Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v.12, n.1, p. 01-16, jan./abril., 2021

DOI: 10.5902/2179378664774

ISSN 2179-3786

Recebido: 15/03/2021 Aceito: 27/04/2021 Publicado: 11/05/2021[

 

Tradução

Filosofia transcendental como ética e como metafísica, de Marco Ivaldo

IVALDO, Marco. Transcendental philosophy as Ethics and as Metaphysics

Dax Moraes I

I Professor e Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Departamento de Filosofia, Rio Grande do Norte, Brasil

E-mail: dax@cchla.ufrn.br -  ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7634-3611

A relação entre ética e metafísica e a própria determinação do que se entende por ética e por metafísica, como bem se sabe, são flexionadas de múltiplas maneiras, frequentemente conflitantes, na tradição que denominamos filosófica. Nem mesmo de longe posso aqui oferecer disso uma visão de conjunto. Penso que, em vez disso, seja produtivo para a presente contribuição empregar uma delimitação precisa e desse modo propor algumas formulações sobre o nexo entre ética e metafísica a partir da perspectiva teorética que busco desenvolver e na qual trabalho faz tempo. Trata-se da perspectiva de uma filosofia transcendental que tem Kant e Fichte como os seus interlocutores fundamentais, eles que foram particularmente adotados, estudados e repensados desde os anos de 1960 pelo grupo de pesquisadores que, na Academia de Ciências da Baviera, reuniu-se em torno da Edição Completa de Fichte. A figura principal dessa experiência foi Reinhard Lauth. Por outro lado, uma influência fundamental em minha compreensão do transcendental, do transcendental religioso em particular, foi meu mestre genovês Alberto Caracciolo, como acredito que sobressairá na sequência. Provavelmente não resultará de meu estudo uma determinação única ou prevalecente da relação entre ética e metafísica, antes apresentar-se-ão diferentes configurações ou ênfases acerca dela: espero que essa conclusão em aberto possa, como tal, representar uma contribuição para reflexões e pesquisas ulteriores.

 

1 FILOSOFIA TRANSCENDENTAL

Em primeiro lugar, é oportuno procurar esclarecer, de modo necessariamente sucinto, o que eu entendo por filosofia transcendental. A questão inicial de uma filosofia transcendental é: como posso saber o que afirmo. A filosofia transcendental implica concomitantemente o reflexivo balanço das operações que o filósofo efetua, e isso de tal maneira que tenda à coincidência de seu dizer e seu fazer. Por isso, a filosofia transcendental é uma filosofia que deve tornar-se a cada vez ciente do ponto de vista desde o qual são apresentadas as suas afirmações.

Não podemos ter conhecimento ontológico – que afirme algo a respeito daquilo que é (tò on) – sem uma concomitante justificação epistemológica, isto é, sem que se mostre como tal conhecimento vem a ser nos atos do ser-consciente, considerado na totalidade e na complexidade de seus comportamentos, conscientes, pré-conscientes, inconscientes [consapevoli, pre-consapevoli, inconsapevoli]. Aquilo que Fichte denomina como “doutrina da ciência” é precisamente a reconstrução de tais atos constituintes da experiência, ou seja, do nosso originário ser-relação com uma alteridade, a qual se apresenta, por um lado, como um fator a posteriori não dedutível que se nos “defronta” [“urta”], e, por outro, emerge para nós tão somente através do meio de tais comportamentos [prestazioni]. Como salientou Luigi Pareyson em seu estudo fundamental sobre Fichte[1], a filosofia transcendental não amplia materialiter o nosso saber-por-experiência tal como ele se dá de vez em vez na vida; pelo contrário, ela recua aos princípios do ter um saber-por-experiência em geral. Este existe e se articula em uma pluralidade de formas – quais sejam, de saberes e práticas – cujas condições de possibilidade, ou ainda – em outros termos – atos constituintes, a filosofia de tipo transcendental evidencia. Assim, não explicam a experiência como tal nem o realismo nem o idealismo nas múltiplas variações e retomadas que conheceram na história dos sistemas filosóficos, ainda hoje. Ambos são dois pontos de vista unilaterais: o primeiro não reconhece a dimensão formativa (bildend) do ser-consciente e, por fim, coloca sempre como ponto de partida uma dadidade em si; o segundo não reconhece a irredutibilidade do defrontar-se [urto], ou seja, o fator a posteriori indedutível, colocando como ponto de partida uma autoconsciência absoluta. Em realidade, não temos dação de algo senão como evento de uma e em uma receptividade, tampouco temos autoconsciência se não enquanto é ativa recepção (e elaboração) de um apelo. A experiência pode ser explicada somente pela unidade transcendental de defrontar-se e espontaneidade, ou seja, pela receptividade como atividade e pela atividade como receptividade em conjunto. Isso tem, entre outras, a decisiva implicação de que aquela consciência que somos (e temos) vem a ser apenas graças a um “defrontar-se” todo peculiar sobre nossa espontaneidade “formal”, [que] emerge, pois, graças a um apelo real à liberdade. É o encontro com um apelo – como evidenciou Masullo[2] – que decide sobre a aparição daquela individualidade que cada um é – e um tal apelo deve necessariamente ser pensado como a expressão de um ser que é, por sua vez, capaz de exortar, ou de convidar à liberdade, isto é, de um ser racional e livre. A individualidade é, portanto, um conceito de reciprocidade, o que significa que só pode ser compreendida segundo um horizonte intersubjetivo.

Uma objeção ao transcendentalismo é a de que ele consiste em uma filosofia do “sujeito”, na qual este encontrar-se-ia na situação insuperavelmente aporética de achar-se dividido entre o assim-chamado sujeito transcendental e o sujeito empírico, sem poder ser nenhum dos dois nem os dois juntos. Ora – ainda que isso possa soar surpreendente –, o transcendentalismo, segundo a linha que busco traçar aqui, não tem como princípio o “sujeito”, mas, se se quer usar essa linguagem, compreende um sujeito-objeto, ou uma sujeito-objetividade que deve ser pensada como o prius em ato, graças ao qual somente se realiza o que chamamos de experiência ou saber ou consciência enquanto correlação de sujeito e objeto sempre determinada e a ser determinada. Por isso, o sujeito é sempre “empírico”: ele é, junto ao objeto, um polo necessário da experiência. Mas o sujeito é “empírico” – é relação com o objeto e consigo mesmo – porque é constituído pela unidade transcendental em ato. O eu empírico existe como tal na e pela abertura transcendental, isto é, graças àquele princípio dinâmico e àquela condição concomitante do ato concreto que Kant denominava apercepção transcendental e Fichte chamava Tathandlung (ação em ato). O ato concreto é, sim, sempre actus personæ, mas sua concretude deve ser pensada como a individuação, progressivamente determinada, da abertura transcendental, isto é, como o contínuo passar da determinabilidade à determinação por intermédio (durch) do refletir. A abertura transcendental, por sua vez, não é um ato simplesmente teorético, mas, de maneira fundante, uma abertura prática. A experiência vem a ser graças não apenas aos atos representacionais daquilo que é, mas também em virtude dos atos desejosos e volitivos daquilo que deve ou pode ser. A representação do ente é, em última análise, possibilitada por um tender, o qual se articula através de diferentes níveis ontológicos. O eu empírico não se encontra originariamente, por isso, como um Eu Penso, mas como um Eu Quero, e isso na figura basilar de um esforço e de um tender que é pré-reflexivo, pré-objetivo e pré-subjetivo.

A essa altura podemos propor uma primeira aproximação ao tema ética e metafísica. Compreende-se por essa formulação que a eticidade (Sittlichkeit) ou momento ético – que compreendo, em sua gênese, como o abrir-se do espaço e do posicionamento do dever-ser em relação ao ser-de-fato – pertence à estrutura mesma do ser-consciente. Assim é não apenas porque o eu represente, mas porque é apelado pelo dever-ser, o qual, todavia, não se lhe apresenta de modo algum como algo de extrínseco, como um comando estranho, mas como uma pulsão, como uma tensão que lhe é intrínseca, de maneira que podemos dizer – retomando livremente Hegel – que o sujeito agente é como não deve ser, e não é como deve ser. É essa desconformidade [sproporzione] da subjetividade agente que abre o espaço da vida ética.

Por outro lado, a visão de filosofia transcendental que procuro delinear não é de modo algum antimetafísica. Diferencia-se, sim, de uma metafísica objetivante e especulativa, que não reflete sobre seu próprio proceder e cai em um dogmatismo, mas ao mesmo tempo a compreensão transcendental do ser-consciente apresenta-se como a “assisa[3], a base (Grundlage) de uma afirmação metafísica reflexivamente legitimada a partir da autocompreensão da razão prático-teorética. Fichte escreveu certa vez: “Se a doutrina da ciência deve ter também uma metafísica como pretensa ciência das coisas em si, e se uma tal ciência lhe fosse requerida, ela deveria remeter à sua parte prática. Somente esta [...] fala de uma realidade originária”[4]. Não se deve tomar essa afirmação programática como se quisesse dizer que o eu constrói para si a coisa em si, segundo um subjetivismo desenfreado. Significa que, para se chegar à afirmação de uma realidade originária (aquela realidade que, enfim, é a liberdade), deve-se ir além do horizonte do eu que representa e formular a fundante praticidade da razão. Em uma primeira aproximação (que não é a única), podemos então dizer que a filosofia transcendental traça uma relação entre ética – não mais compreendida como doutrina dos costumes (Sittenlehre), mas como eticidade em ato, Sittlichkeit – e metafísica – compreendida como doutrina da autêntica “coisa em si”, isto é, da liberdade, conforme enfatizado por Schelling – segundo a qual é a eticidade, o momento ético, que abre espaço para a metafísica, ou seja, destranca a perspectiva de uma filosofia da liberdade originária.

2 METAFÍSICA E ÉTICA EM KANT

À luz da concepção transcendental que busco delinear, parecem-me insatisfatórias as leituras “gnosiológicas” de Kant, que insistem que a contribuição fundamental da crítica da razão consista em haver elaborado uma nova teoria do conhecimento, desenvolvida em conexão com a física moderna e a matemática, que limita o conhecimento aos “fenômenos” e deixa de fora as questões fundamentais da metafísica. Entrementes, também considero insatisfatórias as leituras “ontológicas”, segundo as quais Kant teria formulado uma nova teoria do ser como subjetividade em vista do estabelecimento de uma metafísica da finitude. Seja à interpretação neokantiana, seja à interpretação heideggeriana, conquanto significativas na história da recepção kantiana, falta, segundo entendo, o ponto central: que a teoria de Kant é uma teoria que de fato diz respeito ao saber, mas não é uma gnosiologia ou uma psicologia no sentido da tradição precedente; que a teoria de Kant é, sim, uma ontologia, mas não uma ontologia da subjetividade. A crítica kantiana da razão é, em vez disso, uma ontologia transcendental do saber, uma compreensão do “ser” do saber, entendido como unidade dinâmica de sujeito e objeto, de polo egológico e polo objetual. Em outras palavras, a teoria kantiana é uma compreensão das operações constituintes – chamadas por Kant “condições de possibilidade” – que estão em jogo na relação sujeito-objeto, operações em virtude das quais vêm a ser o que chamamos saber ou experiência. Adquiri essa leitura de Kant a partir de Reinhard Lauth e Marek Siemek[5].

A crítica da razão propõe uma reserva substancial à possibilidade de satisfazer a pretensão cognitivo-teorética daquilo que Pareyson denominava metafísica ôntica ou especulativa (realista), sem, no entanto, autorizar uma passagem para uma metafísica (idealista) da subjetividade. Todavia, a metafísica – entendida por Kant como teoria dos primeiros princípios a priori do conhecimento humano (Scientia primorum cogitationis humanæ Principiorum a priori) – não é de modo algum liquidada pela crítica da razão. Kant não é de forma alguma um “alles zermalmender”, um “onni-schiacciasassi” da metafísica, como teria escrito Mendelssohn[6]. As questões da metafísica, que para Kant colocam-se com a própria existência da razão (Vernunft) e exprimem seu impulso originário, segundo ele, devem ser formuladas unicamente a partir da ontologia do saber e, portanto, da compreensão transcendental das formas da experiência e da autoexperiência. Além disso, Kant inovou radicalmente a teoria da razão prática, e isso porque reformulou radicalmente seu conceito. A oposição por certo tempo difundida entre um deontologismo (que se pretende de matriz kantiana) e um teleologismo (que se pretende de matriz aristotélica) teve, a meu ver, entre os seus efeitos, também e precisamente o de ocultar a ontologia específica da razão prática kantiana, intelectualizada ou reduzida a um princípio formalista. Para Kant, a razão prática não é a forma do raciocínio que se refere às ações – essa forma de reflexão é, antes, o juízo prático –, mas um princípio de abertura de uma esfera do real. Ela é, precisamente, o princípio constituinte da experiência do agir segundo imperativos e, em última instância, segundo imperativos incondicionados. A razão é prática (no sentido de: pura prática) não enquanto reflete sobre o agir e em vista do agir, como faz o juízo, mas enquanto é capacidade de determinar o agir; a razão é prática enquanto determina incondicionalmente – isto é, em virtude das leis morais cujo autoapresentar-se à consciência constitui o “fato da razão” – sem forçar a vontade do sujeito agente à decisão e à ação de maneira necessitante. É a partir dessa razão prática (como evidenciam, por exemplo, as dialéticas da razão prática e do juízo teleológico) que se abre a pergunta metafísica, ou seja, a demanda por um sentido último e primeiro para o existir [esserci][7].

Agora podemos extrair das obras e preleções de Kant diversas versões ou acentuações da relação ética-metafísica. Destaco duas delas. A primeira modalidade, mais ligada à tradição, refere-se à articulação das disciplinas filosóficas. Nas Preleções sobre metafísica e teologia racional[8] encontramos nesse sentido a distinção entre a “metafísica pura”, que tem a tarefa de determinar os princípios da razão, e a metafísica aplicada, que se aplica aos objetos da própria razão. A metafísica aplicada articula-se, por sua vez, em metafísica da natureza e metafísica dos costumes: a primeira trata da natureza como complexo do que existe, a segunda trata da liberdade e considera o que deve ser. De acordo com essa abordagem, a ética (compreendida como metafísica dos costumes) apresenta-se como uma aplicação da doutrina dos primeiros princípios da razão, isto é, da metafísica pura, ao objeto-liberdade. A segunda aproximação à relação entre ética e metafísica em Kant – provavelmente a mais produtiva em termos especulativos – nasce da dialética entre o objeto da vontade moral, a saber, o sumo bem, e a sua condição de exequibilidade, ou seja, a demanda por um sentido último e primeiro do ser: “pode-se certamente dizer que, no imperativo moral, não morre, antes nasce a própria questão metafísica”[9]. Podemos, então, fazer valer para Kant duas abordagens do nexo entre ética e metafísica, pelas quais, segundo a primeira, que denominarei “analítica”, a ética (compreendida como teoria dos costumes) é parte da metafísica; de acordo com a segunda, “dialética”, a ética (enquanto relação prática com o dever ser) é veículo e meio da pergunta metafísica e sua formulação à luz da fé moral – ou fé da razão, ou seja, pura fé prática da razão. 

3 FICHTE, OS PONTOS DE VISTA DA ÉTICA E DA METAFÍSICA

A essa altura é oportuno retomar o aceno inicial à constituição prática do ser-consciente. Se o eu que representa começa por um eu quero, já sob a forma elementar de um tender, o eu quero, capturado em seu agir, evidencia, por sua vez, uma estrutura complexa. A vontade tem, segundo Fichte, uma constituição reflexiva, ou seja, no querer não é visualizado apenas um objeto ideal (um escopo), mas está co-implicado um querer-se, ou melhor, um querer a si mesmo como querendo o escopo. Essa dobra da intencionalidade é precisamente o ponto de irrupção de uma questão. A reflexividade do querer é ao mesmo tempo o lugar de recepção de uma tarefa prática; a reflexividade é receptividade. No querer-me como querente (de algo) aferro-me assim como exortado a corresponder a uma questão: devo querer aquilo que quero e querer-me nesse querer como querente. O eu quero não é então a expressão de um absoluto possuidor de si mesmo [auto-possesso] por parte do ego, mas a forma da recepção de um eu devo; querer (querer-se) significa assumir uma responsabilidade na figura da correspondência a uma tarefa. Não vontade de potência, mas vontade como autodeterminação (reflexiva) na figura do receber e tornar própria uma questão. Agora, sou eu a colocar essa questão a mim (eu devo), mas eu a coloco a mim como não posta ou criada por mim. Em outros termos: a tarefa é posta por mim como não-posta, ou seja, como recebida (tu deves, sê!). Quero porque devo, mas devo porque (cor)respondo a uma questão que se põe por si a mim. O eu é assim destituído de seu pretender-se central, ou melhor, é colocado em sua justa condição, a de ser resposta – decidida, mas nunca exaurida e fechada – a uma pergunta, ao apresentar-se-lhe de uma tarefa prática, e radicalmente ética. A liberdade que somos não se dá como pura inicialidade, mas como em virtude de um apelo, conforme já sinalizei. Como esclareceu Pareyson, a nossa liberdade é iniciativa iniciada. Isso implica que a genuína lei da liberdade é a única que, impondo-se, libera, isto é, que, ordenando, lança a liberdade, sendo essa a lei moral, inspiração originária e estímulo profundo da liberdade no ato mesmo em que evidencia a própria capacidade flexível, mas não equívoca, de falar nas mais diversas situações e condições e possibilidades. O momento ético, enquanto relação com a ideia e com o ideal desdobrada em um imperativo (Sollen, Soll), é, em última análise, a forma formativa da subjetividade.

 Essa compreensão de uma subjetividade prático-ética “descentrada” foi formulada e aprofundada por Fichte no âmbito daquela que ele mesmo chama, na Iniciação a uma vida bem-aventurada, “a metafísica e ontologia mais profundas”[10] que, para ele, exprimem-se sobre o plano científico na doutrina do absoluto e sua manifestação ou existência (Erscheinung, Dasein). Retomo daí um ponto de destaque, que favorece uma reflexão sobre a relação entre ética e metafísica.

A filosofia transcendental, para Fichte, é e permanece compreensão autocrítica dos atos constituintes e configurativos do saber ou experiência. Fichte efetuou ao mesmo tempo aquilo que de modo feliz Pareyson chamou de uma “progressiva diafanização do saber”[11], um aprofundamento da constituição do saber que o conduzisse ao máximo possível de transparência em relação a si mesmo. Ora, esse aprofundamento vertiginoso e implacável impeliu Fichte a dar-se conta, sempre com maior clareza, de que o ato constituinte de nosso saber é – caso possa eu utilizar-me de um oximoro – um ato “absoluto-em-parte”. É absoluto enquanto é início de si; é parcialmente absoluto enquanto se “destaca”, isto é, inicia, a partir de um pano de fundo que é a um só tempo o seu limite e a sua origem. O princípio do saber não é (ainda) o princípio como vida, ou “viver”, aquela vida de que o saber é manifestação ou existência (Erscheinung, Dasein). O saber é (existe) porque a vida é e aparece, não vice-versa. Não que a vida – enquanto vida vivente, ou melhor, como viver vivente, que Fichte também denomina ser, esse in mero actu, luz, absoluto, Deus – se resolva em uma coisa em si colocada “atrás” do saber. A vida vivente é gênese do saber no saber, estando seu limite e sua origem em alguém. Se o saber é aparição, consiste no aparecer de algo como algo, então a vida vivente é o fundo a partir do qual e no qual a aparição inicia e é isso o que ela conduz à manifestação. Contudo, ao mesmo tempo, se o saber é (somente) aparição, a vida vivente, ou seja, o absoluto actu, limite e origem da aparição, não coincide com esta última, [antes] é nela diferindo dela. Em outros termos, a vida aparece – em e segundo uma estrutura reflexiva – e esse aparecer é o saber, a consciência originária, somente no interior da qual temos isso que chamamos “mundo”. Mas a vida só aparece no “como” (als) do seu aparecer, de maneira que a vida, aparecendo, difere de seu aparecer, dissolve-se desde o seu próprio “como”. Imanência e transcendência, presença e excesso: essa relação é expressa por Fichte também por meio da ideia de que o saber é imagem (melhor: imagem imaginante, bildendes Bild) e tão somente imagem do absoluto, isto é, da vida vivente. Certamente, todo o nosso afirmar e limitar a afirmação no que concerne ao absoluto consistem em um discurso indireto, conforme ressaltou Pareyson. A filosofia transcendental não trata do absoluto, mas do saber: se fala do absoluto, o faz mediatamente, através de uma dialética especialíssima, uma compreensão do saber que retrocede à origem, fala dele, portanto, como “não-saber”, antes como o não ser do saber, que deve ser pensado como a origem e o limite do saber mesmo.

Esse núcleo de uma “metafísica e ontologia mais profundas” tem uma repercussão sobre o plano da ética, que aqui também reúno em dois pontos. Fichte argumenta que a eticidade é uma visão de mundo”, isto é, uma perspectiva sobre a realidade existente[12] (“mundo”) que se impõe no autodesdobramento reflexivo daquela imagem do absoluto que consiste no eu-da-consciência. Os pontos de vista sobre o “mundo” são ao todo cinco: a sensibilidade, o direito, a eticidade, a religião e a ciência filosófica. A eticidade, em particular, é o ponto de vista graças ao qual o eu-da-consciência percebe-se como solicitado por uma lei criadora (a lei moral concreta) a enriquecer a realidade existente com o aporte daquilo que não está ainda efetivado na existência de fato, e que Fichte chama de ideias. Podemos, então, concluir esta primeira abordagem dizendo que, no quadro da quintuplicidade das “visões de mundo”, eticidade e metafisicidade (filosoficidade) são os dois pontos de vista sobre o existir [esserci] – Caracciolo diria: duas estruturas autônomas – que identificam duas aproximações diversas com relação à manifestação do uno “ser e vida”, uma de tipo prático, outra de natureza teorética, mediadas pelo ponto de vista da religião, a qual consiste em um ponto de vista contemplativo que se abre para e se realiza na eticidade. De outra parte – segunda abordagem –, o ponto de vista da eticidade (e também o da metafisicidade) deve ser, por sua vez, deduzido (o que se justifica em sua pretensão de valer de jure) pela própria filosofia. Essa justificação da legitimidade das cinco visões de mundo é a doutrina da ciência, que é, por isso, uma metafísica da metafisicidade. A ética, em especial, entendida agora como doutrina dos costumes (Sittenlehre) move-se a partir de um fato, conforme se exprime Fichte na tardia Ética 1812, qual seja, que o “conceito” – isto é, a razão – é fundamento ciente da efetualidade, ou seja, é prática[13], daqui extraindo as determinações essenciais da vida ética. A doutrina da ciência, ou seja, a metafísica da metafisicidade, deve, pelo contrário, deduzir o fato da ética a partir de sua gênese, ou seja, evidenciar que o “conceito”, isto é, o princípio moral, aquele princípio que é causa do e no mundo fatual, é imagem do absoluto. Entre ética e metafísica teremos, portanto, em última análise, segundo esse Fichte, autonomia – a ética move-se desde um “fato” fundante seu – e relação – a metafísica deve deduzir, da gênese, o fato.

4 CARACCIOLO, O IMPERATIVO ÉTICO-ONTOLÓGICO

Gostaria de concluir valorizando dois aspectos do pensamento de Alberto Caracciolo – um pensamento que se inscreve, com sua maneira peculiar, na linha de uma filosofia transcendental – que me parecem significativos para se pensar o tema da relação entre ética e metafísica. Refiro-me, em primeiro lugar, à teoria das “estruturas” e dos “modos” da consciência. A estrutura (p.ex. religiosidade, poieticidade, teoreticidade, eticidade) é considerada por Caracciolo uma determinação transcendental, uma forma constituinte e formativa da consciência humana, que permeia todos os diferentes modos, ou distingue-lhes a figura, nos quais a consciência mesma se determina concretamente (p.ex. o modo religioso, o teórico, o prático, o ético, o artístico, o técnico). Nesse sentido, a ética, entendida como eticidade (Sittlichkeit), é uma estrutura da consciência, que se flexiona em formas da vida vivida, isto é, em modos, nas articulações concretas da vida ética. A eticidade é, particularmente, a estrutura da consciência que se abre e se desenvolve a partir da percepção ou da consciência do imperativo do bem.

Aqui, tais estruturas, bem longe de fechar o homem sobre si mesmo em uma pretensão de total autodomínio, descerram para o homem e no homem um espaço meta-histórico e meta-cósmico, que Caracciolo designa como o espaço de transcendência. Enquanto constituem a experiência, as estruturas transcendentais reenviam a uma ulterioridade inobjetivável que serve de regra de abertura da experiência humana. Elas são ao mesmo tempo estruturas ontológicas e deontológicas: estão em nós e nos constituem, mas não são criadas, nem postas, nem são – em sua legalidade – modificáveis por nós. Frente a elas, o que nos compete não consiste em mudá-las, mas em tentar fazer com que sua essência se revele, que a sua voz ressoe de maneira mais esclarecedora. Nesse sentido, para Caracciolo, a transcendentalidade não exclui, antes implica o momento de escuta, quer dizer, as determinações transcendentais, sobretudo sob a forma de seu encarnar-se e manifestar-se em modos concretos de vida, são consideradas por Caracciolo como vias por meio das quais “a palavra da transcendência”, em figuras diversas e convergentes, desce sobre o homem, e mediante as quais o homem mesmo supera o cosmo “na invocação sotérica [salvífica]”. Uma determinação transcendental sempre implica, pois, uma dialética de revelação e de escuta, ou seja, de dom gratuito e imprevisível e de atenção e esforço.

Recordo, então, a ideia do imperativo ontológico-ético do bem e do sentido que Caracciolo colocou no centro de seu pensamento, e também de sua discussão sobre o problema do niilismo. O niilismo do sem-sentido e da “vontade de nada” [“volontà del niente”] – que radicalmente diferencia-se daquele “nada religioso” [“nulla religioso”] que, para Caracciolo, é, pelo contrário, o espaço mesmo da transcendência – de modo algum dissolve o imperativo ontológico-ético. Ao invés disso, é antes esse imperativo, com seu indisponível impor-se a nós, que revela (e julga) o sem-sentido como tal. O sem-sentido, por exemplo, do sofrimento ou da maldade e destrutibilidade humanas, pode se tornar reconhecido e julgado apenas porque “no coração do homem está o imperativo ontológico-ético de que seja o bem, o sentido, o valor, a vida justificada em si, a ‘vida eterna’ (são termos sinônimos)”[14]. Nesse sentido, reforçava Caracciolo, nenhuma brutalidade empírica abala ou pode abalar a solidez daquilo que ele chama “o a priori dos a priori: que o sentido deve ser”[15]. Compreendido como a priori ontológico-ético, o a priori não é de modo algum apagado nem sequer enfraquecido pela “época do niilismo”, mas – à maneira de um autêntico princípio transcendental – se reapresenta necessariamente na sua genuína essência, como fator constituinte de cada posição prática que queira perceber-se como dotada de um mínimo de sensatez.

A partir dessa ideia fundamental do imperativo ético-ontológico emerge uma possível, e significativa, formulação sobre a relação entre ética e metafísica. Sustenta Caracciolo: “o imperativo fundamental da eticidade é identificado no imperativo ontológico do eterno”[16]. Ele, então, propõe o pensamento de que o conteúdo do Tu deves em sentido ético (Du sollst) não pode ser senão uma modificação do único conteúdo do imperativo ontológico: Deve (es soll). Dito de outro modo: o imperativo moral é determinação dirigida à liberdade da vontade (Tu deves, Du sollst) de um imperativo global e arquitetônico que tem a ver com a totalidade do existir [esserci], ou seja, de que a vida e o sentido – a vida como sentido e o sentido como vida – sejam: Este ser do sentido e da vida deve (ser) – es soll! A partir desse círculo de ideias Caracciolo obtém que, por fim, “buscar uma ética não pode significar outra coisa senão procurar por quais e como sejam as figuras do eterno (daquilo que em si e para si tem sentido, valor) possíveis no tempo”. Buscar uma ética significa, em outras palavras, procurar pelas figuras temporais (a priori) daquilo que em si e para si tem sentido e valor. Em linguagem um tanto fichteana: buscar uma ética é, em alguém, esquematizar as imagens do que é primeiro, ou seja, daquilo que é “em si, para si, através de si mesmo”.

Caracciolo nomeia esse “primeiro”: eterno. Assim, se é lícito afirmar que o eterno – não a duração infinita, mas o absolutamente presente, meta-temporal, aquilo que não é physis – é aquilo que é buscado pela metafísica, o que dá nome ao que constitui a sua tendência originária, podemos, então, concluir esse pensamento de Caracciolo afirmando – assumindo sua expressão – que a investigação ad veram ethicam inveniendam é investigação metafísica, ou seja, reflexão ad veram fidem inveniendam[17]. É interessante observar que encontramos nesses pensamentos uma retomada de tipologias da relação entre ética e metafísica que já encontrávamos na abordagem precedente. O momento kantiano: a investigação ética requer e abre a questão metafísica, e, juntamente, o momento fichteano: a eticidade, e a correspondente reflexão sobre ela, isto é, a ética, é “modificação”, ou seja, manifestação determinada segundo imperativos morais-práticos, do conteúdo metafísico do bem e do sentido, aquilo que vem a ser denominado e radicalmente pensado como o a priori do a priori.

REFERÊNCIAS

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CARACCIOLO, A. Nichilismo ed etica. Genova: Il Melangolo, 1983.

FICHTE, J. G. Gesamtausgabe. Der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. Hrsg. von Reinhard Lauth et alli. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 1965-2010.

LAUTH, R. Transzendentale Entwicklungslinien von Descartes bis zu Marx und Dostojewski. Hamburg: Meiner, 1992.

LAUTH, R. Vernünftige Durchdringung der Wirklichkeit: Fichte und sein Umkreis. München-Neuried: Ars Una, 1994.

KANT, I. Metaphysik Volckmann. In: KANT, I. Kants Vorlesungen. Band V: Vorlesungen über Metaphysic und Rationaltheologie, Erste Hälfte. Berlin: De Gruyter, 1968. [AA 28]

MASULLO, A. Fichte: l’intersoggettività e l’originario. Napoli: Guida, 1986.

MENDELSSOHN, M. Gesammelte Schriften. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 1974.

PAREYSON, L. Fichte: il sistema della libertà. Nuova edizione aumentata. Milano: Mursia, 1976.

PAREYSON, L. Prefazione. In: LAUTH, R. La filosofia trascendentale di Fichte. Napoli: Guida, 1986.

SIEMEK, M. J. Die Idee der Transzendentalismus bei Fichte und Kant. Hamburg: Meiner, 1984.

Contribuições de autoria

1 – Dax Moraes

Contribuição: Escrita - Tradução

 



[1] Cf. PAREYSON, Fichte.

[2] Cf. MASULLO, Fichte.

[3] N.T.: Entre diversos usos da palavra, o mais apropriado ao presente contexto é aquele empregado pelas ciências naturais para se referir a camadas que servem de base para outras, como, por exemplo, o estrato basal da epiderme humana ou camadas geológicas inferiores. De um lado, não valeria a pena reduzir o amplo espectro do termo a um uso particular, tampouco, por outro lado, suprimi-lo ou fazê-lo redundar em algo como “basal”, ou ainda simplificá-lo por meio de termos como “apoio”, “fundamento” e assemelhados. Diante disso, preferiu-se manter o original italiano. Ademais, o étimo tem outras conotações, indicando cadeiras (sedes) em tribunais italianos, além de ser dicionarizado de modo a se referir a distinções como aquelas representadas por fardas, insígnias e divisas. Não há palavra portuguesa que dê conta desse espectro semântico derivado de “assentar-se”.

[4] FICHTE, Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre, GA I/2, 416.

[5] Cf. LAUTH, Transzendentale Entwicklungslinien; LAUTH, Vernünftige Durchdringung der Wirklichkeit; SIEMEK, Die Idee der Transzendentalismus bei Fichte und Kant.

[6] MENDELSSOHN, Morgenstunden oder Vorlesungen über das Daseyn Gottes (1785). Gesammelte Schriften, Vorbericht, 3. N.T.: A expressão alemã, cujo significado literal é “aquele que esmaga tudo”, popularizada no Brasil como “o demole-tudo”, soa em italiano (aqui mantido) como “supremo-rolo compressor”, que tudo amassa, mesmo pedras. A propósito, a ideia de achatamento expressa na tradução italiana parece bem mais exata do que a de uma demolição ou derrubada, aqui desconsiderada.

[7] N.T.: Falta à língua portuguesa um verbo que, querendo significar o existir, o faça segundo a sua acepção de estar presente em situação, sendo aí, tal como encontramos não apenas em italiano como também em francês (y avoir), inglês (there be) ou alemão (dasein).

[8] KANT, Metaphysik Volckmann, 351 et seq.

[9] CARACCIOLO, La religione come strutura e come modo autônomo della coscienza, 76.

[10] FICHTE, Die Anweisung zum seeligen Leben, GA I/9, 67.

[11] PAREYSON, Prefazione, 16.

[12] N.T.: No original, aqui como a seguir, essente. A ausência oficial de particípio presente na língua portuguesa contemporânea comporta esse inconveniente de perdermos o caráter dinâmico da expressão. Adotar o neologismo italiano tampouco funciona em nosso idioma. O mais próximo, como alternativa a existente, seria que é, porém, além de não solucionar o problema, força o texto. Diferente do que ocorre em outros verbos, no caso do verbo ser, a palavra ente não pode ser compreendida senão como substantivo. A solução, que em outras circunstâncias poderia ser aplicada, não caberia aqui, a saber, a substituição pelo gerúndio sendo.

[13] Cf. FICHTE, Sittenlehre 1812, GA II/13, 307.

[14] Cf. CARACCIOLO, Nichilismo ed etica, 216.

[15] Ibidem, 217.

[16] Ibidem, 25.

[17] N.T.: “para o encontro da verdadeira ética/fé”.