Submissão: 03/04/2020 Aprovação: 03/04/2020
Publicação: 15/04/2020
Dossiê
O Parmênides de Platão
Uma reflexão sobre a temporalidade no Parmênides de Platão
A reflection on the
temporality in Plato’s Parmenides
Gérson Pereira Filho
Professor de Filosofia na Pontífica
Universidade Católica de Minas Gerais, Poço de Caldas, MG
Resumo: A passagem 140e-141d do diálogo Parmênides nos remete a uma das
conseqüências lógicas em relação ao “um”, isto é, estar fora do tempo, como
parte da demonstração argumentativa do filósofo eleata ao admitir a primeira
hipótese de que “o um é” e as conseqüências disso para si mesmo. Aceitar a
existência do “um” implica, segundo o método de análise utilizado por
Parmênides, verificar cada uma das hipóteses possíveis nesses casos, em relação
às suas predicações, para si e para outras coisas. Igualmente, o mesmo
exercício deve ser feito se a hipótese for oposta, “se o um não é”. Como
podemos identificar na estrutura do diálogo nesta parte, duas hipóteses são
levantadas em que “o um é” e suas nove consequências; no primeiro movimento
(137c-142a), as possíveis predicações para este são negadas, e no segundo
movimento (142b-155e) tais predicações e seus desdobramentos são reconhecidos.
É a partir desse posicionamento que desenvolvemos nossa análise sobre a questão
da temporalidade presente no diálogo e suas implicações metodológicas e
teóricas.
Palavras-chave:
Diálogo
Platônico; Temporalidade; Tempo; Parmênides
Abstract: The passage from140e-141d of the Parmenides
dialogue referred to in the title of this paper, steps 140e, to 141d, refers us
to “one” of the logical consequences in relation to the “one”, that is, to be
out of time (kronos),, as part of the argumentative
demonstration of the eleataEleatic philosopher by
admitting the first hypothesis that “the one is” and the consequences of itthis to himselfthe one itself.
Accepting the existence of the one implies, according to the method of analysis
used by Parmenides, to check each of the possible hypotheses in these cases, in
relation to their predications, for themselves and other things. Equally, the
same exercise should be done if the hypothesis is the opposite, “if the one is
not.” As we can identify in the structure of the dialogue in this part, two
hypotheses are raised in which “the one is” and nine consequences thereof
arise; in the first movement (137c to -142a), the possible predications for
this one are denied, and in the second movement (142b to -155e) such
predications and their unfolding are recognized. It is from such placement that
we develop our analysis on the issue of temporality addressed in the dialogue
and its methodological and theoretical implications.
Keywords: Platonic Dialogue; Temporality; Time; Parmenides
Introdução
A passagem do diálogo Parmênides[1]referenciada
no título deste trabalho, passos 140e - 141d, nos
remete a uma das consequências lógicas em relação ao “um”, qual seja, estar fora do tempo, como parte da demonstração
argumentativa do filósofo eleata ao se admitir a
primeira hipótese de que “o um é”, e
as consequências disto para si mesmo. Aceitar a existência do um, implica, segundo o método de análise
utilizado por Parmênides, verificar cada uma das hipóteses possíveis neste
caso, em relação a suas predicações, para si próprio e perante as outras
coisas. Igualmente, o mesmo exercício deve ser feito se a hipótese for o
contrário, “se o um não é”.
Como podemos identificar na estrutura do diálogo,
nesta parte são levantadas duas hipóteses em que “o um é”, e nove consequências daí decorrentes. No primeiro
movimento (137c - 142a), são negadas
as possíveis predicações para este um, e no segundo movimento (142b - 155e) se reconhece tais predicações e
seus desdobramentos.
É a partir de tal colocação que desenvolvemos nossa
análise sobre a questão da temporalidade presente no diálogo e suas implicações
metodológicas e teóricas.
Nas duas primeiras hipóteses – “se o um é”, as consequências, são:
1.
Se é ou não, um todo ou partes;
2.
Se
possui ou não uma figura ou forma
definida (reta ou circular);
3.
Se
está ou não no espaço;
4.
Se
está ou não em repouso e em movimento;
5.
Se é diferente ou igual a si e a outro;
6.
Se é semelhante ou dessemelhante;
7.
Se é igual ou desigual;
8.
Se
está ou não está no tempo;
9.
Se é ou não cognoscível.
Ocorre ainda, a terceira hipótese, em que “o um é e não é”, o que implica estar em
mudança contínua, e as consequências disto (155e até 157b); e a quarta e a quinta hipóteses em que “o um é” e as consequências disto para
as outras coisas (157b até 160b). Para as sexta, sétima, oitava e nona
hipóteses parte-se do princípio de que “o
um não é” e suas consequências possíveis (160b até 166b).
A conclusão (166c), brevíssima e, na verdade,
“inconclusiva”, não apresenta argumentos em apologia a nenhuma das hipóteses e
seus desdobramentos. Ao contrário, retoricamente, apenas se conclui que não faz
diferença que o um seja ou que o um não seja, que em qualquer dos casos
são e não são, parecem e não parecem ser. Mais do que uma aporia, temos uma
saída embaraçosa e obscura que muito se distancia da expectativa gerada na
primeira parte do diálogo. Lá se travam entre Sócrates e Zenão as primeiras
conversas que parecerão conduzir à exposição e defesa da ontologia parmenideana, suas concepções sobre a unidade,
imutabilidade, não movimento do Ser; a não existência do Não-Ser; ou ainda, a
sinalização de que encontraríamos a contestação precisa de Sócrates a Zenão e
seu mestre, com base na indefinida existência das Ideias em si, e os modos de
participação sensível, nas mesmas. Mas não são tais esclarecimentos que vamos
encontrar no desenvolvimento dialógico.
Como indica o próprio texto, a questão da existência
ou não do um, é um exemplo casual,
utilizado diante do contexto anterior da discussão, onde Sócrates e Zenão
trataram da unidade e da multiplicidade das coisas. Poderia ter sido utilizado
outro exemplo qualquer, pois o que pretende Parmênides no desenvolvimento do
diálogo não parece ser demonstrar a tese ontológica da existência ou não do um, o que, por sua
vez, nos conduziria à especulação sobre ser o
um (unidade) a própria identidade do ser parmenideano,
ou um atributo deste. A intenção de Parmênides nos parece ser menos ontológica
(ao menos nesta parte do diálogo) e mais metodológica, na intenção de
demonstrar a Sócrates como deve ser a investigação lógico-racional de uma tese
para possibilitar sua argumentação.
Nesta parte do ambiente cênico desenvolvido na obra,
Parmênides foi requisitado por Sócrates, com o apoio de Zenão e dos demais presentes
(Pitodoro, Aristóteles e talvez mais alguém) neste
antológico, embora, talvez fictício encontro (como acham a maior parte dos
comentadores, embora outros apontem uma citação no diálogo Teeteto (183e), em que Sócrates
se refere ao suposto encontro). O interlocutor direto do diálogo deixa de ser
Sócrates, substituído por um jovem Aristóteles (provavelmente em referência a
um futuro tirano ateniense, aqui personagem; e, não, obviamente, ao filósofo
peripatético). Sócrates se coloca na posição de ouvinte. Parmênides exige que
seu interlocutor seja o mais jovem de todos os presentes, razão pela qual se
apresenta este jovem Aristóteles.
Há um jogo de idades que fica bastante explícito na
composição dramática do diálogo platônico e parece não ser mero acaso ou estilo
literário, pois permite algumas considerações que costumam ser levadas em conta
por vários estudiosos e, no caso deste modesto trabalho, também ganha
relevância, pois, afinal, diz respeito à algumas das
divagações sobre a temporalidade que abordaremos.
O diálogo Parmênides,
ainda que não seja dos mais extensos, tem sido apontado como um dos mais
complexos, em toda a obra platônica, por adentrar no campo enigmático da
metafísica e da epistemologia ontológica, desafiando pesquisadores e exegetas de
todas as épocas, de modo especial como uma possível chave para se desvendar a
obscuridade da “teoria das formas”, para muitos, eixo central no pensamento
socrático e platônico.
Entretanto, o diálogo apresenta diversos movimentos e,
em sua maior parte, o intenso debate ontológico sobre a existência ou não das
Formas e suas possibilidades enquanto Ser, se dilui e
não se torna culminante no texto, que se desvia para outras vias, sobretudo a
metodológica.
Vejamos que o início dramático do diálogo vem, como de costume noutras obras, marcado pelo preâmbulo
que também não deve ser entendido meramente como um perfume estilístico, pois
em geral estes preâmbulos são reveladores de profundas intenções e métodos no
contexto dialógico. No caso do Parmênides,
o preâmbulo (126a -
127a), ao descrever a viagem proposital de Céfalo e
seus companheiros de Clazômenas à Atenas, onde se
encontram com os irmãos de Platão, Adimanto, Glauco e
depois, com o meio irmão Antifonte, não torna
explícito o porquê do interesse em ouvirem sobre o suposto encontro entre
Sócrates, Zenão e Parmênides, que ocupa o cenário principal do diálogo. Seria
uma mera curiosidade histórica e especulativa sobre a trajetória de Sócrates e
as possíveis bases de desenvolvimento de seu pensamento? Haveria um interesse
em compreender a fundo possíveis divergências ou convergências entre as teorias
eleáticas e as socráticas? Haveria uma busca
filosófica de fato, na tentativa de elucidar as dificuldades ontológicas da
“Teoria das Formas” possivelmente elaborada por Sócrates? Ou seria um interesse
metodológico, sugerido por Platão por meio dos personagens, direcionado a um
plano de exposição da construção do método dialético como modelo de arguição
filosófica?
Notemos que o argumento do procurado Antifonte (127a) que
narraria o encontro entre os filósofos eleatas e os
jovens atenienses, foi o mesmo apresentado por Parmênides quando instigado por
Sócrates e Zenão a se pronunciar detalhadamente sobre suas posições (136d). Antifonte reluta
inicialmente em narrar a história, alegando que “era muito trabalho” (127a: polý gar éphe érgon einai
)[2].
Ora, este Antifonte é descrito nessas poucas frases
como alguém que durante bom tempo frequentou o circuito filosófico ateniense,
mas que optou por mudar radicalmente de vida e atividades, recolhendo-se em uma
morada afastada, ambiente rural, provavelmente, passando a maior parte do tempo
a cuidar de cavalos. Tal descrição nos revela um personagem bastante exausto
das elucubrações filosóficas, que busca desocupar sua mente numa atividade rude
e natural. Coagido pelos visitantes, acabou por ceder e se dispôs a narrar a história que já contara por inúmeras vezes, e que o
enfadava, assim como enfadonha se tornara a filosofia, para ele.
O ancião Parmênides, quando pressionado por Sócrates e
pelo discípulo Zenão a discorrer sobre suas teses, também alega que “é muito trabalho... para alguém da minha
idade (136d,
polý érgon.).
Em ambos os casos se trata de uma justificativa para o
trabalhoso exercício mental e racional exigido pela filosofia na tarefa de
construir teses de fato consistentes e convincentes. É a dureza do raciocínio
lógico, da construção coerente da linguagem e da argumentação, enfim, o árduo
trabalho dialético a que se deve dedicar quem de fato pretende praticar a filosofia
e que pode, até mesmo, enfadar a seus praticantes.
É neste sentido que chamamos a atenção para o fato de
que o intuito que prevalece no diálogo Parmênides
seja talvez mais de ordem metodológica e lógica, do que propriamente ontológica
ou metafísica. Parmênides parece então, estar tomado por este enfado, e se
recusa a adentrar de imediato numa discussão densa em torno do Ser e seus
atributos, sobretudo com interlocutores ainda tão jovens com pouco domínio
sobre tais questões filosóficas de peso (Sócrates e o jovem Aristóteles). Sem
tornar-se antipático, até porque ele era o visitante externo em Atenas,
sutilmente desvia a conversa das questões ontológicas iniciais,
transformando-as em exemplos, para aproveitar a entrevista num sentido
pedagógico: ensinar aqueles jovens como devem exercitar seu raciocínio se
pretendem seguir a vida filosófica.
O movimento do diálogo que se segue ao preâmbulo, a
partir da narrativa de Antifonte (127e, até 137c) em
torno das conversações entre Zenão e o jovem Sócrates, chega a sinalizar para
um conteúdo onde iria, ao que parece, imperar questões
ontológicas e metafísicas pertinentes ao debate sobre a “Teoria das Ideias” e alguns de seus desdobramentos, como a
questão da multiplicidade, da unidade, do movimento, do repouso, da semelhança
e dessemelhança dos seres, dos seres sensíveis e inteligíveis. Porém, a entrada
de Parmênides no debate, vai aos poucos deslocando o rumo pretendido por
Sócrates que insiste na busca de argumentações sobre as teses em si do Um e do Múltiplo; enquanto o mestre eleata se
desvia para uma discussão aparentemente mais simples, que seria a questão do
método de investigação racional e não exatamente o conteúdo ontológico, ao
menos no contexto desta conversa.
O diálogo Parmênides: metodologia mais que
ontologia
Zenão já havia advertido a Sócrates de que o principal
objetivo na exposição feita em torno de alguns de seus escritos que tornara
públicos naquela ocasião, teriam sido redigidos ainda
em sua juventude com a finalidade de servirem como “uma assistência ao
argumento de Parmênides contra os que tentam caricaturá-lo” (128c-d); disse Zenão a Sócrates que não levasse
tão a sério as teses ali explicitadas, pois o principal seria entender o
propósito dos escritos que teriam menor pretensão do que aquelas imaginadas
pelo jovem interlocutor. Sócrates não teria compreendido o verdadeiro teor dos
escritos de Zenão, mais preocupados em exercitar a demonstração de um argumento
do que propriamente defender a verdade de uma tese ou princípio. Mais um exercício
metodológico e lógico, do que ontológico.
É por aí que Parmênides prossegue (a partir de
137c-d), ao afastar-se de um aprofundamento nas questões que marcam a ontologia
e a epistemologia, para reforçar aspectos do método de indagação e
argumentação. Não que os temas levantados pelas hipóteses apresentadas não
permitissem as abordagens epistêmico-ontológicas necessárias para o
desenvolvimento das teses parmenideanas. No entanto,
considerando o lugar dialógico do Parmênides
no corpus platônico, especialmente
ao se considerar os aspectos de suas várias temporalidades, como nos ensina a
tese inovadora a este respeito por Benoit (2015)[3]
que tem servido de base para nossa leitura dos diálogos, naquele contexto, o
propósito foi outro; tratava-se de oferecer uma iniciação filosófica ao jovem
Sócrates e a outros de seu círculo, apontando alguns indícios de conteúdos que
passaram a integrar outros contextos dialógicos ao longo da obra platônica.
Conforme defende Benoit, a interpretação dos diálogos
deve estar fundamentada no entrelaçamento das várias temporalidades que
caracterizam o corpus a partir do
contexto de elaboração da obra, o tempo do pensamento exposto, o tempo
dramático e a temporalidade da léxis,
ou seja, a ação do dizer dos personagens. Neste sentido é proposto um
ordenamento dramático dos diálogos segundo o encadeamento de suas falas,
acontecimentos, dados históricos etc., ao que Benoit chama de “diatáxis”: “o
Parmênides, no interior da diatáxis segundo a léxis,
é o primeiro ou o mais antigo dos Diálogos. Esta afirmação é atestada de
maneira indubitável por várias passagens”[4].
Desta constatação podemos inferir que pela
temporalidade dramática, o diálogo Parmênides
seria o início da vida filosófica de Sócrates e seu círculo de convivência,
contrapondo-se já à antiga tradição eleática. Isto
trará outras consequências metodológicas, conceituais e hermenêuticas da obra
platônica que não cabe discutir aqui. Apenas a título de complementação, o
tempo dramático deste diálogo pode, então, ser situado por volta do ano 450 a.C. Deste modo será possível construir o ordenamento de
todo o conjunto dos diálogos, até ao último deles, As Leis.
Quanto ao tempo de produção deste diálogo, o tempo da poiésis, como
denomina Benoit, o Parmênides estaria
dentre os escritos da fase mais tardia do autor Platão, como sugere a edição
aqui utilizada: “[...] a estilometria ... muito cedo atribuiu ao ‘Parmênides’ um
lugar incontestável no grupo dos diálogos da chamada fase média ou da
maturidade [...][5].
Aqui cabe adiantar, por exemplo, a intencionalidade
presente na cena dramática do diálogo Parmênides
ao enfatizar a temporalidade cronológica da vida dos personagens. Não à toa
tais idades são descritas com bastante detalhes
(127b-c): Parmênides já bem idoso, com cerca de sessenta e cinco anos; Zenão
perto dos quarenta; Sócrates bastante jovem, talvez menos de vinte; e o tal
Aristóteles, apresentado como o mais jovem de todos no encontro (137c), talvez
abaixo dos 18 anos. Também não pode ser desconsiderada a intenção do diálogo ao
indicar com certa precisão as temporalidades dos acontecimentos descritos: a
mais distante delas, a ocasião das “Grandes Panatenéias”
que teriam trazido Zenão e Parmênides à Atenas, ao menos cinquenta anos antes
do encontro entre Céfalo e os compatriotas de Clazômenas e a narrativa de Antifonte.
Por ora, cabe chamar a atenção para a preocupação do autor dos diálogos em
situar os personagens a partir de suas diferenças em idades, um detalhe que
poderia não fazer falta, não fosse a ênfase
metodológica que se pretenda oferecer à obra. Parece-nos que ao trazer o ancião Parmênides até certo ponto já cansado de tantas exposições
filosóficas, nem sempre bem compreendidas, que tenta se esquivar de uma
discussão mais profunda, em companhia do amadurecido discípulo, Zenão, em sua
“meia idade”, que recorre, para entretenimento dos ouvintes a um texto de sua
juventude, diante dos ansiosos jovenzinhos Sócrates e Aristóteles,
impertinentes em suas primeiras aventuras filosóficas, o diálogo nos passa mais
a ideia de se tratar de uma demonstração do autor frente aos métodos e
procedimentos a serem adotados no exercício filosófico do que uma preocupação
em apresentar alguma doutrina desenvolvida.
O Parmênides do diálogo não parece disposto a se deter
longamente em suas teses nesse momento; nem mesmo Zenão; sobretudo, ao
perceberem que seus interlocutores ainda pouco revelam de domínio sobre as
grandes questões que ocuparam esses pensadores até então, e que resultaram nas
antagônicas teses dos eleatas frente aos pitagóricos,
aos heracliteanos e aos físicos. Este diálogo
apresenta um Parmênides já bastante idoso, impaciente com as ingênuas
especulações juvenis, embora não agressivo. Ao contrário de se afastar ou
tratar os jovens com desdém, Parmênides assume o papel de mestre, disposto a
ensinar aos jovens aprendizes que seria necessário um
aprendizado frente aos primeiros procedimentos do método filosófico ou
dialético, antes de virem a se ocupar de conteúdos que exigirão muito trabalho
do lógos e
de percorrerem o difícil percurso da única via capaz de levar ao conhecimento,
que é a razão, (como já havia sido dito no Poema).
Enquanto Sócrates insiste em discutir conceitualmente
as teses que aparecem de modo diluído, fragmentado, tanto Zenão quanto Parmênides
direcionam para a necessidade primeira: aprender o
exercício do raciocínio filosófico e dialético, a argumentação e a demonstração
do argumento de forma lógica, pois somente assim se poderá chegar a algum
lugar.
Há um deslocamento de foco que deve ser levado em
conta pelos pesquisadores. O Parmênides talvez
ofereça menos elementos para se investigar a ontologia e, em particular, a
ontologia das Formas-Ideias, do que outros diálogos platônicos; e é provável
que ofereça mais indicativos para se pesquisar sobre a construção do método
dialético como instrumento da filosofia, ainda que a dialética platônica acabará por se afastar do método parmenideano
e também atravessará um longo percurso para se elaborar.
No entanto, ao se considerar a importância da temporalidade
dramática na inter-relação dos diálogos, faz sentido trazer à tona o debate ali
travado, início do percurso do lógos dialético platônico por meio do personagem Sócrates,
como se refere Parmênides (130e):
É
que ainda és jovem, Sócrates, disse Parmênides, e a filosofia ainda não se
apoderou de ti como, segundo minha opinião, ainda se apoderará, quando então nenhuma dessas coisas desprezarás. Por agora, ainda atentas
para as opiniões dos homens, devido a tua idade[6].
O Um e o Tempo
Embora nossas colocações preliminares tenham se
ocupado de uma concepção geral em torno do diálogo Parmênides, ressaltando seu aspecto metodológico e didático, mais
do que o ontológico e metafísico, pretendemos ainda, para cumprir o anunciado
no título, refletir sobre a difícil questão do tempo como ali é colocada.
Na oitava consequência da primeira hipótese de que “o
um é” (140e até 141d), parte-se do princípio de que
para existir, o um deve estar fora do
tempo, não participar nem estar em tempo algum (oúd éstin én tini kronoi). Assim, como não caberia ao um, nenhuma predicação, também
não caberia a ele, estar no tempo. A participação do um, no tempo,
significaria admitir contradições como a de ser, concomitantemente, mais velho,
mais jovem ou da mesma idade que si ou de outra coisa. Se uma das
características do um é ser o que é,
não poderia estar sujeito às mudanças impostas pelo tempo, que sempre torna uma
coisa mais velha que outra ou que si, implicando também que algo se torne,
então, mais jovem ou da mesma idade que outro algo. Ora, também não caberia ao um,
tornar-se diferente ou dessemelhante ao que é,
situações que ocorreriam, se estivesse sujeito ao tempo.
Entretanto, se considerarmos, como se faz na segunda
hipótese, que o um está no tempo e
dele participa (kronou metéxei),
significa entender que, por estar o um
ontologicamente vinculado ao ser, estar no tempo é característica do ser, que
participa tanto do passado, quanto do futuro, quanto do agora. De modo igual à
questão da medida, em que o um, assim
como o ser, pode participar da
grandeza e da pequenez, bem como em outros aparentes estados de contradição; há
que se aceitar a possibilidade de participação simultânea nas três dimensões do
tempo, passado-presente-futuro. Seja perante si mesmo ou perante outras coisas,
a natureza do um, se participa do
tempo, agrega a capacidade de ser mais velho, mais jovem
e da mesma idade, simultaneamente, o que significa dizer que também, não é mais
velho, nem mais jovem, nem da mesma idade. O um, portanto, é e não é; participa do tempo e não participa, está e
não está sujeito à mudança.
Mas como se dá a mudança ou a não mudança? No tempo? A
terceira hipótese diz que tal ocorre naquilo que se chama de “instante” (exaíphnes, 156d). Esse estranho elemento que não é
passado, nem presente, nem futuro; não é repouso, nem movimento. É algo entre
cada um deles. O instante é a passagem que indica a mudança e a presença no
tempo. Ser o que é como é, não implica necessariamente
estar no tempo do agora; como ser o que se foi ou que virá a ser, passado e
futuro, em si, não conota a condição de estar no tempo. É preciso perceber esse
tênue movimento entre uma coisa e outra, o instante
é o que representa o estar no tempo que passa. Tal hipótese nos aproxima das
teses de Heráclito, de que só há a mudança, pois tudo flui e se transforma a
cada instante; só há o instante da mudança; o tempo
seria a mudança contínua; o passado não é, pois já passou; assim como futuro
ainda não é; e o presente não permanece, tudo se resume ao instante, esta contínua transição.
Este termo aqui utilizado como instante (exaíphnes),
recebe outras conotações similares, como nos aponta Puente[7].
Para o pesquisador, tal expressão é utilizada por Platão em outros diálogos num
sentido trivial. Já no Parmênides o
conceito adquire sentido substancial e coloca-se como um intermediário entre os polos; a metaxy entre o tempo e a eternidade, ou, nos baseando nas citações acima,
este instante é o intermediário entre o passado-futuro que constitui o
presente. O termo indicaria outros sinônimos, como “de repente”, “repentinamente”,
“súbito”, e se caracterizaria como um
elemento próprio e não uma parte de um polo ou outro; ou seja, este exaíphnes seria
não uma parte do passado e outra do futuro, não uma parte do tempo (que se
move) e da eternidade (imóvel), mas um outro algo, e
aí residiria a preocupação central do diálogo, captar este “de repente”, este
“súbito”, este “instante”.
Se tais atributos se aplicam ao um, também são válidos para as outras coisas, já que a unidade
estabelece a relação. Assim será também para as coisas sensíveis como para as
ideias das coisas.
Nas últimas quatro hipóteses apresentadas, se o um não é, obviamente, a não existência
do um descarta qualquer atributo que
se possa atribuir a ele. Nada é no um,
se ele não existe. Consequentemente, não faz sentido pensar o tempo, nem
qualquer outra relação, pois simplesmente o um
não é, e nada é.
Como o texto final nada conclui do ponto de vista de
qual seria a hipótese viável, não há como concluir, afinal, que concepção se
tem do um e de seus predicados,
incluso aí a questão do tempo. Afinal, ficamos sem saber se o um participa ou não do tempo; pois, na
verdade, ficamos sem saber se o um é ou
não é. Mas a partir daí, abre-se uma nova questão: o que é o tempo nesta
perspectiva ontológica? Pelas considerações apresentadas nas várias hipóteses,
o tempo pode ser compreendido conceitualmente como unidade de medida (mais
velho, mais jovem, a mesma idade); como estado de uma natureza em
transformação, a passagem de uma coisa à outra; como unidade física, entre o
repouso e o movimento.
Se levarmos em conta que o diálogo teria como tônica
central a questão “das Formas-Ideias” ou que seja, de fato, uma demonstração
das teses ontológicas dos eleatas, caberia então
verificar o tempo enquanto uma entidade metafísica ou uma realidade ontológica
(a Forma-Ideia do tempo), e ainda uma verificação no contexto da filosofia
antiga onde o tempo, por vezes nos é colocado como uma entidade mítica; e, se
isto for possível, verificar em que grau o tempo e a temporalidade chegaram a
ser pensados enquanto condição da historicidade humana e seus acontecimentos.
Tentaremos verificar de modo introdutório um pouco
sobre a concepção do tempo em Parmênides (o filósofo, não o diálogo) e em
Platão (a partir de algumas referências nos diálogos).
Sobre o Tempo em
Parmênides
O poema de Parmênides[8]
parece não apresentar nenhuma referência direta ao tempo. Entretanto, ao se
conceber o ser e seus atributos, pode-se indicar alguma relação com a primeira
hipótese do diálogo que vem sendo tratado, em sua oitava
consequência, de que o um, se
é, estaria fora do tempo (140e). Ou seja, em princípio, a investigação racional
sobre o ser revelaria que este é não nascido e sem fim, “não foi nem será” (Fr. 8.3-4). O não-ser
igualmente é não nascido e não terá fim, porém pela negatividade de sua
existência e a impossibilidade de ser pensado pela via da razão. Ao ser, pode
ser tributada a qualidade de não ter nascido e não ter fim, enquanto
positividade, por existir para além do movimento e da mutabilidade; não ter
princípio nem fim, estar livre da gênese e da destruição (Fr. 8, 25/27).
Ainda que indiretamente, a ideia de princípio e fim,
gênese e destruição, são referências que podem nos indicar o tempo, como uma
entidade ou um estado ontológico que escapa à natureza do ser, apreendido pela
via da razão; somente a via da opinião permite a percepção dos seres efêmeros e
aparentes que na multiplicidade estariam sujeitos aos estados do tempo.
Em seus comentários interpretativos ao Poema, Santos destaca que ali são
apresentados alguns “sinais” ou
atributos do ser, tais como se manifestar de modo indivisível, imóvel,
indestrutível, sem princípio nem fim, portanto infinito, que está para além do
espaço e do tempo, pois “o ser é um eterno presente uno, homogêneo e contínuo”[9].
De acordo com Spinelli, para Parmênides, sendo a razão
a única via capaz de inteligir e falar sobre o ser, a
este se refere como o todo pleno, numa nova interpretação da physis,
apresentando-a como esta unidade da Natureza, do Cosmos, como um ente único,
contínuo, imóvel e uma série de características que se opõem às concepções
físicas vigentes, voltadas para a percepção sensível da realidade natural. Para
Parmênides,
O
cosmos é eterno, então ele não teve um começo no tempo e, nem tampouco, terá um
fim [...] Não tem passado e nem futuro, pois sendo eterno, é sempre igual e
presente. Ele não está submetido a um antes e um depois, de tal modo que, num
período de tempo, é e depois não-é, por isso ele é em sentido absoluto, sem que
possamos atribuir-lhe uma gênese ou como
e de onde nasceu [...][10].
Nos fragmentos coletados por Kirk, Raven
e Schofield, é feito o comentário de que os versos de
Parmênides “têm por finalidade provar que o que é não pode nascer nem perecer” (verso 21), e que o ser “nunca foi nem será, pois é agora como um todo”
(versos 5-6); ou seja, o ser desconhece o passado e o futuro, pois, “é uma
existência num eterno presente”[11]. O tempo aqui seria identificado a um
conceito cosmológico, atributo a que está sujeito aquilo
que possui uma origem, uma trajetória existencial e um fim. O ser parmenideano, portanto, estaria, nesta concepção, fora do
tempo.
Entretanto, o pesquisador norte-americano Richard McKirahan interpreta de modo diferente, dizendo que não há
no poema nada que confirme esta colocação de que o ser é atemporal. Para este
autor, rejeitar o passado ou o futuro, significa dizer que o que é, o é agora,
no presente; ainda que já tenha sido no passado, naquele momento se estaria sendo,
no presente; igualmente, o vir a ser no futuro, não é, e quando o for, será
presente. O ser não excluiria assim a temporalidade, mas a identificaria de
modo contínuo como o tempo sempre presente. Sendo a intenção de Parmênides
afirmar o que é e rejeitar o que não-é, o passado não
é mais e o futuro ainda não é; resta o presente como a característica do que é.
Portanto, neste caso, o ser não é atemporal, mas é sempre no tempo presente[12].
Porém, o problema não se resolve de todo, quando
encontramos versos que rejeitam ao ser, o nascimento e o fim. Estaríamos diante
da eternidade e da infinidade do ser. O que é eterno e infinito, poderia ser
compreendido como pertencente a um tempo indefinido
(sem medida de início e fim, mas que transcorre numa continuidade incessante);
ou pode significar a ausência absoluta do tempo, “intemporalidade”
ou atemporalidade. Em qual sentido podemos situar o Ser de Parmênides? Na
condição de um tempo que dura continuamente, o tempo perene, o tempo sem início
e sem fim, mas no qual o Ser está agora e transcorre sendo sempre presente?
Porém, isto nos remete à ideia de incompletude, pois se algo está sendo sempre,
nunca se está plenamente concluído. Ou vamos entender o ser como totalmente
fora do tempo; eterno e infinito porque não participa do tempo, esta condição
de formação e deterioração a que as coisas mutáveis estariam sujeitas?
Sobre o tempo em
Platão
De acordo com o Léxico
de Platão, organizado por Schäfer, “os diálogos
de Platão tematizam o tempo com frequência e de várias perspectivas”[13]. Tais perspectivas abrangeriam
utilizações mais coloquiais sobre os diferentes processos que envolvem as
questões humanas e da natureza ou para situar configurações míticas ou
históricas. De fato, vários conceitos são encontrados nos textos dialógicos que
nos remetem a algum significado do tempo. Inclusive nas divagações etimológicas
do Crátilo,
o nome Cronos (deus do tempo) é definido (396b, 401e) em associação aleatória à imagem da cabeça/inteligência e
depois ao rio ou a água de Heráclito, como aquilo que passa de forma
incessante.
Para Puente, o tempo aparece ao longo dos diálogos ao
menos em cinco sentidos: aión, kairós, exaíphnes, khrónos e nyn[14]. É provável que outros termos possam
ser elencados com diferentes conotações do tempo. Puente enfatiza,
a partir do autor francês Mattéi, que tais usos do tempo devem ser classificados como “figuras do tempo”, e não como
conceitos.
A despeito dos diferentes e possíveis usos sobre o
tempo nos diálogos, Schäfer em seu Léxico ressalta que enquanto tratamento
filosófico tal questão aparece de modo restrito, destacando-se, sobretudo, os
diálogos Timeu,
Parmênides e talvez algumas outras
passagens.
Quanto ao Parmênides,
foram apresentadas algumas considerações acima. Embora, como dissemos,
a aplicação do conceito tempo possa ser associada nas passagens desse diálogo à
dimensão matemática, enquanto unidade de medida entre um evento e outro; ou em
sentido físico ou orgânico, na condição da mudança e degeneração das coisas do
início ao fim; os debates ali travados podem nos remeter a reflexões sobre um
conceito cosmológico ou mesmo metafísico e ontológico do tempo.
No Timeu, o tempo, enquanto investigação cosmológica, ganha
relevância. Ali teríamos uma filosofia do
tempo. O ordenamento cósmico efetuado pelo demiurgo implica também no
ordenamento temporal, onde as formas do universo se manifestam e realizam seu
existir. Assim como o mundo é uma imagem dos deuses eternos, o tempo é uma
imagem da eternidade, ou, como dito no diálogo, isto que chamamos tempo, “é uma imagem móvel da
eternidade” (37e, eikô
kinêton tina aiônos). O
tempo passa a ser apresentado no desdobramento deste
diálogo, como passível das medidas que caracterizam o movimento a que os corpos
do mundo estão sujeitos, como passado, presente, futuro – o que foi, o que é, o que será. Para tal movimento, ganha
relevância a percepção do movimento celeste, as revoluções astronômicas no
universo, o que, de fato, como sabemos, tornaram-se referências para as
unidades cronológicas modernas, como o foram em muitas das sociedades antigas.
Parece-nos que enquanto conceito cosmológico, o tempo
no Timeu
oferece proximidade ao abordado no Parmênides.
E neste caso, há uma concepção metafísica e ontológica que distingue a eternidade, enquanto um atributo da
natureza do ser universal absoluto, da temporalidade a que estão submetidos os
seres do mundo. O tempo enquanto “imagem móvel da eternidade”, é uma realidade aparente, ilusória, um
simulacro que imita de modo distante a realidade ontológica da eternidade que
caracteriza o ser em sua identidade própria. O tempo que submete o cosmos e o
que nele foi posto, representa a efemeridade em
oposição à eternidade. O mundo efêmero não tem a durabilidade perene; o mundo
sensível está sujeito ao tempo em oposição ao eterno e à eternidade, o que nos
remeteria a uma realidade metafísica, pois “o tempo nasceu com o céu e junto a
este, sob o modelo da substância eterna” (38c).
Conclusão: temporalidade
platônica – do tempo mítico ao tempo histórico
Se tomarmos, como entendemos que deva ocorrer, uma
leitura dos diálogos em seu conjunto e nas relações dialéticas e dialógicas que
daí decorrem, não temos doutrinas ou teorias
filosóficas fechadas nos textos platônicos. Assim, como noutros conteúdos,
podemos perceber que a questão do tempo perpassa diferentes dimensões e
permitem múltiplas análises e mantém o caráter aporético
das temáticas.
Em relação ao tempo, percebemos que desde os usos
linguísticos cotidianos já presentes no contexto em que foram produzidos os
diálogos, encontramos conotações como as indicadas que conceituam o tempo ora
como unidade de medida, um elemento matemático; ora como movimento físico da
natureza e dos seres sensíveis; ora, num sentido quase biológico, da geração,
degeneração e morte/finitude dos seres; ora como unidade cosmológica e, numa
forma mais elaborada, como conceito ontológico.
Entretanto, ocorre um movimento nos diálogos que nos
permite ir além para extrair dali intensas abordagens de uma filosofia do tempo
ou da temporalidade. Neste caso, arriscamo-nos a dizer que o movimento
dialógico e dialético em Platão, no que tange ao conceito de tempo e
temporalidade, nos permite verificar esta relação que vai de um tempo mítico,
cíclico e simbólico como representado em cronos, que
é desconstruído pela concepção de um tempo físico-material representado pela
mudança natural da physis
e das coisas, a um tempo ontológico e metafísico
pensado na cosmologia, para avançar na direção da temporalidade histórica,
marcada pelo transcurso dos seres, do mundo natural e humano, dos
acontecimentos, inclusive na dimensão existencial e política em que se situam
as ações e a vida na pólis em seu ethos, seu modo de existir.
Não pretendemos aqui – nos falta inclusive a competência para tal –, adentrar pela complexa narrativa
dos mitos gregos e nem mesmo propomos uma abordagem em torno de uma “filosofia
do mito”, na expressão de Brisson[15],
embora seja tema de nossa curiosidade. Uma análise criteriosa exigiria, de
nossa parte, a investigação comparativa entre as narrativas míticas que as
mesmas receberam, inclusive na própria antiguidade grega, a partir das
diferentes versões, em autores diferentes, o que agrava a dificuldade
hermenêutica. No caso de Cronos, nos deparamos ainda com a dupla personificação
que muitas vezes tem confundido as interpretações.
Numa versão, há o Titã Cronos, filho de Urano (o Céu)
e Geia (ou Gaia, a Terra) contra quem se rebelou, a pedido da mãe, dado o
totalitarismo urânico de não deixar nascer seus filhos, para que não lhe roubassem
o poder. Foi exatamente o que ocorreu, quando Cronos castrou e derrotou a
Urano, iniciando a segunda geração dos deuses titânicos. Cronos e a esposa/irmã
Reia repetiram a saga de Urano, pois temendo o poder
dos filhos contra si, Cronos devorava a todos ainda bebês, até que de modo
semelhante à sua própria história com seu pai Urano, foi derrotado pelo filho
Zeus, que conspirou contra Cronos, fazendo-o vomitar a todos os filhos
devorados e, ao lado de Hera, iniciou Zeus a terceira geração dos deuses, e a
primeira dos deuses olímpicos.
Ora, tal simbolismo – Cronos que devora aos filhos –
tem sido interpretado como o deus que a todos devora, assim como o tempo que
conduz à finitude dos seres, a velhice e a morte temporal, de onde não há
escapatória, o que é uma imagem bastante pertinente e rica em desdobramentos.
No entanto, há também a representação de outra
divindade – Chronos/kronos
– como um dos deuses olímpicos, cultuado sobretudo nos
cultos órficos e que é identificado como o senhor do tempo, do princípio e do
fim, embora em sua outra face seja Aion, a eternidade. Para alguns (Plutarco) Chronos/kronos, o deus órfico,
seria a representação antropomórfica do Titã Cronos. Enfim, ambos, de algum
modo, estão vinculados à imagem do tempo.
A filosofia antes de Sócrates promoveu a passagem das
cosmogonias às cosmologias, das crenças míticas às interpretações da physis. Parece
ser, no caso do tempo, um pouco do que ocorre com Parmênides, dentre outros e
que o diálogo Parmênides em certo
sentido nos permite observar, nas questões sobre o tempo e a temporalidade
apontadas anteriormente.
No diálogo O
Político (268d – 273c), após o longo exercício lógico pelo método da divisão de gêneros,
na tentativa de se chegar à definição de quem seja o político, inicialmente este
vem a ser definido como um “pastor de rebanhos”, e a política a técnica de
“pastorear os homens” (267c). Porém, os personagens, o Estrangeiro e um outro
Jovem Sócrates, concluem que esta
definição do político como um “rei/pastor”, numa imagem divinizada da função de
governar, talvez se aplicasse noutra era, a era dos deuses, mas não seria mais
válida para os tempos humanos vigentes. Ocorre então, no texto dialógico, a
digressão mítica de Platão sobre Cronos, neste caso, a divindade titânica
anterior ao tempo de Zeus.
A alegoria platônica nos coloca diante da sucessão
temporal cíclica, uma espécie de eterno retorno, uma sucessão de épocas, onde
no “tempo de Cronos”, tudo transcorre na mais perfeita paz e harmonia, para o
universo e para o mundo humano. Neste caso, o rei como “pastor” representa bem
a imagem do político, a quem compete preservar a serenidade natural do rebanho
humano que transcorre em tranquilidade, pois, o governo do universo, de fato,
estaria na mão da divindade, um ciclo divino, da ordem universal. Porém, o
tempo vivido, é o ciclo de Zeus; o tempo é humano, assim como seu governo e as
mudanças daí decorrentes.
As duas eras representam a história cíclica e contínua
do movimento circular do universo. Embora no tempo de Cronos tudo aparece ao contrário do que se presencia no tempo de Zeus;
ou seja, o movimento dos astros se dá de oeste para leste e tudo nasce velho e
morre jovem; é aí que impera a ordem e a perfeição, pois deus governa, cabendo
ao rei-pastor apenas manter as coisas em dia, mas o comando é divino.
Já no tempo de Zeus, a divindade abandona os homens e
a natureza à própria sorte; o movimento se inverte de leste para o oeste e tudo
nasce jovem para depois envelhecer.
Ora, no primeiro caso, o tempo de Cronos, em que tudo
nasce velho e rejuvenesce, há uma representação da esperança, da possibilidade
de se evoluir do corruptível ao incorruptível, da necessidade à bonança, sob o
comando divino. Já no tempo de Zeus, com o abandono divino, o movimento dos
seres e da história humana é de declínio, de decadência. O tempo divino se
converte no tempo natural, e este é o tempo negativo da degeneração. Como nos
diz o Estrangeiro, no passo 269d:
Neste
universo em que estamos, em certos momentos é o
próprio Deus que guia a sua marcha e preside a sua revolução; noutros momentos
deixa-o evoluir livremente, quando os períodos de tempo que lhe foram
atribuídos terminaram, e o universo recomeça então por si mesmo, em sentido
inverso, a sua trajectória circular, em virtude da
vida que o anima e da inteligência com que foi favorecido, desde a origem, por
aquele que o compôs[16].
Assim, temos, neste mito platônico, o ciclo invertido
de todas as coisas. Se no tempo de Cronos tudo vem da morte para a vida, da
velhice para a juventude, do desordenado para o ordenamento, e a divindade, em
seu governo, a tudo conduz para a harmonia perene, no tempo de Zeus, condenados
à própria natureza, o mundo e os homens se veem na necessidade de encontrarem o
melhor caminho para conduzirem o próprio destino, no interior desta
temporalidade que avança do nascer ao morrer.
Esta alegoria platônica nos oferece uma visão cósmica
do tempo que se diferencia da visão divina do mesmo; no tempo de Zeus, a
natureza e os homens se guiam a si próprios, na lógica de sua própria
temporalidade. Mais que isto, conforme sugere Droz,
temos uma visão pessimista tanto do movimento cósmico quanto do humano, que
avançam para a própria decadência, desgovernados, o que justifica a necessidade
de se encontrar a melhor forma de governo e a melhor definição para o político,
de modo a amenizar esta situação de degeneração. Para Droz
este mito platônico,
[...]
para além das imagens cosmológicas ou antropológicas [...] abre talvez para
uma ‘filosofia da história’, pessimista, é certo, visto que está dominada pela
obsessão de um declínio inelutável, mas não trágica, pois o ciclo garante o
reaparecimento do paraíso perdido[17].
Neste caso, um paraíso reencontrado devido ao retorno
cíclico – o de Cronos – onde tudo se reconstitui e se reorganiza novamente.
Porém, enquanto no abandono da própria responsabilidade, à natureza e aos seres
humanos, cabe encontrar o bom piloto político responsável não apenas por
“pastorear” seu rebanho, já que não se está na calmaria, nem se é o “Rei
Filósofo” de uma República ideal, mas
sim um técnico habilidoso e virtuoso que consiga conter a decadência, fundamentado
na razão capaz de elucidar; o único meio capaz de favorecer aquilo que o
diálogo chama de política, como “a arte de tecer a cidade” em seus fios
emaranhados. Para Droz, “pela virtude de uma razão
eficaz ao serviço do governo [...] compete a tarefa de
conter o progresso do mal e travar a decadência. Ao pessimismo da filosofia da
história responde vitoriosamente a fé platônica na racionalidade ao serviço do
bem”[18].
Brisson enxerga neste mito do Político, “uma relação entre a cosmologia, a antropologia e a
política”[19].
Em relação ao Timeu,
há uma explicação cosmológica sobre o universo e seu movimento, carregada de
significados astronômicos e simbólicos que fogem ao objetivo deste comentário.
No entanto, o movimento de inversão temporal que ocorre entre um ciclo e outro
no mito, entre a corrupção e a degeneração de tudo (tempo de Zeus) e a
reconstituição plena do universo (tempo de Cronos), ainda que por uma era que
vai e volta, o ser humano se vê sem alternativa que não seja aquela de
encontrar uma saída política para sua situação de abandono e desgoverno.
Na dialética dos diálogos, a referência ao “reino de
Cronos” retorna em As Leis (711c -
714b) em torno do debate sobre qual seria a melhor forma para a constituição da
cidade – se monarquia, democracia, oligarquia etc., caminhando para a ideia de
que nem uma dessas formas representa o modelo ideal, já que se corrompem, e
talvez o melhor seja a mistura das constituições (o misto governo), de tal
maneira que se aproxime do tempo em que reinava ou reinará Cronos, onde
prevalece o que é bom e justo (As Leis 713c-e); enquanto isto, cabe estabelecer um
governo amparado pelas leis e pelos legisladores, educados pela razão, capazes
de preservar a boa administração da cidade humana (As Leis 714a). Neste
sentido, ainda que mesclando o mítico, o histórico e o
racional, a investigação sobre o nascimento e a origem das cidades e de suas
constituições e formas de governo, promovida no livro III de As Leis (676a - 684a), nos revela
indícios claros de uma concepção de tempo que se aproxima da temporalidade
histórica. Ao menos neste intervalo cíclico dos deuses, cabe ao ser humano
assumir o poder diretivo e político, como será
proposto no diálogo As Leis, no
esforço racional e histórico de conduzir a história da cidade por meio da
política.
Uma temporalidade histórica que, a nosso ver, nos
remete a uma percepção filosófica da história e da historicidade das cidades e
dos seres humanos; porém, para ficar apenas no trocadilho, isto é uma outra história, a ser desenvolvida noutro momento.
Referências
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DROZ, Geneviève. Os Mitos Platônicos. Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1992.
GRIMAL, Pierre. Mitologia
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IGLÉSIAS, M. & RODRIGUES. F. Platão. Parmênides. Rio de Janeiro/São
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SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos. 4
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McKIRAHAN,
Richard. A Filosofia antes de Sócrates – Uma
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PEREIRA FILHO, Gérson. Uma filosofia da história em Platão – o percurso histórico da
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PRADEAU, Jean-François. Les Mythes de Platon. Paris:
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PUENTE, Fernando Reys. Ensaios sobre o tempo na filosofia antiga.
São Paulo: Annablume, 2010.
SANTOS, José Trindade. Parmênides, Da Natureza. Brasília: Thesaurus, 2000.
SCHÄFER, Christian (Org.). Léxico de Platão. São Paulo: Loyola, 2012.
SPINELLI, Miguel. Filósofos
pré-socráticos – Primeiros mestres da filosofia e da ciência grega. Porto
Alegre: Edipucrs, 1998.
[1] Seguimos como
principal referência a seguinte edição bilíngue do Parmênides: texto
estabelecido e anotado por John Burnet, com tradução, apresentação e notas de
Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. Recorremos
também a outras edições disponíveis que, quando relevante, serão indicadas.
[2] A tradução das
citações segue a referência indicada na nota anterior.
[3] Esta obra é um
primeiro volume onde o autor nos apresenta uma introdução à sua densa e
revolucionária tese sobre os equívocos interpretativos da obra platônica ao
longo da tradição de comentadores, que teria feito com que se perca uma leitura
de fato autêntica dentro daquilo que foi proposto pelos próprios diálogos. A
proposta de Benoit é uma leitura dos diálogos platônicos a partir de uma
metodologia que ele denomina das “temporalidades”,
ao se considerar como pressupostos fundamentais para a compreensão dos
diálogos, o entrecruzamento entre as várias temporalidades ali presentes: a
dramaticidade cênica e histórica, a gênesis,
a léxis, a poiésis, a noêsis. Para uma compreensão detalhada
da metodologia das temporalidades proposta por Hector Benoit, temos sua tese de
livre-docência, defendida na Unicamp, em 2004: Em busca da odisseia: a questão metodológica das temporalidades e a
materialidade da lexis. A tese resultou em duas obras indispensáveis àqueles que
buscam novas maneiras de ler e compreender Platão: Platão e as temporalidades – a questão metodológica e A Odisseia de Platão – as aventuras e
desventuras da dialética.
[4] BENOIT, Platão e as temporalidades, p. 125.
[5] IGLÉSIAS;
RODRIGUES, Platão. Parmênides, p. 7.
[6] IGLÉSIAS,
RODRIGUES, Platão, Parmênides, p. 32.
[7] PUENTE, Ensaios sobre o tempo na filosofia antiga
[8] Citações de
fragmentos do Poema, de Parmênides,
com base na tradução de José Trindade Santos.
[9] SANTOS, Parmênides, Da Natureza, p. 96.
[10] SPINELLI, Filósofos pré-socráticos, p. 306.
[11] KIRK; RAVEN;
SCHOFIELD, Os filósofos pré-socráticos, pp. 259-60.
[12] McKIRAHAN, A
Filosofia antes de Sócrates, pp. 281-282.
[13] SCHÄFER, Léxico de Platão, p. 299.
[14] Cf. PUENTE, Ensaios sobre o tempo na filosofia antiga,
pp. 47-9. O autor não traduz todos esses termos, mas entendimentos possíveis
seriam aion
(a durabilidade da vida), kairós (o
tempo oportuno), exaíphnes
(o tempo súbito, o instante), Krónos (o deus do tempo), nyn (o agora).
[15] BRISSON, Introdução à Filosofia do Mito
[16] DROZ, Os Mitos Platônicos, pp. 146-147.
[17] DROZ, Os Mitos Platônicos, p. 156.
[18] DROZ, Os Mitos Platônicos, p. 161.
[19] BRISSON, Leituras de Platão, p. 220.