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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v.12, e05, Ed. Especial: Schopenhauer e o pensamento universal, 2021

DOI: 10.5902/2179378666000

ISSN 2179-3786

Submissão: 28/05/2021 • Aprovação: 27/09/2021 • Publicação: 28/12/2021

REFERÊNCIAS. 16

 

Schopenhauer e o pensamento universal

 O pessimismo e suas razões: Schopenhauer como estudo de caso e direcionamentos metodológicos

Pessimism and its reasons: Schopenhauer as a case study and methodological directions

Matheus Silva Freitas IÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, Brasil

RESUMO

 Nosso objetivo é tomar o pensamento de Schopenhauer como estudo de caso e ponto de partida para discutir em que medida o “pessimismo” pode ser fundamentado e reinterpretado segundo “razões objetivas”, conceitualmente filosóficas. Para intérpretes como Christopher Janaway e Frederick Beiser, a legitimidade filosófica do pessimismo schopenhaueriano, atribuído à tese de que a vida é um negócio que não cobre os custos do investimento, é garantida pelas implicações inferidas da metafísica da Vontade. Por outro lado, Kuno Fischer, acompanhado dentre outros por Bryan Magee, reinterpreta tal pessimismo a partir de “razões subjetivas”, pautadas em certas disposições de espírito ou preferências, como a relação conflituosa de Schopenhauer com sua mãe, por exemplo. A dificuldade em determinar mais precisamente a fundamentação do pessimismo de Schopenhauer redobra se considerarmos estudos que seguem uma tendência oposta e classificam esse autor como um “otimista”; Heinz Gerd Ingenkamp pode ser apontado como representante dessa vertente interpretativa. Se tal dificuldade se deve, como supomos a princípio, ao inevitável anacronismo que permeia a maior parte das discussões sobre o suposto pessimismo de Schopenhauer acerca do valor da existência, propomos minimizá-lo mediante um procedimento exegético que indicamos aqui ainda em linhas gerais.

Palavras-chave: Pessimismo; Schopenhauer; Escola de Schopenhauer; Matias Aires

ABSTRACT

 Our aim is to take Schopenhauer's thinking as a case study and starting point to discuss the extent to which “pessimism” can be grounded and reinterpreted according to “objective reasons”, conceptually philosophical. For interpreters like Christopher Janaway and Frederick Beiser, the philosophical legitimacy of Schopenhauerian pessimism, attributed to the thesis that life is a business that does not cover investment costs, is guaranteed by the implications inferred from the metaphysics of the Will. On the other hand, Kuno Fischer, accompanied among others by Bryan Magee, reinterprets such pessimism from “subjective reasons”, based on certain dispositions of spirit or preferences, such as Schopenhauer's conflicting relationship with his mother, for example. The difficulty in determining more precisely the basis for Schopenhauer's pessimism is redoubled if we consider studies that follow an opposite trend and that classify this author as an “optimist”; Heinz Gerd Ingenkamp can be appointed as a representative of this interpretative line. If such a difficulty is due, as we suppose at first, to the inevitable anachronism that permeates most of the discussions about Schopenhauer's supposed pessimism about the value of existence, we propose to minimize it by means of an exegetical procedure that we indicate here in general lines.

Keywords: Pessimism; Schopenhauer; Schopenhauer-School; Matias Aires

Este texto, apresentado no IX Colóquio Internacional Schopenhauer, é um resumo de parte do nosso primeiro ano de pesquisa de doutorado com uma indicação de como procederemos em sua continuidade. De modo geral, nosso objeto é o pessimismo filosófico e o nosso problema é saber em que medida tal corrente de pensamento pode ser fundamentada e reinterpretada segundo “razões objetivas”, conceitualmente filosóficas. Partimos, então, da discussão sobre a caracterização da filosofia de Schopenhauer como pessimista, porque a ampla bibliografia especializada a esse respeito permite a confecção de um estado da arte ao mesmo tempo consistente para servir de base e fértil em problematizações.

Sabe-se que o termo “pessimismo” aparece na obra de Schopenhauer (1788-1860) bastante tardiamente, apenas no tomo II de O mundo (1844), e ainda assim como contraposição a um “otimismo” que representava, segundo ele mesmo, a antítese de seu pensamento. Por outro lado, no tomo I dessa obra (1819) o otimismo já é alvo de críticas contundentes. Em todo caso, fora dessa contraposição as atribuições do termo “pessimismo” às mais diversas esferas da filosofia schopenhaueriana são, em grande medida, anacrônicas. E, anacronicamente, há um relativo consenso de que Schopenhauer (W II, p. 684 [II 656]; p. 690 [II 691]; p. 692 [II 664])[1] é pessimista por conta de sua tese de que a vida é um negócio que não cobre os custos do investimento, ou, simplesmente, de que o não ser é melhor do que o ser (JANAWAY, 1999, p. 319; BEISER, 2016, p. 47). Aproveitando este sentido estrito de pessimismo, ainda que provisoriamente, questionamos: quais razões, então, poderiam ser extraídas da filosofia de Schopenhauer para sustentar essa sua conclusão?

Conforme podemos extrair de Magee (1997, p. 11-13), elas seriam “razões subjetivas”, entendidas aqui como aquelas pautadas em certas disposições de espírito ou preferências. Para ele, a visão negativa de Schopenhauer sobre a existência teria origem no seu temperamento neurótico, desenvolvido na relação conflituosa com sua mãe. E Kuno Fischer atribui a grande popularidade de que tal pessimismo gozou na cena filosófica alemã, de meados de 1860 a 1900, ao estado de ânimo germânico suscitado pelo fracasso da revolução de 1848; nessa avaliação ele foi acompanhado por Bona Mayer, outro neokantiano, e posteriormente por Georg Lukács (BEISER, 2016, p. 2).

Essas hipóteses não devem simplesmente ser ignoradas, sobretudo se levarmos em conta um aspecto peculiar da psicologia schopenhaueriana da vontade; para refutar definitivamente uma tese filosófica, escreve Schopenhauer (W I, p. 520 [I 532]; p. 523 [I 534]), é preciso, além de apontar suas falhas conceituais, objetivas, identificar as razões subjetivas que teriam motivado o autor a cometê-las; é exatamente o que ele faz em sua Crítica da filosofia kantiana, ao analisar conceitualmente as pretensas falhas de Kant na dedução das doze categorias e, em seguida, atribuir a insistência desse autor nelas à sua “obsessão pela simetria”. Entrementes, a frequência com que o debate sobre o pessimismo schopenhaueriano é transportado para um nível patológico, como eventual sintoma de um humor entristecido, no âmbito individual ou coletivo, é intrigante e pode ter outra explicação. Stäglich (1951-52, pp. 28-30) delineia os principais elementos para a reconstrução de uma história do conceito de pessimismo e, dentre eles, ressalta uma circunstância que tornou comum sua associação apressada à psicologia. Trata-se da confusão entre a conotação científica que envolve o termo e o seu uso ao ser incorporado pela linguagem comum (Allgemeinsprache); assim, pela expansão do emprego que se fazia na psiquiatria, “pessimismo” passa a ser vulgarmente associado a um comportamento melancólico.

Haveria ainda outro porquê, de natureza mais filosófica, para todos aqueles intérpretes se furtarem a uma busca pelas eventuais razões objetivas que Schopenhauer teria oferecido para sustentar seu pessimismo. Seria a distinção entre fato e valor, enfaticamente apontada por Magee (1997, p. 13). De acordo com tal distinção, juízos valorativos, como o de Schopenhauer sobre a vida, não poderiam ser assentados em bases estritamente intelectuais ou racionais, isto é, em “razões objetivas”; dependeriam, antes, de gostos, escolhas ou sentimentos individuais, em suma, de “razões subjetivas”. Justamente por isso, de acordo com as primeiras críticas do positivismo contemporâneo a Schopenhauer, a questão de se a vida vale ou não a pena ser vivida não passaria de um pseudoproblema (BEISER, 2006, p. 8).

Por outro lado, Schopenhauer reivindica para si o grande mérito de ter elaborado uma metafísica que segundo ele é, como nenhuma outra na história da filosofia, originalmente ética; nessa metafísica estaria a prova de que o mundo, essencialmente, possui uma significação moral, da qual dependeria, por seu turno, a ordem física das coisas (N, pp. 208-209). Essa correlação entre a ordem física e a ordem moral das coisas é explicitada em uma Indicação à ética, que aparece como a última rubrica de Sobre a vontade na natureza (1836). E já na tese de doutoramento dele, um trabalho de teoria do conhecimento (Erkenntnistheorie) Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente (1813), Koßler (2014, p. 13) encontra elementos que estabelecem essa vinculação entre metafísica e significação moral do mundo; eles estariam, sobretudo, nas reflexões que aí Schopenhauer ofereceu sobre o “caráter humano”, inclusive presentes nos rascunhos que ele mesmo fez antes ou durante a redação desse texto.

Portanto, tomar mais cuidadosamente a concepção de filosofia e de metafísica de Schopenhauer pode levar a uma compreensão de seu pessimismo para além das “razões subjetivas” que estariam em suas bases; mais ainda, preveniria seus críticos contra “razões subjetivas” que eles próprios trazem consigo e que, em alguns casos, limitam sua apreciação de tal pensamento. Ora, em seu próprio tempo, a ética schopenhaueriana enfrentou a forte rejeição de idealistas, materialistas, positivistas e neokantianos, porque ela teria como implicações o quietismo político e, além disso, o suicídio, ainda que essa prática tenha sido explicitamente rechaçada por Schopenhauer (BEISER, 2016, p. 44). Ou seja, parece que razões subjetivas não motivam filósofos a tirar conclusões pessimistas sobre a vida mais do que impedem seus críticos de ler o trabalho deles com maior seriedade.

Ao assumir aquela singularidade da filosofia de Schopenhauer, que viabilizaria o trânsito de seu pensamento entre o campo dos fatos e o dos valores, algumas “razões objetivas” são mais recorrentemente indicadas como fundamentos de seu pessimismo; ou, no sentido estrito usado até aqui, de sua conclusão de que a não existência é preferível à existência (INVERNIZZI, 1994, p. 24-32; JANAWAY, 1999, p. 323-333; BEISER, 2016, p. 47-52). A razão mais imediata para o pessimismo de Schopenhauer resultaria de uma espécie de cálculo eudemonístico hedonista, bastante simples e que rapidamente mostraria que “as tristezas e os sofrimentos superam largamente as alegrias” (W I, pp. 362-363 [I 369-370]). Com isso, um olhar mais atento para a experiência do sofrimento no mundo bastaria para defini-lo como um “vale de lágrimas”. O argumento deixa de soar tão dogmático se lembrarmos que o autor define “indivíduo” como sujeito que é objetivação da Vontade (W I, p. 116 [I 118]) e que, com isso, associa a felicidade à saciedade dessa entidade metafísica. Restaria concluir, então, que a vida é um constante sofrimento, entendido como uma frustração que atinge os mais diversos graus pelos incontáveis desejos não saciados e que só aparentemente são pessoais; ou como tédio, que atormenta após a saciedade porque, na verdade, tais desejos são daquela Vontade que é, em sua essência, insaciável. Temos aí a justificativa metafísica daquele cálculo eudemonístico.

E temos, ao mesmo tempo, a estrutura que permite classificar mais um punhado de razões objetivas para comprovar seu pessimismo. A primeira delas seria o caráter ilusório da felicidade, ou negatividade do prazer (W II, p. 686 [II 657-658]; p. 684 [II 656]), decorrente das considerações de Schopenhauer sobre a natureza do sofrimento. A segunda seria a impossibilidade de um melhoramento da condição humana, individual ou socialmente, dado o caráter imutável da Vontade e a sua onipresença; essa premissa e suas implicações levam Moraes (2017) a cunhar a definição de “pessimismo moral” e Debona (2017, p. 786) a de “pessimismo pragmático”.

Uma terceira razão, a mais radical até então, não pode ser facilmente desdobrada das anteriores. Trata-se da absolutização do sofrimento, a ideia de que só a presença da dor no mundo já seria prova de que a existência não se justifica, porque a aflição de uma única pessoa jamais seria compensada mesmo pela felicidade de outras milhares e o maior bem nunca apagaria o menor mal sofrido (W II, p. 687-688 [II 659-660]). Não custa admitir, como Beiser (2016, p. 48), que no caso dessa última razão Schopenhauer parece trair uma excessiva sensibilidade para a dor e inserir no argumento um aspecto de sua subjetividade. Ainda assim, junto com as demais razões apontadas até aqui, essa última também visaria corroborar, objetivamente, a tese de que seria melhor não ser.

Paralelamente a essa tese, outro argumento chama particularmente a atenção, porque nele Schopenhauer (W II, pp. 696-697 [II 667-668]) explicitamente defende a hipótese de que vivemos no “pior dos mundos possíveis” (mundus pessimus). Basicamente, o argumento diz que esse mundo não poderia ser pior do que é, ou então ele não reuniria condições físicas, químicas ou biológicas para nossa existência. Ora, ainda que o mundo não pudesse piorar nesses aspectos, ele ainda poderia ser moralmente pior, como já foi com Auschwitz. Este seria apenas um problema do argumento, e Janaway (1999, p. 321) e Beiser (2016, p. 47) encontram tantos outros que o leitor facilmente se convence de que ele não deve ser levado muito à sério; que funcionaria, antes, muito mais como uma ironia contra o melhor dos mundos possíveis de Leibniz.

Felldmann (2012), por outro lado, enxerga muito mais sofisticação no mesmo raciocínio do “pior dos mundos possíveis”. Nesse caso, segundo ele, Schopenhauer não estava realmente preocupado com as condições materiais desse mundo, muito menos com as éticas, e sim com a “condição formal” da sua existência; o argumento visaria explicitar, no fim das contas, que não há uma razão suficiente para a sua existência e nesta tese, para Felldmann (2012, p. 517), repousa o que ele chama de “negativismo ontológico” de Schopenhauer: a falta de fundamento do mundo, que é Vontade, em relação à sua própria existência. Este negativismo se desdobraria, ainda segundo o intérprete, em um “negativismo antropológico”, posto que na vontade humana se refletiria a mesma ausência de fundamento: “o sofrimento da vida [...] acaba sendo um sofrimento metafísico da autorreferência da vontade humana” e, portanto, algo injustificado (FELLDMANN, 2012, p. 518). Rosset (1967, p. 37) antecipadamente parece ter seguido a mesma pista ao assinalar em Schopenhauer uma “filosofia do absurdo” avant la lettre, enraizada no seu “pessimismo existencial” acerca de um mundo sem fundamento.

Já Gimmel (2011, p. 136-137) atribui a Schopenhauer um pessimismo cuja razão é, antes de tudo, em parte “formal”, em parte “normativa”. De acordo com sua leitura, Schopenhauer insere seu próprio pensamento no contexto de uma totalidade, a da Vontade, e escancara a autocontradição que daí se segue: seu pensamento é parte desse todo e, ao mesmo tempo, refere a um além, ao estágio da negação da Vontade. Ou seja, a constituição e a pretensão do pensamento estariam em contradição, expressa em formulações paradoxais como a “vontade que quer e não quer” ou “o pensamento que pensa contra si mesmo”. Na esteira desse pessimismo formal da autocontradição do pensamento, a totalidade acabaria sendo negativa também no sentido normativo, pois certo tipo de “experiência metafísica do sofrimento”, revertida em compaixão, certificaria de que o mundo é algo que “não deveria ser”.

Temos aí apenas alguns exemplos, e há muito mais desses episódios, de como as mais diversas definições são cunhadas para classificar diferentes aspectos do pessimismo de Schopenhauer, de acordo com as razões que eventualmente o sustentariam. A lista é tão extensa quanto são múltiplos os critérios para estabelecer cada um dos seus itens, e uma prova disso está na quantidade e na disparidade das análises que sequer tomam Schopenhauer como um pessimista, e sim, ao contrário, como um otimista. Para Bazardjian (1909) e Wendel (1912), Schopenhauer só não ofereceu, a partir de sua metafísica da Vontade, uma caracterização otimista da existência porque teria feito uma má interpretação de seus próprios pressupostos (WENDEL, 1912). Para reforçar tal conjectura de que esse autor seria, antes, um otimista, Wendel (1912, p. 89) não tem qualquer problema em apelar para informações biográficas e exaltar o pretenso caráter altruísta desse filósofo. Ou seja, tal otimismo de Schopenhauer derivaria de razões subjetivas, de sua própria personalidade.

Ingenkamp (2012) faz um esforço bem mais elaborado e aponta razões objetivas que fundamentariam um otimismo schopenhaueriano. Segundo esse comentador, diferentemente do que nos fazem acreditar muitas declarações de Schopenhauer, para esse filósofo “nosso verdadeiro eu não é a Vontade, mas aquilo que persiste na negação da vontade” (INGENKAMP, 2012, p. 32). O comentador recorre à influência do platonismo na construção da doutrina da Vontade e traça o que ele enxerga como uma similaridade entre o summum bonum platônico e o Nicht-So de Schopenhauer. Para os dois filósofos, a fusão com o bem absoluto seria algo pelo qual valeria a pena lutar, que seria recomendado de maneira parenética e que se poderia aprender na academia, no caso de Platão, ou pelo exemplo dos santos e ascetas, exaltado por Schopenhauer (INGENGAMP, 2012, p. 39).

Felldmann (2012) também classifica Schopenhauer como um otimista e uma das razões para isso é a sua consideração bastante sutil do significado do sofrimento e da “interioridade”, bem como da relação entre eles, na filosofia desse autor. O sofrimento na ótica de Schopenhauer, explica Felldmann (2012, p. 521), “atrai as pessoas a si mesmas e lhes abre um mundo interior que é ‘mais real’ para eles do que qualquer outra coisa que tenha lugar no mundo exterior”. Mais ainda, “a experiência da confusão interna da vontade, que se expressa nos conflitos e absurdidades da existência humana, anula a orientação externa da vida prática e dá à experiência emocional intensidade e dinamismo”. E até mesmo a importância que Schopenhauer, paradoxalmente, atribui aos sofrimentos para que se alcance a negação da Vontade, segundo o intérprete, contribui para que não se tome a existência como algo completamente desprezível.

Percebe-se, portanto, que do mesmo objeto, a posição de Schopenhauer sobre se a vida vale ou não a pena ser vivida, os intérpretes têm extraído conclusões até opostas, pintando-o tanto como um pessimista quanto um otimista. Esse conflito de leituras serviria como reforço à sentença positivista de que o valor da existência é um pseudoproblema e não deve ser objeto da filosofia? E ainda que analisemos apenas as razões objetivas que destacam seu pessimismo, será realmente o melhor caminho prosseguir com a multiplicação indefinida das definições que elas têm inspirado? Invernizzi (1994, p. 20) parece antever que essa dificuldade sucederia ao buscar remontar a posição de Schopenhauer a tipos específicos de pessimismo que só muito tempo depois seriam precisamente definidos por seus comentadores.

Não estamos dispostos a responder qualquer uma dessas questões, antes de conduzir nossa investigação sobre o pessimismo filosófico e suas razões segundo um procedimento exegético que julgamos mais salutar para a matéria. Para tanto, dois pontos precisam ser levados em conta. Em primeiro lugar, se a principal fonte disponível para remontar a fundamentação de uma filosofia pessimista é Schopenhauer, a quem o termo pessimismo é na maior parte das vezes atribuído anacronicamente, é preciso assumir de antemão esse anacronismo; e, além disso, buscar um modo de minimizar seus inconvenientes. Em segundo lugar, e seguindo uma preciosa observação de Invernizzi (1994, p. 2), é preciso não perder de vista que Schopenhauer é um pouco mais e um pouco menos do que o “pessimismo”: um pouco mais porque sua filosofia não se reduz ao pessimismo e inclusive sobrevive quando se esgota o interesse por esse aspecto de seu pensamento; e um pouco menos porque outros autores, influenciados ou não por ele, também desenvolvem filosofias em que o pessimismo ocupa uma posição central.

Por isso, propomos classificar em “tipos de razão”, com o auxílio de manuais de teorias da argumentação, as principais razões objetivas que fundamentariam o pessimismo de Schopenhauer, indicadas diretamente por ele ou, em sua maioria, por sua fortuna crítica. Com efeito, concordamos com Cossuta (1994, pp. 148-149) que a “argumentação” é um processo mais amplo que o mero encadeamento de proposições que depende unicamente da lógica formal e compõe uma “demonstração”; a argumentação “integra todos os elementos de estratégia pelos quais os enunciados tendem a se influenciar, como pressupostos, subentendidos”, etc. Ter em mente essa distinção permitiria um melhor aproveitamento da bibliografia especializada em Schopenhauer e possibilitaria a uniformização de um campo conceitual que minimizaria os efeitos do inevitável anacronismo de suas leituras; isso se de fato conseguirmos classificar tais razões em “tipos”, de acordo com a “estrutura” ou o “esquema argumentativo” em que elas se circunscrevem.

Para ficar só com um par de exemplos, estabeleceríamos, inspirados por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 320, 372), que “pessimismo moral” e “pessimismo pragmático”, atribuídos a Schopenhauer por Moraes (2017) e Debona (2013, pp. 195-196), respectivamente, seriam ramificações de um único “tipo de razão”: de uma “ligação irrefreável de coexistência de uma essência com suas manifestações”; esse parece ser o caso na relação estabelecida por Schopenhauer entre a Vontade e suas manifestações, relação que desautorizaria, por seu turno, uma previsão de aperfeiçoamento da natureza humana em relação ao que já fora atribuído à natureza da Vontade. E convencionaríamos como “argumento do supérfluo” o tipo de razão por trás dos raciocínios que levam Felldmann (2012, p. 518) a pensar em um “negativismo antropológico” e Rosset (1967) em um “pessimismo existencial”, ambos na filosofia schopenhaueriana: está em jogo nesse caso um alerta ao desperdício de se buscar uma justificativa para nossa existência, tendo em vista que a própria existência do mundo é injustificada.

Para ampliar nosso quadro com os “tipos de razões” objetivas do pessimismo, é pertinente aproveitar um evento único na história da filosofia e indissociável da nossa pesquisa, a saber, a “tradição filosófica pessimista” gestada a partir de Schopenhauer (INVERNIZZI,1994; BEISER, 2016). Dentre os inúmeros filósofos envolvidos nessa querela, nosso recorte levará em conta aqueles que foram denominados como “metafísicos da escola de Schopenhauer”. São eles Julius Bahnsen (1830-1881), Eduard Von Hartmann (1842-1906) e Philipp Mainländer (1841-1876), assim classificados por desenvolverem de modo original a doutrina metafísica schopenhaueriana da Vontade (FAZIO, 2014, p. 21-22; INVERNIZZI, 2008, p. 151-152) e cujos pensamentos, por isso mesmo, devem ser férteis em novas razões objetivas para o pessimismo[2]. Ora, cada um deles, à sua maneira e dadas as concessões que fazem a si próprios, criticam a idealidade do espaço e do tempo assumida por Schopenhauer, o que os levaria a um ponto de vista estritamente realista (INVERNIZZI, 2008, p. 158). Essa manobra nos vedaria o redentor retorno à unidade associado por Schopenhauer a um ato de liberdade transcendental de “negação da Vontade”? Se sim, como é certo ao menos do caso de Bahnsen[3], e se ela significa uma radicalização do pessimismo schopenhaueriano, classificá-la também em um “tipo de razão” continua sendo indispensável para evidenciar sua novidade em relação a ele.

Nosso último passo deve ser a análise da Reflexão sobre a vaidade entre os homens (1752), que rendeu ao filósofo luso-brasileiro Matias Aires (1705-1763) a classificação de “pessimista” (LIMA, 2004, p. XVIII; MARGUTTI, 2013, p. 288). Podemos apurar se há nessa obra “tipos razão” já identificados como fundamentos do pessimismo de Schopenhauer e retomados pelos metafísicos da sua “escola”. Se sim, teríamos uma espécie de prova de que o pessimismo pode sim ser filosoficamente exprimível, posto que razões do mesmo tipo que as já identificadas nos debates sobre o pensamento schopenhaueriano figuram em um texto completamente alheio, anterior, a esse contexto e aos conceitos nele em voga. Ora, Matias Aires (2004, p. 17) não conclui que o gênero humano é radicalmente corrompido porque é inteiramente governado pela “vaidade” sem limites que dura mais do que nós mesmos? Essa “vaidade” pode até não ser uma “concepção geral do Universo”, ao contrário do que interpreta Lima (2004, p. XIV), mas um “produto da socialização com base no aprendizado da linguagem”, conforme Margutti (2013, p. 297); ainda assim, a sua “ubiquidade nas relações humanas”, exatamente como funciona na doutrina da Vontade de Schopenhauer, não seria um “tipo de razão” acolhido por ambos para justificar a nossa condição miserável que sequer está sob nosso controle mudar e que independeria do estatuto metafísico associado a ela (AIRES, 2004, p. 65; W II, pp. 684 [II 656])? Quer dizer, o argumento da ubiquidade não seria um tipo de razão objetivamente pessimista retoricamente identificável para além da filosofia de Schopenhauer?

Ademais, não precisamos temer que a nossa análise do pessimismo em termos argumentativos conduza a um completo desprezo dos aspectos metafísicos das filosofias sob o nosso horizonte. Teorias da argumentação como a “nova retórica” de Perelman e Olbrechts-Tyteca e a retórica aristotélica que fortemente a influenciou, por exemplo, fundamentam-se em premissas genuinamente metafísicas. E já temos estudos que, justamente por essa peculiaridade de tais obras, se servem delas para a compreensão de aspectos da filosofia schopenhaueriana que não poderiam ser alcançados pelo “princípio de razão suficiente do conhecer”, mas que ainda guardam sistematicidade conceitual; tal seria o caso das análises de Dörpinghaus (1999), acerca do pessimismo de Schopenhauer, e de Silva (2020), sobre o argumento analógico da §19 O mundo.

Entendemos, por fim, que esse nosso procedimento metodológico aqui descrito pode contribuir para dimensionar melhor o pessimismo schopenhaueriano e encerrá-lo em limites mais precisos, que mitiguem eventuais relativizações excessivas a seu respeito. Em vez de um Schopenhauer “pessimista” e outro “otimista” pelas mais distintas razões colhidas em seus próprios escritos, poderíamos concluir que, por determinados “tipos de razões” objetivas, seu pensamento é mais ou menos pessimista que outros; tenham tais pensamentos resultado de sua própria influência, como os dos metafísicos de sua “escola”, ou mesmo lhe antecedido sem seu conhecimento, como os de Matias Aires.

Além disso, ao recorrer a manuais de teoria da argumentação não estamos negligenciando as abordagens mais historicistas e tampouco a leitura que aprendemos com Guéroult (2005) a chamar de “estruturalista”. Para as primeiras, já temos ótimos e não poucos trabalhos referentes ao pessimismo em filosofia[4], e eles são os mais indicados se desejamos verificar em que medida um tratamento segundo “razões objetivas” tem sido de fato negado ao pessimismo. Sobre a segunda, ela é imprescindível para a leitura que permitirá identificar as razões apontadas por cada filósofo, dentro de seus próprios sistemas, como fundamento de seu pessimismo; só com esta base poderemos depois classificá-las em “tipos de razão” e executar o itinerário de nossa tese: “O pessimismo e suas razões: Schopenhauer, sua ‘escola’ e a Reflexão sobre a vaidade entre os homens”.

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Contribuição de autoria

1 – Matheus Silva Freitas:

Professor substituto na UFS, Doutorando em Filosofia

https://orcid.org/0000-0002-5260-4688 • silvafreitasmatheus@hotmail.com

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

FREITAS, Matheus Silva. O pessimismo e suas razões: Schopenhauer como estudo de caso e direcionamentos metodológicos. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 12, e05, 2021. DOI 10.5902/2179378666000. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378666000. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Todas as citações, diretas ou indiretas, retiradas do tomo I e II de O mundo como vontade e como representação, assim como esta, referem a tradução brasileira, com consulta ao original para o cotejo de alguns termos centrais.

[2] Invernizzi (2008) parece tomar “escola” como uma tradição que une, por um lado, a continuidade de um pensamento e, por outro, uma postura crítica a respeito dele. Por isso, ele somente considera como membros da “escola de Schopenhauer” os “metafísicos” Bahnsen, Hartmann e Mainländer, na medida em que apenas estes teriam se esforçado por “reformar”, e não simplesmente difundir, o sistema de Schopenhauer, preservando ao mesmo tempo os conceitos do seu vocabulário filosófico. 

[3] Para a impossibilidade de pensar qualquer tipo de redenção na filosofia de Bahnsen, cf. FAZIO (2014, p. 23) e INVERNIZZI (2008, p. 167). 

[4] Cf. INVERNIZZI (1994, p .1-3).