Logotipo

Descrição gerada automaticamente

 

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v.12, e03, Ed. Especial: Schopenhauer e o pensamento universal, 2021

DOI: 10.5902/2179378665897

ISSN 2179-3786

Submissão: 19/05/2021 Aprovação: 27/09/2021 Publicação: 28/12/2021

KANT E OS AFETOS. 5

O PIOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS. 7

REFERÊNCIAS. 14

 

 Schopenhauer e o pensamento universal 

Schopenhauer, os afetos e o pior dos mundos possíveis

 Schopenhauer, the affects and the worst of all possible worlds

 Jarlee Salviano IÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil

RESUMO

 Em contraposição ao otimismo de Leibniz, Schopenhauer afirma, nos Complementos a O Mundo como Vontade e Representação, que vivemos no "pior dos mundos possíveis", pois um "pouquinho pior" que fosse, não poderia subsistir. É dada já a miséria na sua medida exata, como afirmara o pessimista filósofo em sua tese sobre a quota de sofrimento, apresentada no Tomo 1 da referida obra. A causa mais imediata deste infortúnio, diz ele, são os afetos veementes e paixões violentas. Estas duas afecções, sempre citadas seguidas destes respectivos atributos, são apresentadas quando o filósofo se refere a certa "desmesura" da atividade da vontade, que conduz o indivíduo ao engano, à violência, à dor. Trata-se de verificar então a exata configuração destes dois conceitos, suas diferenças e importância para a doutrina schopenhaueriana da negação da vontade. Ver-se-á que afetos e paixões são inclinações, excitações irresistíveis, que impossibilitam a eficácia da apresentação de contramotivos e consequentemente da liberdade intelectual: sejam inclinações súbitas (afetos) ou profundamente enraizadas (paixões).

Palavras-chave: Afetos; Paixões; Pessimismo

ABSTRACT

 In opposition to Leibniz's optimism, Schopenhauer states, in the Complements to The World as Will and Representation, that we live in the "worst of all possible worlds", because a "little bit worse" it could not subsist. Misery is already given in its exact measure, as the pessimistic philosopher had affirmed in his thesis on the quota of suffering, presented in Volume 1 of the aforementioned work. The most immediate cause of this misfortune, he says, are vehement affects and violent passions. These two affections, always cited followed by their respective attributes, are presented when the philosopher refers to a certain "inordinacy" of activity of Will that leads the individual to error, violence, and pain. It is a matter then of verifying the exact configuration of these two concepts, their differences and importance for the Schopenhauerian doctrine of the negation of the will. It will be seen that the affects and passions are inclinations, irresistible excitations, which make it impossible to present countermotives and, consequently, intellectual freedom: either sudden inclinations (affects) or deeply rooted inclinations (passions).

Keywords:  Affects; Passions; Pessimism

INTRODUÇÃO

Os dois temas aqui reunidos (os afetos e a tese do pior dos mundos possíveis) referem-se ao mesmo objeto: o pessimismo de Schopenhauer, a tese da vida como dor e sofrimento. Dito de outro modo: por um lado se questiona pelo “quê” do objeto, por outro lado, pelo “porquê”. Em primeiro lugar, se a vida é dor e sofrimento, se é um negócio que não cobre os custos investidos (como diz ele nos Complementos), pergunta-se em que medida a vida é ruim. Pensando em Leibniz, numa escala que vai do melhor dos mundos possíveis ao pior dos mundos possíveis, onde localizamos o mundo, na perspectiva de Schopenhauer? O capítulo 46 dos Complementos não deixa dúvidas: este é o pior dos mundos possíveis.

Em segundo lugar, perguntamos pelas causas que tornam, individualmente, para o ser humano, a vida prenhe de dor e sofrimento: o “porquê” da questão. Aí é que se apresenta o tema dos afetos. A principal causa do infortúnio, dirá Schopenhauer, são os afetos veementes (heftige Affekte) e as paixões irracionais (gewaltige Leidenschaften).

Por motivos estratégicos inverteremos a ordem das questões. O que nos levou ao tema dos afetos em Schopenhauer foi a curiosidade da recorrência com que aparece em sua obra a expressão acima: o conceito “afeto” quase sempre seguido do conceito “paixão”, e precedidos destes epítetos. É inevitável o pressentimento de que isto não é casual, que há uma fonte determinada que subjaz ao uso que Schopenhauer faz destes conceitos. De antemão, alguns questionamentos podem estabelecer o pontapé inicial para uma investigação sobre esta temática: qual a diferença entre afeto e paixão? Qual a função dos dois conceitos na tessitura de sua metafísica da Vontade e em relação à questão da negação da vontade? Em vista de que tradição ou autores Schopenhauer faz uso destes conceitos?

Sabemos que há já um conjunto de estudos que tratam da questão dos afetos particularmente, e os nomes que aparecem de imediato quando tocamos neste ponto são seguramente Espinosa e Nietzsche. Faço referência especialmente à coletânea O mais potente dos afetos: Spinoza & Nietzsche, da editora Martins Fontes. No entanto, os primeiros passos nesta investigação já mostraram que Schopenhauer não percorreu esta ponte que vai do Holandês ao autor do Zaratustra, que a questão dos afetos em Schopenhauer deita suas raízes em outro solo. O modo como é tratado o afeto em Espinosa, como um modo de conhecimento (Nietzsche prefere falar da paixão como conhecimento), a meu ver, impede uma aproximação.

Podemos dizer que em relação aos cinco itens apresentados por Nietzsche na Carta a Overbeck de 1881, os quais o identificaria a Espinosa, que ele leu indiretamente (RAMACCIOTTI, 2014, p. 2) através de Kuno Fischer (1.Negação do Livre-arbítrio; 2.Negação dos fins; 3.Negação da ordem moral do mundo; 4.Negação do não egoísmo (desinteresse); 5.Negação do Mal), ao menos os dois primeiros itens também aproximam Schopenhauer de Espinosa. Quanto aos três últimos, absolutamente não.

Para Schopenhauer, afetos e paixões são inclinações, excitações irresistíveis, que impossibilitam a eficácia da apresentação de contramotivos (Gegenmotive) e consequentemente da liberdade intelectual: sejam inclinações súbitas (afetos), provocadas por impressão do presente, ou profundamente enraizadas (paixões). Estas duas afecções surgem correntemente nas passagens em que o filósofo se refere à “desmesura” da atividade da Vontade, que leva constantemente o indivíduo ao engano, à violência, à dor, enfim, ao sofrimento. Leva o ser humano comum ao tormento (Qual), dissabor, angústia etc. E ao homem de gênio, tendo em vista sua aproximação ao mundo como Vontade, cabe outro tipo de sofrimento (Leiden): a melancolia.

Nos Complementos (cap. 47) Schopenhauer compara o afeto (animi perturbatio, como chamava a antiga tradição estoica) ao “delírio febril” (Fieberphantasie); e a paixão à loucura (Wahnsinn). Ambos suspendem a reflexão e a “liberdade intelectual”:

PAIXÃO é uma inclinação tão forte que os motivos que a despertam exercem sobre a vontade uma violência mais forte que a exercida por qualquer outro contramotivo possível, pelo que o domínio da paixão sobre a vontade faz-se absoluto e assim esta se relaciona com a paixão de modo PASSIVO, SOFRENDO. Deve-se, no entanto, observar que paixões que correspondem perfeitamente ao grau de sua definição são raríssimas, mas antes recebem o seu nome como meras aproximações desse grau; há, então, contramotivos que conseguem também exercer o seu efeito travador, caso apenas entrem em cena distintamente na consciência. Já o AFETO é uma excitação igualmente irresistível, porém passageira da vontade, através de um motivo que tem a sua violência não numa inclinação profundamente enraizada, mas simplesmente em que, subitamente entrando em cena, exclui momentaneamente o contra-efeito de todos os outros motivos, na medida em que consiste numa representação que, através de sua excessiva vivacidade, eclipsa completamente todas as demais, ou as obscurece devido a sua excessiva proximidade, de maneira que as demais representações não entram em cena na consciência e não podem fazer efeito sobre a vontade, com o que, por conseguinte, a capacidade de ponderação e com esta a LIBERDADE INTELECTUAL [...] são em certo grau suprimidas. Conseguintemente, o afeto está para a paixão como o delírio febril está para a loucura”. (W II, p. 678-9)

No início de sua obra magna (§ 18), a perturbação dos afetos e das paixões é tomada também como causa da desordem de funções vitais do corpo: “A identidade do corpo com a Vontade também se mostra, entre outras coisas, no fato de que todo movimento excessivo e veemente da vontade, isto é, cada afeto (Affekt), abala imediatamente o corpo e sua engrenagem interior, perturbando o curso de suas funções vitais” (W I, p. 159). E ainda (§ 20): “Toda ação sobre o corpo afeta simultânea e imediatamente a vontade e, nesse sentido, chama-se dor ou prazer, ou em graus menores, sensação agradável ou desagradável; inversamente, todo movimento veemente da vontade, portanto, todo afeto e paixão (Leidenschaft) abala o corpo e perturba o curso de suas funções” (W I, p. 165).

Na arte, no entanto, afetos e paixões possibilitam a apreensão do caráter, lado específico visível da Ideia de humanidade (W I, p. 300-1).

Nos Parerga (no capítulo XXVI – Observações Psicológicas) ele afirma que mesmo um insignificante afeto desagradável perturba a clara percepção das coisas – como um pequeno objeto colocado diante do olho a limitar e turvar o campo de visão.

KANT E OS AFETOS

De um modo geral, o afeto é um conceito tratado mais no âmbito da psicologia que da filosofia. Cabe notar a recente publicação de Vladimir Safatle, que transita entre filosofia política e psicanálise: O circuito dos afetos. No entanto, no que diz respeito à psicologia, há quem afirme que “não se tem uma teoria psicanalítica do afeto” (MENEZES, 2007, p. 16). A princípio, uma breve investigação de alguns trabalhos nesta área permite perceber a possibilidade de certo diálogo com a filosofia, no sentido em que, segundo afirma Aloísio Menezes, a experiência afetiva é tomada como “necessariamente mais espessa de que a experiência passional” (MENEZES, 2007, p. 10). Ainda que se inverta aí a ordem de Schopenhauer, percebe-se também a ideia da diferença de profundidade entre uma afecção e outra.

Voltando à questão da referência schopenhaueriana, nesta, como em outras temáticas, certamente ele deve a Kant o uso que faz dos conceitos afeto e paixão.

Na Metafísica dos costumes, XV, Kant, ao tratar da questão da liberdade interna, do domínio sobre si, afirma que os afetos precisam ser “domados”, ao passo que as paixões precisam ser “dominadas”:

Afetos e paixões são essencialmente distintos entre si; os primeiros pertencem ao sentimento, na medida em que este, precedendo-a, torna impossível ou mais difícil a reflexão. Por isso o afeto se denomina repentino ou brusco (animus praeceps), e a razão, por meio do conceito de virtude, diz que devemos nos conter; contudo, essa fraqueza no uso de seu entendimento, ligada à firmeza do movimento do ânimo, é apenas uma ausência de virtude e, por assim dizer, algo pueril e débil, que pode muito bem coexistir com a melhor das vontades e que tem em si como única coisa boa o fato de esta tempestade cessar logo. […] A paixão, em contrapartida, é o apetite sensível que se tornou inclinação permanente (por exemplo, o ódio em oposição à ira). A calma com que nos abandonamos à paixão admite a reflexão e permite ao ânimo propor-se princípios a este respeito e, assim, quando a inclinação tende para o que é contrário à lei, permite encubá-los, enraizá-los profundamente e acolher assim o mal (propositalmente) em sua máxima; o que, dessa maneira, é um mal qualificado, isto é, um verdadeiro vício. (KANT, 1997, p. 407)

E na Antropologia de um ponto de vista pragmático (§ 74):

O afeto é como a água que rompe um dique; a paixão, como um rio que se enterra cada vez mais fundo em seu leito. O afeto atua sobre a saúde como um ataque apopléctico; a paixão, como uma tísica ou definhamento. O afeto pode ser visto como a embriaguez [Rauch] que se cura dormindo, mas que depois dá dor de cabeça; a paixão, porém, como uma doença causada por ingestão de um veneno ou como uma atrofia, que necessita interna ou externamente de um alienista que saiba prescrever quase sempre paliativos, mas contra a qual no mais das vezes não há remédios radicais. […] Os afetos são leais e abertos; as paixões, pelo contrário, insidiosas e encobertas. […] A paixão é como uma loucura [Wahnsinn] que cisma com uma representação que deita raízes cada vez mais profundas. Quem ama, pode ainda assim enxergar; contudo, quem está apaixonado toma-se inevitavelmente cego para as falhas do objeto amado, mesmo que costume recuperar a visão oito dias depois do casamento. (KANT, 1997, p. 252)

Enfim, Na Crítica da Faculdade de Julgar (§ 29, no capítulo Observação geral à exposição dos juízos estéticos reflexionantes), diz Kant: “se no afeto a liberdade de ânimo é travada, na paixão ela é suprimida” – em Espinosa, pelo contrário, o aumento da sensibilidade afetiva do corpo tem como consequência o “aumento da potência de pensar” (SEVERAC, 2009, p. 24).

Nesta terceira Crítica Kant faz uma aproximação entre o afeto e o sublime, lembrando que a violência afetiva interna pode ser equiparada à violência da natureza no sublime dinâmico, e quando aliada à ideia do bem, “chama-se entusiasmo”. “Este estado de ânimo”, conclui ele, “parece de tal modo sublime que se costuma dizer que sem ele nada de grandioso se consegue” (KANT, 2016, p. 169). Não se pode esquecer que também Schopenhauer considera o gênio como aquele tomado frequentemente de veementes afetos – ele também utiliza o termo entusiasmo (Enthusiasmus) para se referir ao gênio.

O PIOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS

Voltemos então nossa atenção para o mundo estruturado pela dor e sofrimento cuja ampliação se deve ao desassossego dos afetos e das paixões. A análise do pessimista Schopenhauer é uma reação à bem conhecida tese leibniziana do melhor dos mundos possíveis.

Em seu Discurso de Metafísica (1686), Leibniz apresenta, no primeiro parágrafo, o seguinte princípio: Deus é um ser absolutamente perfeito. A partir deste axioma, conclui que o mundo criado por um ser que age da forma mais perfeita é o melhor possível, pois seria agir imperfeitamente agir com perfeição menor do que se podia. Ora, Deus não poderia ter criado um mundo melhor: o mundo harmônico que conhecemos é consequência de sua própria perfeição. O fato de não percebermos esta perfeição se deve à limitação de nosso entendimento. Diz ele:

[…] Deus, possuindo suprema e infinita sabedoria, age de maneira mais perfeita, não só em sentido metafísico mas também moralmente falando, podendo, relativamente a nós, dizer-se que, quanto mais estivermos esclarecidos e informados sobre as obras de Deus, tanto mais dispostos estaremos a achá-las excelentes e inteiramente satisfatórias em tudo o que possamos desejar (LEIBNIZ, 2004, p. 3)

Por outro lado, Schopenhauer afirma que a existência da miséria no mundo já bastaria para contradizer o otimismo de Leibniz.

No quarto Livro de O mundo, ao tratar da concepção da vida como dor e sofrimento, Schopenhauer nos dá a diretiva de seu pessimismo, que não é um pessimismo raso, consequencialista, sem fundamento, mas sim um pessimismo visceral, fundamentalmente metafísico:

Há muito reconhecemos esse esforço, constitutivo do núcleo, do em-si de toda coisa, como aquilo que em nós mesmos se chama VONTADE e aqui se manifesta da maneira mais distinta na luz plena da consciência. Nomeamos SOFRIMENTO a sua travação por um obstáculo, posto entre ela e o seu fim passageiro; ao contrário, nomeamos SATISFAÇÃO, bem-estar, felicidade, o alcançamento do fim. […] Pois todo esforço nasce da carência, do descontentamento com o próprio estado e é, portanto, sofrimento pelo tempo em que não for satisfeito; nenhuma satisfação todavia é duradoura, mas antes sempre é um ponto de partida de um novo esforço, o qual, por sua vez, vemos travado em toda parte de diferentes maneiras, em toda parte lutando e assim, portanto, sempre como sofrimento: não há nenhum fim último do esforço, portanto não já nenhuma medida e fim do sofrimento (W I, p. 399).

Assim, o sofrimento não se dá devido a este ou aquele empecilho ao avanço da Vontade: estar vivo já é estar no sofrimento, desde o princípio, pois vontade é carência, falta, necessidade, portanto dor e sofrimento. Nietzsche percebera bem esta tese de Schopenhauer em seu alinhamento com a doutrina cristã do pecado originário e com a prescrição do pré-socrático Anaximandro, para quem a vida em seu desenvolvimento é um processo que se dá a partir de uma dívida originária, uma falta (em sentido jurídico), que se tem que pagar, uma lacuna a preencher.

Aliada a esta tese de que a vida é na sua essência dor e sofrimento está a proposta do filósofo (ainda no Livro quarto de O Mundo) de que há uma medida de dor pré-determinada, uma QUOTA de sofrimento para cada um – na dor excepcionalmente intensa, esta quota estaria sendo gasta em grande quantidade. Isto posto, sofrimento e bem-estar não seriam, de fato, determinados pelo exterior: o aumento ou diminuição desta dor dependeriam, em última instância do temperamento ou grau de sensibilidade de cada indivíduo. É mera ilusão o pensamento de que a supressão de determinada circunstância que nos provoca dor acarretaria necessariamente bem-estar e contentamento: “a medida de nossa dor e de nosso bem-estar já está [...] de antemão determinada subjetivamente no todo e em cada instante do tempo” (W I, p. 408). O motivo externo da tristeza, diz Schopenhauer, nada mais é do que aquilo que para o corpo é o sistema vesicatório, “o qual atrai para si todos os humores ruins que, do contrário, espalhar-se-iam pelo organismo” (W I, p. 408).Ou seja, a dor essencial inata presente em cada indivíduo, necessita das causas exteriores que acompanham o sofrimento, para que ela não se disperse e se espalhe através do organismo na forma de infindáveis infortúnios, de uma miríade de pequenas contrariedades, o que tornaria a vida ainda mais insuportável. A dor essencial encontra assim, naquele motivo externo uma boa válvula de escape em que pode dar vazão de forma concentrada e eficaz.

É preciso observar ainda que um infortúnio vivido presentemente, quando solucionado, dá lugar imediatamente a outro, cujo material inteiro já preexistia, mas ainda inconscientemente, pois a consciência não tinha a capacidade para suportar.

A artimanha da natureza acima descrita para evitar uma dor insustentável e a dissolução do indivíduo, percebemos ainda no fenômeno da LOUCURA esta argumentação será ampliada posteriormente para a defesa de sua tese do pior dos mundos possíveis (nos Complementos).

A loucura está ligada a um problema de memória (tese posteriormente defendida pela psicanálise). Esta não está ausente no louco, mas o fio da memória que liga os fatos isolados do passado é rompido, deixando com isto lacunas, que são preenchidas aleatoriamente pela imaginação:

Cenas isoladas acontecidas lá se encontram corretamente, bem como o presente individual, mas na lembrança se encontram lacunas, as quais são preenchidas com ficções que ou são sempre as mesmas, caso em que se tornam ideias fixas, ilusão fixa, melancolia, ou mudam continuamente, são casos efêmeros, quando se tem a demência (fatuitas) (W I, p. 262).

Pode-se indagar se estas duas modalidades de loucura poderiam estar relacionadas à efemeridade do afeto e a fixidez da paixão. Daí se poderia afirmar que o gênio é por natureza apaixonado (melancolia); e o homem comum seria afetuoso.

A loucura é uma forma de proteção encontrada pela natureza para salvar o indivíduo de uma dor esmagadora, ou um pensamento atormentador, insuportável, diante dos quais ele sucumbiria. Como a amputação de um membro gangrenado, que é substituído por uma prótese, esta realidade insustentável na memória é apagada, o fio causal dos acontecimentos é interrompido, daí o preenchimento aleatório das lacunas.

Diante destas estratégias de defesa da natureza, poderíamos estar tentados a concluir rapidamente pelo diagnóstico de uma filosofia do consolo, ou de uma filosofia ancorada em algum tipo de otimismo[1]. No entanto, sabemos da impaciência de Schopenhauer com qualquer tipo de otimismo: ele afirma que toda doutrina otimista (panteísmo, espinosismo, Velho Testamento etc.) não só é falsa, mas perversa, perniciosa(Ruchlos) (W I, p.419). A desilusão otimista é mesmo, afirma Schopenhauer nos Aforismos, a causa de muito sofrimento.

No capítulo 46 dos Complementos, diz ele:

Quando um otimista me pede para abrir os olhos e olhar o mundo, como ele é belo à luz do sol, com suas montanhas, vales, rios, plantas, animais etc. [...] Essas coisas certamente são lindas de se ver, mas outra coisa bem diferente é ser. Então vem um teólogo e elogia a sábia disposição dos planetas, que garante que não batam de cabeça uns contra os outros e que a terra e o mar não se mesclem formando uma pasta, mas sejam mantidos belamente separados, que nem tudo seja congelado numa geada constante nem torrado no calor e, igualmente, em consequência da tortuosidade do elíptico, não há primavera eterna, com o que nada chegaria ao amadurecimento etc. - mas isso e outras coisas semelhantes são meras conditiones sine quibus non [condições indispensáveis]. (W II, 665)

Schopenhauer chega a defender a ideia, oposta à de Nietzsche, de que os gregos foram pessimistas: a criação da Tragédia seria uma demonstração disto.

E em seguida apresenta a sua tese do pior dos mundos possíveis:

Ademais, contra as flagrantes provas sofísticas de LEIBNIZ de que este é o melhor dos mundos possíveis, podemos opor séria e honestamente a prova de que este é o PIOR dos mundos possíveis. Pois "possível" não significa o que casualmente alguém pode fantasiar, mas o que realmente pode existir e subsistir. Ora, este mundo foi de tal forma disposto, como teria de sê-lo, para poder se manter com a sua exata miséria: se, entretanto, ele fosse um pouquinho pior, então não poderia mais subsistir. Logo, um mundo pior, por ser incapaz de subsistir, é absolutamente impossível, por conseguinte, este é o pior dos mundos possíveis. Pois não apenas se os planetas batessem suas cabeças umas contra as outras, mas também se qualquer uma das perturbações ocorridas atualmente em seu curso continuasse a aumentar, em vez de gradualmente compensarem-se entre si, o mundo deveria chegar rapidamente a um fim: os astrônomos, que sabem quão fortuitas são as circunstâncias que provocam tal compensação, sendo a principal constituída por uma relação irracional dos períodos de revolução, encontraram a duras penas através de cálculos que tudo sempre transcorrerá bem e o mundo poderá manter-se e seguir tal como é. Embora NEWTON fosse de opinião contrária, queremos esperar que os astrônomos não tenham errado em seus cálculos, portanto, que o mecânico perpetuum mobile (motor perpétuo) que atua num tal sistema planetário não irá, como todos os outros, finalmente parar. […] O mundo, por conseguinte, é tão ruim quanto lhe é possível ser, se é que em geral deveria ser.

Certamente poderíamos imaginar, por exemplo, um Brasil ainda pior: volta da ditadura; 8 mil mortos por dia na pandemia ao invés de 4 mil; etc. Mas o imaginado não é necessariamente o possível, o que pode ser real.

Contudo, observa Schopenhauer, apresentado certo espaço de manobra, as forças terríveis que habitam o interior do planeta têm que exercer sua fúria (terremotos, maremotos etc.), assim como a tragédia que é a vida humana necessariamente tem que ser encenada.

Nesta análise, ainda no capítulo 46, o filósofo se mostra tristemente atual (a pensar nos tempos pandêmicos):

Uma tênue alteração da atmosfera, mesmo quimicamente indemonstrável, causa cólera, febre amarela, peste negra, e assim por diante, o que já ceifou milhões de pessoas: uma alteração só um pouco maior extinguiria toda vida. Um aumento bastante moderado de calor secaria todos os rios e todas as nascentes.

Em conclusão a este capítulo 46, Schopenhauer procura confirmar sua tese através dos testemunhos de importantes clássicos que pintaram em seus livros a vida com seu aspecto amargo (entre eles Voltaire, no seu “excelente poema Le désastre de Lisbonne[2]):

Teognis: O mais desejável dos bens é não ter nascido / e não ter jamais visto os raios ardentes do Sol. / E uma vez nascido, bater rapidamente nas portas do Orco, / E lá repousar sob o manto espesso da terra.

Édipo: Nunca ter nascido é de longe a melhor coisa. Mas uma vez nascido, a melhor coisa é retornar para o lugar de onde se veio, o mais rapidamente possível.

Byron: Conta as alegrias, que tuas horas viram, / Conta os dias, livres de angústia, / E reconhece que, não importa o que tenhas sido, / Há algo melhor, não existir. (W II, 671-73)

Poderia ainda ser acrescida a esta lista a fábula de Sileno (apresentada por Nietzsche no início de O nascimento da tragédia). E ainda o verso de Baltazar Gracián em El Criticón:

Quem não te conhece, ó vida, te dá – se pode – a sua estima, mas o homem desiludido preferia passar do berço à tumba, do tálamo ao túmulo. Um presságio comum de nossas desgraças é que o homem nasce chorando [...] Pois, o que pode ser uma vida que começa no meio dos gritos da mãe que a dá e do choro da criança que a recebe? Isso prova que, se ela (a criança) não tem conhecimento das desgraças que a esperam, possui delas o pressentimento, e que, se não as concebe, pelo menos as adivinha. (apud BRUM, 2004, p. 118)

Enfim, algumas questões restam sobre as duas temáticas aqui abordadas: que relação poderia ser estabelecida entre o par de conceitos afeto/paixão e os caráteres empírico e inteligível, tendo em vista estar a paixão profundamente enraizada e ser este último a raiz metafísica do indivíduo? E ainda: tendo em vista seu inatismo, o fato de ser mais afetivo ou mais passional depende da formação fenomênica do indivíduo (como no caráter adquirido) ou seria inato? Estas características “profundamente enraizadas” seriam inatas?

REFERÊNCIAS

BRUM, J. T. O legado espanhol – Calderón e Gracián inspiradores de Schopenhauer. In: SALLES, João C. (Org.) Schopenhauer e o idealismo alemão. Salvador: Ed. Quarteto, 2004.

KANT, I. Kant im Kontext PLUS – Werke auf CD-ROM – 2. erw. u. neu durchges. Aufl. 1997 – ISBN 3-932094–02-6

KANT, I. Crítica da Faculdade de Julgar. Tradução de Fernando Costa Mattos. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Ed. Univ. São Francisco, 2016.

LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos. Tradução de Marilena Chaui e Alexandre da Cruz Bonilha. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MARTINS, A. Nietzsche, Espinosa, o acaso e os afetos – encontros entre o trágico e o conhecimento intuitivo. Revista O que nos faz pensar, n. 14. Rio de janeiro, PUC-RJ, p. 183-198, 2000.

MENEZES, A. P. Para pensar o afeto. Revista latinoamericana de psicopatologia fundamental, ano X, n. 2, p. 231-254, jun/2007.

PENNA, C. O campo dos afetos: fontes de sofrimento, fontes de reconhecimento. Dimensões pessoais e coletivas. Cadernos de Psicanálise (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 39, n. 37, p. 11-27, jul./dez. 2017.

RAMACCIOTTI, B. L. Espinosa e Nietzsche: conhecimento como afeto ou paixão mais potente? Cadernos Espinosanos, São Paulo, n. 31, p. 57-80, jul-dez 2014.

SCHOPENHAUER, A. Schopenhauer im Kontext Werke auf CD-ROM – 2001 – ISBN 3-932094–04-2

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora da Unesp, 2005.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representaçãoTomo 2 (Suplementos). Tradução deJair Barboza. São Paulo: Editora da Unesp, 2015.

SEVERAC, P.Conhecimento e afetividade em Espinosa.In:MARTINS, A.(org.). O mais potente dos afetos: Spinoza & Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Contribuição de autoria

1 – Jarlee Oliveira Silva Salviano:

Professor, Doutor em Filosofia

https://orcid.org/0000-0002-3347-0784 • jarlee.salviano@ufba.br

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

SALVIANO, Jarlee. Schopenhauer, os afetos e o pior dos mundos possíveis. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 12, e03, 2021. DOI 10.5902/2179378665897. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378665897. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] A tese da “filosofia do consolo” cria uma falsa fundamentação para a filosofia de Schopenhauer. É preciso levar em conta a tenaz observação que faz o filósofo no prefácio aos seus Aforismos para a sabedoria da vida, ao apresentar sua “eudaimonologia”: esta, diz ele, não é minha filosofia! Se a querei, conclui, buscai no Livro quarto de O Mundo, na doutrina da “negação da vontade”. Há uma tendência a dar a este penduricalho de sua obra, a eudaimonologia, um valor igual à de sua teoria da negação da vontade: esta equiparação é equivocada! E, portanto, é falsa a ideia que defende Jair Barboza (que propaga a tese da “filosofia do consolo”: ele que traduziu os Aforismos e portanto conhece bem o furor da prescrição do prefácio de Schopenhauer) da “oscilação entre o pessimismo metafísico e o otimismo prático”. Não há oscilação, pois não há duas metades na filosofia de Schopenhauer. Vaidade certamente, ao querer kantianamente complementar seu sistema apresentando uma eudaimonologia, mas não otimismo. Nem mesmo o discurso sobre a “redenção” do último Livro de sua obra magna remeteria a tal consolo, pois o conceito redenção (como o summum bonnum – § 65 de O Mundo) é despatriado e ressignificado por Schopenhauer e remete ao (desconfortável) sossego niilista do nada: é esta a saída proposta pelo filósofo no fenômeno da negação da vontade.

[2] Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra!

Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra!

Exercício eterno que inúteis dores mantém! Filósofos iludidos que bradais “Tudo está bem”;

Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,

Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,

Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados

Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados

Cem mil desafortunados que a terra devora,

Os quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora, Enterrados com seus tetos terminam sem assistência

No horror dos tormentos sua lamentosa existência! Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes,

Ao espetáculo medonho de suas cinzas fumegantes,

Direis vós: “Eis das eternas leis o cumprimento,

Quem de um Deus livre e bom requer o discernimento?” Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:

“Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes”? Que crime, que falta comentaram estes infantes

Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?

Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios

Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias?

Lisboa está arruinada e dança-se em Paris.

[…]

Leibniz nunca me ensina por que nós invisíveis,

No mais bem ordenado dos universos possíveis,

Uma desordem eterna, um caos de infelicidades,

A nossos vãos prazeres mistura certas dores que são verdades,

Nem por que é que o inocente, tal como o culpado,

Sofre do mesmo modo este mal desgraçado.

Também não concebo como tudo estaria bem: Sou como um médico; infelizmente nada sei.