DOI

Submissão: 21/06/2020 Aprovação: 27/07/2020 Publicação: 28/08/2020

 

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Dossiê Pulsões de vida, pulsões de morte

 

Metchnikoff e o instinto de morte

 

Metchnikoff and the death instinct

 

Georgina Faneco Maniakas

Docente de Filosofia na Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP

gfmaniakas@ufscar.br

 

Resumo: Embora a ideia de que os processos orgânicos se equilibrassem entre dois processos opostos, um construtivo e um destrutivo, fosse lugar-comum entre as especulações biológicas do século XIX, a semelhança entre a proposta de um instinto de morte, introduzida por Élie Metchnikoff em sua obra de 1903, Etudes sur la Nature Humaine, e a pulsão de morte, proposta por Freud em 1920, justifica não somente essa breve exposição sobre algumas das reflexões de Metchnikoff, como traz novamente à cena a ideia – detectada por meio do mecanismo da apoptose - de que forças de morte atuam na própria constituição da matéria orgânica.

Palavras-chave: Metchnikoff; Instinto de Morte; Freud; Sistema Imunológico; Apoptose

 

Abstract: Although the idea that organic processes were balanced between two opposing processes, a constructive and a destructive one, was commonplace among biological speculations in the 19th century, the similarity between the proposal for a death instinct, introduced by Élie Metchnikoff in his 1903 work, Etudes sur la Nature Humaine, and the death drive, proposed by Freud in 1920, not only justifies this brief presentation of some of Metchnikoff's reflections, but also brings back to the scene the idea - detected through the mechanism of apoptosis - that death forces act in the very constitution of organic matter.

Keywords: Metchnikoff; Death Instinct; Freud; Immune System; Apoptosis

 

 

Apesar de não existir qualquer menção ao trabalho do embriologista russo Élie Metchnikoff em Além do Princípio do Prazer (1920), ao acompanharmos a incursão de Freud pelos domínios da pulsão de morte - um território onde à história individual se funde a história da espécie, onde se articulam ontogênese e filogênese – observamos uma interessante semelhança com o ensaio em que Metchnikoff expõe sua hipótese sobre um instinto de morte, Etudes sur la Nature Humaine (1903)[1]. Até onde sabemos, Freud entrou em contato com as ideias de Metchnikoff apenas de forma indireta, por meio da apresentação ao Círculo Psicanalítico de Viena do artigo de Sabina Spielrein, A destruição como origem da criação, em 29 de novembro de 1911.

Num verdadeiro processo de gestação, Élie Metchnikoff, ele próprio, colocou o problema da morte como ponto central de suas indagações durante certo período de sua vida, após duas tentativas frustradas de suicídio. O jogo entre duas forças – vida e morte, como fenômenos do mundo natural, intermediou suas descobertas e postulações teóricas. A descoberta do mecanismo da fagocitose, uma das primeiras descrições de um sistema imunológico, e a constatação de que sem a morte – entendida como necessidade biológica - não haveria possibilidade de vida, poderia ter servido de inspiração para Freud chegar ao conceito de pulsão de morte. Mas não somente. As posições de ambos os autores diante da relação entre morte, religião e ciência são muito semelhantes.

Para Metchnikoff (Etudes sur la Nature Humaine, capítulos VII e VIII), o medo da morte é o único sustentáculo de todas as religiões e a base de muitos sistemas filosóficos; porém, um dia, a ciência será a única fé necessária à humanidade. Para Freud, como sabemos, não há espaço para nenhuma pulsão dirigida a um suposto crescimento espiritual. O homem parece progredir durante o seu desenvolvimento, mas somente porque o desenvolvimento deve repetir a sequência evolutiva da espécie, sequência essa originalmente frustrante e imposta ao organismo por circunstâncias externas. Desse ponto de vista, o além e o antes se equivalem, e ambos se resumem à morte.

A imortalidade, para Metchnikoff, está intimamente ligada à reprodução, e só é possível ao nível celular. No corpo humano, Metchnikoff identifica os elementos imortais entre o óvulo e o espermatozoide. A essas células atribui propriedades que distingue como qualidades psíquicas. Compara-as aos protozoários, constituídos por uma única célula, cuja sensibilidade é pronunciada (encolhem suas presas, distinguem entre microrganismos vivos e microrganismos mortos), e chama essa sensibilidade de psíquica. Desse modo, os animais inferiores, dotados de imortalidade do corpo graças a reprodução sucessiva por divisões repetidas, possuem uma “alma” imortal primitiva. Metchnikoff compara a sensibilidade das células sexuais humanas àquela dos organismos inferiores, e conclui que a imortalidade, tão decantada pelas religiões, só pode ser encontrada no nível celular entre as células sexuais, as verdadeiras portadoras da alma imortal. A união do óvulo e do espermatozoide não somente dá nascimento a um novo corpo, como também transmite todo um conjunto de características psíquicas à nova geração, a “alma celular”[2].

Desse modo, tanto o homem, como os demais animais superiores, contém, em seu organismo, elementos que são dotados, de fato, de uma alma imortal, o que não implica, de forma alguma, na imortalidade da alma consciente. O fato de não apreciarmos a grande quantidade de células providas de almas celulares deve-se ao fato de não termos nenhuma sensação que demonstre essa especificidade. Como exemplo, o autor cita a luta permanente que se trava em nosso sistema imunológico. Os fagócitos, por exemplo, responsáveis por eliminar os invasores no nível celular, são elementos tão sensíveis e móveis quanto os protozoários; não seria lícito pensar neles como dotados de uma alma celular?  Conjunto de características psíquicas transmitidas a nova geração, por meio da união do óvulo com o espermatozoide.

Se o instinto de vida e o instinto de morte estão presentes no nível celular, por que o instinto de morte é de tão difícil detecção no nível consciente?

Ao examinarmos o capítulo XI de Etudes sur la Nature Humaine onde Metchnikoff propõe a existência do instinto de morte, em paralelo ao capítulo VI, onde discorre sobre o instinto de auto-conservação, identificamos, como eixo de sua reflexão o questionamento sobre a existência de um instinto de morte natural no homem.

O autor baseia sua argumentação em experiências realizadas por ele e por outros (como August Weismann), na história evolutiva dos seres vivos, na obra literária de autores e em informações colhidas por meio de pessoas próximas, que descrevem situações-limite, como guerra, situações de desamparo, ou o ápice da velhice.

Segundo Metchnikoff, a vida individual é dotada de um instinto de conservação, desde os organismos menos complexos até os mais complexos da escala evolutiva. O autor observa, no ser humano, a presença do instinto de conservação desde a infância, e compara as impressões de Tolstoy da guerra de Sébastopol com a vida normal em tempos de paz, por meio da qual identifica flutuações do instinto de conservação, de acordo com a idade e com as condições às quais os seres humanos estão sujeitos.

Desde os organismos inferiores, é possível constatar toda espécie de disposições no sentido de garantir a conservação individual. Mesmo os seres mais inferiores, são protegidos por mecanismos resistentes às influências nocivas, capazes de destruí-los. São particularidades, cuja única razão de existir é a manutenção da vida individual. Entre os seres inferiores, a conservação individual se obtém sem a participação de atos psíquicos, pois numerosos instintos asseguram sua defesa. Assim é que muitos insetos, para escapar de inimigos pouco inteligentes, se imobilizam, fingindo-se de mortos. O medo da morte configura-se, assim, como uma manifestação instintiva.

Já, entre alguns animais de categorias mais evoluídas, como os mamíferos, existe uma ignorância profunda em relação à morte. Os ratos, por exemplo, permanecem ao lado de seus congêneres mortos sem perceber o seu estado; por isso, é comum contraírem a mesma doença e morrerem pela mesma causa. O mesmo não acontece com os cavalos, que demonstram um movimento instintivo ao abrir caminho entre os cadáveres de seus congêneres, tomados de uma inquietação que os leva a fugir. Também é observável, nos matadouros, mamíferos que apresentam sentimento de pânico e angústia diante da morte de seus semelhantes. Apesar desses exemplos, a noção da morte como destino inevitável de todo ser vivo, é uma aquisição particular da espécie humana. Metchnikoff atribui às reflexões sobre a consciência da morte a responsabilidade, em última instância, pelo desenvolvimento de religiões, como o budismo, de filosofias, como a de Schopenhauer, de obras literárias célebres, como as de Zola, Flaubert, Tolstoy.

A angústia humana diante da morte é exemplificada, pelo autor, através de uma citação de Tolstoy:

A verdade é que a vida é um non-sens. Eu havia vivido, trabalhado, progredido, e eu havia chegado a um abismo, e não havia nada diante de mim exceto o desaparecimento. Entretanto, eu não podia nem parar, nem voltar meus passos, nem fechar os olhos para não ver senão que ao redor dos sofrimentos e da morte absoluta, era o vazio, o aniquilamento total[3].

Metchnikoff se contrapõe à ideia, difundida por escritores como Finot, Tokarsky e o próprio Tolstoy de que o medo da morte corresponde ao medo do desconhecido, e que a racionalidade seria a melhor maneira de combatê-lo. Para o autor, o medo da morte é um temor instintivo, incapaz de ser aniquilado pela reflexão, comparável à sensação sexual, que não depende de nenhuma racionalidade.

Para o autor, a dificuldade em se identificar, no nível psíquico, indícios do instinto de morte se deve ao medo da morte, que à ele aparentemente se contrapõe. Ele constata que o desejo de morte consciente, reflexo psíquico do instinto de morte, pode ser identificado sem maiores problemas em casos de sofrimento e doenças incuráveis, quando o sujeito, cansado de sua situação, espera da morte o alívio e o repouso desejados. Porém, para o autor, esse tipo de situação, por si só, não justifica sua hipótese, que encontraria maior possibilidade de comprovação se fosse possível acompanhar pessoas com idade muito avançada, isentas de problemas clínicos, ou de doenças degenerativas irreversíveis. Nesse sentido, Metchnikoff relata o caso de uma senhora, com saúde física e faculdades psíquicas comprovadamente preservadas, que expressou verbalmente o desejo de morrer com as seguintes palavras:

Se você viver tanto quanto eu poderá compreender que não é somente possível não temer a morte, mas até mesmo desejá-la e sentir a necessidade da morte da mesma forma que se sente necessidade de dormir[4].

Metchnikoff compara a necessidade sentida por essa anciã à necessidade de sono que nos acomete no dia a dia. Entretanto, tal desejo não é expresso com tanta clareza pela maioria das pessoas, que só desejam a morte quando esta se torna mais atrativa do que uma vida em sofrimento.

Nas palavras do autor:

Pode-se somente viver enquanto se está embriagado da vida; mas assim que se desembriaga (perde as ilusões), pode-se ver somente que tudo isso não é senão uma fraude estúpida. (...) a verdade é a morte[5].

Se a existência de um instinto natural de morte nos parece inverossímil, isso se deve ao fato de estarmos impregnados pelo instinto oposto, o de vida. Para Metchnikoff, o temor pela morte pode ser interpretado como uma manifestação do próprio instinto de morte, transfigurado pelo desejo de viver e profundamente arraigado na natureza humana, comparável aos demais instintos, como a fome, a sede, a necessidade de sono e sexo.

O fato do instinto de morte não poder ser observado enquanto prevalece o instinto de vida explica, de certa forma, o fato de a humanidade crer mais facilmente em uma vida eterna do que na mudança/transposição do instinto de vida para o instinto de morte. Para o autor, a morte natural do homem se manifesta no momento em que o instinto de vida desaparece e é completamente substituído pelo instinto de morte.

Metchnikoff supunha que, se a vida humana não estivesse sujeita a tantas desarmonias orgânicas e funcionais (que acabam por levar o ser humano a uma velhice patológica), se a ciência pudesse atingir um progresso tal que os homens pudessem viver uma velhice normal e sem enfermidades, permitindo que a vida completasse o seu ciclo, assistiríamos ao surgimento do silencioso instinto de morte em um número cada vez maior de pessoas, quando fosse chegado o seu tempo. Para Metchnikoff, o “instinto de morte está evidentemente encerrado nas profundezas da natureza humana sob uma forma potencial”[6].

Metchnikoff observa que, quanto maior a evolução na escala dos seres vivos, menor os fenômenos de regeneração. Entre os vertebrados inferiores, alguns, como as salamandras, podem regenerar suas patas ou cauda. Já entre os vertebrados superiores, a regeneração só se opera apenas de forma muito limitada; com base no mesmo exemplo, se entre esses as patas e a cauda fossem cortadas, não cresceriam novamente. Parece que o progresso na organização dos animais evoluiu mediante um custo: a perda da capacidade reprodutora dos tecidos e outros elementos orgânicos[7]. Entre os animais mais complexos, alguns órgãos ainda possuem poder de regeneração, como o fígado. Mas, quanto mais especializado é o órgão ou o sistema, mais remota se torna essa possibilidade. Para o autor, é o que acontece com as células nervosas. Na medida em que adquiriram propriedades mais evoluídas, como as funções psíquicas, perderam a capacidade que caracteriza as células imortais, ou seja, a capacidade de se dividir.

Assim como Freud, Metchnikoff considera os instintos de vida e de morte como opostos complementares, sendo que essa complementaridade já havia sido verificada pelo autor no nível biológico. Em 1882, o autor coletou pequenas larvas transparentes de estrela do mar e espetou em uma dessas larvas o espinho de uma rosa. Então, ele assistiu a pequena e frágil criatura marinha preparar uma vigorosa resposta celular ao espinho que perfurava sua carne. Metchnikoff observou o influxo de macrófagos, altamente agressivos, atacarem e parcialmente digerirem o espinho. Esse comportamento do pequeno organismo evidenciava não somente o papel defensivo geral do sistema imunológico, como a existência de um potencial destrutivo mediando processos vitais, no nível celular. O reconhecimento por parte de Metchnikoff de que essas células especializadas têm a capacidade para mediar a defesa deu origem ao conceito global de imunidade celular. Para a capacidade que as células e leucócitos possuem para ingerir microrganismos e imobilizar potencialmente corpos estranhos hostis ou micróbios em organismos complexos deu o nome de fagocitose[8].

Pouco mais de meio século depois da descoberta da fagocitose, a descoberta de um outro processo, que a engloba, desloca novamente para o contexto celular a reflexão que tanto ocupou Metchnikoff: a tendência natural a morrer. Apoptose[9], ou fenômeno da morte celular programada[10], é um processo fundamental de regulação biológica, que evidencia que cada célula possui um programa de vida e morte inscrito em seu patrimônio genético, e demonstra que cada célula tem o poder de desencadear sua própria autodestruição. As informações contidas nos genes produzem tanto células executoras, capazes de precipitar seu fim, como células protetoras, capazes de neutralizar as executoras.

A apoptose possui um papel essencial durante o processo de diferenciação, crescimento e desenvolvimento dos tecidos adultos normais e patológicos, é essencial no desenvolvimento embrionário, necessária à formação dos órgãos, à involução de tumores, e persiste em alguns sistemas adultos, como a pele e o sistema imunológico[11].

Essa capacidade que as células possuem de se autodestruir em um intervalo de poucas horas - essa aptidão ao suicídio, é vital, pois possibilita que os processos de desenvolvimento biológico possam ocorrer. Ela influencia a história do corpo humano, desde as primeiras fases do desenvolvimento do embrião, guiando as passagens dos processos de diferenciação. Graças à apoptose desaparecem as formas embrionárias transitórias, modelam-se os órgãos, constrói-se o corpo. Sem a apoptose o embrião permaneceria uma massa informe, o cérebro teria neurônios em excesso, o sistema imunológico, depois de obter vitória sobre as infecções, não teria como eliminar suas células especializadas, que continuariam a percorrer o corpo em busca de inimigos inexistentes. É a apoptose que permite que nosso corpo se desenvolva segundo padrões definidos, e se reconstrua.

Fisiologicamente, a apoptose - que exerce um papel oposto ao da mitose-, é um dos participantes ativos da homeostase no controle do equilíbrio entre a taxa de proliferação e degeneração com morte das células, auxiliando na manutenção do tamanho dos tecidos e órgãos. Ao esculpir a forma interna e externa, eliminando tecidos, separando órgãos, ela possibilita a individualização biológica. A fagocitose é o processo eficaz de células apoptóticas, e constitui um mecanismo indispensável na construção e manutenção de organismos multicelulares.

A morte programada das células é acionada para eliminar as células envelhecidas e aquelas que se desenvolveram de modo impróprio. Quando, porém, a apoptose sofre um processo de inibição e é impedida de modo impróprio, células “doentes” sobrevivem, como no caso de tumores, de doenças autoimunes e de infecções virais.

No nível celular, nossa existência depende de um equilíbrio entre a capacidade de autodestruição e de renovação, uma vez que a maioria das doenças que ameaçam a existência estão ligadas ao desequilíbrio do suicídio celular. É o suicídio celular que impede que o sistema de defesa imunológico ataque o próprio corpo e que evita que uma célula que sofreu alterações genéticas persista no caminho que, inexoravelmente, terminará no câncer.

Biologicamente, a linguagem construída pelos diálogos que se estabelecem entre as diferentes famílias de células que estão nascendo, é que determina a vida ou a morte. As interações locais que as células estabelecem delimitam regiões, territórios e órgãos, nos quais as diferentes famílias celulares se reagrupam e se mantém. É a natureza do diálogo que uma célula estabelece com sua coletividade que determina o seu destino. Nesse sentido, Ameisen[12] exemplifica, em relação aos mamíferos:

Nós percebemos com os nossos olhos, mas nós vemos com nosso cérebro. Nos dias que seguem ao nascimento, o influxo nervoso que viaja sem cessar da retina ao cérebro constitui, sem dúvida, para certos neurônios, um sinal indispensável à sua sobrevivência. E, na ausência do sinal, esses neurônios decretam seu suicídio[13].

Pois, nesse nível, tudo o que, no corpo, é negligenciado ou deixa de ser solicitado, tende a desaparecer.

Entretanto, a estreita ligação entre as células que compõem um órgão e sua capacidade de interagir com outras células não é uma particularidade de recém-nascidos. Essas relações de interdependência persistem durante toda a existência de cada indivíduo.

A morte celular é parte integrante de um estranho e complexo processo de aprendizagem e de auto-organização, no qual a sobrevivência de cada célula depende, basicamente, de sua capacidade de perceber, ao redor de si, dentro do corpo, os sinais químicos emitidos por outras células. Se o linfócito[14] torna-se incapaz de reconhecer o self - ou o próprio, desencadeia seu suicídio e desaparece. A sua sobrevivência depende, permanentemente, de sua capacidade de interação com o self, do qual ele é o guardião. A cada dia, o corpo coloca à prova a capacidade de reconhecimento dos linfócitos:  “viver, para cada célula que compõe o nosso corpo, é, a cada instante, ter êxito em reprimir o desencadeamento de seu suicídio”[15].

Entretanto, o destino de cada célula, a repressão ou não do suicídio celular, depende da coletividade à qual a célula pertence, que pode obrigá-la a se extinguir em proveito do indivíduo que ela mesma contribuiu para construir.

Esta visão, surpreendente e perturbadora traz consigo um novo conceito de vida, pois, ao nível celular, vida e morte não estabelecem, senão, um contraponto. ”Nós estamos, a cada momento, em parte morrendo e em parte renascendo[16]”, o que faz da vida do indivíduo, a cada instante,

uma vida em sursis. Porque o corpo, constituído por células, faz com que a sua existência, a sua perenidade, dependa de sua capacidade, enquanto indivíduo, de produzir e de emitir, de maneira integrada, os sinais necessários à prevenção de seu próprio fim[17].

A visão do universo biológico que constitui o indivíduo é a visão de um universo estranho e paradoxal, “onde a morte é, ao mesmo tempo, presença indispensável na origem da complexidade, e uma ameaça constante, destruindo o que ela mesma construiu”[18].

De posse desse conhecimento, um século após a publicação de Études sur la nature humaine, a seguinte questão, formulada por Ameisen, recoloca, no centro da cena, o problema da morte natural: “[...] nossa morte, como a morte das células que nos compõem, poderia proceder de uma forma de autodestruição?”[19].

Assim como Freud, Metchnikoff parecia não ter muitas dúvidas sobre o processo que, ao final, determinaria nossa autodestruição.

 

Agradecimentos

 

Ao Jeferson Hohne, pela leitura atenta, meus agradecimentos.

 

 

Referências

 

AMEISEN, J-C. La sculpture du vivant. Paris: Éditions du Seuil, 2003.

AMEISEN, J-C; HERVIEU-LÉGER, D.; HIRSCH, E. Qu’est-ce que mourir ? Paris, Éditions Le Pommier, 2003.

FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). In: Freud, Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989, vol. 18.

METCHNIKOFF, E. Etudes sur la nature humaine. Paris: Masson & Cie Éditeurs, 1903.

MINUTES DE LA SOCIÉTÉ PSYCHANALITIQUE DE VIENNE (1910-1911), Vol. III. Paris: Éditions Gallimard, 1979.

ROITT, I. M. & DELVES, P. J. Fundamentos de Imunologia. Buenos Aires: Editorial Medica Panamericana / Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A., 2004.

SPIELREIN, S. A destruição como origem da criação. Tradução de Brigitte Bräunlich do original “Die Destruktion als Ursache des Werdens”. In: Jahrbuch für psychoanalyse, IV, pp. 465-503.

STITES, D. P. & TERR, A. I. Imunologia Básica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A., 2004.

TAUBER, A.I. & CHERNYAK, L.  Metchnikoff and the origins of immunology. New York/ Oxford: Oxford University Press, 1991.

DANCHIN, A. "Vida", In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI.  Dir. Ruggero Romano; coord. ed. portuguesa de Fernando Gil. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985, vol.6, pp. 87-145.

MARTINS, L. A. P. Alguns aspectos da teoria da evolução de August Weismann. In: Goldfarb, J. L. & Ferraz, M. H. M. (eds.) Anais do VII Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia e da VII Reunião da Rede de Intercâmbios para a História e Epistemologia das Ciências Químicas e Biológicas, pp. 279-284. São Paulo: Sociedade Brasileira de História da Ciência / EDUSP, 2000.

 

 



[1] Elie Metchnikoff, diretor do Instituto Pasteur de Paris, laureado com o prêmio Nobel em 1908 em reconhecimento ao seu trabalho sobre imunidade, foi o criador do conceito de imunologia, descobridor do mecanismo da fagocitose e responsável por uma das primeiras descrições do sistema imunológico.

[2] Terminologia utilizada pelo zoologista alemão Ernst Haeckel (1834-1919), que também inventou os termos “ontogenia” e “filogenia” e a célebre frase "a ontogenia recapitula a filogenia".

[3] METCHNIKOFF, Études sur la nature humaine, 157-8 

[4] METCHNIKOFF, Études sur la nature humaine, 363

[5] METCHNIKOFF, Études sur la nature humaine, 158-9

[6] METCHNIKOFF, Études sur la nature humaine, 368

[7] No mundo animal, a imortalidade só é encontrada entre os invertebrados inferiores. Alguns autores, como Weissman, concluíram pela imortalidade dos seres unicelulares. Ao se dividir em dois, cada metade de um microrganismo se recompõe rapidamente por se reproduzir sempre da mesma forma. Nos numerosos casos de reprodução por meio da divisão do organismo materno em vários fragmentos, a individualidade do organismo materno desaparece no conjunto de indivíduos de nova geração, sem que ocorra a destruição e a presença de um cadáver. Desse modo, a imortalidade é garantida, às custas da individualidade. A imortalidade pode ser entendida, portanto, como uma propriedade inesgotável de regeneração em um ser com uma estrutura complexa, o que leva o autor à conclusão de que a morte natural não está, necessariamente, ligada à organização.

[8] Fagocitose: é um processo seletivo, pelo qual a célula, graças à formação de pseudópodes, engloba, no seu citoplasma, partículas sólidas. Nos mamíferos, a fagocitose é realizada por células especializadas do organismo, como os macrófagos.

[9] Termo derivado do grego, cuja referência é a queda das folhas das árvores no outono - um processo que implica em morte e renovação.

[10] A morte celular programada foi descrita primeiramente em 1972, por John Kerr, como um fenômeno com características diferentes da necrose.

[11] Ainda no século XIX, Claude Bernard (1878-9), em sua frase paradoxal, “a vida é a morte”, sintetizou bem o que a apoptose veio comprovar: que qualquer manifestação de um fenômeno no ser vivo, está necessariamente associada a uma destruição orgânica. In: Enciclopedia Einaudi, vol. 6, p. 89.

[12] Jean-Claude Ameisen: imunologista, professor e pesquisador da universidade Paris VII, é autor de vários trabalhos sobre apoptose.

[13] AMEISEN, La sculpture du vivant, 132

[14] Linfócito é um tipo de leucócito, ou glóbulo branco, do sangue.

[15] AMEISEN, La sculpture du vivant, 138

[16] AMEISEN, La sculpture du vivant, 17

[17] AMEISEN, La sculpture du vivant, 138-9

[18] AMEISEN, La sculpture du vivant,  160

[19] AMEISEN, Dialogues entre la vie et la mort. In: Ameisen, Hervieu-Léger, Hirsch (Orgs), Qu’est-ce que mourir?, 48