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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v.12, e04, Ed. Especial: Schopenhauer e o pensamento universal, 2021
DOI: 10.5902/2179378665932
ISSN 2179-3786
Submissão: 25/05/2021 • Aprovação: 27/09/2021 • Publicação: 28/12/2021
2 JUSTIÇA TEMPORAL (ZEITLICHE GERECHTIGKEIT)
3 JUSTIÇA ETERNA (EWIGE GERECHTIGKEIT)
Schopenhauer e o pensamento universal
Justiças, Punição e Vinganças na Filosofia de Arthur Schopenhauer[1]
Justice, Punishment and Revenge in Arthur Schopenhauer's Philosophy
I Universidade Federal do Acre, Rio Branco, AC, Brasil
RESUMO
Este texto tem por objetivo, a partir da leitura e análise dos escritos publicados e de manuscritos póstumos do filósofo Arthur Schopenhauer – em especial os textos relativos a sua ética –, explorar os contrastes e articulações entre dois tipos de justiça aventados pelo autor em sua obra, a saber, a Justiça Temporal (zeitliche Gerechtigkeit) e a Justiça Eterna (ewige Gerechtigkeit), a partir dos conceitos de lei (Gesetz), punição (Strafe) e de vingança (Rache), oriundos da justiça temporal, e do conceito de vingança enquanto braço da Justiça Eterna (Arm der ewigen Gerechtigkeit). Tal objetivo tem como pano de fundo a tentativa de relacionar e articular os âmbito da moralidade e da legalidade, isto é, a metafísica e a ética do filósofo.
Palavras-chave: Justiça temporal; Justiça eterna; Punição; Vingança; Arthur Schopenhauer
ABSTRACT
This article aims to show, based on the critical reading and analysis of published writings and manuscripts of philosopher Arthur Schopenhauer – especially the texts related to his ethics - the contrasts and articulations between two types of justice suggested by the author in his work, namely, Temporal Justice (zeitliche Gerechtigkeit) and Eternal Justice (ewige Gerechtigkeit). To achieve this, we will analyze the concepts of law (Gesetz), punishment (Strafe) and revenge (Rache), which belong to temporal justice, and the concept of revenge as an arm of Eternal Justice (Arm der ewigen Gerechtigkeit). This objective has as its background the attempt to relate and articulate morality and legality, that is, the philosopher's metaphysics and his ethics.
Keywords: Temporal justice; Eternal justice; Punishment; Revenge; Arthur Schopenhauer
Nos últimos anos, tentei mostrar – e se tornou lugar comum em minhas apresentações e textos – o fato de que o conceito de Gerechtigkeit, o qual traduzimos por justiça, é empregado pelo filósofo Arthur Schopenhauer em três sentidos diversos ao longo de sua obra, a saber, o termo é empregado como uma virtude cardinal (freiwillige Gerechtigkeit), como justiça temporal (zeitliche Gerechtigkeit) e como justiça eterna (ewige Gerechtigkeit)[2]. Por que é importante para mim recuperar essa informação? É importante por dois motivos: o primeiro, para evitar confusões na exposição, uma vez que nem sempre essas distinções estão claras para todas e todos; o segundo motivo é porque eu articulo em minha exposição as relações entre esses sentidos e preciso que eles estejam explícitos e bem delimitados.
Neste texto, a minha intenção é de contrastar tipos retaliação (Vergeltung), como os conceitos de lei (Gesetz), punição (Strafe) e de vingança (Rache), oriundos da justiça temporal, e o conceito também de vingança, mas em outro registro, apresentado por Schopenhauer em sua exposição do conceito de justiça eterna. Minha intenção tem como pano de fundo a tentativa de relacionar e articular o plano do em si e o plano da representação, isto é, relacionar o âmbito da moralidade e o âmbito da legalidade, a metafísica e a ética.
2 JUSTIÇA TEMPORAL (ZEITLICHE GERECHTIGKEIT)
A justiça temporal tem a sua exposição mais detida no § 62 do primeiro tomo de O Mundo como Vontade e Representação, no qual Schopenhauer apresenta as suas doutrinas do direito e da política, mas, como o próprio autor nos alerta, podemos encontrar complementos e adendos das várias temáticas que ele aborda em tantos outros de seus escritos[3]. A exposição do conceito de justiça temporal pode ser dividida em seis movimentos textuais, a saber, (i) a manifestação do conflito interno da vontade no mundo empírico; (ii) a afirmação da própria vontade como origem da injustiça (Unrecht); (iii) a caracterização, pela via negativa, da justiça (Recht); (iv) a definição, a partir dos termos de injustiça e justiça, do direito natural (Naturrecht); (v) a origem e a finalidade do Estado (Staat); e, finalmente, (vi) o direito moral como sendo parâmetro valorativo para o direito positivo, para as leis que organizam um Estado.
Schopenhauer apresenta e justifica a hostilidade entre os indivíduos a partir da apreciação do egoísmo (Egoismus) em duas perspectivas: (i) a perspectiva epistemológica, ao mostrar que o sujeito do conhecimento é o sustentáculo do mundo e (ii) a perspectiva ética, ao mostrar que cada um de nós quer tudo para si. O ser humano, por ser um organismo mais complexo, possui necessidades mais complexas: a partir da complexidade do corpo humano e da complexidade de consciência humana (devido à faculdade de razão), o ser humano pôde refletir acerca da sua situação de penúria no estado de natureza, e pôde procurar soluções para superá-la. Por um cálculo racional o Estado foi concebido; e pelo contrato social (Staatsvertrag), instituído. Mas não se trata de uma vinculação a uma concepção utilitarista, a qual visa o bem como finalidade, pois o bem não é a finalidade do Estado;[4] evitar o injusto, instaurando a ordem social é o modo pelo qual se tornou possível contornar os males do egoísmo animal destrutivo. Essa solução, contudo, não é a superação ou supressão do egoísmo, sendo apenas a limitação egoísta do egoísmo.
A justiça temporal tem sua sede no Estado, e a doutrina do Estado, enquanto conjunto dos dispositivos institucionais e normativos de combate e tentativa de prevenção de atos injustos, refere-se à pura doutrina do direito, ao direito moral, que tem no justo e no injusto por natureza seu padrão objetivo de medida; e o justo e o injusto referem-se aos limites da afirmação da vontade para vida. Essa forma de conceber o Estado faz com que essa instituição não possua nenhum status moralizador ou função ética.
O Estado é a sede exclusiva do direito penal (Strafrecht), uma vez que todo direito de punir é estabelecido exclusivamente pela lei positiva – corporificada nessa instituição. O direito penal acoima o ato injusto, não a pessoa que pratica esse ato. Essa é punida apenas por concomitância, sendo apenas a matéria (Stoff) na qual o ato injusto é castigado com o objetivo de que a lei conserve a sua força dissuasiva através do exemplo (W II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 685).
O escopo do direito penal deve ser o ato, uma vez que seria um erro tentar mudar o caráter dos transgressores, por meio da punição, visando educá-los e melhorá-los moralmente, afinal, o querer não pode ser ensinado (velle non discitur) e o agir segue do que se é (operari sequitur esse). Segundo Schopenhauer, a educação deve ser entendida como um benefício; já o castigo, como um malefício. A tentativa de unir duas finalidades distintas – educar e punir – por um mesmo meio, neste caso a punição jurídica, seria ineficaz e, portanto, para Schopenhauer, um erro (W II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 685). A punição é apenas um castigo que mesmo antes do delito já fora determinado – um contramotivo registrado no código penal (Kriminalkodex) – para quem o cometer, e cuja ameaça deve sobrepor-se a todo possível motivo que conduz à prática da injustiça. Em SLV Schopenhauer escreve:
Pois as leis partem do correto pressuposto de que a vontade não era moralmente livre, em cujo caso não se podia dirigi-la, mas que estava coagida pelos motivos: de acordo com isso, ao ameaçar com uma pena querem opor aos eventuais motivos para cometer um crime, contramotivos mais fortes; e um código penal não é nada mais que um índice de contramotivos às ações criminais (E I, p. 140, III 569).[5]
Enquanto tal é o objetivo da punição, a lei (Gesetz) tem por objetivo assegurar direitos, protegendo cada cidadão do sofrimento da injustiça causada pelos males do egoísmo, o que equivale, neste contexto, à prevenção dos crimes. A lei é o instrumento do Estado instituído para que a ordem social seja mantida e, consequentemente, os indivíduos possam fruir o bem-estar. Deste modo, o contrato celebrado garante tais benefícios aos seus cidadãos, mas por outro lado obriga-os a renunciar à prática da injustiça, e a assumir o fardo da manutenção da instituição instaurada.
A lei positiva, corporificada no Estado, é reconhecida por todos os cidadãos que sancionaram um contrato comum, com vistas a acabar com os males do egoísmo selvagem. Ora, se o Estado foi instituído pelos cidadãos por meio de um contrato, pode-se afirmar que estes membros estão, por um lado, sujeitos a infligir punição; por outro, a sofrê-la. Isso porque o contrato representa o comprometimento jurídico de cada indivíduo com o cumprimento do acordado: ações que infringem o contrato são perseguidas juridicamente pelo direito penal (Strafrecht). E, por se tratar de um contrato comum, a punição pode ser imposta, por meio do Estado – que detêm o monopólio da violência – com total direito. Logo, uma consequência direta do contratualismo schopenhaueriano é que o objetivo imediato da punição em um caso particular é o cumprir a lei como se cumpre um contrato (Erfüllung des Gesetzes als eines Vertrages) (W I, § 62, p. 444, I 410).
A lei, entendida como um contramotivo a uma injustiça a ser praticada, tem na punição seu cumprimento, ou seja, a punição é a objetivação da lei enquanto poder de impedir, desestimular, retribuir a prática de uma injustiça. Temos, então, as articulações entre punição e lei através do Estado.
A punição e o castigo atuam na constelação de motivos do indivíduo como exemplos a serem considerados, como amostras das consequências engendradas pela realização de uma determinada ação. Schopenhauer estabelece uma relação entre punição e impunidade: da mesma forma como a punição inibe a repetição de um ato, a impunidade incentiva a ocorrência de ações criminosas de mesmo teor.[6]
Por ser o foco da pena punir o ato, fazendo-o servir de exemplo, na ética schopenhaueriana a pena de morte é tratada como uma forma de punição legítima e justificável (W II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 686). Contudo, deve sempre haver uma proporção entre o ato a ser punido e a punição que será aplicada.[7] No cômputo para definição da pena também devem ser considerados os motivos que impulsionaram a ação proibida. Todavia, segundo o autor, a ignorância, as aflições externas, as dificuldades financeiras, etc., não podem servir como escusa para justificar a causa de um crime, uma vez que, seguindo o bem conhecido e desgastado argumento liberal, inúmeras pessoas vivem em condições deste tipo e não comentem crime algum (W II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 685).
É importante atentar que a lei e a punição são orientadas em essência ao futuro (Zukunft), não ao passado (Vergangenheit). Esta orientação ao futuro é o critério que permite diferir a punição (Strafe) da vingança (Rache). A vingança é motivada simplesmente pelo passado, ou seja, pelo que já aconteceu. Toda resposta a uma injustiça sofrida sem objetivo algum relacionado ao futuro é vingança, e não pode ter outro objetivo senão, pela visão do sofrimento causado a um outro, consolar a si mesmo do próprio sofrimento (W I, § 62, p. 445, I 411). Mas, no interior do sistema filosófico schopenhaueriano, isso é eticamente injustificável: a injustiça sofrida de modo algum autoriza a prática de outra injustiça – a não ser que ela esteja situada na esfera do direito moral à coerção, na legítima defesa, ou da punição jurídica mediada pelo Estado.
Delineado em linhas gerais os conceitos referentes ao âmbito da justiça temporal, é possível, agora, passar à apreciação da questão no que se refere ao conceito de justiça eterna.
3 JUSTIÇA ETERNA (EWIGE GERECHTIGKEIT)[8]
A justiça eterna independe das instituições humanas e não está submetida ao acaso e ao engano, não sendo, dessa forma, incerta nem oscilante, mas infalível, firme e precisa. Ela não requer a mediação do tempo, do espaço, e da causalidade para compensar um ato maldoso, através de consequências ruins. Ela, assim, independe da experiência. Ademais, apesar de ela reger o mundo, isso não significa que ela balanceie uma injustiça cometida (ausgeübtes Unrecht) em um determinado lugar com um sofrimento em outro local: nela, a punição tem de ser tão ligada à injúria que ambas se tornam unas. Mas o que isso significa?
Isso significa que a justiça eterna reside, segundo Schopenhauer, na essência do mundo (W I, § 63, p. 449, I 415), na coisa-em-si, revelando, dessa forma, o seu caráter metafísico; ou seja, ela não considera o mundo enquanto fenômeno, enquanto aparência, i.e., ela não considera o sofrimento particular ou a mesquinhez de cada indivíduo[9], não podendo ser encontrada na experiência. Para ser apreendida, então, é preciso adotar o ponto de vista transcendental. Esse ponto de vista permite entender que a finitude, o sofrimento, e os tormentos deste mundo são expressões daquilo que a vontade quer, e, consequentemente, configuram-se de maneira consoante com a forma da vontade querer: tal qual é a vontade, é o mundo (W I, § 63, p. 449, I 415). Nesta chave de leitura, pode-se entender o conceito de justiça eterna como uma tautologia: ele enuncia que o mundo é o que é. E o que é o mundo? Um espelho do que é vontade. E o que é vontade? Um impulso cego e irracional que traz em si a marca ontológica da sua insatisfação eterna, discórdia. Todo ato de vontade satisfeito é apenas uma transição para um novo ato de querer da vontade. Ela nunca pode ser satisfeita; ela é, portanto, eternamente padecente. O mundo não é mais que o espelho dessa volição, dessa autodeterminação da vontade (W I, § 63, p. 449, I 415). Essa constatação, em sua última consequência, leva Schopenhauer a concluir que “[...] tudo o que acontece ou pode acontecer a cada um, a justiça sempre lhe é feita, pois sua é a vontade.” (W I, § 63, p. 449, I 415)[10]. Essa afirmação é mais bem formulada quando o filósofo escreve que:
Se os seres humanos, tomados como um todo, não fossem tão indignos, então seu destino, também tomado como um todo, não seria tão triste. Nesse sentido podemos dizer: o mundo mesmo é o tribunal do mundo. Pudesse alguém colocar toda a penúria do mundo em UM prato da balança, e toda a culpa no outro, o fiel permaneceria no meio (W I, § 63, p. 450, I 415-416).[11]
O mundo é o tribunal do mundo significa que do ponto de vista metafísico o mundo é perfeitamente retribuidor e retaliativo (vergeltend)[12], que a punição já está em nós mesmos: nascer é um delito, pois já nascemos chorando e, conforme uma lei eterna, a morte vem em seguida como punição (W I, § 63, p. 453, I 419).
Schopenhauer, em suas notas de aula, ainda especula sobre uma possível objeção: “Se em linhas gerais o azar e o erro assenhoram-se sobre a vida humana e sobre o curso do mundo, como pode haver lugar para a justiça?” (VN, Metafísica dos Costumes, Cap.7, p. 119, p. 302). A primeira observação a ser feita é a de que não se encontrará a justiça eterna na experiência, i.e., no mundo fenomênico. Muito pelo contrário, fenomenicamente os sofrimentos estão repartidos de forma extremamente desigual, assim como os prazeres (VN, Metafísica dos Costumes, Cap. 7, p. 119, p. 302). Não existe proporção nem correspondência entre o valor do indivíduo e seu fatídico destino (VN, Metafísica dos Costumes, Cap. 7, p. 120, p. 302). A essência da humanidade é a essência do nosso mundo: vontade, i.e., discórdia, contradição, carência, sofrimento.
Por consequência, o mundo é um espelho do que somos: somos o que merecemos ser. O sofrimento é a punição pela nossa existência, e a justiça eterna é exatamente essa consequência, essa retaliação / retribuição, ao que somos. Entender o significado da justiça eterna permite entender a importância de seu papel sistemático porque ela permite (i) a compreensão da relevância ética das ações, e, consequentemente, (ii) a compreensão da natureza da virtude e do vício.
E, como consequência direta da apreensão desse significado, pode-se entender que a justiça eterna não é uma equidade ou justiça no sentido de ser um ato retribuidor / retaliativo no tempo, espaço e em uma cadeia causal. Ela é retribuidora / retaliativa na medida em que é a expressão de uma tautologia e de um paradoxo que enunciam que o mundo só pode ser o que ele não deveria ser; que o mundo só pode ser o que ele tem merecido ser, que o mundo só pode ser o que ele é.
No § 64 de MVR, Schopenhauer faz alusão a um tipo de ocorrência curiosa, que não é mencionada em mais nenhum outro texto de sua autoria: quando um indivíduo se torna braço da justiça eterna (Arm der ewigen Gerechtigkeit). Schopenhauer escreve que essa ocorrência é rara, e expressa a exigência de adaptar a justiça eterna para o domínio da experiência (W I, § 64, p. 457, I 423). Ela consiste no fato do indivíduo ficar profundamente indignado com uma inequidade sofrida ou testemunhada, e que isso faz com que ele coloque e organize a sua própria vida em função de vingar o ocorrido no praticante de tal infração (Frevel). A vida desse indivíduo só tem sentido e valor para realizar tal vingança e ele sacrifica a si mesmo para que isso ocorra.
Schopenhauer diferencia este tipo de vingança do sentido estabelecido anteriormente no interior da justiça temporal. A vingança comum (gemeine Rache) tem por finalidade aliviar o próprio sofrimento infligindo dor em quem cometeu injustiça. Neste caso em específico, segundo Schopenhauer, não se trata de vingança, mas de punição, porque existe uma intenção de intervir sobre o futuro, de servir como exemplo e de punir um ato a partir de uma perspectiva que extrapola as dimensões temporais, espaciais e individuais. Podemos ler:
Nesta reside, propriamente dizendo, a intenção de um fazer-efeito sobre o futuro, por meio do exemplo, e em verdade sem nenhum fim pessoal, nem para o indivíduo vingativo, pois este ali sucumbe, nem para uma sociedade, que assegura a segurança do indivíduo por meio de leis. Pois aquela punição é aplicada pelo indivíduo, não pelo Estado; não é o cumprimento de uma lei, mas antes diz respeito sempre a um ato que o Estado não queria ou não podia punir e cuja punição condena. Parece-me que a indignação que impulsiona uma pessoa tão além dos limites de todo amor-próprio nasce da consciência mais profunda de que ela mesma é toda a vontade para vida que aparece em todos os seres, através de todos os tempos e que, assim, o mais distante futuro e o presente pertencem igualmente a si, e não pode ser indiferente. Afirmando a vontade, pretende que, no drama que expõe sua vida, nunca se apresente uma tão monstruosa iniquidade e deseja, mediante o exemplo de uma vingança – contra a qual não existe muro de defesa, pois a pena de morte não detém o vingador –, intimidar toda prática futura do mal. A vontade para vida, embora ainda se afirmando, não adere mais aqui ao fenômeno individual, ao indivíduo, mas abarca a Ideia de humanidade e quer conservar o fenômeno desta Ideia purificado dessa iniquidade monstruosa e revoltante. Eis aí um traço de caráter estranho, bastante significativo, até mesmo um traço sublime, através do qual o indivíduo sacrifica a si, na medida em que se empenha por tornar-se o braço da justiça eterna, cuja essência propriamente dita ele ainda desconhece (W I, § 64, p. 458, I 424).[13]
Através de uma afirmação veemente da vontade para vida, guiada pela essência intima do mundo, pela justiça eterna – mas sem o conhecimento – o indivíduo sacrifica a si mesmo para fazer justiça onde a lei humana não o poderia fazer e subverte a dimensão temporal à qual a vingança comum é exercida para tentar se tornar uma espécie de grande contramotivo para todas e todos que intentem em repetir tal tipo de injustiça. Neste ponto temos a interpolação da justiça eterna – os dados objetivos valorativos que guiam o indivíduo em sua afirmação veemente da vontade – concretizando-se no mundo enquanto representação, como punição. Temos a interposição dos âmbitos do em-si e da experiência, temos o indivíduo atuando como braço da justiça eterna. O termo “braço” (Arm) é adequado, porque tal indivíduo não apreende a essência e o significado da justiça eterna, ele seria simplesmente guiado por ela.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A justiça temporal se origina e se produz no elemento mesmo do egoísmo; e pelo fato de ser empírica, i.e., fenomênica, ela não pode ser mais que ilusão, ela não pode deixar de ser falha, ela não pode transpor suas limitações. As precauções e retaliações contra o egoísmo não podem ser completamente eficazes porque elas são apenas aparência e tentativas de remendo; elas não melhoram moralmente o ser humano, nem extirpam seus desejos de buscar o que querem e de eventualmente cometerem injustiças. É possível tentar direcionar os esforços dos indivíduos para legalidade, mas não para a moralidade. Tão logo a ameaça do castigo ou a promessa da recompensa sejam afastadas do indivíduo, os atos injustos retornam à ordem do dia. Viver é tornar-se aquilo que se é, e o caráter suscetível às motivações egoístas é a mais frequente configuração da concreção da vontade num corpo. Dessa forma, a justiça temporal não pode ser plenamente realizável. Ela se realiza na medida em que também é um não alcance de seu fim último e pleno.
O Estado, enquanto organização do egoísmo coletivo esclarecido, e o direito, enquanto meio pelo qual se torna possível impor limites às manifestações do egoísmo individual, não podem ser considerados a superação ou supressão do egoísmo mesmo. Antes, são medidas de asseguramento da existência social, são a afirmação da diferença entre um indivíduo e o outro, um enredamento persistente no princípio de individuação; isso significa que viver no Estado é viver no seio do egoísmo coletivo esclarecido organizado por regras jurídicas que sancionam punições.
Conceitos como moral e direito, nucleares nesse ponto da argumentação do filósofo da vontade, só são passíveis de serem entendidos em sua completude quando colocados em relação um com o outro: da justiça eterna temos a possibilidade de entender o significado moral das ações; da justiça temporal temos a prevenção e a retaliação (Vergeltung), e, portanto, o Estado; este seria o elemento relacional entre a moral – o conceito sempre positivo, que é referido ao ato, à parte ativa – e o direito – o conceito negativo, que é referido ao sofrer, à parte passiva.
Espero ter sido possível, mediante o exposto, evidenciar, articular e contrastar dois sentidos do conceito de justiça empregados na ética schopenhaueriana, as justiças temporal e eterna, e, com isso, evidenciar mais um tipo de relação entre a metafísica e a ética do autor.
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Contribuição de autoria
1 – Felipe Durante:
Professor de Filosofia, Doutor em Filosofia
https://orcid.org/0000-0003-2619-9612 • felipe.durante@ufac.br
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Como citar este artigo
DURANTE, Felipe. Justiças, Punição e Vinganças na Filosofia de Arthur Schopenhauer. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 12, e04, 2021. DOI 10.5902/2179378665932. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378665932. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] Texto apresentado durante o IX Colóquio Internacional Schopenhauer em 2021. O artigo é fruto da atualização e reescrita de seções da tese de doutoramento do autor e de outros textos publicados, conforme discriminado nas referências bibliográficas.
[2] Considerando o termo alemão Gerechtigkeit. Em português também traduzimos o termo Recht por justiça, o qual poderia ser traduzido por justo. Trata-se, neste último caso, de outra em palavra alemão, de outro momento do desenvolvimento da exposição de Schopenhauer.
[3] “Pois é preciso ter em mente que meus escritos, poucos que sejam, não foram compostos ao mesmo tempo, mas sucessivamente, no decorrer de uma longa vida e com amplos intervalos; logo, não se deve esperar que tudo o que disse sobre um tema também apareça reunido num único lugar”. (W I, Crítica da Filosofia Kantiana, p. 663, I 633-634). No original alemão: „Denn man muß erwägen, daß meine Schriften, so wenige ihrer auch sind, nicht alle zugleich, sondern successiv, im Laufe eines langen Lebens und mit weiten Zwischenräumen abgefaßt sind; demnach man nicht erwarten darf, daß Alles, was ich über einen Gegenstand gesagt habe, auch an Einem Orte zusammen stehe.“
[4] Abordei e desenvolvi essa questão de forma mais detida em DURANTE, F. Seria moral o fundamento da doutrina schopenhaueriana do direito? In: Anais [do] V Congresso Nacional de Filosofia Contemporânea: Schopenhauer: Metafísica e Moral [e] VII Simpósio Para Saber Mais Schopenhauer / organizadores: Aguinaldo Pavão...[et al.], Londrina, PR. –Londrina : UEL, 2013. Disponível em: https://schopenhauermetafisicaemoral.files.wordpress.com/2013/05/anais-versc3a3o-final-1.pdf. Acesso em: 14/12/2020.
[5] No original alemão: „Denn die Gesetze gehen aus von der richtigen Voraussetzung, daß der Wille nicht moralisch frei sei, in welchem Fall man ihn nicht lenken könnte; sondern daß er der Nöthigung durch Motive unterworfen sei: demgemäß wollen sie allen etwanigen Motiven zu Verbrechen stärkere Gegenmotive, in den angedrohten Strafen, entgegenstellen, und ein Kriminalcodex ist nichts Anderes, als ein Verzeichniß von Gegenmotiven zu verbrecherischen Handlungen“. Em W I temos uma passagem semelhante: “[...] o código penal é um registro o mais completo possível de contramotivos opostos a todas as ações criminais presumíveis – tudo isso in abstracto, para fazer aplicação in concreto quando o caso ocorrer.” (W I, § 62, p. 441, I 407). No original: „demgemäß ist der Kriminalkodex ein möglichst vollständiges Register von Gegenmotiven zu sämmtlichen, als möglich präsumirten, verbrecherischen Handlungen, — Beides in abstracto, um vorkommenden Falles die Anwendung in concreto zu machen.“
[6] Como o câncer e a gangrena podem afetar por contagium as zonas mais próximas às zonas afetadas, um delinquente impune será imitado por novos delinquentes seguindo seu exemplo.” (VN, Metafísica dos Costumes, p. 112, p. 175). No original alemão: „wie Krebs und Kalter Brand durch contagium [Ansteckung (durch Berührung)] jeden nächsten Theil sich ahnlich machen; so wirkt ein Verbrechen wenn es ungestraft hingeht unfehlbar neue Verbrechen durch sein Beispiel.“
[7] “Que a pena deve manter uma exata proporção com o crime, tal e como ensina Beccaria, não se deve ao fato de ser uma expiação do crime, mas uma adequação ao valor daquilo a que responde” (W II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 686). No original alemão: „Daß, wie Beccaria gelehrt hat, die Strafe ein richtiges Verhältniß zum Verbrechen haben soll, beruht nicht darauf, daß sie eine Buße für dasselbe wäre; sondern darauf, daß das Pfand dem Werthe Dessen, wofür es haftet, angemessen seyn muß.“
[8] Abordei de forma mais detida o conceito de justiça eterna no texto DURANTE, F. Um tipo de justiça infalível: a Justiça Eterna. In: Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, V.1 n.1, 2010, p. 116-122. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378634141. Acesso em: 02 abril 2021.
[9] “Schopenhauer, nesse ponto, não está tecendo comentários acerca do sofrimento individual de cada ser humano e da mesquinhez de cada um”. Tradução para: “Schopenhauer is not at this point commenting on individual human suffering and individual human vileness”. (HAMLYM, 1988, p. 281).
[10] No original: „und in allem was ihm widerfährt, ja nur widerfahren kann, geschieht ihm immer Recht. Denn sein ist der Wille.“
[11] Tradução ligeiramente alterada. No original: „wären sie nicht, im Ganzen genommen, nichtswürdig; so würde ihr Schicksal, im Ganzen genommen, nicht so traurig seyn. In diesem Sinne können wir sagen: die Welt selbst ist das Weltgericht. Könnte man allen Jammer der Welt in eine Waagschale legen, und alle Schuld der Welt in die andere; so würde gewiß die Zunge einstehen.
Pode-se dizer que, em nossa chave de leitura, penúria e culpa são apenas rótulos diferentes para uma mesma, por assim dizer, essência colocada em dois pratos de uma mesma balança.“
[12] Cf. Historical Dictionary of Schopenhauer's Philosophy, p. 46. Deve-se frisar que essa retaliação / retribuição (vergeltend) deve ser entendida do ponto de vista metafísico, uma vez que é necessário adotar o ponto de vista transcendental para poder entender o significado da Justiça Eterna. Trata-se do em-si, da essência íntima do mundo, do fato da humanidade, considerada em sua totalidade, ser o que ela não deveria ser, ser o que ela tem merecido ser, ser o que ela é. Além do fato de que, do ponto de vista fenomênico, a retaliação / retribuição implica a temporalidade, e como visto, a Justiça Eterna independe do princípio de individuação. (Cf. W I, § 63, p. 448, I 415).
[13] Tradução ligeiramente alterada. No original em alemão: „[…] denn in ihr liegt eigentlich die Absicht einer Wirkung auf die Zukunft, durch das Beispiel, und zwar hier ohne allen eigennützigen Zweck, weder für das rächende Individuum, denn es geht dabei unter, noch für eine Gesellschaft, die durch Gesetze sich Sicherheit schafft: denn jene Strafe wird vom Einzelnen, nicht vom Staat, noch zur Erfüllung eines Gesetzes vollzogen, vielmehr trifft sie immer eine That, die der Staat nicht strafen wollte oder konnte und deren Strafe er mißbilligt. Mir scheint es, daß der Unwille, welcher einen solchen Menschen so weit über die Gränzen aller Selbstliebe hinaus treibt, aus dem tiefsten Bewußtseyn entspringt, daß er der ganze Wille zum Leben, der in allen Wesen, durch alle Zeiten erscheint, selbst ist, dem daher die fernste Zukunft wie die Gegenwart auf gleiche Weise angehört und nicht gleichgültig seyn kann: diesen Willen bejahend, verlangt er jedoch, daß in dem Schauspiel, welches sein Wesen darstellt, kein so ungeheures Unbild je wieder erscheine, und will, durch das Beispiel einer Rache, gegen welche es keine Wehrmauer giebt, da Todesfurcht den Rächer nicht abschreckt, jeden künftigen Frevler schrecken. Der Wille zum Leben, obwohl sich noch bejahend, hängt hier nicht mehr an der einzelnen Erscheinung, dem Individuo, sondern umfaßt die Idee des Menschen und will ihre Erscheinung rein erhalten von solchem ungeheuern, empörenden Unbild. Es ist ein seltener, bedeutungsvoller, ja erhabener Charakterzug, durch welchen der Einzelne sich opfert, indem er sich zum Arm der ewigen Gerechtigkeit zu machen strebt, deren eigentliches Wesen er noch verkennt”.