o objeto, porque a fixação de seu conteúdo dispensa a tratativa de seu significado?  Uma saída para esse entrave envolve reconhecer que as noções de nome (T 3.3) e expressão (T 3.314) remontam a dois conceitos diferentes: no primeiro caso, trata-se de um nome constante e, no segundo, de um nome variável. Em P2, o Princípio do Contexto é aplicado a variáveis proposicionais, que são expressões insaturadas, enquanto em P3 o dito envolve o nome próprio, que é uma expressão saturada. O nome variável e o nome próprio possuem modos de significação diferentes e, por consequência, às duas ocorrências do Princípio do Contexto correspondem símbolos distintos.

            Além disso, a utilização do princípio no aforismo 3.314 do Tractatus é bastante próxima a uma ocorrência menos famosa do dito na obra fregeana, no texto intitulado Über die Grundlagen der Geometrie (1906). No artigo em questão, Frege desenvolve uma discussão sobre a necessidade de uma linguagem sem ambiguidades, que evite os vacilos da linguagem ordinária. A defesa da necessidade de conceitos vagos na ciência poderia partir do uso de letras em matemática, como no caso da proposição , na qual a letra a, por exemplo, denotaria hora o número 2, hora um número qualquer, ou mesmo vários números. Na visão de Frege, porém, isso é um equívoco. Essas variáveis possuem uma natureza diferente de signos numéricos como ‘2’ e signos para relações como ‘=’, pois não designam, não denotam; sua função é contribuir para a expressão do pensamento, mas isso só pode ocorrer no contexto de uma proposição:

Primeiramente podemos pensar nas letras usadas na matemática se queremos defender a ambiguidade dos sinais. Mas estas letras são de um gênero completamente diferente dos numerais ‘2’, ‘3’, etc., ou dos sinais para relações ‘=’, ‘>’. Elas não devem significar de maneira nenhuma números, conceitos, relações, ou quaisquer funções, mas sim devem apenas ser indicadas para conferir generalidade de conteúdo às proposições nas quais ocorrem. Portanto, apenas no contexto de uma proposição elas possuem uma determinada função a cumprir, contribuindo para a expressão do pensamento.[8] (FREGE, 1906, p. 307, minha tradução)

A contribuição do uso de letras variáveis em matemática para a expressão do pensamento é dar generalidade de conteúdo à proposição na qual elas ocorrem. Na proposição  não são expressos vários pensamentos, como aquele contido em  ou outro qualquer. Estas proposições são diferentes, pois a primeira possui uma generalidade que a segunda não possui, apesar de ambas expressarem cada qual um único pensamento.

            O conceito de expressão no Tractatus é um expediente utilizado por Wittgenstein de uma maneira análoga à explicação de Frege sobre a natureza funcional das letras em matemática, para elucidar a generalidade da noção tractariana de forma lógica. O aforismo 3.315 explica como o uso de variáveis proposicionais acarreta a identificação de uma classe de proposições que corresponde a uma forma lógica ou protótipo lógico de figuração. A parte constituinte de uma proposição é um nome próprio, que denota um objeto simples. Deste modo, os nomes ‘a’, ‘B’ e ‘c’ exemplificam a proposição ‘aBc’, que representa sua situação correspondente. Para identificar uma parte proposicional que expressa aquilo de essencial para seu sentido, é preciso transformar um nome constante numa variável. Se substituirmos ‘a’ por ‘x’, obtendo assim a expressão ‘xBc’, obtemos a classe de proposições originada por essa substituição e os valores que a variável ‘x’ pode assumir são os nomes admissíveis nesse nexo proposicional. Se ‘b’, ‘c’ e ‘d’, são os nomes que podem ocorrer neste exemplo, o conteúdo da expressão corresponde às proposições bBc, cBc e dBc.

            Se todos os nomes forem substituídos por variáveis, existirá uma classe correspondente que não depende da correlação arbitrária de um nome a qualquer objeto, mas somente da natureza da proposição. Esta classe, que corresponde a uma forma lógica, é formada por todas as combinações possíveis de nomes admissíveis na forma da expressão. O resultado da aplicação do conceito de expressão é o alcance de proposições totalmente generalizadas, por meio das quais podemos descrever o mundo completamente sem pressupor que um nome possua um significado específico (T 5.526). Deste modo, o Tractatus permite a possibilidade de que haja nomes em proposições completamente generalizadas — os nomes variáveis —, mas estes só podem ser correlacionados a objetos não especificados (CHEUNG, 2005, p. 21). O significado que as expressões só possuem no contexto de uma proposição é, portanto, diferente do significado de um nome próprio. É por isso que Wittgenstein se preocupa em afirmar novamente, no aforismo 4.23, que o nome só ocorre nas proposições no contexto de uma proposição elementar, enquanto o uso do nome variável se dá no contexto de uma proposição cujo conteúdo são classes de proposições.

            A generalidade alcançada pela noção de expressão com a substituição de todos os nomes constantes por nomes variáveis numa proposição é justamente o aspecto que diferencia a forma de afiguração da forma lógica de afiguração, explicadas respectivamente nos aforismos 2.17 e 2.18. A diferença entre um nome variável e um nome constante marca a distinção entre P2 e P3. O Princípio do Contexto fregeano é aplicável a termos variáveis que substituem termos númericos no contexto de equações matemáticas, e a função dessas variáveis é a de dar generalidade ao pensamento expresso pelo enunciado no qual ocorrem. O uso de variáveis que cumprem a mesma função no Tractatus é também prenunciado pelo princípio, exposto no aforismo 3.314, que trata sobre a significatividade de uma expressão. Aquilo que expressões significam, diferentemente dos nomes próprios, são classes de proposições, e uma expressão totalmente generalizada — cuja classe corresponde a todas as combinações possíveis de nomes — corresponde a uma forma lógica.

            Isso explica porque uma descrição completa do mundo dispensa o uso de nomes, empregando variáveis que não desempenham a função de denotar um objeto específico. O emprego das variáveis pressupõe a substituição de nomes constantes cuja referência fixa garante a determinação do sentido proposicional. A expressão apresenta a forma lógica de afiguração como uma matriz ou protótipo lógico que se mostra em proposições completamente generalizadas. Nomes ainda estão envolvidos na descrição completa do mundo por intermédio de expressões ou nomes variáveis, cuja aplicação pressupõe outras proposições nas quais ocorrem nomes próprios passíveis de substituição. Existe, deste modo, um nível mais básico de significação no qual o nome desempenha seu papel denotativo, e um nível de aplicação de nomes variáveis que apenas pressupõem este papel na descrição do mundo.

            A enunciação de P2 concerne ao conceito de expressão e explica a noção de forma de afiguração lógica exposta no aforismo 3.315. À diferença entre as formulações do Princípio do Contexto nos aforismos 3.3 e 3.314 corresponde a distinção tractariana entre nomes e proposições — ou, no caso do conceito de expressão, uma variável proposicional cujo significado são proposições. A forma lógica de afiguração é o que permite que a figuração represente o mundo, entendido como a totalidade dos fatos. A noção de significado que ocorre em P3 é relativa ao nome próprio, que denota um objeto e, como consequência, a formulação do aforismo 3.3 resulta num conceito distinto dessa forma lógica. Este resultado é oriundo de um movimento conceitual do primeiro Wittgenstein que vai de encontro a uma importante prerrogativa fregeana.

3.1 Limites do Princípio e Forma dos Objetos

Como observa Cuter, a ocorrência do Princípio no aforismo 3.3 se dá quase que em tom de paródia do dito fregeano colocado nos Grundlagen. Um problema específico parece justificar seu esforço na defesa de que o Tractatus transgride o Princípio do Contexto de Frege ao aplicá-lo a uma variável proposicional. Objetos simples são a referência dos nomes tractarianos e constituem a substância do mundo, a qual subsiste independentemente do que é o caso. O Princípio do Contexto, por outro lado, atrelaria a significatividade do nome ao nexo proposicional, como se seu significado dependesse, de alguma maneira, do sentido da proposição (CUTER, 2002, p. 90). A exposição de Cuter revela os termos de um conflito entre a independência da substância do mundo (T 2.024) quanto aos fatos e a dependência do significado de um nome com relação ao nexo proposicional. Defender que o Princípio do Contexto no Tractatus transforma o nome numa variável proposicional parece ser uma maneira de lidar com esse conflito, evitando dar centralidade à ideia de que o significado de um nome é, de alguma maneira, dependente do sentido da proposição na qual ele ocorre.

            O problema em questão é antevisto por Frege, que concebe o significado de uma palavra numérica como algo objetivo e autossubsistente (cf. RECK, 2007, p. 37). Afirmar essa autossubsistência sobre o número não significa dizer que uma palavra numérica possui significado fora do contexto de uma proposição. Em outras palavras, a independência do significado não implica a independência da significatividade de um nome, que só possui referência no nexo proposicional e é, deste modo, dependente de sua ocorrência na proposição. Do mesmo modo, a dependência da significatividade do nome com relação à proposição não acarreta o mesmo tipo de dependência para seu significado. A terminologia fregeana é cuidadosa ao tratar número [Zahl] e numeral [Zahlwort] em termos distintos (FREGE, 1974, p. 253). É importante observar esta distinção porque, dada a autossubsistência de um número, é fácil cometer o engano de considerar o significado de um numeral isoladamente. A aplicação do Princípio do Contexto na análise do conceito de número diz respeito a numerais e a dependência destes com relação ao contexto da proposição não se estende a seus significados, cuja existência é totalmente independente e autossuficiente.

A versão semântica do Princípio do Contexto, afirmada por Frege nos Grundlagen, não é encontrada em nenhum trabalho subsequente. Isto sugere, de acordo com Dummett, que a abordagem fregeana desenvolve uma nova doutrina de 1890 em diante, abandonando a ideia de que a sentença possui a função distinta de permitir a determinação do significado de um nome pela ideia de que sentenças podem ser vistas como nomes próprios (DUMMETT, 1973, p. 6-7). Contudo, como notam Baker e Hacker (2005, p. 160), sentenças são comparadas a nomes próprios já no Begriffsschrift (1879), o que torna difícil entender como esta posição entra em conflito com o Princípio do Contexto. Uma das razões que Frege teria para retirar, com o desenvolvimento de sua teoria semântica madura, a centralidade dada a este princípio nos Grundlagen, é abordada na seguinte passagem de seu famoso artigo Über Sinn und Bedeutung:

O julgar é na verdade algo totalmente peculiar e único. Poder-se-ia dizer que julgar consiste em distinguir partes dentro do valor de verdade. [...] Tenho, porém, empregado aqui a palavra “parte” de um modo peculiar: transferi a relação entre todo e parte da sentença para sua referência, Isto o fiz ao conceber a referência de uma palavra como parte da referência de uma sentença, quando a própria palavra é parte da sentença. Certamente, esta maneira de falar é discutível, porque, no que diz respeito à referência, o conhecimento do todo e de uma de suas partes não determina a outra parte, e também porque a palavra “parte”, quando aplicada aos corpos, é empregada em outro sentido. (FREGE, 2009, p. 141)

O significado de uma palavra que ocorre como parte de uma sentença pode ser tomado como parte do significado desta última. Contudo, a relação que existe entre um nome e a sentença não pode ser confundida com aquela que se mantém entre o objeto ao qual o nome se refere e o significado da sentença, que diz respeito a um valor de verdade. Existe, então, um sentido no qual a palavra ‘parte’ é utilizada para corpos, que são divisíveis, assim como uma sentença pode ser dividida em partes, mas que não pode ser aplicado à noção de significado.

O valor de verdade, que é a totalidade do significado de uma sentença, não é suficiente para determinar um objeto significado por um nome que faz parte desta sentença. Tampouco um objeto pode determinar um valor de verdade, pois os dois, enquanto significados de termos linguísticos, são independentes. Sendo assim, apesar de o nome somente possuir significado no contexto de uma proposição, a existência do objeto por ele denotado não depende do valor de verdade correspondente à sentença como um todo. Este modo de falar pode ser atacado porque o significado de um nome, que para Frege deve ser auto-subsistente e portanto independente, passaria a ser dependente do significado de uma sentença — e um objeto não pode ser, ao mesmo tempo, dependente e independente.

A dependência acarretada pelo Princípio do Contexto é limitada a palavras e sentenças, não sendo estendida ao significado, à referência de signos linguísticos. Quando Wittgenstein trata sobre os objetos, que são a referência dos signos simples, o limite observado por Frege não é respeitado. Isso acontece porque a concepção de linguagem apresentada no Tractatus toma proposições como modelos da realidade em sua função figurativa. Figurações representam situações no mundo e são elas mesmas também fatos. Linguagem e realidade são aproximadas de uma tal maneira que em muitas ocasiões é possível traduzir diretamente afirmações que envolvem termos linguísticos utilizando conceitos ontológicos[9] .

O postulado tractariano dos signos simples que possibilita o caráter determinado do sentido (T 3.23), por exemplo, aparece nos Notebooks 1914-16 como a demanda pelas coisas simples (WITTGENSTEIN, 1969, p. 63). Os aforismos 2.062 e 5.135, por sua vez, são praticamente uma tradução, em termos ontológicos, da tese da independência das proposições elementares colocada no 5.134. Do mesmo modo, o Princípio do Contexto colocado no aforismo 4.23 encontra sua contraparte ontológica no 2.0121:

2.0121 Se posso pensar no objeto na liga [Verbande] do fato atômico, não posso pensar nele fora da possibilidade dessa liga.

4.23 O nome aparece na proposição apenas no contexto [Zusammenhange] da proposição elementar. (WITTGENSTEIN, 2017, p. 131 e 177, tradução modificada)

Assim como a possibilidade da aparição do nome na proposição elementar é atestada pelo Princípio do Contexto, a possibilidade do aparecimento de um objeto em fatos atômicos constitui sua forma (T 2.0141).

            A relação de dependência entre o nome próprio e a proposição elementar é estendida, no Tractatus, aos objetos, que possuem a mesma dependência quanto à liga do fato atômico. Explicamos a forma dos objetos como a capacidade, inerente à natureza de um objeto, de ocorrência em fatos atômicos. Isso pode ser observado com uma atenção ao aforismo 2.0122, que compara o vínculo entre coisa e fato atômico com aquele mantido entre o nome e a proposição:

2.0122 A coisa é autossuficiente, na medida em que pode aparecer em todas as situações possíveis, mas essa forma de autossuficiência é uma forma de vínculo com o fato atômico, uma forma de não ser autossuficiente. (É impossível que palavras intervenham de dois modos diferentes, sozinhas e na proposição). (WITTGENSTEIN, 2017, p. 131 e 177, tradução modificada)

A consequência ontológica de ser a coisa de certa forma dependente do fato atômico no qual deve poder ocorrer, assim como o nome depende de sua ocorrência na proposição, acontece aqui em dissonância com a recomendação fregeana de que o significado deve ser totalmente autossuficiente. A forma dos objetos incorpora, deste modo, uma espécie de conflito em sua formulação, com a definição de sua existência independente dada em função de sua essencial concatenabilidade com outros objetos.

            Constatamos que as noções de forma no Tractatus sempre trazem consigo a ideia de possibilidade. A forma dos objetos, entendida como sua capacidade essencial de conexão com outros, é a possibilidade da estrutura de um fato atômico. A possibilidade de que os nomes de uma proposição elementar e os objetos de um fato atômico estejam configurados de modo a compartilhar a mesma estrutura é chamada de forma de afiguração. Sendo assim, chegamos à possibilidade da forma de afiguração, que permite a representação de situações na linguagem, com base na ideia de que os fatos atômicos possuem uma certa estrutura resultante da combinação de objetos e que a possibilidade desta combinação é garantida pelo objeto por si só, pela sua essência. Pela aplicação do Princípio do Contexto na ontologia tractariana, chegamos à enunciação de mais uma versão do princípio que é resultado da tradução de P3 em termos ontológicos:

P3: Somente no contexto de uma proposição o significado de um nome pode ser determinado.

P4: Um objeto só pode existir na sua possível ocorrência em um fato atômico.

Isso implica reconhecer que o objeto é essencialmente dependente do fato atômico, assim como a determinação do significado de um nome depende de sua ocorrência no nexo de uma proposição. Como a possibilidade da estrutura de um fato atômico é um pressuposto para a forma de afiguração, a forma dos objetos é anterior à sua formulação.

            A proposição pode alcançar todo o espaço lógico por ser uma figuração lógica, e para tanto deve possuir uma forma lógica de afiguração correspondente a um protótipo lógico visto na aplicação de variáveis proposicionais. Que há uma forma lógica pode ser visto no fato de haver uma classe de proposições correspondentes a uma proposição totalmente generalizada. Por meio deste tipo de proposição, que usa nomes variáveis e somente pressupõe nomes em sua função de representar objetos, é possível que a proposição descreva o mundo completamente. A aplicação do Princípio do Contexto ao conceito de expressão no aforismo 3.314 resulta na noção tractariana de forma de afiguração lógica. A ocorrência do dito no aforismo 3.3, por sua vez, é dedicada aos nomes próprios e estendida, pela íntima conexão entre linguagem e mundo, aos objetos, resultando na noção de forma dos objetos.

4 Considerações Finais

Existem ao menos três noções de forma distintas no Tractatus: a forma dos objetos (2.0141), a forma de afiguração (T 2.17) e a forma (de afiguração) lógica (T 2.18). A diferença entre a forma dos objetos e a forma de afiguração corresponde à diferença entre o âmbito dos objetos e o âmbito dos fatos. A forma do objeto é entendida como sua característica essencial de poder ocorrer em fatos atômicos. Esta forma é o que possibilita a estrutura de um fato atômico, entendida como o modo específico através do qual objetos encontram-se conectados. A cada noção de forma está ligada uma noção de possibilidade. No caso da forma dos objetos, temos tanto uma noção modal de possibilidade, pois o objeto é sempre um possível constituinte de fatos atômicos, como uma noção transcendental, dado que a forma aqui é também concebida como condição de possibilidade para a estrutura de um fato atômico.

            A forma de afiguração, por seu turno, é apresentada como a possibilidade da estrutura de uma figuração, não de um fato atômico. Neste último caso, trata-se da possibilidade de que o modo de combinação das coisas num fato atômico seja o mesmo que o modo de combinação dos elementos da figuração, a qual também é um fato. A distinção entre forma de afiguração e forma lógica pode ser vista na comparação entre os aforismos 2.17 e 2.18. A forma de afiguração é aquilo que a figuração deve ter em comum com a realidade para que possa representar um aspecto particular desta última; a forma lógica, por seu turno, permite que a figuração represente qualquer aspecto da realidade. A diferença entre forma de afiguração e forma lógica é dada por uma diferença na generalidade da representação.

            As considerações sobre a noção de forma envolvem centralmente a aplicação do Princípio do Contexto fregeano. A versão metodológica do princípio é muito importante para a investigação levada a cabo pelo Tractatus, visto que a forma lógica só pode ser determinada no contexto do uso significativo da linguagem. No que toca à versão semântica, a qual trata explicitamente sobre uma condição para a significatividade, o princípio é aplicado tanto a nomes quanto a expressões, estas últimas tomadas como variáveis proposicionais. A aplicação do princípio à noção de expressão trata sobre o significado de variáveis proposicionais, cujos valores são proposições. Trata-se, portanto, de uma aplicação diversa daquela atribuída a nomes próprios, cujos significados não são proposições, mas objetos simples.

            A noção de forma lógica ou protótipo lógico de figuração é elucidada no interior de uma tratativa sobre casos limite de expressão nos quais todos os nomes constantes são substituídos por nomes variáveis. A função de uma variável neste caso é idêntica àquela identificada por Frege no tocante ao uso de letras variáveis em matemática, qual seja, a de munir o pensamento de generalidade. No Tractatus, proposições completamente generalizadas cumprem a função de descrever a realidade por completo. Uma tal possibilidade de alcance total da realidade é justamente a característica que separa a simples forma de afiguração da forma de afiguração lógica. O Princípio do Contexto aplicado a expressões no Tractatus é muito próximo à aplicação fregeana deste princípio a letras variáveis em matemática. Em ambos os casos dizer que tais expedientes possuem significado apenas no contexto de uma proposição significa dizer que somente neste nexo estes podem cumprir sua função de dar generalidade ao pensamento expresso.

            No tocante à versão semântica do Princípio do Contexto, a qual condiciona a significatividade de nomes à sua ocorrência no contexto de uma proposição, existe uma diferença significativa entre as tratativas do primeiro Wittgenstein e de Frege. Para este último, o princípio que pode ser aplicado à linguagem não pode ser estendido aos significados, pois estes últimos não podem depender do significado total da proposição como os nomes dependem do contexto proposicional. No caso wittgensteiniano, o objeto, o qual é tomado como o significado de um nome próprio, depende de sua ocorrência em fatos atômicos, assim como a significatividade do nome depende da proposição. É possível, portanto, encontrar uma versão ontológica do Princípio do Contexto no Tractatus, a qual envolve a noção de forma dos objetos. Esta última noção grava na essência do objeto a possibilidade de ocorrência em fatos atômicos, sem a qual o objeto não pode ser concebido.

Referências

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WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. 3 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017. Tradução, apresentação e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos; introdução de Bertrand Russell.Contribuições de autoria

1 – Autor: Luiz Henrique da Silva Santos

Contribuição: Autor



[1] As referências indiretas ao Tractatus são apresentadas pela colocação da sigla “T” ao lado do número correspondente às passagens aludidas.

[2] Antes deste aforismo, a noção de figuração é mencionada apenas uma vez, no assim chamado “argumento da substância” (cf. PROOPS, 2004) esboçado nos aforismos 2.0211-2.

[3] Esta interpretação pressupõe que Sachverhalte são distintos de Tatsachen por uma questão de complexidade. Além do aforismo 2.034, uma explicação de Wittgenstein a Russell sobre a natureza do Sachverhalt corrobora esta abordagem (cf. Wittgenstein e MGuinness, 2008, p. 96). Um Tatsache é, deste modo, um complexo de Sachverhalte. Existe, contudo, ao menos outra interpretação possível, estimulada pela leitura de Stenius (1964), sugerindo que esta distinção separa o que é possível (Sachverhalt) do que é real ou atual (Tatsache). Para uma discussão sobre estas diferentes interpretações, ver Edgar Marques (1990) e José Oscar Marques (1991).

[4] Este ponto é levantado por Wittgenstein em seus Notebooks 1914-16 (WITTGENSTEIN, 1969, p. 8-9)

[5] Esta obra foi publicada originalmente em 1884.  Doravante, utilizaremos a abreviação “Grundlagen” nas menções a este livro.

[6] De acordo com Blachette (2012, p. 31), a articulação mais clara da teoria semântica madura de Frege ocorre nos artigos Funktion und Begriff (1891) Über Sinn und Bedeutung (1892a) e Über Begriff und Gegenstand (1892b).

[7] “What 3.3 expresses is a general thesis about expressions and the objects they designate, which plainly derives from Frege's Foundations of Arithmetic, which does not advance such views about names. We will see that Wittgenstein's notion of simple objects made him take this view even more seriously. One cannot look for the references of names independently of their use in propositions.”

[8] “Zunäst kann man an den Gebrauch der Buchstaben in der Mathematik denken, wenn man die Vieldeutigkeit der Zeichen verteidigen will. Aber die Buchstaben sind ganz anderer Art als die Zahlzeichen >>2<<, >>3<< usw. oder als die Beziehungszeichen >>=<<, >> > <<. Sie sollen garnicht Zahlen, oder Begriffe, oder Beziehungen, oder irgendwelche Funktionen bezeichnen, sondern sie sollen nur andeuten, um dem Satze, in dem sie vorkommen, Allgemeinheit des Inhalts zu verleihen. Also nur im Zusammenhange eines Satzes haben sie eine gewisse Aufgabe zu erfüllen, haben sie zum Gedankenausdrucke beizutragen.”

[9] Este aspecto da filosofia do primeiro Wittgenstein pode ser debitário de seu parentesco com a teoria de Russell, que de acordo com Hyder (2002, p. 7) toma os objetos do pensamento e os atos cognitivos de um sujeito como pertencentes ao mesmo nível ontológico.