Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v.12, n.1, p. 01-06, jan./abril., 2021
DOI: 10.5902/2179378665437
ISSN 2179-3786
Publicado: 26/04/2021
Apresentação
Apresentação
Foreword
José Fernandes Weber I
Anna Luiza Coli II
Giovanni Jan Giubilato III
I Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil
II Bergische Universität Wuppertal / Charles University Prague
III Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG, Brasil
O dossiê Nietzsche na fenomenologia é mais um resultado das numerosas atividades de pesquisa, ensino e extensão desenvolvidas no contexto das várias iniciativas promovidas pelo Núcleo de Pesquisa em Fenomenologia,[1] fundado pelos editores em 2017 e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL) em parceria com o Central-European Institute of Philosophy,[2] sediado na Charles University de Praga, na República Tcheca, e o Eugen-Fink-Zentrum Wuppertal (EFZW),[3] sediado na Universidade de Wuppertal, Alemanha. Além do trabalho sistemático sobre a fenomenologia husserliana, seu método e seus desdobramentos nas gerações seguintes de pensadores que consolidaram o assim chamado “movimento fenomenológico” como uma das mais importantes vertentes da filosofia contemporânea – podemos pensar aqui, dentre muitos outros, em Heidegger, Jaspers, Merleau-Ponty, etc. – o Núcleo também criou e estabeleceu pioneiramente um espaço de estudo e divulgação da obra de Eugen Fink, pensador cuja importância para as tradições fenomenológicas alemã e francesa vem sendo atualmente redescoberta, mesmo na Europa, pelo recente trabalho de publicação sistemática de suas obras completas. E foi justamente durante os trabalhos de pesquisa sobre o pensamento de Fink[4] que nos ficaram patentes as solicitações teóricas que conduziram à concepção de um dossiê inteiramente dedicado a Nietzsche na fenomenologia.
De fato, já durante os anos 20 e 30 do século passado, na época em que era assistente e íntimo colaborador de Husserl (entre os anos 1927-1938), aparece claramente no pensamento de Fink a tentativa de incluir “Nietzsche” no grande sistema aberto da fenomenologia transcendental, a partir de um confronto com a Lebensphilosophie[5] e o “ontologismo naturalista” de Misch e Dilthey. A temática da vida e do “mundo da vida”, tão centrais para o último período da fenomenologia husserliana,[6] sofrem em Fink uma profunda conversão e radicalização para além do projeto da filosofia como ciência rigorosa e do esquema puramente reflexivo-transcendental: “O sistema fenomenológico é o sistema da vida. A vida como jogo concreto da intencionalidade. Fenomenologia como a espiritualidade viva, que atua, que age”.[7] A dinâmica intencional da vida, aqui entendida sobre a base de uma concepção não mais epistêmica ou gnosiológica mas essencialmente ontológica e metafísica, desenvolvida a partir do conceito de “jogo” e do ser humano enquanto “mediador” (Mittler), conduz Fink à interpretação da temporalidade como anseio, e da vida como movimento eterno “nem racional nem irracional, mas pático”.[8] As evidentes solicitações nietzschianas do esforço solitário de Fink de pensar a atuação do espírito como puro pathos, como puro “jogo do mundo” no qual o ser humano aparece como “hiato metafísico no cosmos”, e de afirmar o dinamismo primordial da vida, concebida então como “intencionalidade lúdica pré-racional e essencialmente pática”, concretizam-se imediatamente após o fim da segunda guerra mundial, nas fulgurantes reflexões sobre “A metafísica nietzschiana do jogo”.[9]
Concebido a partir dessas solicitações, o presente Dossiê reúne textos que em suas diferentes abordagens e interpretações se mantêm fiéis a um tratamento aberto e não confessional da filosofia, seja da fenomenologia, seja do pensamento de Nietzsche. Para tal, um procedimento (metodológico ou existencial) bastante salutar consiste em abandonar definitivamente um juízo, felizmente cada vez menos em voga, segundo o qual poucos procedimentos seriam menos recomendados e adequados à pesquisa séria em filosofia do que aproximar obras filosóficas distintas, pois cada obra representaria um mundo cuja singularidade, inapreensível fora dos domínios que lhe são próprios, seria completamente perdida mediante a aproximação; aproximá-las, na melhor das hipóteses, criaria um quadro de monótonos espelhamentos meramente informativos, pois o núcleo fundamental de sentido, próprio a cada obra, não seria de modo algum acionado. A obra, no seu núcleo duro, considerada do lado de cá da fronteira, expressaria um interminável monólogo de sentido; do lado de lá, um silêncio abissal, ou contrassensos gritantes. A vinculação à exterioridade e o abandono dos pressupostos imanentes imporia exigências e compromissos não apenas incômodos, mas inaceitáveis e insustentáveis. E mesmo a anuência à admissão de distintas compreensões, identificáveis agora, não mais em obras de diferentes filósofos(as), e sim, em diferentes fases de elaboração de textos de um(a) mesmo(a) pensador(a), apenas seria legitimada metodologicamente por uma certa noção tardia de totalidade inscrita na ideia de obra completa. O telos da totalidade, operador de certa ordenação final, minimizaria o constrangimento proveniente da identificação de momentos de tensão, ou mesmo de contradições, não facilmente conciliáveis, ainda não conciliadas ou mesmo inconciliáveis.
Contra tal modo objetivista-doxográfico de conceber a filosofia, temos o testemunho do trabalho filosófico que permite ver que todo texto escrito, toda obra publicada, é apenas uma parte, a parte final, de um longo, laborioso e tortuoso processo de elaboração, e que na filosofia, diferentemente da mitologia, Atena não nasce pronta da cabeça de Zeus, “terrível estrondante guerreira infatigável”[10], a postos para a batalha. Se permanecêssemos na oficina ou no ateliê do conceito perceberíamos que a obra final é apenas a indicação formal de um estado atual do labor no tempo. Não apenas a obra não nasce pronta, como jamais está plenamente acabada, afinal, já terá nascido o(a) filósofo(a) que, tendo a possibilidade de continuar pensando e reescrevendo a obra ao infinito, abdique de fazê-lo?
Tendo isso em vista, não seria excêntrico apelar a Nietzsche e a Husserl como dois dos testemunhos contemporâneos mais radicais sobre o que significa ser filósofo, como antecipação da pergunta, ao nosso juízo fundamental, sobre o que está em jogo, não apenas em uma obra filosófica, mas também, em uma vida filosófica. O conjunto dos materiais que compõem a Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (KGWB), de Nietzsche, e a Edmund Husserl Gesammelte Werke (Husserliana), parecem-nos ser, mais do que dois colossais arquivos, dois testemunhos sobre a incontornável natureza labiríntica do trabalho filosófico, que uma mera atenção à obra publicada não daria conta sequer de apreender. Não deveria passar desapercebida a importância filosófica que os materiais não publicados em vida pelos autores assumem para uma consideração filosófica sobre o que seja uma obra filosófica: comentadores de Nietzsche, destaque seja dado a Heidegger, insistem em que “a verdadeira filosofia” se encontraria nos escritos não publicados por Nietzsche em vida (os Nachgelassene Fragmente, da edição crítica Colli-Montinari acima referida); Husserl, em várias ocasiões, lembrou que a singularidade de seu labor propriamente fenomenológico, o método fenomenológico em sua acepção e exposição mais genuínas, não se encontrava expresso em suas obras publicadas, estando fixado, antes, na colossal massa de manuscritos que apenas vieram à luz gradativamente com a publicação de sua obra completa. Apenas por isso, a publicação destas duas obras já se encontra entre as grandes realizações editoriais do século XX.
A partir do testemunho legado pelas obras de Husserl e de Nietzsche, o que é possível encontrar nos cruzamentos destes tortuosos caminhos que constituem o labirinto Nietzsche e a fenomenologia? Dentre as várias possibilidades, destacamos apenas duas, quais sejam:
1. A noção de sujeito como um polo de constante tensão em torno do qual gira uma parte significativa das desavenças internas à fenomenologia e na qual se pode apreender um eco repercutido da obra nietzschiana. Postular a superfluidade ou a necessidade da admissão de um sujeito transcendental – decisão em torno da qual Husserl já se manifesta desde a Quinta das Investigações Lógicas – marca um ponto de irradiação de alguns dos tópicos mais importantes, mas também mais conflituosos da fenomenologia, tais como: a redução, a epoché, o mundo, o sujeito. E os(as) fenomenólogos(as) posicionar-se-ão frente ao que resulta daquela operação inicial: em Husserl, a mudança de uma fenomenologia descritiva (extática) a uma fenomenologia genética (dinâmica); a tematização do corpo próprio e da carnalidade e do ser bruto por Merleau-Ponty; a concepção heideggeriana do Dasein e o destaque dado à morte como acabamento; a fenomenologia do corpo e do nascimento de Michel Henry; e, junto a isso, a conexa crítica nietzscheana à compreensão formalista-substancialista da noção moderna de sujeito ou antiga e medieval de alma e pensamento, amparada numa naturalização do humano e na valorização das pulsões; tudo isso mostra que um gradativo e intensivo aprofundamento de uma compreensão não mais meramente formal de sujeito, ampliada pela intrusão das noções de corpo, pulsão, morte e nascimento, permite situar Nietzsche e a fenomenologia numa linhagem filosófica, senão comum, ao menos não muito distante;
2. A história como um horizonte referencial que funciona como campo de tensionamento das relações entre problemas de ordem teórica (formal) e prática. Parece-nos que as noções de crise e de niilismo incorporam e expõem a importância da reflexão sobre o futuro da humanidade cada vez mais marcada pelo avanço das compreensões cientificistas de mundo, inebriadas pelas promessas de redenção oferecidas pela ciência. Obviamente isso não quer dizer que há coincidência de diagnóstico ou de tratamento para a mazelas do tempo (denunciadas justamente pelas noções de crise de niilismo) e, sim, que crise e niilismo são os conceitos que, cada qual ao seu modo, servem para pensar, inclusive criticamente, os problemas do sentido, da teleologia, do destino (envio), enfim, da liberdade, não apenas restritos ao indivíduo, mas relacionados à “humanidade”. A denúncia nietzscheana da “falta de sentido histórico” como sendo o “defeito hereditário de todo filósofo”[11], é uma advertência para a qual a fenomenologia, via de regra, foi e continua sendo sensível. A partir deste problema, a passagem para o tratamento das conexões entre pensamento e vida, pensamento e mundo, revela-se apenas uma questão de variação.
Boa leitura!
REFERÊNCIAS
COLI, A. L.; GIUBILATO, G. J.; WEBER, J. F. (Ed.). Fenomenologia em debate. Londrina: UEL, 2018.
FINK, E. A Metafísica Nietzscheana do Jogo. Trad. A. L Coli, G. J. Giubilato, J. F. Weber. Phenomenology, Humanities and Sciences, 1, 3 (2020), p. 518-524.
FINK, E. Presentificação e Imagem. Trad. A. L. Coli. Londrina: Eduel, 2019.
FINK, E. Was will die Phänomenologie Edmund Husserls?. In: Studien zur Phänomenologie (1930-1939), Den Haag: Nijhoff, 1966.
FINK, E. Phänomenologische Werkstatt. Teilband 3.2. Freiburg: Karl Alber, 2008.
HESÍODO. Teogonia – A origem dos deuses. Trad. JAA Torrano. 3 Ed. São Paulo: Iluminuras, 1995.
HUSSERL. E. A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental. Uma introdução à filosofia fenomenológica. Trad. Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
MISCH, G. Lebensphilosophie und Phänomenologie. Eine Auseinandersetzung der Diltheyschen Richtung mit Heidegger und Husserl. Stuttgart: Teubner Verlag, 1967.
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano – Um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[1] Site do Núcleo: https://nucleodefenomenologia.wordpress.com
[2] Site do instituto: https://www.sif-praha.cz/news/central-european-institute-of-philosophy-presentation/
[4] Cf. Dossiê Eugen Fink. Phenomenology, Humanities and Sciences - Fenomenologia, Humanidades e Ciências, Vol. 1/3 (2020); COLI; GIUBILATO; WEBER, Fenomenologia em debate, 2018. Cf. Também a tradução FINK, Presentificação e Imagem, 2019.
[5] Cf. MISCH, Lebensphilosophie und Phänomenologie, 1967; FINK, Studien zur Phänomenologie, p. 157-177.
[6] HUSSERL, A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental, 2012.
[7] FINK, Phänomenologische Werkstatt, 2008, p. 424.
[8] FINK, Phänomenologische Werkstatt, 2008, p. 133.
[9] O texto desta palestra ficou por longo tempo desconhecido e foi publicado só em 2010. Cf. a tradução brasileira: A Metafísica Nietzscheana do Jogo. Trad. Coli; Giubilato; Weber, Phenomenology, Humanities and Sciences, p. 518-524.
[10] HESÍODO, A origem dos deuses, p. 157 (versos 925-926).
[11] NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano – Um livro para espíritos livres Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 16.