Submissão: 25/08/2020 Aprovação: 25/08/2020 Publicação: 28/08/2020
Dossiê Pulsões de vida, pulsões de morte
Apresentação
Foreword
Ana Carolina Soliva Soria
Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP. Bolsista Produtividade em Pesquisa pelo CNPq
Eduardo Ribeiro da Fonseca
Professor e Pesquisador em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR
O presente dossiê foi motivado pela comemoração neste ano de 2020 do centenário de Além do princípio de prazer. Nele, apresenta-se o que se convencionou chamar de segundo dualismo pulsional. Embrenhar-se por esse texto e construir a partir de seus elementos uma leitura coerente sobre as pulsões de vida e de morte não é tarefa fácil. Por vezes, essa obra foi tomada como confusa, cheia de pontos em aberto, e cuja argumentação se guia por um vaivém vertiginoso que parece levar a conclusões incertas. Pontos aparentemente sem relações entre si são colocados lado a lado: os sonhos dos neuróticos traumáticos, alguns aspectos da brincadeira infantil e da imitação teatral, as repetições de eventos dolorosos da vida do enfermo na transferência em análise, as compulsões de destino. Mesmo que tenham sido tratados em outras obras de Freud, neste texto, ganham um tratamento que permite um redirecionamento da teoria psicanalítica.
Os fenômenos da repetição, manifestos nas situações analisadas por Freud na referida obra, estavam até a sua publicação a serviço do princípio de prazer. Em 1920, Freud, contudo, parece reposicionar os elementos que compõem o seu argumento de modo a ressaltar alguns aspectos ainda não explorados. A esse respeito, escreve Monzani:
Em outros termos, a estratégia de Freud parece ser a de que o argumento singular, por si só, nada prova, só adquirindo valor quando se insere numa série. É a série, enquanto tal, que tem valor probatório. Em si mesma, as neuroses traumáticas e suas consequências nada provam. Nem as brincadeiras e os jogos infantis. Nem essas estranhas características do neurótico, que, no processo de análise, insiste em, no lugar de rememorar, repetir situações. Nem as pessoas acometidas pela neurose do destino, se consideradas isoladamente, provam coisa alguma. Nenhum desses fatos tomados isoladamente, leva a ponto algum. Mas a relação, ou melhor, seu arranjo, não deixa de ser ilustrativo[1].
Tomar a argumentação em seus elementos pontuais parece não nos permitir avançar na leitura da obra. É preciso olhá-los em conjunto e encontrar o que neles se comunica. Semelhante às fotografias mistas de Galton, às quais Freud faz menção em A interpretação dos sonhos, em que se tomava a imagem dos rostos de pessoas de uma mesma família em uma única placa para determinar o que neles haveria de parecido[2], o psicanalista expõe situações que parecem descender de uma mesma raiz e traz para primeiro plano o que há de comum entre elas, a saber: “em vista de tais observações, [...] somos encorajados a admitir que na vida anímica há efetivamente uma compulsão à repetição, que se põe para além do princípio do prazer”[3].
Ora, a psicanálise teve de se confrontar desde o seu início com o fenômeno da repetição. Porém, se a repetição é fato conhecido para o psicanalista, o que agora se apresenta como novidade é a possibilidade de repetir o desprazeroso. O texto não se refere à repetição de conteúdos que podem ser qualificados como desprazer de percepção, isto é, conteúdos reprimidos que impelem a uma satisfação prazerosa para o inconsciente e desprazerosa para a consciência; refere-se, antes, a algo anterior e mais fundamental, que escapa à dinâmica da realização do desejo. Baseado em considerações especulativas, estende a compulsão à repetição a todo ser vivo, como um caráter das pulsões em geral, qual seja: o de tender à restauração de um estado anterior, livre de excitações, ou ainda, de retorno ao inanimado. Estas pulsões de morte, como afirmamos no inicio desta apresentação, inscrevem-se em um dualismo, posto que se contrapõem às pulsões de vida, as quais impelem a constituição de ligações e de unidades.
A gama de temas analisados por Freud em suas obras não é pequena: dos sonhos aos sintomas; da psicologia do indivíduo à da cultura; da fobia infantil à transferência em análise. Nota-se que nenhum deles pôde apontar, antes de 1920, para uma tendência que estivesse para além do princípio de prazer. As pulsões de autoconservação e sexuais costuravam-se de maneira orgânica à dinâmica do prazer e trouxeram concepções frutíferas do ponto de vista clínico e teórico. Apresentar certos eventos tendo em vista a compulsão à repetição como tendência anterior a esse princípio e, a partir dela, redefinir a natureza das pulsões significou uma ruptura com a teoria pensada até então? Freud abandonou o terreno da objetividade científica para adentrar em especulações filosóficas, de resultados metafísicos? Ou seria a obra um desdobramento de reflexões anteriores, marcada por uma continuidade lógica? Teria Freud retornado às origens de seu pensamento e reelaborado hipóteses já presentes no Projeto, de 1895? Muitas foram as interpretações dadas a essas questões e um debate profícuo foi travado não apenas no campo da psicanálise, mas também no da filosofia, sociologia literatura e outros. Sem pretender apresentar uma resposta definitiva a essas questões, o presente dossiê traz uma amostra da rica discussão que se travou e que ainda inquieta os pesquisadores que se dedicam ao estudo das concepções de pulsões de vida e de morte.
De fato, os textos do presente dossiê evidenciam a riqueza conceitual e a complexa rede de influências e apoios utilizados por Freud na composição de seus textos ligados ao segundo dualismo pulsional, especialmente Além do princípio de Prazer, que inaugura as reflexões freudianas sobre a morte desde uma perspectiva pulsional. O texto de 1920, que completa 100 anos neste ano, precisa ser entendido a partir da própria estrutura da obra em questão e dos recursos necessitados pelo seu autor para refletir especialmente sobre o problema da repetição e de seu significado, que abre horizonte para a absoluta falta de sentido de nossa existência, mas também para a destrutividade que está nesse além, jenseits, que pode ser tomado como um tempo indefinido, fora do domínio das concepções temporais e suscitando uma reflexão sobre a circularidade da existência em torno de um ponto vazio a partir do qual as pulsões pulsam.
FREUD, S. Die Traumdeutung. In: Studienausgabe. Bd. II. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1972.
FREUD, S. Jenseits des Lustprinzips. In: Studienausgabe. Bd. III. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1975.
MONZANI, L. R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.