DOI

Submissão: 06/07/2020 Aprovação: 20/08/2020 Publicação: 28/08/2020

 

by-nc-sa

 

Dossiê Pulsões de Vida, Pulsões de Morte

 

A crítica de Wilhelm Reich à pulsão de morte freudiana

 

Wilhelm Reich’s critique of Freudian death drive

 

Felipe Shimabukuro

Doutorado em Filosofia pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne, Paris, França

felipe.shimabukuro@malix.univ-paris1.fr  

 

 

Resumo: O objetivo deste artigo é propor uma leitura da crítica de W. Reich à noção freudiana de pulsão de morte. Para tanto, apresentaremos inicialmente três pressupostos de sua crítica: o projeto mais geral de sua obra, sua concepção de ciência e leitura da obra de Freud. Em seguida, traçaremos as linhas gerais do conteúdo da crítica propriamente dita. Num terceiro momento, veremos em que consiste a teoria das pulsões proposta por Reich como alternativa à segunda teoria das pulsões de Freud. A título de conclusão, evidenciaremos um aspecto peculiar do que se poderia chamar de “dimensão psicologista” da crítica de Reich à teoria freudiana da pulsão de morte.

Palavras-chave: Reich; Freud; Pulsão de morte; Clínica; Política

 

Abstract: This paper aims to propose a reading of W. Reich’s critique of Freudian notion of death drive. To do this we will present firstly three presuppositions of his critique: the most general project of his work, his concept of science and his lecture of Freud’s work. After that we will outline the main features of Reich’s critique of death drive as such. Thirdly we will present the drive theory proposed by Reich as an alternative to Freud’s second drive theory. Finally we will show a peculiar aspect of what we could call “psychologist dimension” of Reich’s critique of Freudian theory of death drive. 

Keywords: Reich; Freud; Death Drive; Clinic; Politics

 

 

Introdução

 

Publicado em 1920, Além do princípio de prazer é o texto em que Freud opera aquela que foi a revisão mais profunda de sua metapsicologia ao longo de quase 50 anos de produção teórica e práxis clínica. Nesse sentido, trata-se de um divisor de águas que marca a grande virada do freudismo, instaurando uma cisão entre o primeiro grande período da obra de Freud (1894-1920) e inaugurando seu segundo grande período (1920-1939). Essa ruptura decisiva e sem volta, que mudará para sempre o destino da psicanálise, foi o resultado de uma reconfiguração em dois pilares da teoria psicanalítica: o princípio de prazer (Lustprinzip) e a teoria das pulsões (Trieblehre).

O princípio de prazer é um componente fundamental da metapsicologia freudiana por duas razões. Em primeiro lugar e de modo mais explícito, por comportar uma concepção do aparelho psíquico segundo a qual ele é regulado pelo princípio homeostático de equilíbrio, isto é, um mecanismo de estabilização da quantidade de excitação psíquica em seus níveis mais baixos e constantes possíveis: “Decidimos relacionar o prazer e desprazer (Lust und Unlust) à quantidade de excitação (Quantität der Erregung) presente na vida psíquica”, de modo que “o desprazer corresponde a um aumento (Steigerung) e o prazer a uma diminuição (Verringerung) dessa quantidade”[1]. Em segundo lugar e de modo mais implícito, por pressupor certa articulação entre dois conceitos fundamentais da psicanálise, a saber, desejo (Wunsch) e repetição (Wiederholung).

Freud tematiza a relação entre desejo e repetição pela primeira vez no §11 do Projeto de uma psicologia (1895): “A vivência da satisfação” (Das Befriedigungserlebnis), parágrafo cuja estrutura argumentativa será retomada, sem sua roupagem neurologizante de 1895, no capítulo VII da Interpretação dos sonhos: “A psicologia dos processos oníricos”. Como se sabe, é nesse capítulo que Freud apresenta sua definição “canônica” do termo Wunsch (desejo) ao descrever o processo psíquico em operação na experiência de satisfação da fome vivida por um bebê. Durante a experiência de amamentação, a percepção (Wahrnehmung) dos objetos seio e leite gera uma imagem mnemônica (Erinnerungsbild) na mente do bebê, isto é, uma lembrança de tais objetos que fica associada, a partir de então, ao que Freud chama de Gedächtnisspur, um traço de memória da fome. O resultado desse processo associativo é o seguinte: quando a fome surge da próxima vez, o aparelho psíquico reinveste a lembrança do objeto que proporcionou satisfação, visando “reproduzir (wiederherstellen) a situação da primeira satisfação (der ersten Befriedigung)”[2]. Nessa passagem da Interpretação dos sonhos, o desejo (Wunsch) é justamente esse reinvestimento da lembrança de uma experiência passada de satisfação e prazer que é reativada pela memória quando a mesma necessidade reaparece no presente. Nesse sentido, o desejo é um impulso que visa reencontrar uma percepção passada do objeto, de modo que “o reaparecimento da percepção é a realização do desejo (Wunscherfüllung)”[3]. A transformação da necessidade (Bedürfnis) em desejo (Wunsch) depende, portanto, de uma primeira vivência de satisfação (Befriedigungserlebnis) da necessidade que gera o impulso e esforço de reproduzi-la e revivê-la novamente, o que significa, nas palavras de Freud, que todo desejo visa “a repetição (Wiederholung) daquela percepção que está associada à satisfação da necessidade (Befriedigung des Bedürfnisses)”[4]. Nesse contexto, é justamente essa “satisfação da necessidade” que gera o sentimento de prazer entendido como diminuição da quantidade de excitação no aparelho psíquico, ou seja, o princípio de prazer pressupõe implicitamente uma determinada relação e concepção das categorias de desejo e repetição.

A leitura que estamos sugerindo é a seguinte: embora o princípio de prazer só tenha sido nomeado e tematizado enquanto tal no artigo “Formulações sobre os dois princípios do processo psíquico” (1911), ele já estava implicitamente presente na obra de Freud sem essa denominação ao menos desde 1895 no Projeto de uma psicologia, sendo consolidado em 1900 na Interpretação dos sonhos e encarnando a figura do Eu-prazer (Lust-Ich) em 1911: “o Eu-prazer (Lust-Ich) não pode fazer nada mais além de desejar (wünschen), trabalhando para obter prazer (Lustgewinn) e evitar o desprazer (Unlust ausweichen)”[5]. Entre 1895 e 1920, todo desejo é, portanto, desejo de repetir uma experiência passada de satisfação e prazer e de evitar uma experiência passada de frustração e desprazer.

É precisamente essa concepção da tríade desejo-repetição-prazer que será o objeto da revisão metapsicológica operada em Além do princípio de prazer, texto cuja tese central poderia ser formulada do seguinte modo: contrariamente ao que havia sido sustentado até então, nem todo desejo visa a repetição de experiências passadas de satisfação e prazer, visto que quatro fenômenos clínico-culturais forçaram Freud a reconhecer a existência de um desejo cuja meta é, ao contrário, a repetição de experiências passadas de desprazer e sofrimento: os sonhos dos neuróticos de guerra, a brincadeira infantil do “Fort-da”, a repetição em situação analítica de transferência e o destino demoníaco de pessoas não neuróticas. Para Freud, o denominador comum a esses quatro fenômenos é essa modalidade de repetição até então desconhecida no campo psicanalítico, repetição enigmática que estava em flagrante contradição com o princípio de prazer. Como se sabe, o termo utilizado por Freud em 1920 para designar essa nova modalidade de repetição é Wiederholungszwang (compulsão de repetição): “a maior parte (das meiste) daquilo que a compulsão de repetição (Wiederholungszwang) nos faz reviver (wiedererleben) deve causar desprazer (Unlust) ao Eu”[6], de modo que “existe realmente na vida psíquica uma compulsão de repetição que vai além do princípio de prazer (Lustprinzip)”[7]. É em 1920 com a introdução da compulsão de repetição que Freud estabelece, portanto, que “é realmente equivocado falar de um predomínio do princípio de prazer no funcionamento dos processos psíquicos”[8].

Essa transformação no estatuto do princípio de prazer é correlativa da segunda grande reconfiguração metapsicológica operada em 1920: a substituição da primeira pela segunda versão da teoria das pulsões. Substituição que diz respeito ao conteúdo dos dois grupos fundamentais de pulsão, pois, como o próprio Freud afirma, sua teoria das pulsões sempre foi “dualista (dualistische)”[9]. Na primeira teoria das pulsões, o dualismo fundamental era entre pulsões de autoconservação (Selbsterhaltungstriebe) ou pulsões do Eu (Ichtriebe) de um lado, e pulsões sexuais (Sexualtriebe, Geschlechtstriebe) do outro. Já na segunda versão, esse dualismo inicial é substituído pela oposição entre pulsões de vida (Lebenstriebe) ou Eros e pulsões de morte (Todestriebe) ou Thanatos.

A transição da primeira para a segunda teoria das pulsões trouxe uma transformação decisiva no próprio conceito de pulsão se levarmos em conta que, ao longo de toda a obra de Freud, uma propriedade invariável da pulsão é o retorno, reprodução ou repetição de um estado passado: “Uma pulsão (Trieb) seria um impulso (Drang) instalado no interior do organismo vivo que visa a reprodução de um estado anterior (Wiederherstellung eines früheren Zustandes)[10]. A transformação no conceito de pulsão deriva de uma mudança no estatuto desse früheren Zustandes. Como vimos, entre 1895-1920, ele é concebido em termos de experiência passada de satisfação e prazer vivenciada pelo sujeito, ao passo que, a partir de 1920, a meta da pulsão de morte é o retorno a um estado anterior à vida que jamais foi vivenciado pelo sujeito, isto é, o estado da matéria inorgânica enquanto ser morto e inanimado: “todo ser vivo morre de causas internas, retornando ao inorgânico”, pois “a meta de toda vida é a morte” na medida em que “o ser inorgânico existiu antes do ser vivo (Das Leblose war früher da als das Lebende)”[11].

Tendo em vista os quatro componentes da pulsão – fonte (Quelle), impulso (Drang), objeto (Objekt) e meta (Ziel) –, essa transformação implica a introdução, em 1920, da distinção entre duas metas pulsionais heterogêneas, isto é, entre as pulsões “que querem levar a vida à morte, e as outras, as pulsões sexuais, que sempre aspiram e impõem a renovação da vida”[12]. Ora, na primeira teoria das pulsões, a meta de ambos os grupos de pulsão é a promoção, conservação e expansão da vida através da obtenção de prazer e afastamento do desprazer. Somente na segunda versão existe uma diferença de natureza quanto à meta pulsional, no sentido de que apenas a pulsão de vida visa o prazer e afirmação da vida, ao passo que a meta da pulsão de morte é o desprazer e negação da vida. O principal sentido da pulsão de morte é, portanto, introduzir na teoria psicanalítica a existência de um desejo inato, biológico e imutável cuja meta é o desprazer, sofrimento, (auto)destruição e morte, daí a relativização da tríade antes absoluta desejo-repetição-prazer e a emergência da tríade desejo-repetição-desprazer em 1920.

Uma das principais diferenças entre o primeiro e segundo períodos da obra de Freud está assentada, assim, em duas concepções metapsicológicas distintas da relação entre desejo e repetição que implicam, por sua vez, uma transformação na teoria psicanalítica da gênese do sofrimento psíquico: para o Freud antes de 1920, sempre desejamos e procuramos o prazer e felicidade, de modo que todo desprazer, sofrimento e infelicidade nos são impostos pelo princípio de realidade, isto é, o mundo exterior (natureza e sociedade). Já para o Freud pós 1920, nem sempre desejamos o prazer e felicidade, dado que muitas vezes somos impulsionados e coagidos pela pulsão de morte e compulsão de repetição a procurar o desprazer, sofrimento e infelicidade. Nesse caso, o sofrimento não deriva tanto e apenas da realidade do mundo exterior, mas também e sobretudo do nosso próprio desejo de sofrer, do nosso estranho desejo masoquista de gozar com o desprazer, da nossa pulsão de morte.

No ano de comemoração do centenário de Além do princípio de prazer, o objetivo deste artigo é propor uma leitura de um capítulo decisivo, mas talvez não tão conhecido e explorado, do destino e história de recepção desse texto de Freud: a crítica de Reich à noção freudiana de pulsão de morte. Para tanto, apresentaremos inicialmente três pressupostos que nos parecem indispensáveis para delimitar o contexto mais amplo de questões em que se situa a crítica reichiana à pulsão de morte: o projeto geral da obra de Reich, sua concepção de ciência e leitura da obra de Freud. Em seguida, procuraremos traçar as linhas gerais do conteúdo da crítica propriamente dita. Num terceiro momento, apresentaremos a teoria das pulsões proposta por Reich como alternativa à segunda teoria das pulsões de Freud. A título de conclusão, evidenciaremos um aspecto peculiar do que se poderia chamar de “dimensão psicologista” da crítica de Reich à teoria freudiana da pulsão de morte.

 

 

Três pressupostos da crítica de Reich à noção freudiana de pulsão de morte

 

O projeto mais geral que anima toda a obra de Reich é promover a conjunção de dois termos em suas diferentes figuras e variações: psicanálise e marxismo, psicologia e sociologia, desejo e campo social, sexualidade e política, economia libidinal e economia política, produção de subjetividade e produção econômica, estrutura psíquica e formação social, superestrutura ideológica e infraestrutura econômica, revolução sexual e revolução social, clínica e militância. Num primeiro momento da sua obra, Reich utiliza a expressão “dialektisch-materialistische Psychologie (psicologia materialista-dialética) para designar seu projeto freudo-marxista de conjunção entre psicanálise e revolução, expressão que será posteriormente substituída pelo termo “Sexualökonomie” (economia-sexual).

O projeto reichiano de uma psicanálise revolucionária surgiu como algo totalmente inovador e subversivo no horizonte de sua época se considerarmos o estatuto da psicanálise e do marxismo na segunda metade da década de 1920:

Freud rejeitou por princípio as relações entre marxismo e psicanálise, qualificando as duas disciplinas como contraditórias. O mesmo ponto de vista é defendido pelos representantes oficiais da IIIª Internacional Comunista. Em ambos os campos fui colocado diante da alternativa (die Alternative) de escolher entre psicanálise e marxismo revolucionário[13].

Toda a obra de Reich visa superar essa alternativa. Pois, aos seus olhos, ela havia produzido dois efeitos negativos decisivos. Por um lado, Freud e grande parte dos psicanalistas “negligenciavam totalmente a questão central da sociologia marxista: a luta de classes (Klassenkampf)”[14]. Por outro lado, “não havia nada a respeito da política-sexual (Sexualpolitik) nem em Marx, nem em Lênin”[15]. Nesse contexto, superar a alternativa “psicanálise ou marxismo” significava, portanto, introduzir a dimensão política da luta de classes na psicanálise e a dimensão sexual do inconsciente no marxismo.

Esse projeto levou Reich a adotar uma concepção de ciência que possui duas características fundamentais. 1) Toda ciência possui implicações sócio-políticas. 2) Existem dois tipos de ciência: uma ciência reacionária e ideológica que nega seu caráter e implicações políticas, estando a serviço da ordem dominante e adaptação social, legitimando a forma de vida capitalista através de argumentos pseudo-científicos que se mascaram por detrás da pretensa neutralidade objetiva; por outro lado, uma ciência revolucionária e autêntica que não mascara seu caráter e implicações políticas, que em sua pesquisa e busca pela verdade produz efeitos revolucionários no campo social, estando a serviço do proletariado:

[…] o destino do movimento operário é determinado pelo sucesso do trabalho científico que não está disposto a nenhuma concessão às limitações impostas pela visão de mundo burguesa. Isso também vale para as ciências sociais em geral e a economia-sexual em particular. Cada nova descoberta nesse campo tem consequências revolucionárias quase imediatas[16].

Queremos opor à ciência conscientemente reacionária uma ciência conscientemente revolucionária, que se reconheça abertamente como orientada pelas finalidades do movimento operário, colocando-se a seu serviço[17].

A ciência firme e consequente é em si revolucionária, desenvolvendo automaticamente consequências práticas, e a política socialista não é, no fundo, nada mais do que a práxis da visão de mundo científica (wissenschaftlichen Weltanschauung)[18].

Essa concepção política de ciência levou Reich a ler o conjunto da obra de Freud não apenas do ponto de vista clínico-científico mas também sócio-político. Nesse sentido, ele foi o primeiro psicanalista militante a ler Freud com a preocupação de localizar, detectar e explicitar as implicações políticas da teoria e práxis freudianas. Na leitura de Reich, a obra de Freud se define pelo caráter essencialmente contraditório de suas descobertas revolucionárias e desvios reacionários:

Em Freud, encontram-se de fato formulações que privam as descobertas clínicas psicanalíticas de seu vigor e efeito revolucionários no campo da cultura (kulturrevolutionäre Rasanz und Wirkung), o que expressa a total contradição (den ganzen Widerspruch) entre o cientista natural e o filósofo da cultura burguês[19].

A psicanálise revolucionária de Reich se constituiu, grosso modo, a partir de dois grandes eixos de leitura da obra de Freud. Por um lado, a apropriação, desdobramento e radicalização de seus aspectos revolucionários e materialistas. Por outro lado, a crítica, abandono e depuração de seus desvios e degradações reacionários e idealistas. Nesse sentido, toda leitura e crítica reichianas do conjunto da obra de Freud estão calcadas na seguinte ideia:

O debate fundamental entre materialismo dialético e psicanálise burguesa terá que provar em primeiro lugar onde o Freud cientista entra em conflito com o Freud filósofo burguês; onde a pesquisa psicanalítica corrige o conceito burguês de cultura e onde o conceito burguês de cultura impede, confunde e extravia a pesquisa científica. “Freud contra Freud” (Freud against Freud) é o tema central da nossa crítica[20].

          Crítica que se desdobra em duas direções. Por um lado, Reich critica Freud por não ter tirado as consequências políticas da dimensão revolucionária da teoria e práxis psicanalíticas, isto é, o modelo energético da libido e a etiologia sexual do sofrimento psíquico. Por outro lado, critica ao mesmo tempo uma série de conceitos e noções freudianas que possuem, aos seus olhos, implicações reacionárias no campo sócio-político. Nesse sentido, seus principais alvos são: Totem e tabu (1910) e a antropologia patriarcal de Freud; O Eu e o Isso (1923) e as noções de Eu forte e Eu fraco associadas à capacidade de suportar frustrações e à maturidade psíquica que possibilita a adaptação social ao princípio de realidade capitalista; O problema econômico do masoquismo (1924) com seu sexismo e noção de necessidade de punição (Strafbedürfnis) e, por fim, O mal-estar na civilização (1930) e sua filosofia burguesa da cultura. Ora, dentre esses diversos alvos encontra-se Além do princípio de prazer e a crítica às noções de pulsão de morte e compulsão de repetição.

 

 

A crítica de Reich à pulsão de morte

 

A crítica da pulsão de morte é sem dúvida um dos temas mais recorrentes e insistentes do pensamento de Reich, aparecendo em diversas passagens e momentos de sua obra[21]. Seu argumento central consiste na problematização do caráter especulativo, idealista e metafísico da pulsão de morte, ou seja, sua ausência de base e evidência empírica, materialista e científica. Aqui cabe ressaltar que o próprio Freud alerta seu leitor para o caráter altamente especulativo da pulsão de morte: “O que se segue é especulação (Spekulation), com frequência especulação altamente prolixa (weitausholende Spekulation), que cada um negligenciará ou reconhecerá de acordo com sua disposição particular”[22]. Mais à frente, ainda reconhece que, devido a seu caráter altamente especulativo, a segunda teoria das pulsões não é tão segura e confiável quanto a primeira: “Não ignoro que o terceiro passo na teoria das pulsões que estou empreendendo aqui não pode reivindicar a mesma segurança (Sicherheit) que os dois anteriores”[23].

Para Reich, a primeira teoria das pulsões, com sua oposição entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação, possuía uma base materialista, empírica e cientificamente observável, ao passo que a pulsão de morte é, para ele, um grande desvio idealista e reacionário da psicanálise freudiana:

Enquanto o fundamento corporal das necessidades sexuais e alimentares é inequívoco, o conceito de pulsão de morte (Todestriebes) carece de uma fundamentação material (materiellen Fundierung) tão clara, pois o recurso ao processo orgânico de dissimilação diz mais respeito a uma analogia formal provisória do que a um parentesco de conteúdo. Apenas quando uma relação real (reale Beziehung) da “pulsão de morte” corresponder ao processo de autodestruição no organismo, ela é materialista (materialistisch). No entanto, não se pode negar que seu conteúdo obscuro e a impossibilidade de apreendê-la enquanto tal do mesmo modo que a libido, fazem com que a pulsão de morte se torne facilmente um refúgio para especulações idealistas e metafísicas (idealistischer und metaphysischer Spekulationen) sobre a vida psíquica. Ela já deu margem a muitos mal-entendidos na psicanálise, conduziu a formações teóricas finalistas e a exageros das funções morais, o que consideramos um desvio idealista da psicanálise (idealistische Abweichung der Psychoanalyse). De acordo com o próprio Freud, a “pulsão de morte” é uma hipótese que está além da clínica, no entanto, não pode ser um mero acaso o fato de que ele opere de bom grado com ela e que tenha aberto as portas e janelas a especulações inúteis na psicanálise. A título de reação à orientação idealista que se desenvolveu na psicanálise com essa hipótese recente sobre as pulsões, meu esforço consiste em apreender até mesmo a pulsão de destruição como dependente da libido, reorientá-la, portanto, em direção de uma teoria materialista da libido (materialistischen Libidotheorie)[24].

Durante entrevista concedida a Kurt Eissler em 1952, Reich relata que ficou perplexo com a hipótese da pulsão de morte e decidiu falar com Freud a respeito. Eis o que Freud lhe disse: “Continue tranquilamente com seu trabalho clínico. O que apresentei aí é apenas uma hipótese […] Ela não é fundamentalmente essencial para o edifício da psicanálise[25]. Essas afirmações nos permitem entender melhor o sentido e alcance da noção de pulsão de morte dentro do conjunto da obra de Freud. Por um lado, a psicanálise existiu durante aproximadamente 20 anos sem ter tido necessidade da pulsão de morte, o que significa, nas palavras de Freud, que “Ela não é fundamentalmente essencial para o edifício da psicanálise”. Aqui seria importante lembrar, por exemplo, que os cinco modelos de caso clínico de Freud (Dora, Homem dos lobos, Homem dos ratos, Pequeno Hans e Schreber) foram todos redigidos e publicados antes da hipótese da pulsão de morte, ou seja, o modelo clínico de tratamento psicanalítico legado pelo próprio Freud opera sem a pulsão de morte. Por outro lado, Freud disse a Reich que a pulsão de morte é apenas uma hipótese especulativa que não altera em nada a prática clínica, o que suscita a seguinte questão: se a pulsão de morte não é essencial para o edifício psicanalítico, se ela não muda em nada a prática clínica, qual seria, então, seu sentido dentro da teoria e práxis psicanalíticas?

A maior originalidade e relevância da crítica de Reich é justamente formular uma resposta a essa questão: a pulsão de morte possui um sentido clínico, político e biográfico cujas consequências são altamente problemáticas aos seus olhos. O objetivo central deste artigo é, portanto, divulgar, fazer circular e tornar mais conhecidos estes três sentidos da noção freudiana de pulsão de morte e suas consequências, isso num momento em que temos visto um uso cada vez mais banalizado, indiscriminado e acrítico da expressão “pulsão de morte”: talvez muitas pessoas que a usam não saibam muito bem o que estão fazendo, talvez não tenham clareza e discernimento sobre suas implicações clínicas e políticas, como nós mesmos não tínhamos antes de ler a obra de Reich.

Do ponto de vista clínico, foi sobretudo o problema “do masoquismo que impulsionou à solução e à hipótese infeliz de uma pulsão de morte e de uma compulsão de repetição além do princípio de prazer”[26]. A articulação entre pulsão de morte e masoquismo foi mobilizada por Freud para explicar, entre outras coisas, certas dificuldades aparentemente insuperáveis e fracassos no tratamento analítico, isso no sentido de que muitos pacientes supostamente não desejariam se curar de sua neurose pois encontrariam justamente nessa forma de sofrimento psíquico uma satisfação de seu desejo masoquista de sofrer. Isso fica claro se lembrarmos que, em “O problema econômico do masoquismo” (1924), Freud distingue três formas de masoquismo – erógeno, feminino e moral –, definindo o masoquismo moral pelo sentimento inconsciente de culpa (unbewußtes Schuldgefühl). No entanto, o fato de muitos pacientes não acreditarem na existência de tal sentimento levou Freud a abandonar “a denominação psicologicamente incorreta de ‘sentimento inconsciente de culpa’ (unbewußtes Schuldgefühl) e dizer, para designá-lo, ‘necessidade de punição’ (Strafbedürfnis)”[27], isto é, “uma necessidade que encontra sua satisfação na punição e sofrimento (Strafe und Leiden)”[28]. Ora, em 1924, Freud reconhece que a necessidade masoquista de punição é um dos maiores obstáculos ao sucesso do tratamento analítico:

A satisfação desse sentimento inconsciente de culpa é, talvez, o guardião mais poderoso do ganho com a doença (Krankheitsgewinnes), composto, via de regra, pelo quantum de energia que se opõe à cura (Genesung) e não quer abdicar da doença; o sofrimento que a neurose traz consigo é justamente o momento através do qual ela torna a tendência masoquista plena de valor (wertvoll)[29].

Para Reich, a consequência da pulsão de morte e sua manifestação clínica na figura do masoquismo é um pessimismo e niilismo clínico-cultural que são denunciados nos seguintes termos:

A pulsão de morte se manifesta em aspirações masoquistas. Por causa de tais aspirações, os pacientes neuróticos “se recusavam” a melhorar. Eles alimentavam o sentimento inconsciente de culpa, que também poderia se chamar de necessidade de punição. Os pacientes simplesmente não queriam melhorar porque essa necessidade de punição, que encontrava satisfação na neurose, os impedia. Reik me fez perceber onde Freud começou a errar[30].

Se manifestações cotidianas abertas e ocultas do sadismo e brutalidade humanas eram a expressão de uma força pulsional biológica e, portanto, natural, havia poucas esperanças para a terapia das neuroses ou para as perspectivas culturais altamente estimadas[31].

Aqui seria pertinente lembrar como Ferenczi trouxe à tona e denunciou o niilismo clínico de Freud. No dia 4 de agosto de 1932 de seu Diário clínico, ele escreve uma série de notas que explicitam um pessimismo que Freud só ousava expressar a seus colaboradores mais próximos, ou seja, trata-se de algo que não era, e talvez ainda não seja, conhecido do grande público:

[…] nós aprendíamos com ele [Freud], e as modalidades de sua técnica, diferentes coisas que tornavam a vida e o trabalho mais cômodos: retrair-se pacificamente, sem emoção, apoiar-se imperturbavelmente nas teorias e no fato de aprender mais, procurar encontrar as causas do fracasso do tratamento no paciente ao invés de assumir nossa parcela de responsabilidade. A desonestidade que consiste em reservar a técnica à sua própria pessoa, o conselho de não deixar os pacientes saberem nada a respeito da técnica e, por fim, o ponto de vista pessimista comunicado a alguns íntimos: os neuróticos são uma ralé, são bons apenas para nos sustentar financeiramente e para nos instruirmos a partir de seus casos: a psicanálise como terapia não teria nenhum valor. Foi nesse ponto que me recusei a seguir Freud[32].

A pulsão de morte possui, assim, um duplo sentido clínico: por um lado, culpar o paciente e seu masoquismo por seu próprio sofrimento e fracasso do tratamento analítico, por outro, isentar, eximir o analista de sua parcela de responsabilidade por tais fracassos. Winnicott foi um dos que melhor entendeu a relação entre pulsão de morte e necessidade masoquista de punição ao escrever: “O conceito de pulsão de morte pode ser descrito como uma reafirmação do princípio do pecado original (original sin)”[33]. Eis o sentido clínico da pulsão de morte enquanto dispositivo pastoral e cristão[34] de poder mobilizado por Freud na época em que, segundo Ferenczi, ele já não acreditava mais na psicanálise como método terapêutico. O texto mais emblemático desse niilismo é o artigo considerado como testamento clínico de Freud: “Die endliche und die unendliche Analyse”, de 1937. Nele, temos quatro fortes indícios da impotência da clínica psicanalítica diante do sofrimento psíquico. O primeiro deriva justamente da hipótese da pulsão de morte e do masoquismo enquanto maiores resistências ao sucesso do tratamento:

Não existe impressão mais forte das resistências durante o trabalho analítico do que a de uma força que se defende com todos seus meios contra a cura, querendo agarrar-se totalmente à doença e sofrimento. Nós reconhecemos uma parcela dessa força, certamente com razão, enquanto sentimento de culpa ou necessidade de punição[35].

O segundo indício é o obstáculo imposto pela famosa rocha (Fels) aparentemente intransponível da castração, isto é, a angústia do menino diante da perda do pênis[36] e a dita Penisneid, a inveja que a menina sente do menino por ele ter um pênis e ela não. O terceiro indício se refere ao que Freud chama de três “profissões impossíveis” (unmöglichen Berufe): analisar, educar e governar[37]. Pulsão de morte masoquista, rocha da castração, impossibilidade da profissão de analista estão intimamente ligadas ao quarto indício de impotência que remete ao próprio título do artigo de 1937: é dessas três dificuldades maiores impostas ao trabalho analítico que surge, entre outras coisas, a ideia de uma análise que nunca termina, nunca chega ao fim. Ora, se admitirmos com Ferenczi que em determinado momento Freud já não acreditava mais no tratamento analítico e que só continuava analisando seus pacientes para aprender com seus casos e ganhar dinheiro, fica patente a relação entre a ideia de uma análise sem fim e interminável e o desejo do analista de ter uma fonte segura de renda fixa: “Nenhuma preocupação com a duração da análise, até mesmo uma tendência a prolongá-la por razões financeiras: se quisermos, podemos transformar os pacientes em contribuintes vitalícios”[38].

O sentido político da pulsão de morte deriva, por sua vez, do fato de ela ter implicado uma reconfiguração de dois pontos nodais da teoria psicanalítica, a saber, o conflito originário da neurose e a gênese do sofrimento psíquico. De acordo com a primeira teoria das pulsões, o conflito originário reside na oposição entre pulsão sexual e repressão social: a ameaça social de punição (castração) enquanto limitação da satisfação pulsional provoca angústia no sujeito desejante. Essa angústia ativa, por sua vez, a pulsão narcísica de autoconservação, que entra, assim, em conflito com a pulsão sexual, o que leva o sujeito neurótico a renunciar à satisfação pulsional enquanto defesa do Eu diante da angústia de ser castrado e punido pela sociedade: “a neurose surge de um conflito entre exigências pulsionais sexuais e angústia diante das punições ameaçadoras e reais da sociedade patriarcal por causa da atividade sexual”[39]. Dessa versão do conflito originário da neurose deriva a seguinte resposta à questão da gênese do sofrimento psíquico: “O sofrimento vem da sociedade, e temos todo direito de questionar por que ela produz sofrimento, quem tem interesse nisso”[40]. Ora, se o conflito originário da neurose é o conflito entre pulsão sexual e repressão social, de onde se segue que o sofrimento psíquico vem da sociedade, logo a medida mais radical de combate e profilaxia do sofrimento psíquico consiste no esforço de transformação radical da sociedade ou, na linguagem de Reich, numa revolução sexual: eis a consequência política revolucionária da primeira teoria das pulsões e do conflito originário da neurose.

Ora, com a introdução da pulsão de morte e o surgimento da segunda teoria das pulsões, tanto o conflito originário da neurose quanto a gênese do sofrimento psíquico sofrem uma transformação decisiva. Pois, antes “se dizia que a neurose surge do conflito: pulsão X mundo exterior (libido X medo da punição)”, ao passo que “hoje em dia se diz que ela surge do conflito: pulsão X necessidade de punição (libido X desejo de punição), o que significa exatamente o contrário do até então vigente”[41]. A partir de 1920, o conflito originário da neurose deixa de ser, portanto, entre pulsão sexual e sociedade e passa a ser entre pulsão de vida e pulsão de morte, o que implica um “deslocamento da origem do sofrimento do mundo exterior e sociedade para o mundo interior, com seu retorno a uma tendência biológica”[42]. Para Reich, esse deslocamento e interiorização do sofrimento psíquico nos permitem entender o sentido político reacionário da pulsão de morte. Pois, se é a sociedade que produz sofrimento psíquico, trata-se de transformar essa mesma sociedade que nos faz sofrer, ao passo que, se é a pulsão de morte e a compulsão de repetição que produzem sofrimento psíquico, toda luta por transformação social perde seu sentido, já que não alteraria em nada a pulsão de morte enquanto impulso biológico universal do organismo. Com a hipótese da pulsão de morte, Freud transformou, portanto, sua resposta à questão da origem do sofrimento: “ao invés da tese: ‘do mundo exterior, da sociedade’ [aus der Gesellschaft]”, ele passou a empregar a “fórmula: ‘da vontade biológica de sofrer, da pulsão de morte e da necessidade de punição’”[43].

Na leitura de Reich, a dimensão revolucionária de crítica social da psicanálise começa a desaparecer com a hipótese da pulsão de morte em 1920, sendo gradualmente enterrada através de um processo que transformará a psicanálise cada vez mais num aparelho ideológico a serviço do controle e adaptação social: “A teoria da vontade biológica de sofrer poupava embaraços. Seu postulado e aceitação eram provas de que a psicanálise poderia ‘adaptar-se à cultura’”[44].

 

 

A teoria reichiana das pulsões

 

A teoria reichiana das pulsões está assentada na distinção entre dois grupos fundamentais de pulsão, a saber, “as pulsões biológicas naturais (die natürlichen biologischen Triebe) e as pulsões antissociais secundárias (den sekundären antisozialen Trieben)”[45]. O primeiro grupo compreende as “necessidades biológicas (biologischen Bedürfnisse) – alimentação (Ernährung) e prazer sexual (Sexuallust)”[46], correspondendo, assim, à primeira teoria das pulsões de Freud e sua oposição entre pulsões sexuais e de autoconservação, designadas por Reich como pulsões primárias de vida ou libido enquanto energia sexual-vital. Para Reich, a pulsão de vida ou libido é regida pelo princípio de prazer: “A vida vegetativa do ser humano, que ele compartilha com toda natureza viva, aspira pelo desenvolvimento, atividade, prazer e evita o desprazer”[47].

Até aqui Reich apenas retoma a primeira teoria das pulsões de Freud com sua própria terminologia. Sua singularidade reside no estabelecimento de uma distinção ausente dos textos freudianos, a saber, entre pulsão de agressão (Aggressionstrieb) ou agressividade natural (natürliche Aggressivität) e pulsão antissocial secundária (sekundärer antisozialer Trieb). Para Reich, a agressividade natural ou pulsão de agressão é um componente inerente à própria pulsão primária de vida, sendo observável não somente nos seres humanos mas também em outros animais:

No animal, a pulsão de destruição (Destruktionstrieb) só se manifesta enquanto pulsão oral de aniquilamento a serviço da autoconservação (Selbsterhaltung) ou a serviço da defesa da vida (Verteidigung des Lebens). O predador carnívoro aniquila objetos apropriados quando a fome exige. Predadores vivendo no zoológico são inofensivos quando estão plenamente saciados. Sua agressividade diante de estranhos corresponde a um perigo instintivamente pressentido; isso atesta seu comportamento de oposição contra o domador (gegen den Dompteur)[48].

Na própria pulsão de vida existe, portanto, um componente de agressividade e destruição vitais, ou seja, sempre subordinado à pulsão de vida, à afirmação da vida, como no ato de comer ou de defender a vida de perigos que a ameaçam. O exemplo de Reich é, aliás, bastante instrutivo: a agressividade e violência natural do animal dirigida ao domador, adestrador. Transposto ao campo político, trata-se da agressividade e violência dirigidas às autoridades e poderes que mutilam, aprisionam e asfixiam a vida através de seus sistemas de dominação, repressão e exploração: destruição revolucionária do poder em nome da afirmação da vida.

Em Reich, existem portanto duas formas distintas de destruir: destruir em nome da vida e destruir em nome da morte: “Uma criatura viva desenvolve um impulso destrutivo quando quer destruir uma fonte de perigo. Nesse caso, a destruição ou morte do objeto é a meta biologicamente apropriada. O motivo original não é o prazer na destruição”, pois “a destruição está a serviço da ‘pulsão de vida’”[49]. Ou ainda: “Um animal não mata outro animal porque tem prazer em matar. Mata porque está com fome ou porque sente que sua vida está sendo ameaçada. Assim, aqui também a destruição está a serviço da ‘pulsão de vida’”[50].

A destruição e agressividade inerentes à pulsão de vida se distinguem das pulsões secundárias antissociais, que se definem pelo fato de não visar a afirmação da vida mas, pelo contrário, sua negação e destruição. Tais pulsões são ditas secundárias no sentido de que derivam da frustração e insatisfação das pulsões primárias de vida. Ou seja, aquilo que Freud chamou de pulsão de morte é um subproduto derivado da insatisfação e frustração na vida, sobretudo sexual: “a destrutividade ligada ao caráter nada mais é do que a raiva que a pessoa sente devido à sua frustração na vida e falta de satisfação sexual[51]. A pulsão antissocial secundária de Reich não é, portanto, um impulso biológico, inato e universal como a pulsão de morte freudiana. Ela é um produto social variável em função dos níveis de frustração, sofrimento e infelicidade produzidos por diferentes formas de organização social.

A teoria reichiana das pulsões poderia ser resumida do seguinte modo: somente a pulsão de vida (alimentação e sexualidade) com seus componentes agressivo e destrutivo é primária, ou seja, inerente ao organismo humano desde sempre; a pulsão de morte no sentido freudiano é, por sua vez, uma pulsão secundária antissocial, ou seja, não é inerente ao organismo humano, sendo derivada da insatisfação e frustração da pulsão de vida:

No meu trabalho clínico, nunca encontrei uma pulsão de morte, uma vontade de morrer enquanto pulsão primária correspondente à sexualidade ou à fome. Todas as manifestações psíquicas que poderiam ser interpretadas como “pulsão de morte” provaram ser produtos da neurose[52].

 

 

Conclusão: pensamento como sintoma de uma forma de vida

 

A crítica de Reich à pulsão de morte está baseada, por fim, na ideia de que toda filosofia, pensamento e teoria são, em última instância, um sintoma do maior ou menor grau de vitalidade de seu autor. Nesse sentido, ele é bastante nietzscheano se lembrarmos daquilo que Nietzsche dizia sobre a relação entre o filósofo e sua filosofia: “Pouco a pouco tornou-se claro para mim o que foi toda grande filosofia até então, a saber, o autoconhecimento de seu autor e uma espécie de mémoires involuntárias e inadvertidas”[53]. Na leitura deleuzeana, isso significa que “temos sempre as crenças, sentimentos e pensamentos que merecemos em função do nosso modo de ser ou do nosso estilo de vida”[54].

Para entender como Reich concebe a gênese da pulsão de morte a partir da biografia de Freud, é necessário termos em mente duas coisas: a orientação geral de suas pesquisas a partir da década de 1930 até o fim de sua vida e, em particular, sua pesquisa sobre o câncer.

O projeto de uma psicanálise revolucionária fez com que Reich fosse expulso tanto do Partido Comunista Alemão em 1933, quanto da Associação Psicanalítica Internacional durante o Congresso Internacional de Psicanálise em Lucerna (1934). A partir de então, ele foi se afastando cada vez mais do freudismo e do marxismo até se desligar totalmente dos movimentos psicanalítico e revolucionário, porém, sem nunca ter abandonado ou renegado os elementos originariamente revolucionários do pensamento de Freud e Marx, como se existissem Freud e Marx de um lado, freudismo e marxismo do outro: “caí fora dessa bagunça freudiana e marxista e peguei a estrada que leva aos princípios de funcionamento comum que subjazem às descobertas de Freud e Marx”[55].

Após a ruptura com o freudismo e marxismo, toda a pesquisa de Reich terá como objeto central a noção de Orgone, que surge da tentativa de transformar a libido freudiana, entendida como energia vital humana não mensurável e calculável empiricamente, numa energia vital cósmica quantificável, mensurável e calculável através de experimentos:

Aquilo que funciona automaticamente em você é o que chamo de bioenergia. Ela é concreta. A libido, porém, era apenas um termo para um conceito. A Energia da Vida é algo que você pode ouvir no laboratório. Você pode ouvi-la com instrumentos. Esse é o significado da transição da teoria da libido para a energia física concreta[56].

É dessa exigência científico-natural de quantificação, medida e cálculo que derivam todos os experimentos de Reich com os bíons, acumuladores de Orgone e cloudbusters enquanto diferentes meios de demonstração empírica da existência do Orgone enquanto energia cósmica da vida presente em todo o Universo.

Essa reorientação das pesquisas de Reich está na origem da transição da análise do caráter para a vegetoterapia ou bioenergética e suas últimas considerações sobre a pulsão de morte no artigo “Re-emergence of Freud’s ‘death instinct’ as ‘DOR’ energy” (1956). Onze anos após a publicação desse artigo, Reich explica o essencial da noção de DOR e sua relação com a pulsão de morte e o câncer nos seguintes termos:

Aquilo que Freud sentiu como pulsão de morte, aquilo que ele queria apreender com ela, aquilo que sentiu no ser humano, era uma certa qualidade mortífera. Aquilo que chamamos hoje em dia de DOR [energia orgone mortífera] no sentido físico. Existe uma energia orgone mortífera. Ela está na atmosfera […] Trata-se de uma qualidade pantanosa. Você sabe o que são pântanos? Água estagnada e morta que não flui, que não metaboliza. O câncer também é causado por uma estagnação. O câncer é causado por uma estagnação do fluxo da energia vital no organismo. Freud estava tentando, portanto, apreender tal qualidade. Hoje sei que ele sentia algo no organismo humano que era mortífero. Mas pensou isso em termos de pulsão. Então, cunhou a expressão “pulsão de morte”. Isso estava errado. “Morte” estava certo. “Pulsão” estava errado. Isso porque não se trata de algo que o organismo deseja. Trata-se de algo que acontece ao organismo. Logo, não se trata de uma pulsão[57].

Em 1948, Reich publica os resultados de sua pesquisa sobre o câncer no segundo volume de A descoberta do Orgone intitulado Câncer (Krebs). A tese central do livro é que o tumor cancerígena é apenas o resultado final e sintoma visível de um longo processo de desvitalização e perda do desejo de viver derivados da estagnação da energia vital no organismo: “a morte por câncer […] é o resultado final da doença biológica sistêmica ‘câncer’, que é causada por um processo de desintegração na totalidade do organismo”[58].

Para Reich, o câncer de Freud no maxilar diagnosticado em 1924 foi o resultado final de um longo processo de estagnação de sua energia vital marcado por quatro grandes momentos. O primeiro diz respeito à repercussão da tese sobre a sexualidade infantil, que provocou um grande escândalo à época: Freud tornou-se objeto de ostracismo social, ridicularização e ódio por parte de seus detratores. Em segundo lugar, ele testemunhou os horrores da Primeira Guerra mundial, assim como a pandemia de gripe espanhola que assolou o mundo entre 1918 e 1920, matando sua filha Sophie em 1920. Em terceiro lugar, Freud teve um casamento bastante infeliz e, para Reich, “o câncer é uma biopatia sexual (doença de privação sexual)”, visto que “o orgasmo é uma função fundamental de toda atividade vital[59]. Em quarto lugar, “por volta de 1924, alguma coisa aconteceu […] Freud desistiu de todos os encontros e congressos […] E desenvolveu seu câncer no maxilar nessa época”[60]. Logo em seguida Reich se pergunta: “Por que ele desenvolveu o câncer justamente nesse momento? Freud começou a resignar-se”[61]. Na teoria de Reich, existe uma relação profunda entre resignação diante da vida e câncer:  “o câncer […] é uma doença que se segue a uma resignação emocional – uma atrofia bioenergética, um abandono da esperança”[62], ou seja, a “resignação sem protesto aberto ou velado contra a negação da alegria de viver deve ser considerada como uma das causas essenciais da biopatia do encolhimento[63]. Depois de tudo isso, Freud ainda teve a grande infelicidade de testemunhar a ascensão do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, morrendo poucas semanas antes da eclosão da Segunda Guerra mundial. Em 1938, ele escreveu: “Vivemos numa época particularmente estranha. Descobrimos com espanto que o progresso fez aliança com a barbárie”[64].

Para Reich, a pulsão de morte não é um dado natural, biológico e universal inerente ao organismo humano. A pulsão de morte é uma mera hipótese especulativa com implicações clínicas e políticas altamente problemáticas. A pulsão de morte é um sintoma de uma vida em declínio, decadente, fraca, impotente e resignada. A pulsão de morte é uma forma de vingança e ressentimento de Freud contra a vida. A pulsão de morte é uma projeção no mundo exterior do desejo que o próprio Freud tinha de morrer: “Isso é a morte. Eu penso que o desejo de morrer era de algum modo seu próprio desejo. Freud estava doente. Miserável. Solitário”[65]. Pessimismo e resignação de Freud que culminam em O mal-estar na civilização, texto em que o inventor da psicanálise lança uma grande maldição sobre a vida ao dizer que o programa do princípio de prazer “é absolutamente irrealizável […] o objetivo do homem de ser ‘feliz’ não está contido nos planos da ‘criação’”[66].

É justamente contra O mal-estar na civilização que Reich escreveu essas belas palavras que resumem sua crítica à pulsão de morte freudiana:

Ter admitido a possibilidade da felicidade humana, teria sido o mesmo que admitir o erro da teoria da compulsão de repetição e da pulsão de morte. Isso teria significado uma crítica das instituições sociais que destroem a felicidade de viver[67].

 

 

Referências

 

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[1] FREUD, Jenseits des Lustprinzips, 4.

[2] FREUD, Die Traumdeutung, 571.

[3] Ibid.

[4] Ibid. (Nosso grifo)

[5] FREUD, Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen Geschehens, 235.

[6] FREUD, Jenseits des Lustprinzips, 18.

[7] Ibid., 21.

[8] Ibid., 5.

[9] Ibid., 57.

[10] Ibid., 38.

[11] Ibid., 40.

[12] Ibid., 48-49.

[13] REICH, Dialektischer Materialismus und Psychoanalyse, 3-4.

[14] Ibid., 5.

[15] REICH, Massenpsychologie des Faschismus, 265.

[16] REICH, Zeitschrift für politische Psychologie und Sexualökonomie, 1.

[17] Ibid., 2.

[18] Ibid.

[19] REICH, Die Sexualität im Kulturkampf, 11.

[20] REICH, Reich speaks on Freud, 179.

[21] Principais ocorrências: Der masochistische Charakter. Eine sexualökonomische Widerlegung des Todestriebes und des Wiederholungszwanges; Die Funktion des Orgasmus, 162; Dialektischer Materialismus und Psychoanalyse, 14-15; Der Einbruch der Sexualmoral, XII; Charakteranalyse, 236-242, 250, 285, 286; Der Urgegensatz des vegetativen Lebens, 139-140; Der dialektische Materialismus in der Lebensforschung, 53-54; Die Bione, IX, 106-107; The Cancer Biopathy, 117; Reich speaks on Freud, 71-72, 89, 156, 157, 180; The Discovery of the Orgone I, 126-128, 153-157, 159, 205, 207, 213, 217, 251-252.

[22] FREUD, Jenseits des Lustprinzips, 23.

[23] Ibid., 64.

[24] REICH, Dialektischer Materialismus und Psychoanalyse, 14-15.

[25] REICH, Reich speaks on Freud, 71-72. “Com essas preocupações em mente, telefonei para Freud. Eu lhe perguntei se ele havia pretendido introduzir a pulsão de morte como uma teoria clínica. Destaco que ele mesmo havia negado que a pulsão de morte fosse um fenômeno clínico tangível. Tratava-se de ‘uma mera hipótese’, ele disse. Ela poderia muito bem ser omitida. Sua eliminação não mudaria nada na estrutura fundamental do sistema psicanalítico. Ele havia apenas se permitido arriscar uma especulação uma vez na vida. Ele estava bem consciente de que sua especulação seria utilizada de modo abusivo” (The Discovery of the Orgone I, 128).

[26] REICH, Der masochistische Charakter, 310.

[27] FREUD, Das ökonomische Problem des Masochismus, 379.

[28] Ibid., 382.

[29] Ibid., 378-379.

[30] REICH, The Discovery of the Orgone I, 126-127.

[31] Ibid., 153.

[32] FERENCZI, Journal clinique, 255-256.

[33] WINNICOTT, Playing and Reality, 95.

[34] Aqui utilizamos a palavra “cristão” no sentido nietzscheano do termo: “‘Estou sofrendo: alguém deve ser culpado por isso’ – assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o padre ascético, lhe diz: ‘Você tem razão, minha ovelha! Alguém deve ser culpado por isso: mas você mesmo é esse alguém, você mesmo é o único culpado por isso!’” (NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral, 393).

[35] FREUD, Die endliche und die unendliche Analyse, 88.

[36] “[…] mesmo reconhecendo todas essas raízes do complexo de castração [nascimento, desmame, defecação], estabeleci, porém, a exigência de que a expressão complexo de castração fosse limitada às emoções e efeitos ligados à perda do pênis (Verlust des Penis)” (FREUD, Analyse der Phobie eines fünfjährigen Knaben, 246).

[37] FREUD, Die endliche und die unendliche Analyse, 94.

[38] FERENCZI, Journal clinique, 270.

[39] REICH, Charakteranalyse, 287.

[40] Ibid.

[41] Ibid., 240.

[42] Ibid.

[43] Ibid.

[44] REICH, The Discovery of the Orgone I, 205.

[45] REICH, Die Sexualität im Kulturkampf, 19.

[46] Ibid., IX.

[47] Ibid., 243.

[48] REICH, Die Funktion des Orgasmus, 161-162.

[49] REICH, The Discovery of the Orgone I, 155.

[50] Ibid., 155-156.

[51] Ibid., 148.

[52] Ibid., 154-155.

[53] NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse, 13.

[54] DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, 2.

[55] REICH, Reich speaks on Freud, p. 65.

[56] Ibid., p. 140.

[57] Ibid., p. 105.

[58] REICH, The Cancer Biopathy, 78.

[59] Ibid., 91.

[60] REICH, Reich speaks on Freud, 5-6.

[61] Ibid., 6.

[62] Ibid.

[63] REICH, The Cancer Biopathy, 102.

[64] FREUD, Der Mann Moses und die monotheistische Religion, 157.

[65] REICH, Reich speaks on Freud, 72.

[66] FREUD, Das Unbehagen in der Kultur, 434.

[67] REICH, The Discovery of the Orgone I, 213.