Submissão: 04/04/2020 Aprovação: 04/04/2020
Publicação: 15/04/2020
Dossiê
O Parmênides, de Platão
Marques ilustrando as imagens do Sofista de Platão
Marques illustrating the
images of Plato’s Sophist
Diogo Noberto Mesti
Professor de Filosofia na Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, SC
Resumo: O objetivo deste artigo é retomar a leitura
de Marcelo Marques do conceito de imagem do Sofista de Platão, tendo
como recorte o capítulo sobre a “Aporía” do livro Platão,
pensador da diferença. Além de retomar essa leitura, pretende-se
reconstruir as pontes sugeridas pelas epígrafes que o comentador retirou de
Faulkner e de Guimarães Rosa para ilustrar o estatuto paradoxal das imagens,
que são definidas no diálogo platônico como um tipo de ser que é, mas que não é
aquilo que é. Com isso, pretende-se avaliar algumas imagens literárias
utilizadas para falar de imagens na teoria filosófica de Platão.
Palavras-chave: Imagens; Paradoxo;
Literatura, Platão; Marques
Abstract: It is intended to
understand Marcelo Marques’s reading
of Plato’s Sophist, having as subject the chapter on “Aporía” of his book Platão,
pensador da diferença.
We also aim to rebuild the bridges suggested by the epigraphs by Faulkner and Guimarães Rosa, which Marques used to illustrate the
paradoxical status of images in the Sophist, that means, the image as a
kind of being that is, but that is not what is. So, it will be possible to
speak of some literary images used to speak of images in the philosophical
theory of Plato.
Keywords: Images; Paradox,
Literature, Plato, Marques
1 Introdução
Através
do diálogo, o método faz com que os outros se tornem presentes, se eles não
estão disponíveis pessoalmente, devem
ser produzidos no discurso[1].
Assim como algumas obras
platônicas encontraram fortuna crítica ao longo dos séculos, pode-se dizer que
o Sofista tenha sido um dos diálogos
de Platão mais lido no século XX. Esse diálogo procura definir a figura do
sofista através de uma discussão sobre a possibilidade do falso e os laços
dessa discussão com os conceitos de imagens, contrapondo-se à tese da impossibilidade do falso defendida pelos
sofistas. Além de investigar inúmeras questões ontológicas, desde a discussão
sobre os gêneros maiores: mesmo, outro, movimento e repouso, até a discussão
sobre a ontologia da imagem: o que é a imagem e qual seu estatuto, esse texto
também enfrenta a ontologia eleática a partir da
relação entre discurso, imagem, falso e não-ser. Destaca-se que a imagem será
definida como um ser que não é o que é, mas que é de certo modo, defendendo o ser do não-ser[2].
Os conceitos de imagem no Sofista estão em uma encruzilhada que
poderia ser resumida do seguinte modo: os sofistas negam sua existência e a
possibilidade de defini-la como um não-ser
que é porque estão envolvidos em uma radicalização do eleatismo
que já negava a possibilidade do não-ser
ser, de algum modo. Na superfície, os sofistas negam a possibilidade da
imagem, porém no fundo dessa negação está a defesa que eles fazem da impossibilidade de dizer o falso[3]. Ao
tentar encontrar argumentos para se opor à interpretação sofística [da
impossibilidade do falso] retirada do eleatismo [da
impossibilidade do não-ser ser],
Platão enfrenta uma longa discussão sobre a imagem porque nela encontramos uma
das chaves da releitura do eleatismo e de sua
oposição aos sofistas, já que ela dá ser [a
imagem é] ao não-ser [mas não é o que
é]. O objetivo do presente texto é esclarecer esse estatuto paradoxal e
deslocado da imagem, de algo que é, mas não é o que é,
por intermédio das epígrafes que Marques utiliza no capítulo sobre “A Aporía” da imagem
em seu livro Platão, pensador da
diferença. Estamos em uma duplicidade aqui, pois Marques ilustra as imagens ou usa imagens literárias para falar das filosóficas. Antes
disso, a imagem merece um pouco mais de detalhe.
Podemos encontrar três
grupos de intérpretes sobre o Sofista,
tomando como critério o papel que eles vislumbram para as imagens. O primeiro
grupo aborda a imagem de modo geral, como se ela não desempenhasse nenhum papel
relevante no diálogo enquanto tal[4]. O
segundo grupo ignora completamente o problema da imagem no Sofista e procura estabelecer uma ponte direta entre a aporía do não-ser e do falso com a gigantomaquia e com os gêneros maiores (movimento,
repouso, mesmo e outro)[5]. A
terceira corrente de intérpretes, com a qual nos conectamos, analisa o problema
do falso a partir de sua discussão direta com as imagens, sem considerá-las
como um bloco indissociável e irrelevante de aparências.
É preciso defender que não
se pode saltar diretamente da aporía do não-ser
e da impossibilidade do falso para a questão dos gêneros maiores, como faz o
segundo grupo, sem levar em conta a estranha (atópica) solução da aporía que surge
em relação a algo que é e não é simultaneamente. A imagem é a primeira solução
para essa aporía
e a fundação da existência da imagem é o primeiro passo para uma discussão
ontológica mais consistente entre movimento, repouso, mesmo e outro. Esse
artigo não pretende explicar como a aporía do
não-ser é solucionada pela atopía da imagem,
pois terá como foco o estatuto paradoxal da imagem e o acesso a esse estatuto
pelos textos literários apresentado por Marques[6].
2 Não-ser da imagem
O Estrangeiro apresenta no Sofista que a
consequência da tese do sofista sobre a impossibilidade
do falso é a negação da existência das imagens. Assim, quando o sofista
defende a impossibilidade do nome, da sentença, da opinião e do
pensamento serem falsos[7],
ele estaria negando a possibilidade mesma da existência de qualquer tipo de
imagem. Esse é o motivo pelo qual o Estrangeiro concentra-se na fundação das
imagens, pegando os sofistas pela consequência de seu argumento e
possibilitando rever o problema originário da possibilidade do falso. Por isso
é necessário definir pelo menos três vezes as imagens ao longo do diálogo,
dizendo sistematicamente que as imagens são,
mesmo não sendo o que é em si mesmo até que seja possível dizer também que o falso é.
O entrelaçamento entre imagem e o paradoxo do falso
pode ser provado pelo próprio texto do Sofista, que diz:
Estrangeiro
de Eleia: E, estando nesta aporia, uma vertigem ainda maior tomou conta de nós,
quando apareceu o argumento que contradiz tudo, segundo o qual nem ícone, nem
imagem, nem simulacro, nada disso é, por não haver o falso, de modo algum,
jamais, em lugar algum (264c-d)[8].
Para os sofistas, a inexistência da imagem está
condicionada à inexistência do falso, de modo que o caminho escolhido para
refutar os sofistas e sua tese sobre a impossibilidade do falso é provar
primeiro que as imagens são de algum modo em algum lugar (como no discurso). A
existência e fundação das imagens em geral são argumentos indispensáveis ao
diálogo e o ponto de inflexão que levará à possibilidade de que o falso também
exista em fundação da existência anterior das imagens. Não é exagero até mesmo
dizer que o problema do falso no sofista depende do problema da imagem e que um
não pode ser compreendido sem o outro.
Marques sustenta que o principal problema filosófico
do diálogo [e do próprio enfrentamento da interpretação sofística do eleatismo] é tentar dar ser ao não-ser e é nessa esteira
argumentativa que emerge a discussão sobre o estatuto das imagens, pois elas são
capazes de fazer isso. Através desse tema central, Platão irá costurar inúmeros
outros temas, como o combate ontológico de gigantes, a imitação, a antilogia, a
linguagem e a comunicação, temas esses que serão abordados nos diversos
capítulos de Platão, pensador da
diferença.
No capítulo sobre a “Aporía”, Marques sustenta:
[...]
estamos no núcleo aporético do diálogo: como fazer
ser o que não é? Como a imagem pode ser, justamente
sendo o que não é? Toda a questão está no “como é preciso falar”. É a pesquisa
sobre como encontrar esse modo de dizer que dirigirá a argumentação a partir
desse ponto do diálogo. É preciso dizer o como para que se possa introduzir a
necessidade naquilo que é aporético e dissolver assim
o impasse. Através da sequência da argumentação, o Estrangeiro e Teeteto serão levados a considerar a hipótese de que o
não-ser é, pois de outro modo o falso não poderá vir a ser algo que não é[9].
Na sequência argumentativa, o plantonista mineiro
concentra-se em explicar a relação entre a imagem e o não-ser,
dizendo com todas as letras que a imagem é a solução para o paradoxo do falso e
até mesmo pode ser considerada como a prova de que algo pode ser e não-ser ao
mesmo tempo.
A
definição da imagem como aporética e impossível serve ao interesse daquele que
não quer reconhecer a autonomia ontológica da imagem ou a possibilidade do
discurso falso. Enquanto aporia sem solução, esta definição é uma contradição;
mas o estrangeiro tem que mostrar que ela não é uma contradição verdadeira, e
para isso tem que dissolver a aporía. […] Para
ultrapassar essa perspectiva será preciso introduzir uma nova concepção de
não-ser[10].
“Aqueles”
que não querem reconhecer o estatuto ou a autonomia ontológica da imagem são os
“sofistas” acusados de defenderem que tudo em seus discursos ou em sua
percepção é sempre verdadeiro e nada poderia ser considerado como falso. Por
trás da defesa dos sofistas da impossibilidade
do falso encontra-se a tese de que tudo
é sempre verdadeiro. Mesmo levando em conta essas dimensões, o diálogo não
esgota todas e concentra-se na relação entre imagem e não-ser para conseguir
fundar a própria linguagem e a diferenciação entre discursos verdadeiros e
falsos. Marques sustenta que a utilização da imagem como solução para o
problema do não-ser está ligada ao problema mesmo da alteridade no pensamento
de Platão. A imagem seria um não-ser
que é de certo modo, outra coisa que
o ser, mas que não poderia ser
enquadrada em uma espécie de não-ser
absoluto. O autor defende que é “preciso mostrar que alguma coisa não é a mesma”,
“deve-se mostrar que há diferença onde se acreditava que só havia identidade”,
buscando encontrar um não-ser “que não é, em certo sentido, e de um certo modo,
ou seja, um não-ser relativo”[11].
2.1
Ilustrando as imagens: não-ser na literatura
A intenção até aqui foi apresentar a imagem como a
principal encruzilhada no Sofista
porque é nela que o Estrangeiro (eleata de origem)
precisa enfrentar ao mesmo tempo o eleatismo e a
interpretação sofística do eleatismo. Isso acontece
porque ele defenderá a possibilidade da imagem ser um não-ser
que é e com isso redefine a tese da impossibilidade do falso defendida pelos
sofistas. Feito isso, podemos agora tomar um desvio e seguir pelas epígrafes
que Marcelo Marques utiliza para dizer aquilo que não é explicitado sobre esse
estatuto paradoxal das imagens.
Marques utiliza alguns textos literários como
epígrafes ao longo de todo o livro Platão,
pensador da diferença. A primeira epígrafe é uma utilizada por Borges de
Bacon no conto O imortal: “Solomon saith:
“There is no new thing upon earth”.
So that as Plato had an imagination, “that knowledge was
but remembrance”; so Solomon giveth sentence, “that all novelty is but
oblivion”. A última epígrafe de seu livro é
de Guimarães Rosa, de Tutaméia:
“o livro pode valer pelo muito que nele não deve caber”. Em certa medida, suas
epígrafes são inspiradoras ou tentam apontar para aquilo que não coube no livro
e para aquilo que nele aparece de novo, mas que na verdade pode ser somente
algum tipo esquecimento. São epígrafes que indicam um limite mesmo das imagens
e que tornam a filosofia limitada se comparada ao que a imagem e a literatura
conseguem fazer.
O comentador tem uma predileção pela literatura
“modernista”. Ele cita 4 vezes Borges, 5 vezes Rosa e
1 vez Faulkner. No momento em que ele fala das imagens, o uso dessas epígrafes
ganha um sentido especial, pois todos os trechos lidam com o estranhamento
presente na definição da imagem como algo que estaria na fronteira entre ser e não-ser. Ele não extrai e nem conecta sua reflexão
diretamente aos trechos literários citados, que permanecem como indicadores intocados
para conexões que o autor vê, mas que não detalha. As epígrafes são em certa
medida aquilo que transborda e nossa tentativa é seguir por isso que
transbordou: esse ser que não é, mas que é, que não
está no texto, mas que está com o texto, como uma estranha mediação inerente a
todos os tipos de imagens. Em outros termos, as estranhas imagens [escolhidas
por Marques] para falar da estranheza mesma das imagens. É uma espécie de
analogia hermenêutica em aberto, como uma ponte a ser construída nesse espaço atópico das imagens, do próprio discurso filosófico e
daquilo que a literatura atinge quando faz o sentido transbordar e deixa a
interpretação em aberto. O que está em jogo aqui é refletir sobre o estatuto
ontológico das imagens e sobre a possibilidade de vislumbrar nas imagens
construídas pela literatura um tipo de discurso até mesmo mais “claro” do que a
própria filosofia.
2.1.1 Darl
de “Enquanto agonizo”
O primeiro trecho citado no capítulo “Aporía” de Marques é uma fala de Darl retirado do livro de William Faulkner (1897-1962) Enquanto
agonizo (As I Lay Dying),
que foi escrito em 1930. O livro retrata 59 monólogos de 15 narradores,
mostrando as diversas perspectivas dos membros da família Brunden
e das pessoas com quem eles cruzam enquanto estão no trajeto de 40 quilômetros
para cumprirem a promessa de enterrar a matriarca da família, Addie Bundren, junto ao restante
de seus familiares.
Essa diversidade de perspectivas muitas vezes
incoerentes entre si, reunidas em partes que nem sempre possuem sentido faz
parte do estilo modernista de Faulkner e implica uma ruptura com as grandes
coerências narrativas que marcaram a história da literatura. Ele retrata as
incoerências oriundas da fragmentação e multiplicidade discursiva[12]
e, nessa fragmentação, os monólogos do filho de Addie
Bundren, Darl, se destacam
pelos traços eminentemente paradoxais e contraditórios de suas experiências e
reflexões.
Dentre as falas de Darl,
temos duas em especial que se destacam. Elas abordam temas complexos como as
relações entre espaço e tempo
e sobre as transições entre sono e vigília. A passagem citada por
Marques diz respeito ao segundo tema, sobre sono e vigília, que se envolve em
um pêndulo entre ser e não-ser, estar e não-estar.
Esse trecho joga com a possibilidade ou a impossibilidade de se saber com
exatidão as temporalidades
que estão envolvidas na definição de ser aquilo que é ou não é ou
que nunca foi. Deve-se destacar que não há linearidade temporal nas falas de Darl, não há um antes e um depois e um presente, mas a
simultaneidade de passado, presente e futuro. Parece se manifestar aqui uma
estrutura de continuidade no tempo que se alastra pelo espaço, de modo que
assim como haveria certa arbitrariedade ou convenção na marcação do tempo 1,2,3,4, talvez haveria arbitrariedade nas marcações
espaciais.
Essa fala de Darl acontece
em um momento em que seus irmãos terminaram de construir o caixão para sua mãe
e ele passa a refletir sobre o sono ou refletir no sono colocando-se no limiar
entre vida e morte, existência e inexistência, permanência e mudança. No trecho
em questão do livro há uma dissociação socrática, digamos assim, na oposição
entre saber que não sabe (Darl) e não saber que
não sabe (Jewell). Darl
sabe que não sabe o que ele mesmo é, diferentemente de seu irmão Jewell “que [acha que] sabe o que ele é” porque não sabe
que ele não sabe. A possibilidade de adormecer ocorre pelo saber que não é, e
isso permitiria Darl esvaziar-se para dormir, que é
quando “você não é”: enquanto seu irmão Jewell não
pode se esvaziar para dormir “porque ele não é o que ele é e é o que não é”.
Somente Darl é capaz de se
esvaziar em determinado quarto estranho antes de dormir, deixando de ser,
enquanto ele está esvaziado para dormir, até nunca ter sido, quando se está
cheio de sono.
Darl – Num quarto estranho, você tem que se esvaziar para
dormir. E antes de estar esvaziado para dormir, o que é você? E quando você
está esvaziado para dormir, você não é. E quando você está cheio de sono, você
nunca foi. Eu não sei o que sou. Eu não sei se eu sou ou não. Jewell sabe que ele é, porque ele não sabe que ele não sabe
se ele é ou não. Ele não pode se esvaziar para dormir, porque ele não é o que
ele é e é o que ele não é [13],[14].
Esse recorte feito por Marques deixa esse trecho mais
abstrato do que ele efetivamente é no texto de Faulkner. Reconstruindo o
contexto e a continuação do monólogo, podemos dizer que o problema fica mais
claro e menos enigmático, inclusive do ponto de vista afirmativo sobre o não
ser. Darl descreve a chuva modelando a carroça, que
não é da família, e sua carga de madeira para o caixão, que não é mais de quem
a serrou, nem de quem construirá o caixão, mas da mãe. Nesse momento, o sono é
o não ser e isso auxilia a compreender o que Darl
apresenta nessas transições entre estar acordado (sabendo que não se sabe se é
ou não é ou não sabendo que não se sabe se é ou não é) e estar
dormindo, que seria o não ser efetivo.
E
já que o sono é o não ser e a chuva e o vento são o que foram,
a carroça não é. Contudo, a carroça é, porque quando a carroça era Addie Bundren não seria. E Jewell é, portanto Addie Bundren tem de ser. E, nesse caso, eu devo ser, ou não
poderia esvaziar-me para dormir em quarto estranho, e se ainda não estou vazio,
então sou. Quantas vezes já dormi embaixo da chuva, em teto estranho, pensando
na minha casa[15].
Jewell é dez anos mais novo do que Darl
e é segundo insinuações que se espalham no texto filho de um caso que a mãe
deles teve com outro homem para se vingar do marido. A interpretação desse
trecho depende dessa relação conflituosa entre eles e da dependência
existencial de todos da própria matriarca. “O sono é o não ser” marca uma
espécie de esvaziamento que permite o afastamento do ser e reencontro com o não-ser.
Ao se encontrar esvaziado, não somos e quando estamos nos esvaziando ou
“estamos cheio de sono”, nunca fomos.
Jewell não pode se esvaziar para dormir porque ele
sabe que ele é, o que pode implicar estar em um estado de vigília constante mas marcado por uma ignorância que é não saber que não sabe. A impossibilidade dele se esvaziar para
dormir ocorre em razão desse saber indeterminado, desse não saber que não sabe se é ou não, enquanto a possibilidade de se
esvaziar presente em Darl implica em saber que não sabe se ele é ou não é.
Depois daquela primeira parte mais ontológica, que é
escolhida por Marques para representar os paradoxos envolvidos na aporia da imagem, Darl
continua o monólogo retomando coisas concretas que estão ao seu redor, como a
carroça, sua mãe, seu irmão e a chuva. E conclui que ele “deve” ser porque do
contrário não poderia se esvaziar e como ainda não se esvaziou, então ele ainda
é. Logo no início desse capítulo Marques dirá: “Aporia significa impasse e é
justamente da impossibilidade que se gera a exigência de passagem, fazendo com
que avancem na pesquisa”[16],
o que não deixa de ter relação com a passagem de cada um dos personagens do
livro de Faulkner. Todos possuem algum interesse secundário privado em levar o
caixão da matriarca da família até a cidade de Jefferson. O pai originalmente
impelido em cumprir sua promessa deseja na verdade uma dentadura nova. Chegando
em Jefferson, ele vende o cavalo que é a paixão de Jewell
e rouba o dinheiro da filha Dewey, pois havia utilizado o dinheiro da dentadura
nova para comprar outros cavalos no meio do trajeto. A garota Dewey queria
apenas ir à cidade para conseguir um abortivo e Cash, o filho mais velho,
economizou dinheiro para comprar um novo gramofone.
Como apontam Barros e Brito, Darl
é visto pela vizinha da família, a religiosa Cora, como o único que possuiria
algum sentimento e que foi capaz de amar a própria mãe, mesmo não tendo sido o
preferido dela, ao mesmo tempo em que era considerado pelos outros como
estranho, preguiçoso, sempre vagando por aí, aporético!
Contudo, o marido da vizinha Cora, Tull, um defensor do homem comum
trabalhador, olhava para Darl como alguém cujo
principal problema era pensar demais, dado o caráter permanentemente
contemplativo de Darl percebido na fixação de seu
olhar para a terra ou para as pessoas[17]. O
comportamento estranho de Darl incomoda a todos
durante a viagem e ele acaba sendo internado em um hospital psiquiátrico pela
família por ter ateado fogo no celeiro em que o cadáver de sua mãe estava
enquanto todos os membros da família descansavam longe do cheiro mórbido. Darl tentou encerrar com esse ato o problema de todos,
incinerando o corpo putrefato de sua mãe. Justamente por esse incêndio os donos
do celeiro movem uma ação judicial e a família declara que Darl
é insano e o internam em uma instituição mental em Jackson.
2.1.2 Provérbio árabe
A segunda epígrafe do capítulo “Aporía” é um Provérbio Árabe:
“Precisamos da miragem para sermos capazes de atravessar o deserto”[18],
que aparece no subitem do capítulo intitulado “A aporia da imagem”. A miragem
deve ser compreendida como um efeito óptico que acontece nos horários mais
quentes do dia no deserto. Ela é resultado do calor conjugado a um reflexo
projetado pela luz do sol, criando uma imagem de algum lago no qual podem ter
imagens de outras coisas desejadas também, exatamente como em um sonho que
acontece com as pessoas acordadas.
Essa miragem necessária para a travessia do deserto é
uma referência direta ao papel da imagem como possível solução para a aporía sobre
o falso do diálogo. A solução para a aporía
desértica da impossibilidade
do falso, criada pelos Sofistas,
está na reconstrução daquilo que eles procuram negar, a saber, a
existência da imagem, que funcionará então como miragem e travessia para a
possibilidade de encontrarmos a possibilidade do falso e com isso refutar a
tese dos sofistas. Nesse sentido, precisamos de uma definição para as imagens e
a consolidação de sua existência para atravessar o deserto aporético
da impossibilidade do falso. As imagens e sua fundação ontológica na transição
entre ser e não-ser, pois elas não são,
mas são de algum modo, servem para
construir a possibilidade de passagem ou de saída da aporia que também abrirá as portas para uma revisão do eleatismo radicalizado dos sofistas.
O problema do falso pode ser
considerado como uma verdadeira encruzilhada, como já dissemos, por onde passam
inúmeras teorias de Platão, envolvendo a linguagem, a ontologia, a política, a
educação e os prazeres. No caso do Sofista,
os dois principais caminhos que nos levam ou que saem dessa encruzilhada são o
da linguagem, fundado na pergunta: como dizer
o não-ser? E o da ontologia: como o não-ser pode ser? Ignorar a possibilidade de que a imagem funcione como uma
solução estranha para o problema discursivo e ontológico do falso pode implicar
que o deserto (da ontologia ou da filosofia) sem miragens (sem linguagens) não
possa ser superado e percorrido. A imagem (e a miragem) são soluções
provisórias para o problema. Ignorar as imagens ou considerá-las confusas e
obscuras implica em não se mover. Há um estranho caminho de saída para o
problema do falso justamente através daquilo que parece ser o maior motivo de
engano: as imagens ou miragens necessárias para a própria filosofia.
2.1.3 Carta VII de Platão
A terceira epígrafe é platônica e aparece no subitem
“As aporias do ser”: “Pois é ao mesmo tempo que se deve aprender o verdadeiro e
o falso sobre o ser, em sua totalidade, após ter consagrado a esta tarefa todos
os seus cuidados e muito tempo, como eu dizia no início”[19] (Carta
VII 344b1-3). Essa carta de Platão, sem entrar na vasta discussão sobre sua
autenticidade, apresenta seu envolvimento político em Siracusa, para onde ele
teria ido mas onde ele acabou ficando preso. Passa
pela sua vontade inicial de participar da política, pelo que aconteceu com
Sócrates quando se recusou a se envolver com governo dos Trinta e inúmeros
outros aspectos da relação entre filosofia e política.
O trecho citado, porém, faz parte de uma digressão
epistemológica da carta, onde Platão começa a detalhar a ligação e o interesse
de Dionísio com a filosofia (340a ss.). Nesse trecho ele apresenta os elementos
constituintes do saber que sintetizam alguns aspectos de suas discussões
filosóficas, ao dizer que existem quatro elementos importantes no conhecimento
de algo (342a-343a): o nome, a definição (lógos), a
imagem e a ciência, que são a porta de entrada para a possibilidade do
entendimento. Os exemplos que ele utiliza são: o nome, a definição, a imagem e
a ciência do círculo, expandindo isso para figuras retilíneas e também para os
valores (como o bem, o belo e o justo). Destaca-se também a possibilidade de múltiplos
caminhos que podem ser tomados, na medida em que ter um desses elementos
implica que devemos buscar os outros e assim ter uma visão ampla da essência.
Essa é a base para a citação em questão. O trecho
escolhido por Marques antecipa uma definição de dialética que a segue e que
frequentemente era citada por ele em sala quando defendia que a dialética é uma
espécie de fricção contínua entre
aqueles diversos elementos apresentados acima. Ao que aparece “como eu dizia no
início” tem o seguinte desdobramento:
Só
depois de esfregarmos, por assim dizer, uns nos outros, e compararmos nomes,
definições, visões, sensações e de discuti-los nesses colóquios amistosos em
que perguntas e respostas se formulam sem o menor ressaibo de inveja, é que
brilham sobre cada objeto a sabedoria e o entendimento com a tensão máxima de
que for capaz a inteligência humana[20] (Carta VII 344b-c).
Aquela epígrafe dialoga com a tese sofística que
chegava a defender que tudo que é só
pode ser automaticamente verdadeiro.
Assim, a simultaneidade entre verdadeiro e falso implica a possibilidade de se
defender que existem opiniões, ou juízos ou argumentos que podem estar errados
e serem falsos quando os nomes, as definições, as impressões e a reflexão
epistêmica sobre os seres são confrontados entre si. Além do elemento
incontornável da linguagem para compreensão dos seres, aqui aparece também uma
espécie de ruptura com as divisões temporais entre ser e não-ser,
como na tese do tipo: é, e não pode nunca
não-ser. Nesse trecho, depois de apresentar a imagem, Marques passará a
discutir que a imagem representa o elemento linguístico que é constitutivo do
pensamento, quando afirma: “para atravessar o páthos da aporia, os interlocutores têm que se submeter a um certo modo
de dialogar, ao caminho dialético, o único que permite que o logos verdadeiro se mostre, de um aporia
à outra como um caminho que persiste”[21]. A
simultaneidade da verdade e da falsidade é também a simultaneidade entre imagem
e aquilo de que a imagem é imagem ou uma simultaneidade entre o ser da imagem
que é, mas não é o que é. Essa simultaneidade se apresenta no diálogo platônico
Sofista por meio da noção de
entrelaçamento (symplokḗ), imediatamente depois de
tentar definir o ícone como algo que realmente é:
Teeteto: pode ser que tal ligação (symplokén) entrelace o não-ser ao
ser e ela é muito estranha. Estrangeiro: Pois como não seria estranha? Pelo
menos, tu vês, agora, graças a este entrelaçamento, que o sofista de múltiplas
cabeças nos forçou a concordar, contra nós mesmos, que o não-ser é, de algum
modo. Teeteto: eu vejo, e muito bem (240c).
Esse entrelaçamento do não-ser
com o ser ocorre pela imagem, que passa a impedir que o não-ser implique
diretamente uma não existência. Assim, não é apenas o sentido positivo: é, que terá valor
absoluto, pois o uso negativo do verbo ser: não
é, pode também ser de algum modo pensado e dito, ainda que estranhamente.
Glosando Teeteto, “podemos ver, e muito bem”, essa
estranha reunião de verdade e falsidade.
2.1.4 A terceira margem do
rio de Rosa
A última epígrafe do capítulo “Aporía” é do conto A terceira margem do rio de Rosa e
aparece no subitem “A krísis do Estrangeiro”. É pertinente destacar
que como Faulkner, Rosa também pertence ao movimento de escritores considerados
modernos. A obra icônica de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, teve
grande fortuna crítica pela desconstrução original da linguagem e pela
recriação fantástica de uma linguagem do sertão que não é apenas uma linguagem
regional, mas universal. Mas não é somente essa obra de Rosa que merece
destaque.
Dentre seus contos, A terceira margem do rio está
em um livro intitulado Primeiras estórias, que tematiza inúmeros
momentos da vida, envolvendo-se em uma discussão “sobre a infância, a loucura e
a passagem abrupta de um estado de normalidade para o absurdo, sem explicações
ou o destaque de causas”[22].
A história é narrada por um dos filhos de um homem que decide construir um
barco e nele ficar pelo resto de sua vida, sem voltar para casa. O filho
permanece nesse monólogo sem saber os motivos do pai, tentando ajudá-lo ao
ponto de questionar sua própria sanidade quando toda a família vai embora e só
ele permanece ainda buscando reencontrar-se com seu pai. O reencontro com o pai
nunca acontece por causa da situação estranha em que o pai se encontra.
No A terceira margem do rio, o pai do narrador
vive essa transposição para um local indeterminado, para um não local, que
enquanto tal é a marca da ausência de lugar (a privativo em grego + topos)
da imagem. De pai cumpridor, ordeiro e positivo, ele se transforma em algo
difícil de compreender quando decide passar o resto da vida boiando no meio do
rio, sem ir embora, sem voltar, sem explicar. O trecho escolhido por Marques
retrata essas questões colocadas pelo filho ainda jovem, quando o pai decide ir
para o rio.
“Pai,
o senhor me leva junto nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim e me
botou a benção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei,
na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo
remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dele por igual feito um jacaré,
comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte[23].
O filho permanece ao redor do pai por uma espécie de
culpa que se transforma em angústia e que o imobilizou durante toda a vida[24].
Não são apenas os motivos do pai que são enigmáticos, a sua existência ou
localização também é enigmática. Por isso, o que significa esse deslocamento do
pai? Será que ele estaria em algum lugar especial que transcende todos os
outros lugares? Esse lugar transcendente, por exemplo, seria uma espécie de
misantropia social onde haveria alguma forma de entendimento puro? Ou o que está em jogo é uma
impossibilidade de resolver a contradição ou o paradoxo, sendo necessário
interpretar esse deslocamento como estar e não-estar ao mesmo tempo em
algum lugar? Como uma espécie de presença ausente?
Marques aponta em seu texto para a opção do
deslocamento e para uma presença ausente quando se refere nesse momento à
capacidade da dialética de recriar o interlocutor, sustentando-se pela sua
capacidade de “pensar radicalmente a alteridade”, estabelecendo “um diálogo
crítico com os outros ‘como se eles mesmos estivessem presentes’ (hoîon houton paronton)”[25].
O texto de Rosa parece indicar também a alternativa de
uma ausência presente, conectada à impossibilidade de determinação do lugar que
alguém pode ocupar sob o rio sem estar ancorado nas margens. Estar sob o rio,
em um barco, é como estar sob o fluxo que transita pela simultaneidade de algo
que é (presente) e não é (ausente) ao mesmo tempo, como o filho sentindo-se
culpado: “Sou homem de triste palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta
culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo
perpétuo”[26].
Durante todo o conto, o filho se indaga porque afinal
o pai não foi embora, não desamarrou os laços dessa terceira margem em que ele
se ancorou e deixou o barco seguir pelo rio, tendo escolhido ficar “na vagação, no rio no ermo”. O pai decide isolar-se de
todos, mas esse isolamento mesmo não ocorre em um lugar fixo em que ele possa
ser encontrado ou até mesmo em outro lugar absolutamente distante. O lugar
escolhido pelo pai é errático, fortemente indeterminado. Em outro momento, o
filho chama o pai para trocar de lugar com ele e, na imaginação monológica do
filho, o pai vai se aproximando como se estivesse cansado e disposto a trocar
de lugar, mas o filho foge.
Depois de fugir, ele repensa sua relação com o rio. Ao
contrário do pai, que permanece fixo sob a mudança do fluxo, marcada pela
repetição do mesmo rio em
“rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo”, onde ele permanece ausente: “sempre
fazendo ausência”, o filho tenta estabelecer outra relação imaginária com o
rio. O próprio filho também havia se isolado de todos e aceita que quando
morrer até poderiam colocá-lo “numa canoinha de nada, nessa água que não para,
de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio”[27].
No primeiro caso, o rio-rio-rio do pai se contrapõe à água que não para do rio
abaixo, rio a fora, rio a dentro do filho quando morrer. Curiosamente, morrer é
fluir. Se o pai tivesse deixado a canoa fluir pelo rio indo para algum outro lugar,
indo definitivamente embora, talvez ele tivesse morrido e libertado o filho[28].
A terceira margem de um rio é criada arbitrariamente
pela insistência do pai em permanecer sob pontos escondidos do rio que fluem e
criam uma terceira margem que é a dele mesmo ancorado ou circulando no meio ou
nos cantos escondidos do rio. Ele força com isso uma permanência sob o fluxo do rio, um lugar sem lugar, uma atopía. Diante disso, todos aqueles que ancoram em algum
lugar na água criam uma espécie de terceira margem, na medida em que criam algo
fixo que não se move, como as
margens, no meio daquilo que sempre está se movendo. A terceira margem é um
não-lugar porque para e repousa sobre o que não está parado. Pode-se dizer
também que a terceira margem é uma espécie de ilha, que é construída no meio do
mar e que diferente das margens terrestres que limitam o rio possui como margem
a própria água. Assim, a ilha ou a canoa são uma espécie de terceira margem. É
como uma vida vivida em silêncio, ilhada, de alguém que está ao seu lado mas que não fala[29]. O
rio é a estrutura do conto e enquanto tal ele não permite que as contradições
ou oposições de ser ou não ser, de estar ou não estar, de ir ou ficar, se
resolvam ou se decidam[30].
Não há, no final, nenhuma explicação para os motivos
do pai, sendo possível apenas compreender ou mais do que compreender aceitar
essa impossibilidade de determinar o ocorrido[31].
Como indica Araújo, nenhuma das soluções que propõe o lugar do pai como uma
espécie de lugar transcendente e determinado dá conta do absurdo, do conflito
ou da aporía
sem resolução que é alguém que vai, mas não vai. Como a arte moderna, o texto
de Rosa leva em conta sobretudo a indeterminação que recusa inevitavelmente a
transcendência[32].
A racionalização na verdade é impossível diante desse horizonte paradoxal de um
pai que decide não viver sem se suicidar; se mover sem se deslocar; ir mas ficar. Nos termos do conto isso aparece como: “ele não
tinha ido a nenhuma parte” e “aquilo que não havia, acontecia” ou na fala da
mãe: “Cê vai, ocê fique,
você nunca volte!”[33].
E isso é concebido pelo filho narrador como estranho: “A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo
que não havia, acontecia”[34].
Aceita-se com certa normalidade essa estranheza. Em outras palavras a frase
“aquilo que não havia, acontecia” pode ser traduzida como aquilo que não é, mas
estava sendo naquele momento ou aquilo que não existia, mas passava a existir.
Essa frase encerra o parágrafo que inicia com: “nosso pai não voltou. Ele não
tinha ido a nenhuma parte”. Esses elementos são cruciais para se contrapor a
uma leitura metafísica, mística ou até sociológica do deslocamento do
pai que fica no meio do rio[35].
A mesma loucura que pode ser percebida em Darl e também naquele que vislumbra a miragem como útil
para a passagem aparece aqui em relação ao observador da junção da ausência presente do pai. O narrador
chega ao ponto de aceitar uma espécie de universalização da loucura. Quando já
velho, fica preocupado com o pai que não deixa soltar a canoa para acabar logo
com aquilo na cachoeira. O filho se pergunta: “Sou doido? Não. Na nossa casa, a
palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se
condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos”[36].
Enquanto a passagem acima da Carta VII mostra uma simultaneidade e até mesmo uma certa reciprocidade de opostos, a passagem de
Rosa apresenta uma simultaneidade de estar e não-estar ou entre presença e
ausência que já havia aparecido no primeiro trecho citado de Darl e também no segundo trecho da miragem. Essa dualidade
(e o próximo subitem do capítulo sobre a Aporía na
obra de Marcelo será também sobre a “A aporia da dualidade” [p. 181]) gera o
mesmo tipo de estranhamento ou atopía que
a imagem gera como uma solução que não é definitiva, mas estranha, para o
problema da aporía do falso. Além disso, isso pode nos
levar à visão de que esses opostos sejam tratados por uma certa reciprocidade.
Por enquanto, podemos dizer que o barco é a imagem que paira em um estranho
lugar no fluxo da linguagem; o barco é a miragem; o barco é a loucura.
Há um elemento subjacente em toda essa discussão que
não foi destacado até o momento. Trata-se da força dialética entre movimento e
repouso, que se apresenta como problema subsequente à discussão sobre a aporía da imagem no Sofista. Como dito acima, o debate
ontológico específico apresentado no Sofista fica mais claro depois de
compreender a aporia da imagem. Como o próprio Marques apresentará no subitem
que encerra seu capítulo sobre a Aporía: “Combate de
gigantes” (p. 187). Nesse caso, o entrelaçamento das categorias de movimento,
repouso, mesmo e outro está totalmente ligada ao entrelaçamento entre ser e não-ser que acontece na imagem.
Nesse sentido, além do estranhamento em relação à
terceira margem do rio, essa terceira margem também concilia movimento e
repouso, permanência e mudança, identidade e diferença, que serão tematizados
no diálogo platônico através dos quatro grandes gêneros: mesmo, outro,
movimento e repouso. Além disso, essa relação com o pai está conectada à
questão do parricídio no Sofista, que
ocorre porque é preciso romper não somente com os sofistas, mas com a via
impedida por Parmênides, que negava a possibilidade do ser não-ser.
3 Conclusão
Como foi dito acima, Marques procura esclarecer como a
imagem é o centro da discussão sobre a linguagem, na medida em que ambas não se
reduzem ao mundo que retratam e estruturam-se sob o mesmo tipo de alteridade.
Ao concentrar-se na relação entre imagem e o ser de um não-ser,
o diálogo procura fundar a própria linguagem como outro e para isso toma os
sofistas como alvo sem ignorar que ao dar ser
ao não-ser será preciso também revisar o pai Parmênides. Em outros termos,
só tem sentido discutir a alteridade no Sofista se essa discussão for
fundada na ontologia da imagem, pois a ontologia do falso depende também da
possibilidade de saber se ele é algo, e se ele é algo, o que ele é, e se falar
nele não implica em contradições que possam destruir a linguagem.
E assim o mestre Marques descreve o papel da imagem:
A
solução última do filósofo, no Sofista, consistirá em mostrar que essas
relações devem ser reguladas ontologicamente pelo entrelaçamento do não-ser ao ser, tornado possível pela forma do outro. Ora, a
imagem é este ser que reúne em seu modo de ser justamente os elementos
necessários para formular o problema do discurso falso e da contradição: o
discurso falso é algo que não é justamente aquilo que pretende ser. A imagem é
esta aparência de contradição tornada tangível. Para que o Estrangeiro possa
estabelecer o discurso falso, é necessário que compreenda a imagem, que mostre
que ela é e que ela só é contraditória em aparência, que o discurso é possível
enquanto uma de suas espécies e que ele só é falso quando confunde o que é
mesmo com o que é outro[37].
A possibilidade dessa investigação sobre o falso é
devedora da ontologia das imagens, na medida em que também se investiga se ela
é algo e o que ela é. Do contrário, se não for levada em conta a imagem, nem a
produção de imagens em uma resposta sobre o problema do falso, isso implica que
a resposta para o paradoxo do falso estará incompleta ou insuficiente por se
esquecer de mostrar e provar a centralidade da discussão sobre imagens[38].
E para ilustrar isso Marques recorre a trechos da
literatura que se debruçam sobre essa espécie de alteridade indissolúvel ou
essa diferença intransponível e marcadamente atópica
da loucura, da miragem, da simultaneidade, do entrelaçamento. Isso se manifesta
no caso do saber negativo de Darl presente na sua
incapacidade de decidir se ele é ou não é, para dormir, bem como se aproxima da
miragem que não é, mas é aos nossos olhos, conectando-se também à
simultaneidade do verdadeiro e do falso e se associando à percepção de que o
pai está presente e não. Diante do exposto, é possível sustentar que essas
epígrafes literárias possuem uma relação direta com a temática abordada no
Sofista e foram escolhidas com precisão por Marques por também estarem nesse
mesmo conflito fundador da linguagem filosófico-literária ao se depararem com a
possibilidade de atribuir algum ser àquilo que não é. Essa escolha é precisa
porque funciona como uma abertura para a imaginação de seus leitores, uma espécie
de abertura de certa forma limitada e recortada através da qual é possível
deixar a imaginação transbordar para além do diálogo Sofista e para além do
próprio comentário ao Sofista. Nesse sentido, o horizonte é também dialético
porque confronta nomes, definições e impressões.
É óbvio que essa reconstrução proposta aqui não pode e
nem deve ser vista como se fosse reveladora da intenção do autor, porque afinal
de contas, qual interpretação Marques vislumbra de Darl,
da miragem, da simultaneidade, da terceira margem? Ele nunca respondeu a essas
perguntas quando estava vivo, ele mesmo não as interpreta, só aponta. Esse
texto foi uma tentativa de abrir-se ao silêncio provocado pela morte de todo
autor, logo que escreve seu texto e o dirige ao mundo. Jamais poderíamos ter a
esperança de revelar aqui qual foi a intenção
de Marques ao utilizar essas epígrafes, no bom espírito gadameriano
que ele assumia sutilmente com frequência em relação ao próprio Platão. Esse
artigo está repleto de interpretações possíveis do modo como eu vejo o Sofista através das lentes literárias que Marques colocou no texto,
mas para se concordar com isso é preciso adotar um pouco o mesmo grau ou foco
dessas lentes que eu aqui projetei ou colocar mais espelhos nesse caleidoscópio
de alteridades continuando o que está sendo defendido aqui.
“O
livro [ou nesse caso o artigo] pode valer pelo muito que nele não deve caber”[39].
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[1] MARQUES, Platão, pensador da diferença – Uma
leitura do Sofista, p. 177-178
[2] Para uma
abordagem específica da imagem no Sofista,
ver BONDESON, Sophist:
falsehoods and images; ROSEN, Plato’s Sophist: The Drama of
Original & Image; TEISSERENC, Remarques sur l’ imitation et le statut ontologique
de l’ image chez Platon;
MARQUES, Platão, pensador da diferença,
especialmente capitulo IV “Aporía”; CRIVELLI, Plato’s Account of Falsehood,
em especialmente o capítulo 2 Puzzles about not-being; NOTOMI, The
unity of Plato’s Sophist, em especial
capitulo 5 Appearance and
image. Para uma abordagem geral sobre a imagem,
que menciona o Sofista, ver: VERNANT,
Image et apparence
dans la théorie
platonicienne de la mimesis; DESCLOS, Idoles,
icônes et phantasmes dans les dialogues de Platon.
[3] Esse não e
nosso problema aqui, mas é preciso indicar o trabalho de Palmer (Plato’s Reception of Parmenides) como exemplo
dessa “encruzilhada”, na qual confluem o eleatismo, a
interpretação sofística do eleatismo, a
impossibilidade de definição do falso e de atribuição da falsidade em relação a
algo e como isso aparecerá no Sofista
como alvo de Platão no centro de sua reinterpretação do eleatismo
e do parricídio em relação à Parmênides. Nas palavras de Marques, esse problema
aparece assim: “Ao fazer falar o Estrangeiro de Eléia, Platão está enfrentando
aqueles com quem seu pensamento está em diálogo permanente, a saber, os
sofistas e Parmênides, numa perspectiva socrática. Fazer falar o Estrangeiro é
o modo que Platão inventa para encontrar-se com Parmênides e para forçá-lo a
estabelecer um diálogo dialético com ele. Nesse processo, ele recria Parmênides
e o força, anacronicamente, a lidar com as implicações de seu próprio
pensamento” (MARQUES, Platão, pensador da
diferença, p. 45).
[4] Em geral, abordam a
discussão do não-ser e do falso no Sofista
sem detalhar como o problema da imagem e da própria diferença desempenham
um papel relevante na resolução da aporía do falso.
Ainda que no título desses estudos ou até mesmo em capítulos de livro apareça a
noção de imagem, as imagens, suas diferenças e seus estatutos próprios são
abordadas de modo geral e superficial como se não possuíssem qualquer diferença
entre si. Chegaram a defender inclusive que em Platão sequer existe o conceito
de imagem, como Vernant, Image et apparence dans la théorie platonicienne
de la “mimesis”
[5] Essa
perspectiva pode ser encontrada no mais recente livro de Kahn, Plato and the post-socratic dialogue.
Em seu capítulo sobre o Sofista ele
ignora solenemente a discussão sobre a imagem.
[6] O estudo da imagem no Sofista faz
parte de um projeto sobre as imagens no pensamento de Platão, que é em grande
medida herdado do pensamento e dos projetos de Marcelo Marques. Tendo como foco
uma leitura da República de Platão, proponho no livro Por uma diferenciação das imagens na
República de Platão, o
desenvolvimento de uma pesquisa que esteja mais atenta aos usos que são feitos
das diversas imagens no pensamento de Platão como um todo. Algumas
interpretações do Sofista que ou
mencionam para desprezar ou simplesmente ignoram as imagens são derivadas de
uma suposta concepção metafísica que não vislumbra nenhum papel para a imagem e
para o sensível em Platão.
[7] Sobre isso,
ver: Eutidemo,
284b1-284c6; Crátilo,
429c-430a5; República V 478b-478c; Teeteto 167a-8,
187c-200c (especialmente 188c-189b)
[8] Καὶ τοῦθ᾽ ἡμῶν ἀπορουμένων ἔτι μείζων κατεχύθη σκοτοδινία, φανέντος τοῦ λόγου τοῦ πᾶσιν ἀμφισβητοῦντος ὡς οὔτε εἰκὼν οὔτε εἴδωλον οὔτε φάντασμ᾽ εἴη τὸ παράπαν οὐδὲν διὰ τὸ μηδαμῶς μηδέποτε μηδαμοῦ ψεῦδος εἶναι. Destaco que utilizarei as traduções de Marques do Sofista de seu livro Platão, pensador da diferença.
[9] MARQUES, Platão, pensador da diferença, p. 156
[10] Idem, p. 171
[11] Idem, p. 172
[12] Como destacam
as autoras Barros e Brito, retomando um poeta irlândes
Yeats, “está-se diante de um movimento do histórico
em que se perde tanto a coerência quanto a possibilidade de entendimento do
mundo” (apud BARROS e BRITO, Darl, o homem de gênio em Faulkner, p. 10).
[13] FAULKNER, apud,
MARQUES, Platão, pensador da diferença,
p. 155
[14] A tradução
acima é, aparentemente, de Marques. A de Hélio Pólvora é a seguinte: “Em quarto
estranho é preciso criar em nós mesmos o vazio, para poder dormir. E antes de
se ficar vazio para o sono: que é que somos, afinal? E quando ficamos vazios
para o sono, já não somos nada. E quando estamos cheios de sono nunca somos
nada. Não sei o que sou. Não sei se sou ou não sou. Jewel
sabe que ele é, porque não sabe que ele não sabe se é ou não é. Não pode
esvaziar-se para dormir porque não é o que é e é o que não é” (FAULKNER, Enquanto Agonizo, p. 38).
[15] FAULKNER, Enquanto Agonizo, p. 38
[16] MARQUES, Platão, pensador da diferença, p. 155
[17] Em determinado
momento, Darl é descrito pelo próprio pai como alguém
que tem olhos para a terra o tempo todo. Anse diz: “E
Darl? Todos querendo afastá-lo de mim, malditos
sejam. Não é que eu receie o trabalho; sempre ganhei o sustento para mim e os
de casa e nunca nos faltou um teto: o problema é que queriam tirar-me Darl só porque ele sabe onde tem o nariz, só porque ele
vive a pensar na plantação. Eu lhes disse: ele ia
bem, a princípio, com os olhos postos na terra, porque a terra se estendia para
cima e para baixo; foi quando essa estrada apareceu e dividiu e encompridou a
terra, e como os olhos de Darl continuassem postos na
terra, então eles começaram a ameaçar-me de tirá-lo de mim, com a ajuda da lei”
(FAULKNER, Enquanto Agonizo, p. 21).
[18] Apud, MARQUES, Platão, pensador da diferença, p. 167
[19] ἅμα γὰρ αὐτὰ ἀνάγκη μανθάνειν καὶ τὸ ψεῦδος ἅμα καὶ ἀληθὲς τῆς ὅλης οὐσίας, μετὰ τριβῆς πάσης καὶ χρόνου πολλοῦ, ὅπερ ἐν ἀρχαῖς εἶπον.
[20] μόγις δὲ τριβόμενα πρὸς ἄλληλα αὐτῶν ἕκαστα, ὀνόματα καὶ λόγοι ὄψεις τε καὶ αἰσθήσεις, ἐν εὐμενέσιν ἐλέγχοις ἐλεγχόμενα καὶ ἄνευ φθόνων ἐρωτήσεσιν καὶ ἀποκρίσεσιν χρωμένων, ἐξέλαμψε φρόνησις περὶ ἕκαστον καὶ νοῦς, συντείνων ὅτι μάλιστ᾽ εἰς δύναμιν ἀνθρωπίνην.
[21] MARQUES, Platão, pensador da diferença, p. 174
[22] ARAÚJO, A poética moderna
em A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa, p. 367
[23] ROSA, A
terceira margem do rio, p. 78
[24] Como indica
Melo, ao sustentar que: “Em A terceira
margem do rio, a angústia se configura como uma mescla de desejo de vida (a
fuga) e desejo de morte (o pedido). No entanto, o filho-narrador não assume nem
uma coisa nem outra. Ele não dá conta de ser para-si
nem para-o-outro (o pai). Daí o fato de permanecer no entrelugar.
Esta situação é que o imobiliza inexoravelmente em face da existência” (MELO, A questão da ambivalência em ‘A terceira margem do
rio’, p. 115).
[25] MARQUES, Platão, pensador da diferença, p. 177
[26] ROSA, A
terceira margem do rio, p. 81
[27] ROSA, A
terceira margem do rio, p. 82
[28] Como indica
Melo, o rio aparece desde o início do conto, sendo concebido como próximo à
casa e possuindo a mesma qualidade que marca a vida inteira do pai. O silêncio
paterno é o silêncio do rio: “Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do
rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo,
calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira”. O rio
chega a ser uma espécie de imagem do que o homem é. O silêncio dele não é
causado por sua retirada para lugar algum, mas ele se retira por causa do
silêncio inerente a ele que se espelha também no rio sempre calado. (MELO, A
questão da ambivalência em ‘A terceira margem do rio’, p. 120-121).
[29] Melo,
retomando Galvão, defende que o “rio teria duas margens que são e uma terceira
que não é. Esta última seria o mistério, o desconhecido, o insondável, o
indizível. Veja-se que o pai, ao fazer a transição do mundo real, do logos, do
pragmatismo para o mundo do mistério, ou seja, do mundo da terra (esta,
metáfora do real) para o mundo da água (esta, metáfora do onírico, do irreal),
nunca mais fala.” (MELO, A questão da ambivalência em ‘A terceira margem do
rio’, p. 111-112).
[30] É muito clara
a posição de Rónai a esse respeito, retomada por
Melo: há uma “primazia da ‘antonímia metafísica’, figura estilística que “surge
em palavras que não indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a
fenômenos percebíveis pelos sentidos”. O tropo dá-se à luz em palavras como desalegria, desverde, indestruir ou acronologia, entre
outras, que no contexto em que aparecem “indicam algo mais do que a simples
negação do antônimo: aludem a uma nova modalidade de ser ou de
agir, a manifestação positiva do que não é” (Apud MELO, A
questão da ambivalência em ‘A terceira margem do rio’, p. 117).
[31] Como destaca
Melo, nesse mesmo sentido: “Ele não se assume como filho porque não consegue
assumir o pai: metáfora da origem. Ao permanecer à beira do rio à espera do
regresso do pai e, consequentemente, preso a ele, o filho talvez queira
decifrar o indecifrável. Ou senão espera dele a explicação de sua estranha
fuga. O grande drama do filho é o não-entendimento desta ‘doideira’ do pai. É
ela que o desestrutura irremediavelmente. Sua hesitação, sua falta de
definição, sua situação de entrelugar e, por conseguinte, a destruição de si
mesmo são resultantes de sua impossibilidade de superar o pai e o tempo” (MELO,
A questão da ambivalência em ‘A terceira margem do rio’, p. 121).
[32] Concordamos com
a falta de transcendência em jogo, conforme a perspectiva adotada por Burgos:
“É nesse contexto que podemos entender a dificuldade de aceitar que a ação do
pai em A terceira margem do rio fique
irresoluta como sujeito de uma interpretação, ou melhor, que se apresente como
a instalação de um enigma para o qual não se oferecem perceptíveis claves
narrativas ou cuja existência haja sido complicadamente
codificada na exuberância de signos transformados em imagens e da ulterior
conversão destas em gestações metafóricas mantidas pela disseminação de seus
componentes” (BURGOS, Ribeira metafísica nos contos de Guimarães Rosa,
p. 5).
[33] ROSA, A
terceira margem do rio, p. 77
[34] Idem, p. 78, grifo
nosso
[35] Para as
leituras transcendentes, ver ARAÚJO, A poética moderna em ‘A terceira margem
do rio’, de João Guimarães Rosa e ALBERT, A Finitude e transcendência em
‘A terceira margem do rio’. Para uma leitura que mistura Bachelard e misticismo triádico,
ver BUHLER, As margens do devaneio: uma análise do conto “A terceira margem
do rio”, de João Guimarães Rosa. Discordamos dessas leituras.
[36] ROSA, A
terceira margem do rio, p. 81
[37] MARQUES, Platão, pensador da diferença, p. 172
[38] Outros
comentadores também podem ser utilizados
aqui para provar que a imagem é a resposta que Platão fornece ao problema do
falso. Como destaca Ambuel, a contradição inerente à
imagem aparece porque ele se estrutura em ser aquilo que não é a coisa mesma,
dar um certo ser ao não-ser. Em outro momento, Ambuel
também sustenta que se não houver falsidade, não haverá imagens ou vice-versa
(AMBUEL, Image and Paradigm in Plato’s Sophist, p. xvi).
[39] ROSA, Tutaméia, citado por Marcelo Pimenta Marques, como epígrafe
final de seu livro Platão, pensador da
diferença.