Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v.12 n.1, p. 01-35, jan/abril., 2021
DOI: 10.5902/2179378664659
ISSN 2179-3786
Recebido: 09/03/2021 Aceito: 30/03/2021 Publicado: 05/05/2021
Nietzsche na fenomenologia
A profundidade abissal: Nietzsche, Cézanne, Merleau-Ponty e o enigma do mundo
The abyssal depth: Nietzsche, Cézanne, Merleau-Ponty and the enigma of the world
Claudinei Aparecido de Freitas da Silva I
I Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo, PR, Brasil
E-mail: cafsilva@uol.com.br - ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9321-5945
RESUMO
O texto visa, contextualmente, situar Nietzsche como um precursor da fenomenologia compreendida por Merleau-Ponty menos a título de uma “doutrina” e mais como um “movimento” incoativo e inacabado. É sob esse prisma que a obra nietzschiana projeta viva audiência a alguns temas caros àquele movimento, entre eles, a interrogação acerca do mundo como mistério. Esse agenciamento encontra na ideia de profundidade um fio condutor decisivo a fim de ressignificar, em termos husserlianos, uma arqueologia da Lebenswelt como regresso a uma Terra originária, algo que, ao que tudo indica, possui importantes ressonâncias não só de matrizes nietzschianas, mas cezannianas. Trata-se, enfim, de examinar em que medida a filosofia de Nietzsche e a pintura de Cézanne perfazem um rico experimento capaz de fulgurar um sentido arquétipo da natureza como abismo ou, no dizer de Merleau-Ponty, uma significação do mundo como enigma primordial, deflagração de um Ser das profundidades.
Palavras-chave: Nietzsche; Merleau-Ponty; Cézanne; Profundidade; Mundo; Mistério
ABSTRACT
The text aims, contextually, to place Nietzsche as a precursor of phenomenology understood by Merleau-Ponty less as a "doctrine" and more as an inchoative and unfinished "movement". It is in this light that the Nietzschean work projects a lively audience to some themes dear to that movement, among them, the interrogation about the world as a mystery. This task finds in the idea of depth a decisive leitmotiv in order to re-signify, in Husserlian terms, a Lebenswelt archeology while returning to an originating Earth, something that, it seems, has important resonances not only of Nietzschean matrices, but Cezanians. After all, it's about examining the extent to which Nietzsche's philosophy and Cézanne's painting make up a rich experiment capable of shining an archetype sense of nature as an abyss or, in Merleau-Ponty's words, a meaning of the world as a primordial enigma, deflagration of a Being of the depths.
Keywords: Nietzsche; Merleau-Ponty; Cézanne; Depth; World; Mystery
INTRODUÇÃO
Muito embora Nietzsche não seja um autor reportado de maneira abundante, ao longo dos escritos de Merleau-Ponty, nem de ter sido objeto de algum estudo monográfico como fizeram Fink (1983), Scheler (1994), Jaspers (1950), Heidegger (1997a; 1997b), Gabriel Marcel (1979; 2000), entre outros, o filósofo de Zaratustra tem, ao menos, figurado como pano de fundo desde a Phénoménologie de la Perception (1945). Mais que isso: direta ou indiretamente, Nietzsche insurge como uma presença decisiva no tocante, sobretudo, ao sentido e o alcance do próprio movimento fenomenológico. Nessa direção, como mostraremos à frente, Merleau-Ponty vê claramente em Nietzsche uma figura seminal, de fato e de direito, desse movimento. Isso, sem dúvida, diz muito! E é esse “muito” que pretendemos, aqui, compreender melhor, por meio de alguns agenciamentos temáticos, entre os quais, mais centralmente, o enigma do mundo como expressão de uma profundidade abissal radicada num retorno arqueológico à Terra.
Para tanto, faremos quatro breves incursões. A primeira consiste em situar, na devida medida, o balanço operado por Merleau-Ponty acerca da Fenomenologia avaliada menos como uma doutrina e mais como um movimento perspectivando aí, pois, a figura precursora de Nietzsche. A segunda incursão se reporta à obra mesma de Nietzsche à medida que ela inspira ou permite, em sentido fenomenológico, ressignificar o enigma do mundo como expressão de uma profundidade abissal. Em terceiro, o experimento pictórico de Cézanne que pincela a imagem, em carne e osso, de uma natureza originária, aquém de toda superfície planimétrica. E, como incursão última, a ontologia merleau-pontyana que interroga o mistério do mundo via uma prefiguração de Nietzsche[1] e Cézanne no que concerne à cara ideia de profundidade ao compreender o Ser como Abismo.
MAIS QUE UMA DOUTRINA, UM MOVIMENTO
Conforme dito, as referências a Nietzsche, na obra de Merleau-Ponty, não são tão fartas; muito menos, há, a exemplo de tantos outros fenomenólogos, um estudo sistematicamente dirigido, crítico ao pensador alemão. Isso, entretanto, não significa, que Nietzsche não se faça presente, ora explícita, ora implicitamente! Aliás, muitos dos temas fenomenologicamente caros a Merleau-Ponty possuem seja em relação à letra, seja ao espírito, um irretorquível cariz nietzschiano.
A primeira referência expressa encontramos já no início do segundo parágrafo do “Prefácio” da Phénoménologie de la Perception. Nesse texto, ao se reportar à Fenomenologia, observa Merleau-Ponty:
[...] restaria compreender o prestígio desse mito e a origem dessa moda, e a seriedade filosófica traduzirá essa situação dizendo que a fenomenologia se deixa praticar e reconhecer como maneira ou como estilo; ela existe como movimento antes de ter chegado a uma inteira consciência filosófica. Ela está a caminho desde muito tempo; seus discípulos a reencontram em todas as partes, em Hegel e em Kierkegaard, seguramente, mas também em Marx, em Nietzsche, em Freud[2].
Chama realmente a atenção a maneira como, nessa passagem, Merleau-Ponty situa ou sela, programaticamente, o destino da fenomenologia, sem deixar de conceder, é claro, uma posição de honra a Nietzsche, ao lado de tantos outros! Ora, o que há, de inédito, na Fenomenologia, sobremaneira em sua expressão contundentemente nietzschiana, que faz dela mais que uma ortodoxa doutrina, um movimento em curso? A resposta encontra-se sublinhada na própria passagem supramencionada. Merleau-Ponty reconhece, nesse movimento, uma certa práxis[3], isto é, um estilo próprio, uma maneira sui generis de labor, bem antes de adquirir plena consciência filosófica. Trata-se, ali, de um fazer filosófico diferenciado, ou, se quiser, de uma experiência de pensamento inacabada e incoativa, pois,
O inacabamento da fenomenologia e o seu andar incoativo não são o signo de um fracasso, eles eram inevitáveis porque a fenomenologia tem como tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão. Se a fenomenologia foi um movimento antes de ser uma doutrina ou um sistema, isso não é nem acaso nem impostura. Ela é laboriosa como a obra de Balzac, de Proust, de Valéry ou de Cézanne — pelo mesmo gênero de atenção e de admiração, pela mesma exigência de consciência, pela mesma vontade de apreender o sentido do mundo ou da história em estado nascente. Ela se confunde, sob esse aspecto, com o esforço do pensamento moderno[4].
A Fenomenologia, por diferentes mãos ou práxis, exprime um gênero de labor que não se encerra num corpo absolutamente doutrinário, fechado. Ela não é um pensamento sistemático, enclausurado, analítico e metodologicamente orientado. A Fenomenologia não é só uma descrição de essências, mas uma interrogação radical sobre o mundo, quer dizer, sobre a vida numa dinâmica transgressora de cânones ou regras. Nessa perspectiva, ela constitui um acontecimento trágico, por excelência, já que se propõe interrogar o mistério do mundo e o mistério da razão, tornando-se, enfim, uma obra aberta, fecunda, como laboriosamente foi a experiência vivida por autores, escritores ou artistas como Nietzsche e Cézanne. Por quê? Porque
o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável. “Há um mundo”, ou, antes, “há o mundo”; dessa tese constante de minha vida não posso nunca inteiramente dar razão[5].
Tais escritores e artistas reportados por Merleau-Ponty compreendem perfeitamente isso, ou seja, eles redescobrem, rente às suas obras, um nível de experiência da razão mais concreto e radical, uma outra ordem de exigência animada pela interrogação de um sentido sempre em estado nascente. Há algo nessa experiência de prodigioso, extraordinariamente misterioso que escapa às lentes da análise científica. Sob esse prisma,
a racionalidade não é um problema, não existe detrás dela uma incógnita que tenhamos de determinar dedutivamente ou provar indutivamente a partir dela: nós assistimos, a cada instante, a este prodígio da conexão das experiências, e ninguém sabe melhor do que nós como ele se dá, já que nós somos este laço de relações. O mundo e a razão não representam problemas; digamos, se se quiser, que eles são misteriosos, mas este mistério os define, não poderia tratar-se de dissipá-lo por alguma “solução”, ele está para aquém das soluções[6].
Ao retomar, acima, uma cara distinção marceliana, qual seja, a diferença entre “problema” e “mistério” [7], Merleau-Ponty vê no empreendimento fenomenológico uma práxis característica que o define: o de ser uma interrogação sobre o sentido último do “mundo” e da “razão” não a título de “problemas” a serem dissolvidos, mas de “mistérios” intimamente vividos. Diversamente do cientista que é conduzido pelo espírito de curiosidade – atitude essa que se esgota na resolução de problemas –, o fenomenólogo é movido pelo espírito de inquietude tão peculiar ao thaumazéin grego. Nessa medida, o filósofo jamais se comporta como um sujeito acósmico, ou seja, “jamais possui o mundo em pensamento”, mas, antes, “abandona-se a ele, envereda-se nesse mistério”[8]. Eis porque, tal mistério, coextensivo à razão, já projeta aqui, sob um ângulo fenomenológico, a inscrição originária inalienável pela qual mantemos, para com o mundo, relações de comércio.
É isso que, por vezes, se exprime dizendo que a coisa e o mundo são misteriosos. Eles o são, com efeito, a partir do momento em que não nos limitamos ao seu aspecto objetivo e os recolocamos no ambiente da subjetividade. Eles são até mesmo um mistério absoluto, que não comporta nenhum esclarecimento, não por uma falha provisória de nosso conhecimento, pois então ele voltaria a cair na categoria de simples problema, mas porque ele não é da ordem do pensamento objetivo, em que existem soluções[9].
É esse mistério absoluto que desloca o mundo como categoria de mero problema, ou seja, como um enigma que filosoficamente experienciamos ou reaprendemos:
A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e, nesse sentido, uma história narrada pode significar o mundo com tanta “profundidade” quanto um tratado de filosofia. Nós tomamos em nossas mãos o nosso destino, tornamo-nos responsáveis, pela reflexão, por nossa história, mas também graças a uma decisão em que empenhamos nossa vida, e, em ambos os casos, trata-se de um ato violento que se verifica exercendo-se[10].
Reaprender a ver o mundo. É essa atitude que encerra o verdadeiro gesto fenomenológico; gesto esse que Nietzsche já tivera dado de maneira também “violenta”, a “golpes de martelo” como um pensamento em ato, que toma, em mãos, o nosso destino. Nietzsche é aquele que jamais deixou de pôr, na ordem do dia, a interrogação radical da razão e do mundo como enigmas.
NIETZSCHE E O ENIGMA DO MUNDO
A fim, ao menos, de precisar, em que medida, a obra nietzschiana teria dado vazão a essa maneira de reaprender a ver o mundo ou, ainda, a esse estilo peculiar de interrogação filosófica que marcaria o movimento fenomenológico posterior, demarcaremos, algumas passagens esparsas dessa mesma obra.
Para começar, canta Zaratustra: “o mundo é profundo, mais profundo do que pensava o dia!”[11]. Nesse emblemático verso, na verdade um jubiloso “canto ébrio” (“canto do noctívago”)[12], acompanhamos o movimento de um forte espírito dionisíaco. O “espírito livre” encarnado pela personagem reconhece, digamos, a profundidade do mundo. Isso revela, em sentido fenomenológico, uma espécie de “retorno às coisas mesmas”, quer dizer, um retorno arqueológico ao que há de mais abissal, profundo e, portanto, sombrio que a luz do dia jamais é capaz de cogitar. Ora, “o que diz a (velha) e profunda meia-noite?”[13]. Ela anuncia que “o prazer é mais profundo ainda que o pesar”[14]. Ou que “o prazer quer a eternidade de todas as coisas, quer profunda, profunda eternidade”[15]. Zaratustra ainda revela, nessa canção de roda, que só os homens superiores são conclamados, canto esse nascido de um sono profundo, que “a meia-noite é também meio-dia, que o mundo se torna perfeito nesse instante”[16].
Pois bem, essa ideia nietzschiana de profundidade, de uma profundidade abissal do mundo personificada por Zaratustra, é a chave que abre o sentido de um mistério ou, noutros termos, do próprio enigma do mundo. Nietzsche agencia o caráter desse enigma como que acenando para o que há de mais espantoso no sentido grego de thaumazéin. Trata-se daquilo que, no mundo, emerge como paradoxal, inquietante, desconcertante, ou, se quiser, de ébrio, noctívago, impulsional, vital. Corresponde, pois, ao que se encontra abaixo da superfície e que, por isso mesmo, não pode ser visto à luz da razão, uma vez que é o que alimenta a razão, isto é, a desrazão. Sob esse aspecto, assim como os fenomenólogos, Nietzsche jamais professa algum irracionalismo de princípio. Pelo contrário, como bem nota o autor de Zaratustra: “Temos, isto sim, que olhar de frente a grande tarefa de preparar a Terra para uma vegetação da máxima e mais jubilosa fecundidade — uma tarefa da razão em prol da razão!”[17].
Vale observar que todo esse preparo telúrico, como procedimento fenomenológico, implica uma “geofilosofia”[18] no dizer de Scolari. Assim, “para encontrar o humano” – volta a comentar ele – “Zaratustra 'deve descer ali mais abaixo', na planície, onde se encontra a metrópole: ele precisa mergulhar no meio do povo e entrar em contato com a cidade, fazer a experiência com os seus habitantes e a lógica de sua existência cotidiana”[19]. Como escreve Nietzsche, “eis aqui um mais elevado, um mais profundo, um abaixo-de-nós”[20], razão pela qual “olhar de frente” consiste em “reconhecer o mais entranhado enigma ou miséria do mundo”[21].
É esse elevado, profundo, mais abaixo de nós abismo ou enigma que em Ditirambos de Dionísio canta-se os versos: “Ou como a águia, que longamente, longamente olha, hirta, nos abismos, em seus abismos... — oh, como eles se encaracolam para baixo, para dentro, em cada vez mais fundas profundezas! —”[22]. Ou, ainda:
Quem aqui quer descer, como rapidamente a profundeza o traga! — Mas tu, Zaratustra, amas ainda o abismo, fazes como o abeto? — Ele finca raízes onde o próprio penhasco treme ao olhar a profundeza —, ele hesita à beira de abismos onde tudo em volta quer precipitar-se: em meio à impaciência do cascalho selvagem, do regato a despencar pacientemente tolerante, duro, calado, solitário... [23].
Zaratustra encarna esse amor pelo abismo porque ele não renuncia em “olhar de frente”, isto é, olhar a profundeza; ele jamais se recusa em descer à planície, descer, de vez, a toda profundidade. “É preciso, pois, ter asas quando se ama o abismo”[24]; abismo de “um mundo enigma – um enigma para aves de rapina...”[25].
O que Nietzsche também não deixa de realçar é que o elemento da Quem aqui quer descer, como rapidamente a profundeza o traga! — Mas tu, Zaratustra, amas ainda o abismo, fazes como o abeto? — Ele finca raízes onde o próprio penhasco treme ao olhar a profundeza —, ele hesita à beira de abismos onde tudo em volta quer precipitar-se: em meio à impaciência do cascalho selvagem, do regato a despencar pacientemente tolerante, duro, calado, solitário...[26].
profundidade como abismo é algo que encontramos já na aurora do pensamento grego, o que faz, por exemplo, da Grécia pré-socrática um lugar de honra em suas reflexões. Trata-se, na cultura helênica, de fazer emergir o que mais de dionisíaco há nos impulsos; “o mesmo impulso que chama a arte para a vida”[27]. Afinal, quem é Dioniso? “Dioniso tem a dupla natureza de um demônio horripilante e selvagem e de um soberano brando e benevolente”[28]. Se como assegura Weber, “até os últimos momentos de vida lúcida, Nietzsche proclamou-se discípulo de Dioniso”[29], é porque o filósofo preservou sempre a noção de uma intuição do impulso; impulso esse dionisíaco, em sua mais abissal profundidade, que “ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza”[30]. De fato, é essa “Grécia mais sombria, mais subterrânea, mais afeita às pulsões originárias”[31] que Nietzsche se volta ou tem em vista obstinadamente. O que Nietzsche parece almejar é um retorno “à Natureza, na qual ainda não laborava nenhum conhecimento, na qual os ferrolhos da cultura ainda continuavam inviolados”[32]. Essa natureza como physis não domesticada, civilizada pelas Luzes do século XVIII, é o mundo bárbaro, anterior às convencionais dicotomias do Ocidente moderno; eis porque essência e aparência, sensível e inteligível, verdade e erro tornaram-se as feituras conceituais mais expressivas desse convencionalismo.
É contra esse convencionalismo padrão, posterior à Grécia arcaica, que Nietzsche aplica toda a sua crítica. Em função disso, "a doutrina cristã foi a contradoutrina em relação à dionisíaca –; descobrir de novo o Sul em si e estender sobre si um céu do Sul claro, brilhante, repleto de mistérios"[33]. É por isso que, "aqui” – indica ele – “ponho o Dionisos dos gregos: a afirmação religiosa da vida, da vida inteira, não negada ou dividida; – é típico: que o ato sexual desperte profundeza, mistério, veneração"[34]. Isso posto, não se pode ignorar que “o grego conhecia e sentia os pavores e sustos da existência”[35], “pois somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco, expressa-se o fato fundamental do instinto helênico — sua ‘vontade de vida’”[36]. O que entra em jogo aí é uma “vida que diz respeito não só à luz, mas à obscuridade”[37], descreve Nietzsche. O sintoma de nossa decadência reside no fato de que se perde justo essa “vontade” fundamental, uma vez que “o olhar pessimista enfastiado, a desconfiança diante do enigma da vida, o gélido Não do nojo da vida”[38] reflete certo estado de espírito, ou seja, manifesta “uma alma animal voltada contra si mesma, tomando partido contra si mesma, em face de algo tão novo surgindo na terra, tão inaudito, tão profundo, enigmático, pleno de contradição e de futuro”[39]. Daí sobrevém a lição de fundo da Grécia pré-socrática extraída em A Gaia Ciência: "Oh, esses gregos! Eles entendiam do viver! Para isso é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência [...]. Esses gregos eram superficiais – por profundidade!"[40]. Assim, "onde você estiver, cave bem fundo! Lá embaixo está a fonte!"[41].
É sob esse ângulo retrospectivo que a natureza como mundo irrompe à maneira de um enigma na cultura grega pré-socrática e dionisíaca. Eis porque “deveríamos respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por trás de enigmas e de coloridas incertezas”[42]. À medida que a “natureza se torna transparente para nós”[43], ela perde o seu brio trágico, enigmático. É essa marca distintiva pré-socrática da physis que faz Nietzsche martelar contra os obscurantistas, os quais “denigrem nossa imagem do mundo, obscurecendo nossa concepção da existência”[44]. Esse “obscurantismo altamente requintado”[45], ao se comprazer em seu “julgamento negador do mundo”[46] se recai num “refinamento da moral pirata”[47] que assalta, em alto mar, a profundidade do oceano, isto é, aquilo que, sob as águas mais profundas, manifesta-se como inquietante e enigmático. Isso tudo exprime o sintoma de uma moral difamante. Afinal de contas, todavia, "o que foi difamado? Aquilo que separava os homens superiores e os mais baixos, as pulsões criadoras de abismos"[48]. É preciso então acenar para além desse gesto infame, quer dizer, "não querer impugnar o caráter inquietante e enigmático do mundo!"[49]. Noutras palavras, trata-se de "desenvolver ainda mais o que é típico, cavar sempre mais fundo o abismo..."[50].
É visando a esse horizonte que Zaratustra pode afirmar que “o além do homem é o sentido da terra”[51]. Mais, exclama ele:
O homem é uma corda, atada entre o animal e o além do homem – uma corda sobre um abismo [...]. Amo aqueles que não buscam primeiramente atrás das estrelas uma razão para declinar e serem sacrificados: mas que se sacrificam à terra, para que um dia a terra venha a ser do além do homem[52].
Não há, em regime nietzschiano, condição mais dionisíaca que essa: o amor à terra, de cujo sentido é enunciado pelo além do homem. O além do homem é um amante do abismo, da profundidade; sua alma é telúrica, profundamente enraizada num solo aquém de verdades eternas. Ele é essa personagem subterrânea que Dostoiévski dará vida na célebres Memórias. Como bem nota Weber:
A noção de além não implica uma destruição do homem, mas uma destruição dos referenciais que definiram o tipo de homem que se formou na cultura ocidental. Aqui se revela sua dimensão crítica e construtiva, pois, ao mesmo tempo em que é crítica do homem religioso-metafísico, ela se mostra como construtiva de uma outra relação do homem com a natureza[53].
Daí resulta, uma vez mais, o sentido pré-socrático, de inspiração heraclitiana, em que se move essa compreensão de mundo. Em seus Fragmentos Póstumos, anota Nietzsche: “O mundo é ‘em fluxo’, como algo que vem a ser, como uma falsidade que sempre novamente se desloca, que jamais se aproxima da verdade – pois não existe nenhuma ‘verdade’”[54]. Ou como também antevê Demócrito: “na realidade nada sabemos, pois, a verdade jaz num abismo”[55]. Esse “abismo” ou “enigma do mundo” em que se assenta a verdade é o que exprime aquele caráter fluido da physis reportado por Heráclito. Se a natureza “gosta de se esconder”[56], é porque há um incessante fluxo da physis; fluxo dialético, mas profundamente abissal. Logo, esse movimento está aquém da verdade, a verdade lógica ou matemática, uma vez que “a verdade não é algo que esteja dado para ser descoberto e encontrado; é algo que tem que ser criado e que empresta seu nome a um processo”[57]. O ideal de verdade que sobrepujou o mundo tornando-o transparente à razão é um mito, uma crença refratária a todo fluxo, a todo abismo. O que, agora, se reconhece é que esse poder de transparência não passa de uma ficção: “um mundo verdadeiro não existe absolutamente” [58], porque se presume, nessa fórmula ficcional, um conceito de mundo sem lacunas, sem espanto, sem mistério. Esse mundo, certificado sob o ideal cartesiano de verdade, é o que viria ser sacramentado pelo positivismo, a título da mais cara ilusão ou ficção já inventada: o cogito. A esse modo, a moral positivista, mediante seu fanatismo lógico, torna o mundo uma fonte de engano, a forma mesma de aparência, uma pura soma de fatos. Eis a razão pela qual Nietzsche se reinsurge contra essa concepção na qual “a interpretação moral do mundo termina em negação do mundo”[59]; negação que encobre o que de mais profundo ou abissal há de mundano.
Uma vez mais, é esse mundo aparente, imbuído de fortes raízes socrático-platônicas, historicamente relegado também pelo cristianismo, que requer ser reposto criticamente. Insiste Nietzsche: é preciso “não querer negar ao mundo seu caráter inquietante e enigmático”[60]. Esse lapidar verso tem a marca de Zaratustra; esse amante da profundidade, do abismo, do enigma. Mais: ele é a expressão de um espírito juvenil. Como chega a ilustrar, de forma até hilária, Nietzsche: “a profundidade é coisa de juventude; a clareza, da velhice”[61]. Nietzsche contrasta a profundidade do abismo, a vida jovial e obscura com o princípio claro e distinto da evidência cartesiana. Essa última é tomada por uma espécie de vaidade senil, inteiramente charmosa, talvez até esclerosada do pensamento. Trata-se do racionalismo rasteiro preso à superfície que confere “autoridade somente à razão”[62]. É essa autoridade que reprimira os impulsos mais elevados, estigmatizando-os, caluniando-os e, com isso, conformando o homem a um instinto de manada, tornando, pois, “todo homem dependente e membro de um rebanho”[63]. O conhecido dito nietzschiano acerca da moral, no ocidente europeu, como “moral de animal de rebanho”[64] traduz esse grau de dependência como o seu diagnóstico mais sintomático e niilista.
Nietzsche então anuncia que, para além desse dispositivo, “atingiu-se o ponto inquietante e perigoso em que a vida maior, mais múltipla e mais abrangente vive além da velha moral”[65]. Quer dizer, vislumbra-se, agora, outro horizonte: “um mundo mais amplo, mais rico, mais estranho além da superfície, um abismo atrás de cada chão, cada razão, por baixo de toda ‘fundamentação’”[66]. Eis aí a figuração do verdadeiro “espírito livre”: é aquele que acolhe a profundidade mais abissal, coabitando com o abismo, se enredando no enigma mesmo do mundo; mundo esse não entrevisto pela moral fundamentalista. Ora, é esse enigma o único capaz de despertar o sentimento de estranheza, abaixo, bem abaixo do solo firme da razão[67].
Ao anunciar essa boa nova, por meio de Zaratustra, Nietzsche parece “azeitar”, para a contemporaneidade, e, em especial, para a Fenomenologia, o ingrediente necessário para temperar o debate de ideias. O cardápio servido é o mundo como enigma, o mundo como abismo cuja profundidade a existência trágica tem muito o que ensinar, fazendo-nos reaprender a ver o alvorecer de uma nova era, a do além do homem. Ora, é esse aspecto que permite o leitor, em primeira mão, visar a obra de Nietzsche como um pensamento assistemático, a-doutrinário, aberto e experimental que dera vazão também ao movimento, digamos, “pós-fenomenológico” com Foucault, Deleuze e Derrida.
De todo modo, o destino de uma obra trágica como essa encontra, segundo o espírito e a letra de a Phénoménologie de la Perception, outra feitura especial, a obra de arte. É sob esse prisma que podemos situar a produção pictórica de Cézanne na qual a natureza se torna, aos seus olhos, um tema recorrente, uma fonte inesgotável de pesquisa; natureza essa experienciada em sua mais abissal profundidade como mistério geológico.
CÉZANNE E O MISTÉRIO GEOLÓGICO
Cézanne é companheiro de viagem; é outro andarilho que, junto a Nietzsche, se lança nesse esforço do pensamento moderno de interrogar o enigma do mundo, isto é, de dar vazão, para além de todo convencionalismo escolar puramente superficial, uma dimensão mais profunda e, nessa extensão, trágica da natureza.
Para que, então, avistemos um quadro mais geral desse esforço, bem como a maneira como o pintor concebe o espírito de sua obra, retenhamos alguns registros seja de suas conversas com Joachim Gasquet (sem dúvida, o seu biógrafo mais autorizado), seja de correspondências com amigos. Isso nos ajudará compreender melhor em que medida Cézanne pode entrar, em cena, como um autor trágico, quer dizer, como um esteta do “subsolo” no sentido mais dostoiévskiano do termo; o que também justifica, substancialmente, o apreço que Merleau-Ponty devotará, sem maiores cerimônias, como veremos, por esse trabalho.
De saída, Cézanne põe as cartas na mesa: “a natureza” – indica ele – “está mais em profundidade que em superfície”[68]. Essa frase, repetida à exaustão, em sua biografia, se torna um argumento diretor, decisivo até, no contexto, aqui, do colóquio em que enunciamos. Uma pista aí é aberta: o que reside abaixo da superfície, na raiz, o que há realmente de profundo na natureza é, talvez, aquilo que melhor a revela, aquilo que faz com que ela vibre verdadeiramente realçando um dinamismo sui generis: o mistério. É o que perspectiva Cézanne: trata-se de dirigir-nos “ao mistério do ser, as raízes mesmas do enigma”[69]. Ora, tal ideia lapidar se torna, para esse artista, contemporâneo de Nietzsche, o Abre-te Sésamo fundamental de toda a pintura. Disso advém, por exemplo, o caráter arqueológico em que se reveste tal práxis pictórica cézanniana como uma obra de escavação, exploração.
No intuito de projetar esse sentido arqueológico de sua pintura, Cézanne confessa a Gasquet: “a paisagem se reflete, se humaniza, se pensa em mim. Eu a objetivo, a projeto, a fixo sobre a minha tela”[70] a ponto de sentir até o “odor da paisagem no quadro”[71]. O que o pintor sente, como ninguém, de maneira admirável, é certo mistério geológico, a própria indivisão primordial do senciente e do sentido, ou, se quiser, o mistério vivo, em carne e osso, “mistério que se enreda nas raízes mesmas do ser, na fonte impalpável das sensações”[72]. Merleau-Ponty, por sua vez, comenta essa descrição nos seguintes termos: “não se trata de algo manifesto mediante as sensações, mas de alguma coisa que está além, cravado à raiz, à fonte, de certa forma oculta-revelada”[73]. Cézanne é retratado, nesse momento, como uma espécie de “Heráclito da pintura”, um “obscuro artista” que se lança naquele duplo jogo da physis num só deleite dionisíaco. Mais: Cézanne é também uma ave de rapina; ele parece adotar uma perspectiva abissal, “perspectiva de pássaro” como bem metaforiza o aforisma 138 de O Andarilho e sua Sombra:
As torrentes aqui se precipitam de vários lados num abismo: seu movimento é tão impetuoso e de tal modo arrasta consigo o olhar, que as vertentes nuas ou cobertas de árvores, ao seu redor, não parecem declinar, mas fugir para baixo. A visão cria em nós uma ansiosa expectativa, como se algo hostil se escondesse por trás daquilo, ao qual tudo tivesse de escapar e do qual o precipício nos protegesse. Não há como pintar essa paisagem, a menos que se paire acima dela como um pássaro. Aqui a chamada “perspectiva de pássaro” não é um capricho de artista, mas a única possibilidade[74].
Como possibilidade única, Cézanne assume tal perspectiva. Ele adeja, paira, é a nova coruja que lança seu olhar em busca de uma presa no alvorecer da arte moderna. Ao mesmo tempo, o que Gasquet testemunha é que o pintor, desde cedo, tivera encarnado “em seu gênio de nascimento, esse sentido dramático, essa espécie de alucinação passional que realizava”[75] imprimindo, em seu experimento estético, “dissimulações (sournoiseries) trágicas”[76]. Isso o tornou um misantropo, é claro, mas é preciso esclarecer bem o sentido preciso desse “transtorno”.
Fato é que Cézanne tinha um horror peculiar: ele tinha aversão à Academia. O seu pavor ao academicismo[77], à pintura literária, se deve, sobremaneira, a certo modus operandi adotado: os acadêmicos ilustrados da arte se prendem tão somente às abstrações, ignorando, o concreto, a sensação, a percepção. Ora, “a sensação é a base de tudo”[78], observara. Numa direção oposta, acena Cézanne: se há uma lógica pictórica a ser seguida é o movimento vivo das cores, essas sensações mais primordiais. Como se vê, é esse estudo que a arte acadêmica perde de vista justamente porque não o sente e, em função disso, não aprende a ver de novo. Eis porque a cultura escolar, de então, não passava de insensata, mitológica: “O que é insano é ter uma mitologia pré-formada, ideias de objetos prontos e copiar isso ao invés do real, ter essas imaginações ao invés dessa terra”[79]. Ora, pois, “a natureza tem horror da linha reta”[80]. É, portanto, para além desse método escolar, que Cézanne aspira outro, definido por ele próprio, como “realista”: o real, a sensação, a profundidade do sentir assume, pictoricamente, uma “significação sensual, universal”[81], a tal ponto do artista se reconhecer como um autor “sensual”[82]. É nessa justa medida que ele se sente inteiramente à vontade ao exclamar com veemência: “A vida!...a vida”[83]. Gasquet assegura que só há uma teoria em Cézanne, aquela “desenvolvida e aplicada no contacto da natureza”[84]. Cézanne quer tragicamente fazer o que a escola de Belas Artes não faz: lançar-se no “abismo onde o olho se afunda, numa surda germinação”[85]. Enfim: trata-se de “descer, com a pintura, à raízes sombrias, enredadas nas coisas, subindo com as cores, florescendo-se à luz com elas; saber ver, sentir”[86]. E arremata: “Isso é um fenômeno único. Eu pinto como olhamos. Sem mais esforços. Dançando”[87].
Essa maneira toda particular com a qual Cézanne faz da sua obra um fecundo experimento projeta o alcance do seu real trabalho. É assim que, em sua “arte nascente” – assegura Gasquet – reconhecemos em Cézanne, “essa grande alma dramática”[88]. Ele vestira uma espécie de “armadura de vontade trágica”[89]. Se ele recusa o esteticismo de ocasião, da belle époque, se, cada vez mais, ele evita o trompe-l’œil e a literatura, se, ainda, aos seus olhos, “os museus são lugares odiosos”[90], é porque prefere assumir a vida clandestina mesmo, trágica, profunda, de uma obra que se mantém à margem de certo ordenamento clássico. Cézanne emplaca: “um mestre, um bom mestre, um professor parte do coração, da experiência, a mais sensível”[91]. Por isso, sua constante reserva: “nada de teorias! De obras... As teorias perdem os homens”[92]. Com toda sinceridade, prossegue em seu intento: “eu quero saber; saber para melhor sentir; sentir para melhor saber”[93].
Como vemos, os prismas cezannianos são perspectivas cósmicas, geológicas. É bem mais preferível “respirar a virgindade do mundo”[94], “essa exalação das profundidades”[95] cujas “terras vermelhas saem de um abismo”[96]. No fundo, “somos um caos iridescente”[97]. Como descreve Gasquet, se “uma seda é um tecido e um rosto de carne”[98] é porque “há um sentido do ser humano, da vida em movimento, do calor”. Pois bem, é esse “elã do mundo”[99] que Cézanne tem em vista ao dar vida aos seus quadros. Há uma espécie de “troca misteriosa que vem de sua alma que o ignora em seu olho que o recria onde ele se reconhece”[100]. Tudo se passa, comenta Merleau-Ponty, como se os “objetos da pintura moderna ‘sangrassem’, espalhassem sob nossos olhos sua substância, interrogando diretamente nosso olhar, pondo à prova o pacto de coexistência que fizemos com o mundo por todo o nosso corpo”[101].
Esse comentário ilustra bem por qual razão Cézanne admira Monet como, de todos os pintores, o mais prodigioso, um verdadeiro mestre. Vemos nos quadros deste “um outro charme, mais vago, uma espécie de misticismo rústico amplia a clareira, aprofunda a relva. Tudo se enraíza. Os perfumes da terra impregnam o ar que fica azul. A natureza entra, cada vez mais; ela atrai, sozinha, o jovem pintor, o afeta, o absorve”[102]. Quando menos se dá conta, “a terra o penetra”[103]. Nessa “ingenuidade expansiva do artista”[104], “seu trabalho o habita”[105]. É, pois, nessa medida, como retrata Gasquet, que “um teórico como Cézanne rapidamente constrói um sistema para abrigar sua sensibilidade exasperada”[106]. Assim, “tudo o que ele ganha em profundidade íntima”[107] se reveste de “seus trabalhos geológicos”[108] razão pela qual a “imensa sensibilidade do pintor vacila novamente em todas as suas pesquisas. O mistério geológico se acrescenta ao tormento misterioso de amar a terra e os elementos para eles mesmos”[109]. O que se desvela por meio desse trabalho lento e árduo é fruto de uma caminhada, tantas vezes abandonada e retomada, andança que leva Cézanne fazer a experiência de uma “razão sensível” em que “descemos até às camadas profundas, às bases mesmas de seu pensamento”[110]. Em função disso,
essa análise da matéria íntima é tão tênue, tão aguda que a psicologia incomensurável de Dostoiévski desvenda os fios da alma humana. Ela é também emotiva, também banhada, em sua austeridade, de bondade e de amor. Eis aí abaixo o que Cézanne estabelecera, o que estabelece a sua arte. A flor luminosa, o ar felpudo de suas mais belas paisagens, repousarão sobre esse árduo ofício, se enraizarão nesse obstinado labor[111].
Volta a observar Gasquet: “são esses tristes rostos que fazem Cézanne um irmão de Rembrandt e de Dostoiévski”[112]. Cézanne figura como um “terrível construtor de valores novos [...] que apoia as suas mãos chanceladas em alguma coisa de contínuo, de grande, de indestrutível”[113]. É essa “humanidade trágica, de uma angústia divina”[114], volta a descrever Gasquet, que podemos falar, junto com Sérusier, de certo “espiritualismo de Cézanne”, conforme atesta Denis:
“Ele é”, diz Sérusier, “o pintor puro. O seu estilo é um estilo de pintor, a sua poesia é a poesia de pintor. A utilidade, o conceito mesmo do objeto representado desaparecem ante o charme da forma colorida. De uma maçã de um pintor vulgar se diz: eu comeria. De uma maçã de Cézanne, dizemos: é bela! Não ousaríamos descascar, gostaríamos de copiá-lo. Eis aí o que constitui o espiritualismo de Cézanne. Eu não digo, intencionalmente, idealismo, porque a maçã ideal seria aquela que lisonjeia as mucosas, mas a maçã de Cézanne fala ao espírito pelo caminho dos olhos. “Uma coisa a se notar, acrescenta ainda Sérusier, é a ausência de sujeito. À primeira vista, o sujeito era qualquer um, às vezes pueril. Após sua evolução, o sujeito desaparece, só há um motivo”[115].
Cézanne, esse mestre das profundezas, é, a um só tempo, aquele que sabe “escutar discorrer sobre a arte ou a natureza, com dignidade, com profundidade”[116]. Ele escava “as raízes últimas da razão e do mundo, onde a vontade do homem talvez encontre a vontade das coisas, nelas se regenerando ou se absorvendo”[117]. Essa “vontade” é anterior à “representação”, essencialmente, porque é, em acepção nietzschiana, vontade de vida. Ou como prefere Gasquet: “Ao mundo da representação lhe aparece a angústia do desejo”[118].
Isso posto, a “dúvida de Cézanne” tal qual se reporta Merleau-Ponty nada mais é do que a expressão de uma experiência vivida em sentido fenomenológico ou, se quiser, um radical experimento ontológico. Cézanne não é só um pintor puro e simples. Sua obra, na verdade, transfigura uma ontologia da sensação; ela perfaz, de modo autêntico, um movimento interrogativo do enigma, do abismo mundano das sensações. É assim que Merleau-Ponty parece retirar, em parte, daí, a ideia de carnalidade. Quem ler, com a devida atenção, a biografia de Cézanne escrita por Gasquet, é facilmente levado a confirmar tal exegese! Por meio desse precioso testemunho, Cézanne não é só um pintor excêntrico, prodigioso. Ele não só sente, mas pensa, isto é, medita, interroga. Ele é um espírito inquieto; portanto, é um espírito livre no sentido mais nietzschiano da expressão. Nessa investida, o que torna ele, ao lado de Monet, um verdadeiro mestre, um mestre da pintura reside nisso: ele é um cultor não só da arte, mas alguém que quebra paradigmas, dá lá a suas “marteladas”. Cézanne, não nos enganemos, dispõe de uma vasta cultura científica e filosófica. Ele se torna também aquele que melhor nos ensina a reaprender a ver o mundo; mundo cuja “sensação está na base de tudo para um pintor”[119]. Como ele próprio admite: “Aqui, no fundo, eu creio que o pintor aprende a pensar. Sua natureza, ele aprende a ver”[120]. Disso reside o seu “quê” com toda sorte de academicismo, ou seja, com a Academia de Belas Artes, com a literatura, com todo simbolismo litúrgico, abstrato, medieval, convencional, clássico. Como antevê Nietzsche: “Em pessoas profundas, como em fontes profundas, demora bastante até que algo que nelas caiu atinja o fundo”[121]. De fato, não sabemos se Nietzsche conhecera o trabalho de Cézanne, mas parece factível que o artista francês é um desses espíritos pacientes o bastante, “demorados”. Isso pela simples razão de que o pintor revive esse enigma estético em sua obra na tarefa incessante de retomar o mundo como obra inacabada. Ele se demora muito; ele escava, com diria Nietzsche, “uma primordial arte da natureza”[122].
Agora vemos porque a pintura de Cézanne é uma arte do abismo, das profundezas. Cézanne não é um artista do “espírito das luzes” até porque, aos seus olhos, “a luz não existe, pois, para o pintor”[123], motivo pelo qual também confessara:
A natureza me fornece, nessa terra, esse extraordinário privilégio que o homem tem. Ela nos abre os olhos, como a todos os seres, para o espetáculo que é, e nos dá sentidos para gozá-lo. Ela nos provê, como a todos os seres, de um cérebro que se torna o ponto de encontro de nossas sensações [...]. O cérebro que pensa demais é uma carga excessivamente pesada para o corpo[124].
Cézanne é aquele que “gosta principalmente da cabeça selvagem”[125]. Isso o projeta como um pintor das sombras fazendo com que a sua obra assuma uma dimensão radicalmente trágica no sentido mais pré-socrático como experimento. Ora, é esse experimento, profundamente abissal, que Merleau-Ponty não tarda em conferir estatuto em seu projeto em curso de uma “reabilitação ontológica do sensível”[126] como enigma do mundo.
MERLEAU-PONTY E A PROFUNDIDADE DO MUNDO
Muito seguramente, tanto a obra de Nietzsche quanto a de Cézanne ecoam, por diferentes vias, bem como, por diferentes ritmos intensivos, certo fundo acústico da meditação de Merleau-Ponty. Para usar uma expressão cara a Paolo Scolari quando se reporta à influência de Nietzsche sobre Gabriel Marcel, podemos da mesma forma supor que a produção daqueles dois primeiros atravessa as reflexões de Merleau-Ponty como um “rio cársico”[127]! Isso, é claro, endossa, com maior robustez, a tese de um movimento fenomenológico que cada vez mais se inscreve naquele mútuo esforço do pensamento moderno.
Ora, é esse duplo fundo cársico de cariz nietzschiano/cézanniano que Merleau-Ponty retoma em dois emblemáticos textos, A Dúvida de Cézanne e O Olho e o Espírito. Inicialmente, à par de certa leitura tendenciosamente psicologista de Cézanne que o caricatura como esquizoide e antissocial julgando, pois, a sua obra pela vida, Merleau-Ponty reconstitui outro rosto do artista. Ele observa que aquele retrato falado de Cézanne escamoteia a dimensão mais profunda de seu trabalho. Ou seja:
Essas conjecturas não dão o sentido positivo da obra, não se pode concluir delas, sem mais, que a sua pintura seja um fenômeno de decadência e, como diz Nietzsche, de vida “empobrecida”, ou ainda que ela nada tenha a ensinar ao homem realizado. É provavelmente por terem dado demasiada importância à psicologia, a seu conhecimento pessoal de Cézanne, que Zola e Émile Bernard acreditaram em um fracasso. É possível que, por ocasião de seus distúrbios nervosos, Cézanne tenha concebido uma forma de arte válida para todos. Entregue a si mesmo, ele pôde olhar a natureza como só um homem sabe fazê-lo. O sentido de sua obra não pode ser determinado por sua vida[128].
Sob esse espectro jamais visto,
ninguém censura Cézanne por ter vivido escondido em L’Estaque durante a guerra de 1870, todos citam com respeito seu “é assustadora a vida”, enquanto qualquer estudante, depois de Nietzsche, repudiaria prontamente a filosofia se fosse dito que ela não nos ensina a ser grandes viventes. Como se houvesse na ocupação do pintor uma urgência que excede qualquer outra urgência. Ele está ali, forte ou fraco na vida, mas incontestavelmente soberano em sua ruminação do mundo, sem outra “técnica” senão a que seus olhos e suas mãos oferecem à força de ver, à força de pintar, obstinado em tirar deste mundo, onde soam os escândalos e as glórias da história, telas que pouco acrescentarão às cóleras e às esperanças dos homens, e ninguém murmura. Qual é, pois, essa ciência secreta que ele possui ou que ele busca? Essa dimensão segundo a qual Van Gogh quer ir “mais longe”? Esse fundamental da pintura e talvez de toda a cultura?[129].
Essas duas presenças de Nietzsche, em ambos os textos, são o bastante para mostrar o quanto de trágico Cézanne confere à sua obra, de passagem, mal compreendida, pela crítica. A recorrente admiração a esse gênero de pintura denuncia, irrevogavelmente, a verve trágico-existencial de Merleau-Ponty ao situar, para além da pintura clássica, planimétrica por definição, como a arte pode desconstruir não só valores, mas princípios, hábitos, protocolos. Merleau-Ponty reconstitui Cézanne como uma espécie de “Nietzsche” da arte moderna, assim como Van Gogh, que busca “ir mais longe” ao escavar aquela dimensão profunda da experiência. Ou ainda como o “Dostoiévski” pictórico: Cézanne é outro “homem do subsolo” que, incansavelmente, escava a profundidade do que sentimos. Zola e seus congêneres simplesmente trataram mal Cézanne e, com isso, perderam o sentido trágico, pré-humano, de seu experimento.
Por isso, os fortes lampejos nietzschianos fulgurados nas duas passagens antes citadas, por si só, revelam o autêntico Cézanne. Merleau-Ponty mostra, conforme o espírito e a letra de Nietzsche, que não é o espaço euclidiano que o artista francês ocupa ou se move, mas uma ordem de “espacialidade primordial”[130]. Cézanne busca essa natureza primordial, esse “Todo Indivisível”[131], esse “princípio bárbaro”[132] de que falava Schelling. A bem da verdade, observa Merleau-Ponty: “O pintor no trabalho nada sabe da antítese do homem e do mundo, da significação e do absurdo, do estilo e da ‘representação’: está muito ocupado em exprimir suas relações com o mundo para orgulhar-se de um estilo que nasce como que a sua revelia”[133]. É sob essa medida que o modelo planimétrico deixa de ser o primeiro plano de sua pesquisa, pois, tão logo, ao se aperceber desse limite, rejeita-o como suporte estético, já que seus estudos avançam obliquamente em direção ao “novo” e à “estranheza”. Eis, portanto, a razão pela qual Cézanne é capaz de traduzir aquele “Ser abissal que Descartes abriu e tornou a fechar em seguida”[134]. No fundo, é este mundo primordial – avista Merleau-Ponty – que Cézanne busca traduzir em seus quadros, buscando restituir a natureza em sua origem, ascendendo uma “visão que vai até as raízes, aquém da humanidade constituída”[135].
Como bem percebe Merleau-Ponty: “o artista de hoje multiplica ao redor de si enigmas e fulgurações [...] o mundo que ele nos descreve não é, em todo caso, nem acabado, nem unívoco”[136]. O mistério da visão ou da percepção exprime um valor ontológico, na medida em que há “abertura do quadro ao Ser”[137], isto é, uma transcendência ou “comunicação com o Ser pela visão”[138] tornando possível uma “ontologia da pintura”[139]. É sob esse pano de fundo que o filósofo pode então traçar linhas como essas: “A pintura é segregação do Ser onde estamos de início e não construção de ‘raios do Ser’ que daí produziria ilusão ou analogia”[140]. Quer dizer, a “pintura emerge como uma espécie de filosofia: retomada da gênese, filosofia toda em ato”[141]. Ou conforme avalia Klee, sob a pena de Grohmann: “sem expressamente almejar, o artista é filósofo [...]. Ao invés de uma imagem acabada da natureza, ele aperfeiçoa o seu quadro essencial da criação: a gênese, ele inverte o sentido dessa atividade criadora do universo, conferindo assim duração à gênese”[142].
É notável que essa visão radical que Cézanne põe a nu em seus quadros e que tanto impressiona Merleau-Ponty é uma visão em profundidade. Como entrevê Dufourcq, “a profundidade é abissal, assim que se exclui a possibilidade de uma dialética regulada e conduzindo em um determinado número de etapas a uma síntese final absoluta. Devemos superar o abismo na aparência e no percurso das aparências, sem fim”[143]. É nessa medida que Merleau-Ponty assume inteiramente o imperativo nietzschiano: “Não busque tudo ‘para ver nu’ para tudo ‘para saber’ – Ser superficial por profundidade (Apolo e Dioniso)”[144]. Como em Nietzsche, Merleau-Ponty quer pensar além do bem e do mal, sem, no entanto, separar Apolo e Dioniso. É preciso, enfim, transcender dicotomias, disjunções; caso contrário, perde-se de vista o Todo, isto é, o sentido abissal do acontecimento, da vida, do mundo.
A ideia de profundidade abissal e, com ela, o sentido último do enigma do mundo recebe plena audiência nos escritos póstumos de Le Visible et l’Invisible. Nietzsche é, a propósito, diretamente referido, em duas ocasiões oportunas. A primeira é a menção ao §56 de Além do Bem e do Mal, por meio da fórmula: “circulus vitiosus deus (deus como círculo vicioso)”[145]. Ao se reportar a ela, Merleau-Ponty projeta a tarefa de uma nouvelle ontologie do sensível a partir de um “retorno a Σίγη, o abismo”[146]. Não há dúvida que aí ele tenha, em mente, os célebres versos de Claudel: “o tempo é o meio oferecido a tudo quanto houver de ser a fim de deixar de ser. É o Convite a morrer, [...] para consumar a palavra de adoração no ouvido de Sigé, o Abismo”[147]. Ao mesmo tempo, o filósofo retoma a fórmula nietzschiana para indicar que as raízes mesmas das sensações escavadas por Cézanne põem-nos em contato com esse “Princípio abissal de todo ser”[148] e que, por isso mesmo, faz-se mister sair de certo “círculo vicioso” por meio do qual a tradição encontrara, como refúgio último, a figura de Deus. Da mesma forma, esse “retorno ao Abismo” deve se resguardar de qualquer “hesitação, má fé ou má dialética”[149].
A segunda ocasião é uma nota datada de maio de 1960. Nela, Merleau-Ponty retoma o argumento nietzschiano segundo o qual “as grandes ideias nascem sem ruído”[150]. O contexto da passagem se reporta à dialética do visível e do invisível em que um é a contrapartida secreta do outro: “todo visível comporta um fundo que não é visível que desliza sob o olhar ou é varrido por ele; nasce em silêncio sob o olhar, [...] entrando em cena lateralmente, isto é, sem ‘ruído’”[151]. Ora, tudo se passa como se Nietzsche tivesse formulado uma espécie de “fenomenologia do invisível”, do inaudível, do silêncio. Há uma experiência de pensamento mais radical, abaixo, de qualquer “ruído” por mais estrondoso que seja. Há uma sombra sem a qual não haveria luz, a luz fulgurante da razão. Isso, indubitavelmente, vai de encontro com outro trecho em Notes de Cours de 1959, no qual Merleau-Ponty se volta justo à descoberta do “homem do subsolo”, e, subsequentemente, em 1960, ao lembrar, com Nietzsche, que os que não podem ser acessíveis a nenhuma intuição, são inseparáveis das imagens, e que, portanto, as máscaras são "abismos"[152].
Enfim, tais menções, por mais esparsas que sejam, atestam, inequivocamente, o tamanho apreço de Merleau-Ponty ao pensamento de abismo; experiência que Cézanne dá vazão em suas telas numa espécie de visão das profundezas. Cézanne celebra, ao lado do pensador de Zaratustra, a vida. A dignidade ontológica do sensível é coextensiva à promoção nietzschiana de uma reabilitação ontológica da vida. Trata-se de um ideário mutuamente associável no sentido de que, como bem mostra Merleau-Ponty, “a filosofia é rebelde ao positivismo da vida [...]. Os filósofos devem tomar lugar na vida, tratar as coisas da vida”[153]. Isso pela simples razão de que há um “agenciamento da vida”[154], há uma espécie de “erosão misteriosa que rói o real, o sólido, o ato”[155]. É sob esse olhar, a título de exemplo, que o trabalho de Cézanne torna-se admiravelmente exemplar:
Há todo um outro setor, que é justamente o setor da vida humana e de todos os homens e não unicamente do cientista ou do filósofo. É o setor mesmo que visa a pintura; é o setor próprio que visa a arte ou a literatura e aqui eu ponho o filósofo desse lado e não do lado do cientista[156].
Ao trazer o filósofo para mais perto do “artista” do que do “cientista”, Merleau-Ponty quer fenomenologicamente assinalar uma diferença de princípio entre esses dois gestos. O problema do cientista é o seu desapego à Terra, ao mundo; algo do qual o artista jamais permanece impermeável. Como bem lembra Nietzsche, trata-se de trazer “a virtude extraviada de volta para a terra — sim, de volta ao corpo e à vida: para que dê à terra seu sentido — um sentido humano!”[157]. Ora, é esse voto de fidelidade à Terra que Husserl também punha na ordem do dia, subscreve Merleau-Ponty:
Husserl trata de seres que não são ainda objetos. Ele descreve aquilo que ele chama o universo da Terra, do contato primordial, o solo da experiência. Não a Terra como corpo físico (Körper), mas a Terra antes do trabalho de homogeneização. A terra tem sido depois convertida em coisa e em objeto. Na experiência pré-copernicana, ela é a cepa a partir da qual se engendram os objetos. Na experiência pré-científica, não há totalmente a terra, nem terra em movimento. A imobilidade está manifesta. Esta, contudo, não é, tampouco, repouso. A terra originária não está nem em repouso, nem em movimento; ela está aquém do repouso e do movimento segundo um tipo de ser que compreende todas as possibilidades ulteriores da experiência. [...]. A Terra é nossa cepa, nossa morada originária (Urheimat). Ela é a raiz de nossa espacialidade, a pátria comum, sede de uma história primordial (Urhistorie), de uma inserção originária. Husserl a chama de arqué originária[158].
Assim, se, para a tradição cartesiana, a Terra se localiza como um corpo entre outros, para a percepção originária, ela é indefinível em termos de corpo – ela é, fundamentalmente, o solo de nossa experiência. A Terra é nossa estirpe, nossa pátria primeira, de modo que “dela não se pode dizer que é finita ou infinita, não é um objeto entre os objetos, mas a matriz em que se engendram os objetos”[159]. A Terra aí descoberta não constitui uma simples realidade física, situada apenas entre os demais planetas. Como avista Hegel, trata-se da “terra” compreendida “não como o centro físico do mundo, mas como seu centro metafísico”[160]. No fundo, é esse o caráter pré-socrático que contagia não somente Nietzsche, Cézanne, mas Husserl[161]. A consciência é, agora, a “‘alma de Heráclito’ e o Ser, que está antes em torno que diante dela, é um Ser onírico, por definição, oculto. Husserl disse algumas vezes: um ‘pré-ser’”[162].
Esse é o espírito fenomenológico, por excelência, prefigurado pela filosofia de Nietzsche, retratado pela obra de Cézanne, perseguido pelo “último” Husserl e posto em curso por Merleau-Ponty. Nessa nova cosmovisão, interpela Zeifa, “o que pode haver de comum entre dois pensadores como Nietzsche e Merleau-Ponty, e que é, ao mesmo tempo, o essencial?”[163]. “Pode muito bem ser, pois, que uma certa ‘fidelidade à Terra’, um certo ‘retorno à vida’ e uma estranha ‘primazia’ do corpo sobre o espírito sejam, para eles, mais decisivos”[164]. O que Nietzsche, Cézanne e Merleau-Ponty, à maneira de Husserl, escavam, em substância, é esse enigma abissal do mundo; mundo esse jamais extraterreste, sem peso e sem gravidade. Trata-se de um mundo enraizado, profundamente arcaico, telúrico como subsolo da razão. Como volta a examinar Zeifa: “Nietzsche substituirá o espírito no corpo, em sua “existência” terrestre, para nos mostrar que existe algo como um enigma que merece toda a nossa atenção”[165]. Ora, esse enigma, digno de atenção, é o da profundidade abissal, é o do mistério do mundo como obra inacabada.
CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, a aproximação aqui estabelecida, sobretudo, entre três autores numa espécie de aliança à distância abre, em sentido fenomenológico, um terreno, ao nosso ver, fértil de interlocução. A ideia de uma profundidade abissal primordialmente escavada no interior do mundo como enigma torna-se um solo comum no qual jamais deixaram de pisar Nietzsche, Cézanne e a Fenomenologia. Se, por uma parte, entre esses referenciais há matizes muito próprias, por outra, há conexões profundas, o que nos leva, portanto, a acompanhar a pergunta posta por Alexander Francis Trudzik, em sua tese, Can we read Nietzsche as a proto-phenomenologist? (2016).
Merleau-Ponty, como vimos, já responde a essa questão visionária ao mostrar que a Fenomenologia se torna uma tradição ou um movimento graças a múltiplos esforços, ou seja, ela se põe a caminho, há um bom tempo, sob as mãos de diletos discípulos espalhados em toda parte. É partindo, pois, dessa seta aberta que situamos Nietzsche e Cézanne como figuras precursoras, como divisores de águas, águas cársicas, pela qual o movimento fenomenológico se desdobraria indefinidamente por tantos atalhos, não raras vezes, díspares. Ao revisitar, ambos os autores, Merleau-Ponty também se vê como tributário, espiritualmente herdeiro. Ele encarna não só o espírito genuinamente arqueológico do Husserl tardio e sua meditação infinita quanto a um retorno à Terra originária, mas revive, intensamente, a trágica e catártica aura nietzschiana-cezanniana que nos lança às profundezas do mundo, da vida. Merleau-Ponty mostra que a Fenomenologia não foge ao Abismo. Ela realiza aquilo que Nietzsche e Cézanne sempre se devotaram: a fidelidade à Terra, a interrogação do espanto e do assombro que tanto marcara a cultura grega, encontrando, pois, no experimento pré-socrático um primeiro ensaio inestimável.
Daí provém o sentido e alcance do projeto de regresso à “Natureza primordial” como “logos do mundo estético”[166] que Merleau-Ponty confere viva audiência em seus cursos no Collège de France sobre a natureza. É ali também que ele encontra outros “discípulos” não tão distantes de Nietzsche e Cézanne; precursores que se lançaram no mesmo abismo, avistaram o mesmo enigma, e, nessa extensão, brindaram dionisicamente a vida.
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Contribuições de autoria
1 – Claudinei Aparecido de Freitas da Silva:
Contribuição: Único autor
[1] Do ponto de vista fenomenológico, são várias as temáticas que podem entrecruzar as obras de Nietzsche e de Merleau-Ponty. Uma delas é a questão do perspectivismo focada pelo artigo de Schenck (1985). Outra é o problema da percepção entrevisto por Evans (1998). Há o tema do corpo trabalhado por Pfeiffer (2008). Já, por sua vez, Chouraqui (2014) aborda a ideia de verdade. Por fim, o trabalho de Zeifa (2013) retrata o sentido da terra. Ora, a nossa atenção, aqui, se voltará mais para uma retomada e um aprofundamento justo desse último tema, quer dizer, o foco consiste em interrogar o estatuto fenomenológico-ontológico do mundo como Terra originária, algo que, ao nosso ver, o texto de Zeifa deixa a desejar, não se debruçando, a contento, seja em relação a Merleau-Ponty, seja, sobretudo, a Nietzsche.
[2] MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, ii.
[3] SILVA, Merleau-Ponty, no coração da práxis, 18-42.
[4] MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, xvi.
[5] MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, xi-xii.
[6] MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, xv-xvi.
[7] SILVA, Problema ou mistério?, 188-205.
[8] MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, 248.
[9] MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, 384.
[10] MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, xvi.
[11] NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, 305.
[12] Consoante a edição de Colli e Montinari.
[13] NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, 304.
[14] NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, 306.
[15] NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, 308.
[16] NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, 307.
[17] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 250.
[18] SCOLARI, Nietzsche fenomenologo del quotidiano, 165.
[19] SCOLARI, Nietzsche fenomenologo del quotidiano, 170.
[20] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano I, 14.
[21] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano I, 26.
[22] NIETZSCHE, O Anticristo, 87.
[23] NIETZSCHE, O Anticristo, 105.
[24] NIETZSCHE, O Anticristo, 107.
[25] NIETZSCHE, O Anticristo, 109.
[26] NIETZSCHE, O Anticristo, 105.
[27] NIETZSCHE, O nascimento da tragédia no espírito da música, 7.
[28] NIETZSCHE, O nascimento da tragédia no espírito da música, 10.
[29] WEBER, Formação (Bildung), educação e experimentação em Nietzsche, 87.
[30] NIETZSCHE, O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo, 30.
[31] WEBER, Formação (Bildung), educação e experimentação em Nietzsche, 109.
[32] NIETZSCHE, O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo, 57.
[33] NIETZSCHE, A vontade de poder, 504.
[34] NIETZSCHE, A vontade de poder, 504.
[35] NIETZSCHE, O nascimento da tragédia no espírito da música, 7.
[36] NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 105.
[37] NIETZSCHE, Segunda consideração intempestiva, 9.
[38] NIETZSCHE, Genealogia da moral, 56.
[39] NIETZSCHE, Genealogia da moral, 74.
[40] NIETZSCHE, A gaia ciência, 15.
[41] NIETZSCHE, A gaia ciência, 17.
[42] NIETZSCHE, A gaia ciência, 15.
[43] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 265.
[44] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 26.
[45] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 27.
[46] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 87.
[47] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 177.
[48] NIETZSCHE, A vontade de poder, 41.
[49] NIETZSCHE, A vontade de poder, 312.
[50] NIETZSCHE, A vontade de poder, 445.
[51] NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, 14.
[52] NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, 16.
[53] WEBER, Formação (Bildung), educação e experimentação em Nietzsche, 238.
[54] NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 14.
[55] DEMÓCRITO, Fragmentos, 330.
[56] HERÁCLITO, Fragmentos, 91.
[57] NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 20.
[58] NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 18.
[59] NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 17.
[60] NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 17.
[61] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 124.
[62] NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 80.
[63] NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 97.
[64] NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 89.
[65] NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 161.
[66] NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 175; grifo nosso.
[67] Aqui, a título de breve registro, convêm assinalar algo bem observado pela crítica acerca da própria compreensão da filosofia de Nietzsche: há uma oscilação na concepção nietzschiana de mundo entre os modelos da superfície-profundidade e o da mera aparição do mundo. Assim, se nos primeiros escritos, o filósofo é pródigo em pensar o mundo a partir de uma dinâmica entre dois planos, após Zaratustra, parece evidente que a compreensão dinâmica permanece, mas ao custo do abandono da própria ideia de fundo-superfície.
[68] GASQUET, Cézanne, 129; 140; 147; 151; grifo nosso.
[69] GASQUET, Cézanne, 153.
[70] GASQUET, Cézanne, 132.
[71] GASQUET, Cézanne, 81.
[72] GASQUET, Cézanne, 134.
[73] MERLEAU-PONTY, Notes de cours (1959-1961), 167.
[74] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 228.
[75] GASQUET, Cézanne, 20.
[76] GASQUET, Cézanne, 21.
[77] “Basta ter senso de arte – e esse senso é, sem dúvida, o horror do burguês. Portanto, os institutos, as bolsas e as honras só podem ser feitos para os cretinos, os farsantes e os patifes. Não seja crítico de arte, faça pintura. Essa é a salvação” (CÉZANNE, Correspondência, 248).
[78] GASQUET, Cézanne, 151.
[79] GASQUET, Cézanne, 155.
[80] GASQUET, Cézanne, 151.
[81] GASQUET, Cézanne, 172.
[82] GASQUET, Cézanne, 163.
[83] GASQUET, Cézanne, 162.
[84] GASQUET, Cézanne, 171.
[85] GASQUET, Cézanne, 166.
[86] GASQUET, Cézanne, 166.
[87] GASQUET, Cézanne, 166.
[88] GASQUET, Cézanne, 32.
[89] GASQUET, Cézanne, 39.
[90] GASQUET, Cézanne, 206.
[91] GASQUET, Cézanne, 113.
[92] GASQUET, Cézanne, 132.
[93] GASQUET, Cézanne, 140.
[94] GASQUET, Cézanne, 136
[95] GASQUET, Cézanne, 137.
[96] GASQUET, Cézanne, 136.
[97] GASQUET, Cézanne, 136.
[98] GASQUET, Cézanne, 179.
[99] GASQUET, Cézanne, 184.
[100] GASQUET, Cézanne, 194-195.
[101] MERLEAU-PONTY, La prose du monde, 211.
[102] GASQUET, Cézanne, 51.
[103] GASQUET, Cézanne, 81.
[104] GASQUET, Cézanne, 58.
[105] GASQUET, Cézanne, 51.
[106] GASQUET, Cézanne, 62.
[107] GASQUET, Cézanne, 62.
[108] GASQUET, Cézanne, 82.
[109] GASQUET, Cézanne, 82.
[110] GASQUET, Cézanne, 81.
[111] GASQUET, Cézanne, 81.
[112] GASQUET, Cézanne, 111.
[113] GASQUET, Cézanne, 119.
[114] GASQUET, Cézanne, 89.
[115] DENIS, Théories, 1890-1910, 244.
[116] GASQUET, Cézanne, 98.
[117] GASQUET, Cézanne, 101.
[118] GASQUET, Cézanne, 101.
[119] GASQUET, Cézanne, 171.
[120] GASQUET, Cézanne, 171.
[121] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 305.
[122] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano II, 69.
[123] GASQUET, Cézanne, 205.
[124] CÉZANNE, Correspondência, 197.
[125] CÉZANNE, Correspondência, 6.
[126] MERLEAU-PONTY, Signes, 210.
[127] SCOLARI, Marcel e Nietzsche: existência e morte de Deus, 475.
[128] MERLEAU-PONTY, Sens et non-sens, 15.
[129] MERLEAU-PONTY, L’œil et l’esprit, 14-15.
[130] MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, 475.
[131] SCHELLING, Ideias para uma filosofia da natureza, 89.
[132] SCHELLING, Les âges du monde, 187.
[133] MERLEAU-PONTY, Signes, 67.
[134] MERLEAU-PONTY, L’œil et l’esprit, 58.
[135] MERLEAU-PONTY, Sens et non-sens, 22.
[136] MERLEAU-PONTY, Causeries, 64.
[137] MERLEAU-PONTY, Notes de cours (1959-1961), 179.
[138] MERLEAU-PONTY, Notes de cours (1959-1961), 180.
[139] MERLEAU-PONTY, Notes de cours (1959-1961), 182.
[140] MERLEAU-PONTY, Notes de cours (1959-1961), 169.
[141] MERLEAU-PONTY, Notes de cours (1959-1961), 58.
[142] GROHMANN, Paul Klee, 182.
[143] DUFOURCQ, Nietzsche et Merleau-Ponty, 543.
[144] MERLEAU-PONTY, Notes de cours (1959-1961), 278.
[145] NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 54.
[146] MERLEAU-PONTY, Le visible et l’invisible, 233.
[147] CLAUDEL, Art poétique, 57.
[148] DUFOURCQ, Nietzsche et Merleau-Ponty, 545.
[149] MERLEAU-PONTY, Le visible et l’invisible, 233.
[150] MERLEAU-PONTY, Le visible et l’invisible, 300.
[151] MERLEAU-PONTY, Le visible et l’invisible, 300.
[152] MERLEAU-PONTY, Notes de cours (1959-1961), 277.
[153] MERLEAU-PONTY, Entretiens avec Georges Charbonnier et autres dialogues, 79.
[154] MERLEAU-PONTY, Entretiens avec Georges Charbonnier et autres dialogues, 336. Ver também: SILVA, Merleau-Ponty e o fenômeno da vida: registros concêntricos, 99-120.
[155] MERLEAU-PONTY, Entretiens avec Georges Charbonnier et autres dialogues, 143.
[156] MERLEAU-PONTY, Entretiens avec Georges Charbonnier et autres dialogues, 167.
[157] NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, 74.
[157] MERLEAU-PONTY, Parcours deux (1951-1961), 227; 230.
[157] MERLEAU-PONTY, La nature, 110.
[157] MERLEAU-PONTY, Le primat de la perception et ses conséquences philosophiques, 92.
[157] HUSSERL, La terre ne se meut pas.
[157] MERLEAU-PONTY, Parcours deux (1951-1961), 280-281.
[157] ZEIFA, Nietzsche and Merleau-Ponty, 256.
[157] ZEIFA, Nietzsche and Merleau-Ponty, 256.
[157] ZEIFA, Nietzsche and Merleau-Ponty, 259.
[157] SILVA, A natureza primordial: Merleau-Ponty e o logos do mundo estético.