DOI

Submissão: 15/06/2020 Aprovação: 14/08/2020 Publicação: 28/08/2020

 

by-nc-sa

 

Dossiê Pulsões de Vida, Pulsões de Morte

 

Pulsão de vida no Projeto para uma psicologia científica: uma releitura de Freud à luz de Loewald

 

Life Drive in the Project for a scientific psychology: a reinterpretation of Freud in the light of Loewald

 

Virginia Helena Ferreira da Costa

Pós-doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES

virginiahelena.costa@gmail.com

 

 

Resumo: O objetivo deste artigo é fazer uma releitura do Projeto para uma psicologia científica de Freud a partir do conceito de pulsão de vida. Para tanto, iremos nos ater a uma interpretação do psicanalista Hans Loewald sobre a concepção de Eros, principalmente no que se refere ao desenvolvimento cognitivo e ao papel da mãe na inserção do bebê na moralidade e realidade durante o período pré-edípico. A pulsão de vida seria concebida ainda como outro princípio do prazer possível, para além do de constância. Em última instância, a possibilidade de leitura que delineia a presença da pulsão de vida no Projeto vinculada à função materna segue em complemento à releitura feminista da psicanálise freudiana empreendida por Joel Whitebook em seus trabalhos mais recentes, também largamente baseados na teoria de Loewald.

Palavras-chave: Freud; Loewald; Whitebook; Pulsão de vida; Função Materna; Projeto para psicologia científica

 

Abstract: The purpose of this article is to reinterpret the Project for a scientific psychology of Freud based on the concept of life drive. Therefore, we will follow an interpretation by the psychoanalyst Hans Loewald on the concept of Eros mainly with regard to the cognitive development and the role of the mother in the insertion of the baby in morality and reality in the pre-Oedipal period. The life drive would be conceived also as another possible pleasure principle, in addition to that of constancy. Ultimately, the possibility of an interpretation that outlines the presence of the life drive in the Project linked to the maternal function follows a feminist reading of Freudian psychoanalysis undertaken by Joel Whitebook in his most recent works, also largely based on Loewald’s theory.

Keywords: Freud; Loewald; Whitebook; Life Drive; Maternal Function; Project for a Scientific Psychology

 

 

Introdução: o contexto de uma Teoria Crítica feminista

 

Dentre as diversas releituras de textos e conceitos freudianos nos debates filosóficos, uma das principais se consolida no ambiente da Teoria Crítica, principalmente em autores da primeira geração – como Adorno, Horkheimer, Marcuse, Fromm. Se nas gerações subsequentes de teóricos críticos a psicanálise freudiana perdeu a centralidade, encontramos hoje na figura de Joel Whitebook um esforço em retomar a teoria freudiana em um debate com a primeira geração. O autor tem produzido o seu próprio “retorno a Freud” de modo bastante específico: ancorado em releituras da psicanálise produzidas por Hans Loewald e guiado por inquietações de psicanalistas feministas.

            A princípio configura bastante controverso aproximar um autor considerado conservador, heideggeriano e talvez ego psychologist tanto de desdobramentos vinculados ao Instituto de Pesquisas Sociais, quanto de uma leitura “feminista” de Freud. Contudo, uma análise mais atenta de Loewald revela um pensador muito mais diverso e profundo do que as filiações teóricas poderiam nos permitir pensar. Nancy Chodorow, por exemplo, importante ícone da releitura psicanalítica feminista freudiana, demonstra as diversas vertentes seguidas pelo autor:

De fato, ele próprio [Loewald] parece ser um sintetizador insistente, em vez de polarizador, no interior do discurso psicanalítico, comprometido e capaz de se portar como um teórico da pulsão, ego psychologist e teórico das relações de objetos que respeita a autopsicologia, ao mesmo tempo em que permanece completamente enredado na situação clínica que, em última análise, fornece à psicanálise suas verdades[1].

Ao passo que Whitebook enfatiza como “na maioria das vezes ele interpreta esses conceitos fundamentais de maneira tão radical que transforma seus significados[2].

Sua premissa principal, que exporemos aqui, dá ênfase à concepção de pulsão de vida em fases pré-edípicas, vinculada à experiência de unicidade entre mãe e bebê:

foi a introdução da ideia da pulsão de vida (que abrangeu diferentes concepções de prazer e de princípio do prazer) que foi uma inovação verdadeira e perturbadora na teoria psicanalítica - uma inovação que Freud não podia mais contornar, mas com a qual se sentia muito menos à vontade do que com a pulsão de morte[3].

Por outro lado, considerando tal preocupação com a fase pré-edípica, é um adendo de Whitebook a hipótese de que “A falta de compreensão de Freud sobre a experiência primeira entre mãe-bebê foi uma das principais fontes de sua incapacidade de teorizar Eros completamente e reconhecer suas implicações para sua posição teórica geral”[4]. Na leitura “oficial” ou “clássica” da teoria freudiana, o pai aparece na figura de um sujeito propriamente dito, enquanto à mãe é reservada um papel objetificado e passivo. Segundo tal leitura, só nos tornamos efetivamente maduros sob a intervenção paterna: o pai simbolizaria individuação e participação do mundo sociocultural, sendo responsável pelo desenvolvimento racional e moral e pela introdução da criança à cultura e à realidade objetiva. Sob esse ponto de vista, a mãe, afastada da realidade, não conseguiria fomentar a autonomia de seus filhos, papel este reservado somente ao pai. Como veremos, é na contramão do Freud clássico que Loewald repensa o desenvolvimento da racionalidade e o papel da sublimação vinculados a Eros na teoria psicanalítica, permitindo não só que a mãe seja mais do que um mero objeto pulsional passivo: ela seria responsável pela introdução do bebê à realidade objetiva (com suas ambivalências, conflitos e tensões inescapáveis), além de possibilitar o desenvolvimento de um outro tipo de princípio de prazer, não mais vinculado ao princípio de constância.

É seguindo tais desenvolvimentos que nossa contribuição ao debate psicanalista feminista na Teoria Crítica se vincula à releitura feita por Loewald, mas a direciona a um texto pouco explorado pelo autor – e deixado de lado por Whitebook em sua recente releitura “feminista” da biografia freudiana[5]. O Projeto para uma psicologia científica[6] é admitido como um texto freudiano controverso, mas que, como defenderemos, permite a formulação do conceito de pulsão de vida no período pré-edípico, retratando o desenvolvimento cognitivo e a introdução do bebê à realidade, cultura e moralidade pela figura materna que retira o bebê do desamparo – hipótese esta abandonada por Freud em seus trabalhos posteriores, quando Freud fez do pai a figura amparadora do bebê.

Com isso, nossa releitura do Projeto não pretende vincular o feminino à hostilidade do real, muito menos relacionar o texto à pulsão de morte – algo que a literatura psicanalítica já produziu em exaustão. O que pretendemos é produzir uma releitura nas entrelinhas de um dos raros momentos freudianos em que a função materna é exibida sendo mais do que um objeto pulsional, mais do que uma figura passiva e “doméstica”. Nesse sentido, seguimos tentando situar a função materna na teoria freudiana justamente em sua aparição lacunar, como na figura do Nebenmensch no Projeto.

 

 

Loewald e a centralidade de Eros na matrix mãe-bebê

 

Nas próximas páginas, iremos apresentar um resumo de alguns trechos da teoria de Loewald que poderão servir de auxílio na releitura do Projeto freudiano. Loewald cita com certa frequência em diversos textos a teoria de Freud sobre o sentimento oceânico retratado em o Mal-estar na civilização para abordar a matrix mãe-bebê. De fato, esta é uma das raras ocasiões em que Freud desenvolve, mesmo que en passant, a hipótese sobre o recém-nascido que não distingue entre uma realidade externa e interna a si, sendo esta a ocasião em que as estruturas mais primitivas do eu e dos objetos da realidade externa terão seus primeiros desenvolvimentos. Se para Freud é a partir desta situação de indistinção que “o eu se desprende da realidade externa”, para Loewald ocorreria o inverso, “o eu desprende um mundo exterior de si mesmo”. Ou seja, ao invés do bebê começar sua vida alienado em um outro do qual deve se separar, como o sugere Freud, para Loewald o mundo exterior, sendo concebido inicialmente no interior da psique neonatal, teria se de destacar dela. Por mais que a expressão “narcisismo primário” seja empregada com frequência pelo autor – assim como “unidade indiferenciada” e “matrix mãe-bebê”, designando sinônimos –, não haveria em tal situação inicial um eu forjado, nem mesmo um objeto para se opor ao sujeito: tudo estaria contido em tal estrutura psíquica originária e seria a partir dela que se desenvolveria tanto uma realidade interna, quanto uma externa: para Loewald, eu e objetos nascem conjuntamente:

A relação entre eu e realidade, ou objetos, não se desenvolve a partir de uma coexistência originalmente não relacionada de duas entidades separadas que entram em contato uma com a outra, mas, pelo contrário, de um todo unitário que se diferencia em partes distintas. Mãe e bebê não se encontram e desenvolvem um relacionamento, mas o bebê nasce, se separa da mãe e, então, um relacionamento entre duas partes que originalmente eram uma se torna possível[7].

Pensando exclusivamente no ponto de vista do recém-nascido[8], tal estrutura global inicial só pode ser inferida e, ainda assim, seria bastante temporária, durando até os dois meses de vida pós-uterina: “Um modelo aproximado dessa identidade existente talvez seja fornecido pela situação intrauterina e, decrescentemente, nos primeiros meses de vida, na relação simbiótica da mãe e bebê”[9]. Detendo-se aos interesses delimitados pelo Projeto freudiano, o que nos interessa seriam os dois meses iniciais em que o bebê se encontra em uma matrix indiferenciada com a mãe, além dos momentos subsequentes nos quais o processo de diferenciação interna a tal unidade se inicia. Depreende-se, então, que na abordagem da matrix mãe-bebê iremos tratar de um estágio pré-egoico, onde haveria pré-objetos em uma pré-realidade. O autor desenvolve sua teoria a partir da concepção de um processo contínuo – e sempre inacabado – de delimitações internas em tal matrix complexa, de modo que, “externalização primária significa que a exterioridade está sendo estabelecida; internalização primária significa que a interioridade está sendo constituída[10].

            Considerando tal período pré-edípico, as diferenciações entre o Freud clássico e Loewald não ocorrem somente na clareza da abordagem de tal matrix inicial (que só é apontada pelo primeiro e plenamente desenvolvida pelo segundo), mas outros distanciamentos substanciais ocorrem na comparação da teoria dos autores. Em Introdução ao narcisismo, vemos se delinear a teoria segundo a qual o autoerotismo inicial do bebê, que sente prazer por meio das pulsões parciais, teria algum desenvolvimento psíquico egóico que culminaria no narcisismo primário, um estado de quase perfeição feliz, ausente de grandes tensões. Seria na saída do narcisismo primário que o eu iria realmente se formar, a composição pulsional passando, então, para a fase libidinal em que toma como objetos pulsionais não mais si mesmo, e sim os objetos externos. A saída do bebê do narcisismo primário só ocorreria, segundo Freud, por insistência da intrusão de elementos hostis da realidade na bolha narcísica do bebê. A realidade seria introduzida, portanto, relacionada ao sofrimento, significando uma privação da situação de quase perfeição que nunca mais será alcançada pelo indivíduo no decorrer de sua vida. Já para Loewald, em tal matrix inicial haveria tensões, o que retira a situação inicial mãe-bebê de uma cena idílica de satisfação plena.

            Do desenvolvimento teórico da matrix mãe-bebê em Loewald[11] decorrem duas consequências de forte impacto na teoria freudiana. A primeira seria a de que o desenvolvimento da cognição e racionalidade estaria ainda mais atrelado do que estava em Freud ao desenvolvimento libidinal e aos desejos subjetivos. Tal concepção será reforçada por uma teoria da sublimação especialmente inovadora, relacionada à matrix mãe-bebê. E, em segundo lugar, observamos o consequente desenvolvimento de um outro princípio de prazer vinculado a Eros e à matrix mãe-bebê, concebendo também uma outra concepção de realidade relacionada não somente ao pai, como na teoria freudiana clássica, mas à mãe, como é configurado no Projeto.

            Loewald defende que o desenvolvimento de funções psíquicas relacionadas à racionalidade ocorre antes mesmo do surgimento do eu, iniciando-se ainda na fase pré-edípica. Isso quer dizer que, em sua origem, tais funções não são separadas da vida pulsional e sexual da infância, mas só alcançam algum distanciamento libidinal com o amadurecimento do eu. “Percepção e memória em suas conformações primitivas (...) são, acredito, atividades pulsionais inconscientes, aspectos dos processos libidinais que só mais tarde ganham um status comparativamente autônomo”[12]. Como veremos no Projeto, seria na diferenciação entre mãe e bebê a partir da matrix que a cognição teria a sua origem.

Por mais que tal pensamento seja até comum na leitura clássica freudiana, a novidade empreendida por Loewald ocorre quando o autor relaciona a sublimação a um retorno à fase de indiferenciação entre libido e racionalidade vivida na matrix. Loewald desenvolve a sua teoria da sublimação principalmente a partir da leitura de O eu e o isso. A seguinte passagem freudiana se torna crucial para a sua teoria:

A transformação da libido objetal em libido narcísica, que então ocorre, evidentemente acarreta um abandono das metas sexuais, uma dessexualização, ou seja, uma espécie de sublimação. E surge mesmo a questão, digna de um tratamento mais aprofundado, de que este seria talvez o caminho geral da sublimação, de que talvez a sublimação ocorra por intermediação do Eu, que primeiro converte a libido objetal sexual em libido narcísica, para depois dar-lhe quiçá outra meta[13].

A partir de tal sugestão freudiana, Loewald desenvolve a sua tese[14] segundo a qual na sublimação sempre ocorreria a internalização e transformação da libido objetal em libido narcísica, sendo esta uma forma de reconciliação entre realidade externa e realidade interna, racionalidade e pulsões, eu e o objeto. Tal reconciliação pela sublimação seria um dos momentos de retorno à fase inicial de vida do bebê, a matrix indiferenciada com a mãe.

É claro que tal retorno não é feito como revivescência total da matrix original, pois o eu, assim como a realidade externa, precisa ter se desenvolvido para que a sublimação seja possível. Sendo o eu maduro, a “nova organização sintética” alcançada pela sublimação permite uma reunião localizada e temporária de opostos, razão e sexualidade, que não se perdem em suas constituições, mas se enriquecem no encontro com o oposto. Assim, para Loewald, um eu maduro é aquele que teria a flexibilidade interna que propicia o retorno a uma situação de unificação sem perder suas funções adquiridas, fazendo da indiferenciação momentânea uma oportunidade de enriquecimento da individualização subjetiva. A unificação e diferenciação dialética entre o eu e a alteridade, portanto, coloca-se como um processo sem fim na teoria de Loewald, ocorrendo a cada vez de forma diferente, pois permite uma modificação contínua das funções do eu e de sua relação com a realidade externa. Tal capacidade para sublimar evidenciaria, então, para Loewald uma condição de saúde psíquica de comunicação entre inconsciente e consciência, eu e objeto, razão e sexualidade.

A sublimação, nessa visão, envolve um retorno interno re-criativo para essa matrix. Uma reconciliação dos elementos polarizados produzidos pela individuação e, pode-se suspeitar, pela diferenciação sexual. A sublimação reúne, assim, o que se tornou separado. Ela “desempenha um papel decisivo no controle da realidade” (...) - controle concebido não como dominação, mas como um acordo - pois leva a realidade externa e material ao interior da realidade psíquica, e a realidade psíquica à inspeção da realidade externa[15].

Ou seja, a sublimação – o maior desenvolvimento pulsional que pode ser alcançado, que enriquece a cultura e se mostra imperativo para a saúde psíquica, segundo Freud – só é possível devido ao retorno à situação de unificação do bebê com a mãe, segundo Loewald. Veremos a seguir como esta possibilidade de relação saudável com a realidade por via materna se mostra uma opção ao encontro hostil com a realidade viabilizado pelo pai, tal qual pensado classicamente pela psicanálise freudiana.

            Já dissemos que, para Loewald, a sublimação restaura a unidade original entre realidade externa e realidade interna da matrix mãe-bebê neonatal, mas o faz em um nível mais complexo de diferenciação. O que devemos notar aqui, contudo, é o prazer presente em cada movimento pulsional sublimatório de criação artística e intelectual. Este prazer em se perder no objeto criado e pesquisado, seria, segundo o autor, similar ao prazer da criança que se perde na brincadeira. Baseando seus desenvolvimentos na teoria de Winnicott, Loewald defende que a relação entre a matrix mãe-bebê e a sublimação ocorreria na situação de um perder-se no objeto, quando o eu se funde ao outro, na interrupção da separação entre realidade interna e realidade externa que reverbera a conceituação freudiana de Eros ou pulsão de vida – que pretende produzir unidades cada vez maiores. Aquilo que muitas vezes é vivido como pulsão de morte, dada a repetição necessária em todo o processo de criação (como na criança que repete à exaustão a mesma brincadeira) configura na sublimação uma junção pulsional com a pulsão de vida, levando à satisfação mediante a união entre eu e objeto na criação do novo. Lembremos, então, da famosa descrição da brincadeira “fort-da” vivenciada pelo neto de Freud, Ernst, momento decisivo da conceituação das pulsões de morte e de vida em Além do princípio do prazer. Sendo um modo de lidar com o sofrimento pela separação da mãe, a brincadeira repetidamente encenada por ele de desaparecimento e reaparecimento do brinquedo era acompanhada pelo enorme prazer em reencontrar o objeto. Forma de encarar uma situação desprazerosa de separação vivida passivamente, o bebê passa a simbolizar ativamente, criando significado, ação valiosa para a cultura e que será retomada em toda sublimação.

Loewald nos lembra que é em outro texto freudiano, posterior ao Além do princípio do prazer, a saber, O problema econômico do masoquismo, que o prazer de Eros é melhor refletido. Lembremos que o princípio de constância – elaborado de forma mais completa pela primeira vez por Freud justamente no Projeto – é simbolizado pelo arco-reflexo, isto é, pela situação segundo a qual haveria a recepção psíquica de um aumento de tensão pulsional sentido como desprazer, e a ação subsequente de descarga pulsional e consequente sentimento de satisfação com retorno às energias psíquicas mais baixas possíveis. Entretanto, com o desenvolvimento da pulsão de morte, originou-se o problema teórico no qual a satisfação em se atingir a constância energética mais baixa possível, até então o único princípio de prazer pensado por Freud, não poderia escapar de uma relação com a morte. Diluir o princípio do prazer à pulsão de morte teria levado, então, ao risco do fim da oposição e duplicidade pulsional tão cara a Freud, algo que só poderia ser sanado pela distinção entre ambos os conceitos, isto é, pela admissão da existência de tensões prazerosas. Ora, o prazer sublimatório relacionado a Eros envolveria justamente uma manutenção de tensão por hipercatexia, isto é, grande investimento pulsional em um objeto, o que sugere a hipótese de tensões prazerosas. Ou seja, quando operacionalizado de forma solitária, o princípio de prazer seguiria as tendências da pulsão de morte, gerando descarga pulsional e constância energética; mas, segundo o adendo loewaldiano, em uma unidade de si mesmo com o objeto, o princípio do prazer seguiria as tendências da pulsão de vida, gerando a manutenção da tensão pulsional. Este prazer é sentido enquanto uma tensão constante, não sendo uma satisfação por descarga que alcança um clímax final. Eros estaria, portanto, para além do princípio de prazer até então teorizado por Freud, relacionado à constância pulsional obtida pelo arco-reflexo.

A revisão do princípio do prazer é somente sugerida por Freud da seguinte maneira:

Ao que parece, sentimos o aumento ou decréscimo dos montantes de estímulos diretamente na série dos sentimentos de tensão, e não há dúvida de que existem tensões prazerosas e distensões desprazerosas. (...) Parece que [prazer e desprazer] não dependem desse fator quantitativo, mas de uma característica dele que só podemos designar como qualitativa. Estaríamos bem mais adiantados na psicologia se soubéssemos indicar qual é esse traço qualitativo. Talvez seja o ritmo, o transcurso temporal das mudanças, elevações e quedas da quantidade de estímulos; não o sabemos[16].

A vinculação entre tensão e prazer, portanto, não estaria relacionada a fatores quantitativos, e sim qualitativos, isto é, a ritmos periódicos de aumento e diminuição de estímulos. Como veremos mais à frente, tal tese que relaciona qualidade a ritmos periódicos de tensão sem descarga também foi pensada pela primeira vez no Projeto. Também aparece nesse texto as características de Eros de fomentar a criação mesmo quando há uma tendência geral de repetição, o que leva à geração de uma nova cadeia de desenvolvimento vital. É nossa sugestão de leitura, portanto, mostrar como não há só uma teorização do conceito de pulsão de morte no Projeto, mas também do de pulsão de vida.

            Segundo Loewald[17], o alcance de unidades diferenciadas cada vez mais complexas é um dos trabalhos da pulsão de vida, momento de reconciliação, mesmo que com tensões, tão necessária quando há também conflitos, separações e disjunções pulsionais inevitáveis. Ao se modificar o vínculo entre tensão, prazer e Eros, concebe-se uma outra relação com a realidade que não seja só de defesa contra interferências externas que perturbam o prazeroso princípio de constância. “O mundo externo poderia ser um fator na criação da característica qualitativa da carga de estímulo que não teria a ver principalmente com a inibição da descarga”[18]. Assim, a realidade pode não ser limitada somente à concepção hostil concebida pela influência do pai na tríade edípica; coexistindo a ela, pode haver ainda uma outra concepção, também necessária, da realidade externa como uma aliada ao prazer, havendo uma união não exclusivamente hostil, ainda que tensa, com objetos externos – modelo que favoreceria o desenvolvimento e funcionamento do eu enquanto função psíquica sintética e integrativa. Se o eu é uma modificação do isso, que se coloca como um reservatório único de conteúdos psíquicos tão díspares, ele emula não somente a sua origem inconsciente, mas também o seu primórdio no qual o isso originário se encontrava unificado à realidade externa na matrix mãe-bebê. Por isso, antes de vermos como tal concepção de realidade acolhedora e fornecedora do prazer aparece no complexo do Nebenmensch elaborado no Projeto, passemos ao último desenvolvimento conceitual loewaldiano que abordaremos: a relação complementar entre as fases edípica e pré-edípica do desenvolvimento da criança, modos de concepção de duas diferentes relações com a realidade.

            Considerando o debate entre as fases edípica e pré-edípica no interior do campo psicanalítico, Loewald se posiciona de modo ímpar, como reconhece Whitebook:

Em vez de debater a primazia do desenvolvimento edipiano versus pré-edipiano - da dimensão paterna versus materna na vida psíquica - ele [Loewald] fez uma pergunta diferente: qual é a relação entre as duas fases do desenvolvimento e como elas se estruturam hierarquicamente na vida psíquica?[19]

Para Loewald, um ponto de vista em que há preponderância de somente uma das fases de desenvolvimento psíquico se apresenta como necessariamente incompleto. Ambas as fases são necessárias para compor uma noção de realidade mais complexa e plural, havendo tanto benefícios adquiridos em ambas, quanto riscos na regressão ou fixação em cada uma delas. Sendo, portanto, complementares, os desenvolvimentos pré-edípicos, essencialmente maternos, e edípicos, paternos, não podem ser artificialmente separados.

            Já foi exposto que, na teoria loewaldiana, a fase pré-edípica seria composta pela matrix mãe-bebê nos primeiros meses de vida neonatal, além do subsequente processo de separação e individuação do bebê, movimentos intercalados por diferenciações mais complexas e retornos à unidade originária, seguindo um percurso dialético de separação e união que atinge progressivamente níveis mais altos de organização. O perigo contido em uma fixação em tal estágio é o de dissolução de uma identidade ainda em formação em um ambiente materno superpoderoso e, portanto, aniquilador, não permitindo que o processo de diferenciação ocorra. Denominada “pavor da vulva”, a ameaça de re-engolfamento ao útero materno, dissolução de si mesmo em uma harmonia plena com o meio circundante originário, denota o agente de pulsão de morte que a mãe tem o risco de se tornar, provocando o medo de “ser afogado, sugado, sobrecarregado, e isso em relação às relações sexuais, bem como em relação ao relacionamento com a mãe”[20].

            Contra tal risco, ainda na fase pré-edípica, deve intervir um terceiro que, em relações heterossexuais, é simbolizado por uma identificação saudável pré-edípica com o pai. Diz Loewald:

A figura paterna (...) não é primariamente hostil, representando a ameaça de castração com a qual o garoto lida com submissão e/ou rebelião passivas. Antes, e na minha opinião mais essencial para o desenvolvimento do eu (e da realidade), está sua postura positiva com a qual é feita uma identificação ativa e não passiva; uma identificação que se encontra antes e além da submissão, bem como da rebelião[21].

Ou seja, na fase pré-edípica, a criança se coloca diante de pré-objetos no processo de constituição de um pré-eu, onde aparecem duas figuras complementares de autoridade nos cuidados da criança, mas de modo que há uma preponderância da figura materna, o que por si só impõe uma situação de risco ao desenvolvimento infantil – que deve ser balanceada pelo pai.

            É deste contexto que Loewald[22] parte quando concebe o complexo de Édipo como a situação em que a criança ainda não estaria lidando com objetos da realidade bem constituídos, mas entidades intermediárias e ambíguas em relação à separação e individuação infantil, algo que só deve ser alcançado com mais clareza na fase pós-edípica de parricídio simbólico, isto é, a necessária aniquilação psíquica da autoridade parental e sua sobreposição pela formação do supereu. Assim, o complexo de Édipo se coloca para Loewald como um passo decisivo de tensão mais aguda no processo de separação do indivíduo em formação em relação a seu meio. Além do perigo da vulva, quando o pai foi anterior aliado da criança, esta lida agora com uma outra ameaça: é o pai que se torna a figura central na relação da criança com o meio externo, havendo riscos no processo de diferenciação simbolizados pela ameaça de castração paterna, modo de alcançar um nível mais complexo de individuação. Com isso, no complexo de Édipo, a identificação direta com o pai no período pré-edípico é modificada em direção a uma posição de submissão à ameaça ativa de agressão e aniquilação proveniente, dessa vez, do pai.

Para Loewald[23], a realidade e o eu são constituídos por processos que englobariam as fases pré-edípica e edípica, constituindo duas relações possíveis e complementares entre eu e realidade externa. A que enfatiza união e integração com um ambiente externo amparador, mesmo que tenha tensões, é vinculada à fase pré-edípica essencialmente materna. Já a relação que ressalta separação e diferenciação diante de um ambiente externo ativamente agressivo, mesmo que haja identificações positivas, é estabelecida pela fase edípica privilegiadamente paterna. Loewald, então, aproxima seus desenvolvimentos das demandas feministas ao exibir como o pai deve também tomar para si os cuidados com o bebê desde os primeiros meses de vida, desenvolvendo com isso uma identificação positiva com a criança; além de demonstrar como a mãe é perfeitamente capaz de introduzir o bebê na realidade: ela não só constituiria a primeira realidade do recém-nascido como seria o protótipo de uma relação positiva com a realidade, apesar de tensa.

Tal prosseguimento teórico se mostra bastante diferente dos desenvolvimentos freudianos clássicos, para quem a realidade é constituída quase que exclusivamente como consequência da interferência paterna. A figura do pai, na maioria dos escritos de Freud, aparece como protetor e provedor, aquele que retira a criança do desamparo, representante da realidade enquanto uma interferência hostil nos laços íntimos entre mãe e bebê, portando-se como ativamente agressivo. Mesmo que a mãe constitua a primeira realidade que circunda a vida do bebê e que se encontre unificada às origens neonatais, ainda assim, quem constitui a figura de onipotência para o Freud clássico é o pai. Freud praticamente ignora, com isso, as consequências de uma gama de possibilidades de outras relações mais positivas com o pai, bem como as potencialidades positivas e negativas das relações possíveis com a mãe.

 

 

Eros no Projeto para uma psicologia científica

 

Finalmente, tratemos de nossa releitura do Projeto tendo em vista os desenvolvimentos da teoria loewaldiana abordados anteriormente. De fato, neste texto freudiano predomina largamente o ponto de vista do prazer como redução de tensão por descarga energética, sendo seu vocabulário essencialmente constituído de explicações quantitativas relacionadas ao princípio de constância ou inércia psíquica. Basicamente, as explicações de Freud se desenvolvem em torno de uma quantidade de energia (Qn) que circula, com mais ou menos barreiras e desvios, em dois “percursos” neuronais – um que se inicia internamente, dando conta de percepções endógenas, e outro cuja extremidade está relacionada à realidade externa, vinculado à sensibilidade de percepções do ambiente. As recepções de estímulos e suas respostas psicológicas seguiriam quase sempre o esquema do arco-reflexo. É há muito reconhecida pela literatura a inauguração no Projeto de conceitos que só virão a ser nomeados posteriormente na teoria freudiana, a exemplo da pulsão de morte que instaura o paradoxo de um sistema nervoso que, desde seus primeiros desenvolvimentos, é feito para não sobreviver por si só: atingir o grau zero de excitação energética constituiria o objetivo do aparelho neurológico descrito no texto.

            Contudo, o Projeto se torna mais interessante a partir do momento em que Freud descreve como o esquema do arco-reflexo não se completa por si só: seria necessária a intervenção de uma ação vinda de fora especificamente relacionada às necessidades do organismo neonatal para que a experiência de satisfação seja alcançada. É assim que o sistema psíquico descrito é designado como hilflos, isto é, impotente, inapto, desprovido, incapaz, desamparado. Esta privação organizacional do bebê em seu estado primordial seria decorrente da condição na qual “o organismo humano está mergulhado na incapacidade de gerir em circuito fechado suas excitações endógenas”[24]. Desta forma, o lactente necessita, por sua constituição orgânica, de intervenções vindas do exterior para a sua sobrevivência, como a supressão da fome pela ingestão de um alimento que deve ser fornecido por outra pessoa.

            A essa altura, já se exibe no Projeto uma outra característica teórica freudiana que vai se perpetuar em obras vindouras: a dificuldade em nomear a mulher, no caso, a mãe, ocupando um lugar ativo nas descrições do autor. A figura materna aparece sob as alcunhas de “indivíduo experimentado ou experiente”, “ajuda exterior”, “pessoa que fornece segurança”, “intervenção estrangeira”, autora de “ação específica”, ou mais precisamente, “pessoa ao lado” (Nebenmensch). Em escritos posteriores, Freud designará esta primeira relação como uma escolha de objeto pulsional por apoio, isto é, aquela que ocorre pela satisfação “apoiada” no suprimento das necessidades básicas do ser humano: “esse apoio mostra-se ainda no fato de as pessoas encarregadas da nutrição, cuidado e proteção da criança tornarem-se os primeiros objetos sexuais, ou seja, a mãe ou quem a substitui”[25]. Assim, assumimos aqui que o Nebenmensch, quer dizer, a pessoa ao lado do lactente que o socorre em seu desamparo, estaria exercendo a função materna.

Contudo, no Projeto Freud acertadamente não designa tal encontro psíquico e corporal como uma relação propriamente dita entre sujeito e objeto, pois ambos ainda não foram constituídos. Tal situação é denominada por Freud como “complexo do Nebenmensch”:

E assim o complexo da pessoa ao lado [Nebenmensch] se separa em dois componentes, um dos quais se impõe por uma composição constante e se mantém unificado como uma coisa [Ding] do mundo, enquanto o outro é compreendido por um trabalho mnêmico, ou seja, pode ser reconduzido para um conhecimento do corpo próprio[26].

Notemos que é de uma mesma matrix unívoca denominada complexo do Nebenmensch que serão decompostos uma “coisa do mundo” e um “corpo próprio”. Ou seja, originariamente, a situação neonatal é descrita conforme um complexo, composição ou união entre um organismo físico e psíquico dependente e uma intervenção amparadora que permite a própria sobrevida e satisfação do bebê. A ação materna, portanto, apesar de se situar fora do corpo do bebê, não se encontra externamente ao funcionamento psíquico, mas está envolvida no interior mesmo do sistema arco-reflexo, permitindo que ele se complete.

É pela repetição da ação amparadora materna que o bebê começa a decompor a matrix complexa do Nebenmensch, trazendo consequências não só para a noção de desejo, mas também para o domínio cognitivo do bebê. A percepção de uma coisa fora de si torna-se o ensejo para o conhecimento de si mesmo, como em um trabalho comparativo entre as características da pessoa ao lado e do corpo próprio do bebê:

Supomos que o objeto que fornece a percepção seja semelhante ao sujeito, seja uma pessoa ao lado (Nebenmensch) (...). É a partir da pessoa ao seu lado, portanto, que o homem aprende a se reconhecer. Então os complexos de percepção que partem dessa pessoa ao lado serão em parte novos e incomparáveis, por exemplo, seus traços no domínio visual; outras percepções visuais, por exemplo aquelas de seus movimentos da mão, coincidirão no sujeito com a lembrança de suas próprias impressões visuais, bastante semelhantes, provenientes de seu próprio corpo, e com as quais se acham em associação as lembranças de movimentos vividos por ele mesmo. Ainda outras percepções do objeto[27], por exemplo enquanto ele grita, lembram seu próprio gritar, e, de uma só vez, os acontecimentos de dor que lhe são próprios[28].

Ou seja, é graças à mãe em processo de decomposição da matrix complexa que o bebê aprende a conhecer, no geral, e a se conhecer, especificamente. O desenvolvimento do logos, isto é, da função secundária e das origens da racionalidade estaria vinculado originariamente à figura materna, segundo o Projeto freudiano.

Diferentemente do que faz Whitebook – que, como expusemos em nossa introdução, recusa por completo uma releitura do Projeto na procura pela figura materna –, é o próprio Loewald que relaciona sua teoria aos desenvolvimentos do Projeto no que se refere ao papel da mãe no desenvolvimento cognitivo, comunicacional e pulsional do bebê. Eis a longa passagem:

O reconhecimento compreensivo da necessidade da criança por parte da mãe representa uma reunião de impulsos [urges] ainda não diferenciados da criança, impulsos que, nos atos de reconhecimento e satisfação pela mãe, passam por uma primeira organização em pulsão direcionada. Em uma passagem notável no "Projeto para uma psicologia científica", em um capítulo chamado "A experiência da satisfação", Freud discute essa constelação e suas consequências para a organização posterior do aparato psíquico e em seu significado como origem da comunicação. Gradualmente, tanto o reconhecimento quanto a satisfação da necessidade se colocam ao alcance do próprio bebê em crescimento. (...) O acesso a eles deve ser disponibilizado pelo ambiente, aqui a mãe, que desempenha essa função nos atos de reconhecimento e satisfação da necessidade. (...) Toda a complexa constelação dinâmica é de responsividade mútua, onde nada é introjetado pelo bebê que não seja fornecido a ela pela mãe, embora seja fornecido muitas vezes inconscientemente[29].

            Nesse sentido, ao ser decomposto o “complexo do Nebenmensch” (no vocabulário freudiano) ou a matrix mãe-bebê (nas palavras de Loewald), as expressões de gritos, movimentações e choros do bebê, enquanto sinais de aumento de tensão energética, transformam-se nas origens da comunicação entre duas entidades ainda em diferenciação e construção. A forma de comunicação em tal ligação psíquica é, nas palavras de Freud, por “compreensão mútua” na qual a mãe atenta interpreta os sinais do bebê e este recebe com satisfação a ação específica em seu organismo[30]. É a mãe que humaniza o grito do bebê ao interpretá-lo, fornecendo sentido a suas expressões. Por meio da recepção, interpretação e resposta maternas, o bebê passa a ser inserido socialmente pelo sentido dado às suas manifestações, sentido este fornecido segundo conteúdos culturalmente determinados pela mãe enquanto “indivíduo experimentado”. É nesse sentido que o desamparo é entendido por Freud como a fonte dos motivos morais:

O organismo humano é incapaz de colocar em obra a ação específica. Ela se produz por ajuda estrangeira, quando, pela via da descarga de mudança interna, a atenção de um indivíduo experimentado é levada ao estado da criança. Essa via de descarga adquire assim a função secundária muito importante de acordo, aquela de se fazer compreender, e o desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os motivos morais[31].

Nota-se, então, como a moralidade inicia a sua constituição na fase pré-edípica, tendo como facilitador de tal processo não a figura paterna – como ocorre no declínio do complexo de Édipo e na formação do supereu –, mas a materna. Pensamos que a moralidade, nesse contexto, está relacionada à propensão social do indivíduo desde o início de sua vida, quando a mãe se encontra ligada ao bebê por meio de um complexo unívoco. O desamparo, como condição do bebê no momento do nascimento, faz da espécie humana originariamente vinculada à alteridade, esta última tomada no Projeto como a mãe amparadora inserida socialmente. A moralidade estaria relacionada, então, à vulnerabilidade e necessidade humana de proteção, o que levará não somente à construção de um amor objetal, mas também à noção idealizada de um ser amparador com o qual o sujeito se sente reunido, imerso. Modo que permite vincular ainda o desamparo, o sentimento religioso, a moralidade e o sentimento oceânico não à figura de um pai todo-poderoso, autoritário e agressivo (como figurará em textos importantes como Totem e tabu ou ainda O futuro de uma ilusão), mas à mãe amparadora, num ambiente de empatia que promove a busca por um acordo mútuo. Essa condição inicial será aquela que sustentará todas as posteriores relações afetivas ditas positivas, motivo pelo qual pode ser qualificada como fonte de sentimentos morais.

            Contudo, assim como a matrix mãe-bebê é descrita em Loewald, no complexo do Nebenmensch freudiano não há sentimentos de amparo sem tensão. Freud nos diz que a “pessoa ao lado (Nebenmensch) é simultaneamente o primeiro objeto de satisfação, e subsequentemente o primeiro objeto hostil, como a única potência que porta ajuda”[32]. A tensão na ligação mãe-bebê é importante por desfazer a imagem idílica de uma situação de completo prazer que uma bolha narcísica poderia suscitar. A hostilidade sentida pela criança ocorreria, então, pela falta de cuidados, pela ausência do seio materno ou de outra ajuda específica necessária para a sobrevivência do bebê. Contudo, a hostilidade por distanciamento materno, e não por ação ativa de agressividade, como no caso do pai no Édipo, não significa que se trata de um “mal menor”: a ausência dos cuidados maternos é a maior potência aniquiladora da vida de um ser em desamparo.

            Por fim, o último e principal tópico do Projeto a ser debatido é a possibilidade de encontrarmos o conceito de pulsão de vida no texto. Para tanto, lembremos como Eros promoveria a união cada vez maior entre o eu e o objeto em prol da vida. Isso quer dizer que, em termos loewaldianos, abordar o complexo do Nebenmensch do Projeto enquanto uma ocasião de unicidade psíquica mãe-bebê, por si só, já indica um trabalho da pulsão de vida.

Em complemento, é também trabalho de Eros a quebra de uma repetição contínua da pulsão de morte, promovendo a criação e o desenvolvimento humano. Nesse sentido, a interferência materna, que permite que o arco-reflexo da economia pulsional do bebê se complete, também leva a uma saída para além de tal sistema fechado. A repetição incessante do sistema de arco-reflexo não leva sempre ao mesmo resultado, como poderia ocorrer no caso de um trabalho exclusivo da pulsão de morte, mas a presença da mãe leva à produção de algo novo ao bebê, o que indica uma junção com a pulsão de vida. Ou seja, se a explicação do arco-reflexo está vinculada à definição da pulsão de morte, é a união com a mãe no interior deste mesmo circuito que o modificará, promovendo a vida.

Como já vimos, as primeiras transformações ocorridas no bebê indicam um desenvolvimento cognitivo da percepção, conhecimento e memória e ocorrem a partir do momento em que a mãe, no socorro contínuo das necessidades do bebê, passa a ser parcialmente conhecida, quando ela começa a se destacar do complexo unívoco. Ou seja, o aparelho psíquico do bebê é transformado pela presença da mãe. Essa transformação de um bebê desamparado em uma construção de um sujeito que descobre a si mesmo e o mundo no qual se vê inserido é a transformação de um indivíduo de passivo em ativo, as origens da criação de um sujeito como agente.

            Em tal “excursão” ou “grande caminhada” de exploração por parte do recém-nascido em um mundo que está sendo construído, basicamente feita por meio de brincadeiras infantis prazerosas para a criança, chegamos à conceituação de Eros como um outro modo de obtenção de prazer para além do modelo de descarga da tensão vinculada ao princípio de constância. Resta-nos, então, encontrarmos no Projeto um modelo de tensão sem descarga que denomina o fator qualitativo da relação entre prazer e Eros. Para tanto, lembremos que o prazer com o aumento da tensão seria sentido por via qualitativa promovida por mudanças rítmicas periódicas nas quantidades variáveis de energia psíquica.

            Nesse contexto, o que é ignorado por Whitebook em sua releitura “feminista” da teoria freudiana é que a primeira definição da hipótese da qualidade enquanto variação rítmica de energias psíquicas exibida no Problema econômico do masoquismo tem a sua primeira formulação no Projeto. Já vimos que é a presença da mãe no interior do sistema arco-reflexo que permite que este se abra para possibilidades de desenvolvimento psíquico, levando ao desmantelamento da união entre mãe e bebê e à constituição das noções de si mesmo e do mundo. Ao abordar o funcionamento da cadeia de neurônios ω relacionados à percepção do mundo exterior, Freud é levado a promover uma mudança em sua leitura quantitativa: “Os neurônios ω se comportam como órgãos de percepção” cujos conteúdos têm “caráter passageiro, de facilitação plena, que não provêm de quantidades”. A percepção de situações externas ao recém-nascido no início da decomposição da matrix mãe-bebê conduz a uma modificação do sistema arco-reflexo, levando Freud a pensar para além da hipótese quantitativa. A saída, então, seria

revisar a pressuposição fundamental sobre o curso de Qn [energia psíquica]. Até agora, eu apenas considerei o último como uma transferência de Qn de um neurônio para outro. Mas, além disso, é necessário que também possua um caráter: uma natureza temporal (...). Por uma questão de brevidade, eu chamo de período. Suponho então que toda a resistência das barreiras de contato é válida apenas para a transferência de Q, mas que o período do movimento neuronal se propaga por toda parte sem inibição, por assim dizer como um processo de indução[33].

Ou seja, enquanto a abordagem quantitativa de cadeias neuronais é explicada a partir de fluxos livres ou bloqueados de cadeias neuronais, uma abordagem qualitativa deve ser desenvolvida para explicar a expansão das capacidades psíquicas do bebê no conhecimento do mundo externo. Uma abordagem qualitativa designaria ritmos periódicos de oscilação de energias psíquicas que aumentam e diminuem seu fluxo não por causa de bloqueios (ou não) em cadeias neuronais, mas por indução própria, espalhando-se sem inibição. E Freud segue a sua explicação: “Desvios deste período psíquico, peculiar a elas, chegam à consciência como qualidades”[34]. Uma excitação monótona, isto é, invariável em seu período de aumento e diminuição de tensão psíquica, carece de qualidade.

            Esta explicação se refere ao momento de conhecimento e construção da realidade externa, situação que não aparece de modo algum relacionada ao sofrimento e desprazer no Projeto, como na explicação freudiana clássica, mas vinculada à função materna amparadora que viabiliza o desenvolvimento cognitivo do bebê. Ou seja, tais variações de tensão energética, sentidas como diferentes qualidades relacionadas à percepção de estímulos externos, vinculam-se ao inevitável desenvolvimento das funções secundárias, momento de relação do sujeito com a realidade externa que começa aqui a ser construída a partir da mãe. Contudo, devemos ressaltar um ponto bastante importante: no Projeto Freud não faz, como no texto sobre masoquismo, uma relação explícita entre prazer e tensão explicada qualitativamente. Inclusive Freud chega a dizer que as qualidades são sentidas por chegarem à “consciência” “quase isentas de quantidade”[35], como se tivessem “perdido energia” ao longo do trajeto neuronal. Mas a importante relação entre qualidade e período rítmico dotado de tensão provocado por um estímulo que não leva ao desprazer e à descarga e, portanto, desvia do sistema do arco-reflexo, torna-se vital para a nossa leitura freudiana. Como diz Loewald ao comentar o texto de 1924 – mas que se encaixa perfeitamente na nossa leitura do Projeto: “A estimulação, em tal ressonância, consistiria em algum tipo de mudança qualitativa: a organização do grau de tensão preexistente no sistema receptor é alterada”[36]. Tal mudança no grau de tensão que não aciona o arco-reflexo, não sendo descarregado, mas mantido ativo em prol do desenvolvimento cognitivo, abre caminho para uma relação entre realidade interna e realidade externa no bebê, podendo ser considerado a origem primeira da sublimação. Assim, “as tensões (...) não são suficientes para qualificar o sentir, é necessário que a tensão seja rítmica, seja um fluxo temporal, para que a experiência seja sentida como de prazer ou desprazer”[37]. Esta possibilidade de explicação energética para além de um princípio de prazer vinculado ao princípio de constância retira a estimulação de um vínculo com o meramente orgânico da pulsão de morte: há uma variação rítmica periódica de flutuação de tensões que não são sentidas como desprazer, que não acionam a descarga do circuito do arco-reflexo, mas que induzem ao desenvolvimento do bebê em prol da vida.

Assim, Eros, a força integradora que promove a vida, relacionada ao aumento de tensão sem promoção de sofrimento, já estaria presente antes mesmo da formação do eu, no período pré-edípico, como demonstramos em nossa leitura do Projeto freudiano. Com isso, o Projeto se desvia de uma leitura clássica de Freud que aborda o período pré-edípico como o bebê estando em um sistema fechado sem interferência externa, como se o recém-nascido fosse uma mônada em-si-mesmada. No Projeto, a força integradora de Eros faz com que a mãe apareça unificada ao próprio sistema psíquico inicial do bebê, permitindo que este sistema se amplie, se abra ao mundo exterior por diferenciação e construção, produzindo inclusive tensões sem descarga. Segundo nossa leitura, este texto merece ser analisado cuidadosamente em uma releitura “feminista” da teoria de Freud.

 

 

Considerações finais

 

            Nossa contribuição teórica para o campo da psicanálise e filosofia pretendeu, de um lado, seguir as inquietações de Whitebook, que procura desviar as atenções de uma leitura clássica de Freud, enfatizando a figura materna em seus escritos. Por outro lado, criticamos Whitebook por ter deixado de lado em suas análises o Projeto para uma psicologia científica de Freud. Por isso, demonstramos como este texto pode contribuir para a redefinição feminista da leitura freudiana com o reconhecimento do papel da mãe no desenvolvimento da cognição, racionalidade, moralidade, sociabilidade e realidade do bebê. Procuramos fazê-lo mediante conjunção da teoria freudiana com a teoria de Loewald, que vincula a matrix mãe-bebê à pulsão de vida e à sublimação.

            É de particular interesse a demonstração de um outro tipo de obtenção de satisfação que foge à descarga pulsional para fins de constância energética.  Se este além do princípio do prazer como constância aparece devidamente apreciado por Loewald e Whitebook em suas análises do Problema econômico do masoquismo, a novidade que adicionamos ao debate é a presença no Projeto de uma explicação qualitativa caracterizada pela manutenção de tensões energéticas sem ocasionar sofrimento e descarga. Delineamos, portanto, o embrião metapsicológico do conceito de Eros no Projeto pela possibilidade, promovida pela percepção de traços da mãe na construção do objeto externo, de uma variação rítmica periódica de flutuação de tensões que não são sentidas como desprazer, que não acionam a descarga do circuito do arco-reflexo, mas que induzem ao desenvolvimento do ser humano em prol da vida.

Em complemento, também mostramos como o estabelecimento de uma relação tensa, porém amparadora, do bebê com a mãe na fase pré-edípica configuraria o protótipo de uma possível aproximação entre realidade interna e realidade externa à qual, segundo Loewald, o sujeito retorna recorrentemente, inclusive para sublimar suas pulsões. A presença da mãe em um complexo unívoco com o bebê leva à possibilidade do estabelecimento de uma outra relação com a realidade vinculada não somente ao pai, como na teoria freudiana clássica, mas à mãe. Além disso, o desenvolvimento inicial do logos, isto é, da função secundária, cognição e racionalidade, estaria vinculado originariamente à figura materna. Foi demonstrada ainda uma possibilidade de leitura de Freud que situa o desenvolvimento da moralidade pelo desamparo desde a fase pré-edípica, tendo como facilitador de tal processo não a figura paterna, mas a materna.

 

 

Agradecimentos

 

Agradeço aos membros do grupo “Psicanálise e Teoria Crítica: teorias da subjetivação”, na figura da coordenadora Inara Marin, pertencente ao “Núcleo Direito e Democracia” do CEBRAP, pelos debates enriquecedores sobre Whitebook e Loewald que possibilitaram alguns dos desenvolvimentos deste artigo.

 

 

Referências

 

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[1] CHODOROW, The psychoanalytic vision of Hans Loewald, 897.

[2] WHITEBOOK, Hans Loewald: a radical conservative, 99.

[3] LOEWALD, Sublimation, 30.

[4] WHITEBOOK, J. Freud – An Intellectual Biography, 517.

[5] É de se considerar que a releitura do Projeto para uma psicologia científica, enfatizando a figura materna, é algo produzido principalmente por psicanalistas feministas francesas contemporâneas vinculadas à escola lacaniana, como Aramborou-Melèse, Monique Schneider e Monique David-Ménard. Talvez seja por este motivo que Whitebook tenha deixado o Projeto de lado em sua recente biografia freudiana. Afinal, Whitebook estaria mais envolvido em um debate norte-americano e britânico, o que retira o dito French Feminism de sua perspectiva teórica. Contudo, ignorar o Projeto, que enfatiza a figura materna enquanto o Nebenmensch do bebê, em uma biografia que pretende, ela mesma, redescobrir “the missing mother” nos textos de Freud constitui uma falta. Pois o Projeto é um dos poucos momentos em que Freud desenvolve hipóteses sobre recém-nascidos em suas primeiras interações maternas relacionadas ao desenvolvimento psíquico, cognitivo e moral pré-edípico. Assim, seria de se esperar que ao menos uma análise mais pormenorizada do Projeto figurasse na biografia freudiana recentemente publicada pelo teórico crítico. Para justificar a ausência de uma leitura pormenorizada de Projeto na biografia freudiana, Whitebook alega que o texto vincula o prazer ao princípio de constância. Por isso, para refutá-lo, pretendemos aqui demonstrar como o Projeto também propõe um além do princípio do prazer como constância, havendo no texto inclusive um esboço prévio do conceito de Eros.

[6] Originalmente escrito em uma carta ao W. Fliess em 1895 e publicado postumamente em 1950, o Projeto foi recebido nas décadas posteriores à sua publicação de modo restrito: exibindo uma ancoragem teórica essencialmente fisiológica e mecanicista na demonstração do desenvolvimento psíquico por hipóteses neurológicas, o texto é geralmente descartado do corpo teórico freudiano enquanto não psicanalítico. Contudo, há no texto insights importantes que serão recuperados por Freud ao longo de seus desenvolvimentos posteriores – como a teoria dos sonhos figurada no Capítulo 7 da Interpretação dos sonhos, o desenvolvimento do princípio de constância como uma pré-configuração da pulsão de morte, ou ainda a importante delimitação conceitual de das Ding retomada por Jacques Lacan em sua definição do real, para citar os principais. Aqui, iremos fazer uma distinção entre o que consideramos uma leitura de textos clássicos de Freud, em que há uma ênfase no papel masculino, da leitura “feminista” que empreenderemos do Projeto.

[7] LOEWALD, Ego and reality, 14.

[8] Segundo Loewald, o trabalho da pulsão de vida leva, entre outros, à revivescência da matrix mãe-bebê, que ocorre repetidamente com diferenciações ao longo da vida: “não é apenas uma questão de sobrevivência de estágios anteriores de integração eu-realidade, mas que as pessoas mudam consideravelmente, dia após dia, em diferentes períodos de suas vidas, em diferentes humores e situações, de um nível para outro. (…) Talvez o chamado eu plenamente desenvolvido, o eu maduro, não seja aquele que se fixou no estágio presumivelmente mais alto ou mais recente do desenvolvimento, deixando os outros para trás, mas seja um eu que integra sua realidade de tal maneira que os níveis anteriores e mais profundos de integração eu-realidade permanecem vivos enquanto fontes dinâmicas de organização superior.” (LOEWALD, Ego and reality, 18) Tendo em vista tal possibilidade, podemos dizer que os momentos em que a mulher engravida, carregando no interior de si um outro ser humano, e também quando se torna puérpera, mãe de um recém-nascido, poderiam ser concebidos como trabalhos da pulsão de vida. Contudo, se para a estrutura psíquica do bebê, a união com a mãe é originária, uma vez que ele foi gerado e se desenvolveu em um contexto intrauterino, a re-união com o bebê que acabou de sair do próprio corpo, do ponto de vista da psique da mãe, precisa ser construída. Tal construção de compreensão mútua, ligação empática, mesmo que tensa, que promove atenção e amparo vai depender da estrutura psíquica da puérpera se comportar de modo flexível, podendo se reinventar enquanto unida e devota a um outro ser humano desconhecido e dependente dela. Além de tal construção psíquica, mães e pais também promovem uma revivescência da matrix mãe-bebê pelo ambiente de recolhimento: “O fornecimento parental – e nos estágios iniciais, especialmente o maternal – de satisfação das necessidades e do suporte e canalização dos processos de maturação constituem um movimento regressivo por parte dos pais, o que minimiza a discrepância objetiva e permite que o bebê permaneça em interação integrativa com o meio ambiente.” (LOEWALD, The problem of defense and the neurotic interpretation of reality, 444) É preciso desenvolver, por um retorno à sua própria vivência da matrix mãe-bebê, uma dissolução momentânea das fronteiras do eu materno. Ressaltamos, com isso, o trabalho de Eros no retorno da puérpera a um estado de indiferenciação saudável como mais um ponto de ênfase feminista à releitura freudiana.

[9] LOEWALD, On the therapeutic action of psycho-analysis, 25.

[10] LOEWALD, Internalization, separation, mourning and the superego, 266. Sugere-se, com isso, que a capacidade de diferenciação, empreendida pelo bebê, de diferentes elementos que compõem a unidade inicial seria algo inato ao desenvolvimento humano.

[11] Cf. LOEWALD, Instinct theory, object relations and psychicstructure formation; Sublimation; The waning of the Oedipus complex.

[12] LOEWALD, Instinct theory, object relations and psychicstructure formation, 496.

[13] FREUD, O eu e o id, 37.

[14] Cf. LOEWALD, Sublimation.

[15] LOEWALD, Sublimation, 21-2.

[16] FREUD, O problema econômico do masoquismo, 196-7.

[17] Cf. LOEWALD, Instinct theory, object relations and psychicstructure formation; Sublimation; The waning of the Oedipus complex.

[18] LOEWALD, Sublimation, 29.

[19] WHITEBOOK, Freud – An Intellectual Biography, 232.

[20] LOEWALD, Ego and reality, 15.

[21] LOEWALD, Ego and reality, 16.

[22] Cf. LOEWALD, The waning of the Oedipus complex.

[23] Cf. LOEWALD, Ego and reality.

[24] BALESTRIÈRE, Freud et la question des origines, 87.

[25] FREUD, Introdução ao narcisismo, 32.

[26] FREUD, Proyecto de psicologia, 377.

[27] Não há, a essa altura da explicação freudiana no Projeto, distinção entre sujeito e objeto. Mas, com isso, não queremos dizer que não haja objeto pulsional. Concordamos com Freud e diferimos pontualmente de Loewald ao defender que as pulsões são originárias, e que há objetos pulsionais, ou seja, há meios de satisfação pulsional, mesmo que não haja objetos reais, ou melhor, ainda que o objeto materno esteja em processo de construção, sendo profundamente vinculado ainda ao complexo indistinguível entre mãe e bebê. Não podemos confundir, portanto, a “objetalidade” do objeto pulsional com a “objetividade” do objeto da realidade.

[28] FREUD, Esquisse d'une psychologie, 85.

[29] LOEWALD, On the therapeutic action of psycho-analysis, 24.

[30] Aqui, lembramos que o Projeto e a função materna que ele expõe é utilizado muitas vezes para pensar o posicionamento do analista na clínica: este exerce a “função materna” na transferência, dando continuidade à revivescência da cena do desamparo e todas as características afetivas que lhe são próprias: a atenção ao sofrimento do outro, como escuta analítica; a transferência por acordo mútuo com seus movimentos de investimento e desinvestimento libidinal; o posicionamento de um ser ao lado que lhe é semelhante, de quem o paciente se diferencia e com quem se identifica.

[31] FREUD, Esquisse d'une psychologie, 57-9.

[32] FREUD, Esquisse d'une psychologie, 85.

[33] FREUD, Proyecto de psicologia, 354.

[34] FREUD, Proyecto de psicologia, 354.

[35] FREUD, Proyecto de psicologia, 355.

[36] LOEWALD, Sublimation, 32.

[37] BALESTRIÈRE, Freud et la question des origines, 84.