Submissão: 03/04/2020 Aprovação: 03/04/2020
Publicação: 15/04/2020
Dossiê O Parmênides,
de Platão
Platão contra um certo platonismo: a crítica da hipótese das Ideias no Parmênides
Plato against a certain platonism: the criticism of the hypothesis of Ideas in the Parmenides
Marcio Soares
Professor de Filosofia na Universidade Federal da
Fronteira Sul, Erechim, RS
Resumo: Apresento nesse texto uma leitura da primeira parte
(127a-135c) do diálogo Parmênides. Meu objetivo é demonstrar a possibilidade de
que as críticas objetadas pelo velho Parmênides à hipótese platônica das
Ideias, exposta e defendida pelo jovem Sócrates, não são letais à mesma
hipótese, uma vez que estão assentadas em dois pressupostos que a ela são
alheios e desnecessários. Primeiro, a pressuposição de Parmênides de que a
“distinção” (diéiresai) entre Ideias e coisas
delas participantes seja equivalente a total “separação” (chorís) entre ambas (Prm. 130b). Segundo, o fato de que o Eleata,
na construção de seus argumentos, trata das Ideias como se fossem coisas
materiais, isto é, tais como as coisas que são objetos
de nossa percepção sensível. Pretendo mostrar de que forma esses dois
pressupostos sustentam as dificuldades teóricas decorrentes das perguntas
dirigidas por Parmênides a Sócrates, as quais esse último não consegue
responder. Ao final, minha sugestão é de que Platão tenha posto na boca do velho
Eleata uma interpretação errônea de sua própria
hipótese das Ideias. Nesse sentido, nosso Filósofo, no diálogo Parmênides,
estaria combatendo um certo platonismo.
Palavras-chave: Hipótese das Ideias;
Crítica; Parmênides; Platão; Platonismo
Abstract: I present in this text a reading of the first part
(127a-135c) of the Parmenides dialogue. My purpose is to demonstrate the
possibility that the criticisms objected by the old Parmenides to the Platonic
hypothesis of Ideas, exposed and defended by the young Socrates, are not lethal
to the same hypothesis, since they are based on two presuppositions that are
extraneous and unnecessary to it. First, Parmenides'
assumption that the "distinction" (diéiresai)
between Ideas and things that participate of them is equivalent to a total
"separation" (choris) of both (Prm. 130b). Second, the fact that the Eleatic, in
constructing his arguments, treats the Ideas as if they were material things,
that is, such as the things that are objects of our sensory perception. I intend
to show how these two assumptions support the theoretical difficulties arising
from the questions addressed by Parmenides to Socrates, which the latter cannot
answer. In the end, my suggestion is that Plato put into the mouth of the old
Eleatic an erroneous interpretation of his own hypothesis of Ideas. In this
sense, our Philosopher, in the Parmenides dialogue, would be fighting a certain
platonism.
Keywords: Hypothesis of Ideas;
Criticism; Parmenides; Plato;
Platonism
Contudo, parece-me estar eu passando o mesmo que o
cavalo de Íbico [...] pronto para competir, e
tremendo, por conta de sua experiência, diante do que estava para acontecer
[...] como deve alguém [...] atravessar a nado tal e tão grande oceano de
argumentos? (Prm. 136e-137a)
I
O Parmênides
de Platão é uma peça sui generis
dentre os diálogos escritos pelo Filósofo de Atenas, seja pelo seu conteúdo,
seja pela sua forma. Provavelmente fora a densidade e aridez da segunda parte
de tal texto (Prm. 135c-166c) que motivaram a fama de ser
esse um dos diálogos platônicos mais difíceis, senão o mais difícil, desde a
Antiguidade. Contudo, parece que, em nossa própria época, pelo menos desde
meados do século XIX, é a primeira parte do mesmo texto (Prm. 127a-135c) a que tem causado mais polêmica. E tal não se deve
apenas ao simples fato de que em tais páginas Platão dedique-se à sua mais
famosa hipótese, a das Ideias (ou Formas), a qual sempre fora identificada e
até mesmo confundida com o próprio platonismo. O motivo da polêmica
contemporânea se deve, parece-me, muito mais à qualidade de tal abordagem, seja
em função de sua forma, seja em função de seu conteúdo. Dito de outro modo, o
motivo da polêmica deve-se ao próprio tratamento dado por Platão à sua hipótese
das Ideias na primeira parte do Parmênides.
No que diz respeito à forma, nosso Filósofo aborda a
hipótese das Ideias, aqui, em uma versão propriamente teórica, como a
denominamos hoje – aliás, talvez essa seja uma das poucas passagens platônicas
que mais poderiam justificar a famosa expressão moderna “teoria das Ideias”,
que tanto sucesso fez entre os scholars da
obra de Platão desde meados do século XIX, mas que nunca fora empregada
textualmente pelo próprio Filósofo. À parte disso, e na tentativa de apontar
com clareza o que quero destacar, aqui, ao falar em versão teórica da hipótese das Ideias (essa última, sim,
uma expressão tipicamente platônica), quero ressaltar o fato de que no Parmênides Platão não lança mão da mesma
hipótese a fim de tratar de outra questão maior (ou simplesmente motivadora do
diálogo), como ocorre no Fédon, v.g., onde tal hipótese é empregada no
contexto das provas da imortalidade da alma; ou na República, outro caso, onde a mesma hipótese é central para a
descrição da natureza do filósofo e da filosofia e suas consequentes
justificativas para o projeto educacional e político daquela grande obra – e,
exatamente por isso, a hipótese das Ideias é lá encenada na grandiloquência das
inesquecíveis imagens do Sol, da Linha Dividida e da Caverna. Isso apenas para
citar dois grandes exemplos, paradigmáticos e bastante conhecidos. Mas,
voltemos ao Parmênides: neste
diálogo, além de uma questão eleática inicial (à qual
voltarei a tratar adiante), a hipótese das Ideias parece ser tomada em si e por
si mesma. E ainda que consideremos a mencionada questão eleática
como o principal motivo da exposição da hipótese das Ideias, tal questão (eleática) é tão teórica – como veremos – que parece
determinar toda a abordagem subsequente da própria hipótese platônica das
Ideias. Assim, quando me refiro, aqui, ao aspecto teórico da abordagem da
hipótese das Ideias no Parmênides,
também é no sentido de distingui-la de abordagens com outros objetivos, que não
são puramente teóricos, como os motivos metafísicos (ou religiosos) do Fédon ou, mais claramente ainda, os
motivos políticos, éticos e educacionais – portanto práticos – da República.
Mas não são apenas a forma e o motivo pelos quais a
hipótese das Ideias é exposta e abordada no Parmênides
que denotam a marca predominantemente teórica desse diálogo, sobretudo quando
contrastado com outras peças de Platão, como o Fédon e a República.
Pois, no que diz respeito à abordagem especificamente teórica das Ideias no Parmênides, o conteúdo de tal texto é
mais sintomático ainda, já que se trata de verificar a própria viabilidade
teórica da hipótese das Ideias em si e por si mesma. Ora, a (possível)
viabilidade teórica das Ideias é terrivelmente posta em xeque nas objeções
dirigidas pelo velho Parmênides de Eleia à hipótese exposta pelo então jovem
Sócrates – ambos personagens platônicos no diálogo em
questão. Nomeadamente, e nessa ordem, trata-se dos seguintes problemas,
objetados pelo Eleata: (1) a extensão ou escopo das
Ideias – ou, afinal, quais Ideias existem mesmo, relativamente a que classe de
coisas? (2) as possíveis relações de
participação (e suas dificuldades aparentemente inerentes e inevitáveis)
entre Ideias unas e coisas múltiplas; (3) as ameaças de regressão infinita na postulação de Ideias, como intermináveis
níveis de realidade sobrepostos (trata-se de diferentes versões do conhecido
argumento do “terceiro homem”, como o denominou Aristóteles, provavelmente após
à escritura do Parmênides);
(4) a necessidade ontológica das
Ideias e a (im)possibilidade de serem elas apenas
pensamentos (ou representações mentais, como poderíamos denomina-los hoje); (5)
por fim, a assustadora possibilidade de as Ideias estarem completamente separadas das coisas múltiplas
(supostamente) delas participantes, o que inutilizaria as primeiras como causas
ontológicas das segundas, e a consequente incognoscibilidade das próprias
Ideias para nós, que estamos encerrados entre as coisas múltiplas (distintas e
separadas das Ideias). Só essa última objeção, sozinha, tem potencial de inutilizar
completamente a hipótese das Ideias, seja na condição de uma teoria ontológica,
seja como uma teoria epistemológica.
Ao final do diálogo travado na primeira parte da peça
(Prm. 127a-135c), todos esses problemas
listados acima parecem ser insolúveis para o jovem Sócrates, que chega a
transparecer desânimo e disposição para simplesmente abandonar a hipótese das
Ideias por ele recém exposta e defendida. O velho Parmênides, então,
surpreendentemente, procura injetar ânimo em Sócrates e o exorta a exercitar-se
mais na prática da filosofia, sugerindo-lhe não abandonar tão facilmente a
hipótese das Ideias, sob pena de inviabilizar o
pensamento (diánoia)
e o próprio emprego dialógico (dialégesthai) da linguagem (Prm. 135b-c).
Para nós, leitores e espectadores desse drama
filosófico encenado pelo jovem Sócrates, restam algumas perguntas: o que Platão
objetivou com isso tudo? Teria ele apontado para a falência teórica de sua
própria hipótese das Ideias? Ou teria ele apenas submetido sua hipótese ao
teste teórico mais rigoroso possível? Quais eram afinal seus objetivos:
desconstruir sua própria hipótese das Ideias ou apenas testá-la na mais alta
temperatura? Nesse sentido, estaria o nosso Filósofo, indiretamente, apontando
o modo de não lermos sua hipótese das Ideias? Estaria ele, já em sua própria
época, lutando com uma interpretação corrente e desvirtuada de sua hipótese?
Seria sua abordagem crítica uma espécie de antídoto contra uma
tal interpretação desvirtuada?
Independentemente das respostas dadas a todas essas
perguntas, e das intenções de Platão – inescrutáveis para nós – ao escrever o Parmênides, fato é que em nenhum outro
texto o nosso Filósofo fora tão rigoroso e até mesmo implacável com uma
hipótese sua. Mais ainda, poucos filósofos da Tradição Ocidental foram tão
exigentes consigo mesmos, como é o caso de Platão no Parmênides. Enfim, parece-me, é
essa atitude radicalmente crítica do Filósofo com sua própria hipótese das
Ideias, no Parmênides, e a inevitável
e imensa sombra de dúvidas que a cobre, que tem despertado tanto interesse e
polêmica em torno desse diálogo (especialmente de sua primeira parte), já há
bem mais de um século, entre estudantes, scholars,
especialistas e leitores modernos atentos do nosso Autor.
II
Feita essa breve exposição da abordagem teórica da
hipótese das Ideias presente na primeira parte do Parmênides, quero oferecer uma sugestão de leitura e pistas para
uma interpretação da mesma passagem do texto platônico. Antes disso, contudo,
três perguntas cruciais devem ser repostas, a saber: (1) Platão estaria
criticando sua própria hipótese das Ideias (ou submetendo-a a um exame crítico
rigoroso), no sentido de reconhecer riscos e equívocos que ela mesma carrega,
os quais, por assim dizer, lhe são congêneres, talvez inevitavelmente presentes
em sua linguagem e em seus pressupostos teóricos? (2) Quisera o Filósofo
alertar-nos, no Parmênides, a seu
modo, sobre tais riscos e equívocos? (3) Assumamos, pois, ainda a título de
conjectura inicial, que Platão tenha reconhecido esses riscos e equívocos
presentes em sua hipótese das Ideias; nesse caso, sua abordagem no Parmênides é uma evidência suficiente de
que o próprio Autor, a partir desse diálogo, abandonara (ou de que, pelo menos,
teria motivos para abandonar) sua hipótese mais característica, isto é, a das
Ideias? Em minha sugestão de interpretação da primeira parte do Parmênides, tendo a responder
afirmativamente para as perguntas (1) e (2), e negativamente para a pergunta
(3). Ou seja, Platão reconhece riscos e equívocos presentes na sua construção
teórica da hipótese das Ideias. Nesse sentido, as críticas feitas pelo velho
Parmênides à hipótese exposta pelo jovem Sócrates na primeira parte do diálogo
são o diagnóstico preciso de tais riscos e equívocos. Mas, embora esses últimos
estejam presentes na construção teórica da hipótese das Ideias, na forma de
pressupostos e condicionantes (inclusive linguísticos) da hipótese, eles o
estão de forma latente, talvez até mesmo de forma dormente, e só são ativados por
interpretações que os assumam, quer ou não como equívocos. Dito de outro modo,
Platão parece reconhecer que sua construção teórica da hipótese das Ideias
deixa margem para que a mesma seja interpretada segundo tais pressupostos
equivocados, e exatamente nesse reconhecimento reside sua autocrítica. Contudo,
uma vez que são algumas interpretações dos leitores de Platão (talvez a
maioria, já na época em que o Parmênides
fora escrito, o que poderia justificar sua própria construção) que ativam tais
pressupostos equivocados da hipótese das Ideias, eles nem são necessários –
isto é, são totalmente evitáveis – nem são letais à própria hipótese. Daí o
motivo de por que Platão não ter abandonado (nem ter razões para abandonar) a
hipótese das Ideias após a autocrítica por ele levada a cabo no Parmênides.
Nesse sentido, por ora, a fim de apontar a direção de
minha própria interpretação, quero apenas indicar os dois grandes problemas que
determinam as interpretações equivocadas da hipótese platônica das Ideias, as
quais, a meu juízo, são miradas criticamente pelo Filósofo na primeira parte do
Parmênides. Tais são os mencionados
problemas: primeiro, trata-se de compreendermos a natureza mesma das próprias
Ideias; segundo, diz respeito à noção de “separação” (chorís) das Ideias em
relação às coisas delas participantes. Em síntese, minha sugestão de leitura e
interpretação da primeira parte do Parmênides
é: todas as aporias estão assentadas em uma equivocada
compreensão tanto da natureza das Ideias quanto de sua distinção (ou separação)
em relação às coisas. Portanto, parece-me, e quero defender isso aqui, Platão, ao mesmo tempo que reconhece os riscos e, até mesmo, os
equívocos de sua hipótese mais característica e os expõe, tornando-se, assim,
crítico de si mesmo, também está combatendo um certo platonismo, distorcido, o qual escandalosamente ainda vigora
em nossos dias (em livros, aulas, palestras e debates filosóficos), apesar da
advertência platônica desde há muito presente no Parmênides. Nessa mesma direção argumentativa, sugiro que a
demonstração platônica da viabilidade teórica e da necessidade filosófica da
hipótese das Ideias se dá ex negativamente, isto é, ao apontar os absurdos
consequentes de leituras equivocadas de sua hipótese, Platão pretenderia,
assim, indicar o único sentido em que ela pode subsistir,
ser explicativamente útil (para a ontologia, para a
epistemologia e para suas consequências práticas) e impor-se como necessária.
Em suma, ao deixar entrever as falhas das críticas à hipótese das Ideias (i.e., a incompreensão tanto da própria
natureza das Ideias quanto de sua separação ou distinção – chorís – em relação às
coisas delas participantes), talvez Platão tivesse a esperança de nos convencer
não só da viabilidade teórica da mesma, mas também de sua necessidade
filosófica – e precisamente nesse sentido falei em uma demonstração platônica ex negativa da
plausibilidade de sua hipótese das Ideias.
Na sequência deste texto, procurarei desenvolver cada
um dos dois problemas fundamentais que apontei acima, e que estão na base das
interpretações distorcidas da hipótese platônica das Ideias (e, portanto, das
críticas a ela objetadas na primeira parte do Parmênides), a saber, (1) a questão da distinção ou separação (chorís)
entre Ideias unas e coisas múltiplas e (2) a natureza ou estatuto ontológico
das próprias Ideias. Embora eu proponha essa distinção didática entre esses
dois problemas, e nessa ordem, veremos que eles estão entrelaçados, e que o
tratamento de um geralmente implica o tratamento concomitante do outro. Assim,
tratarei desses problemas, expondo-os e examinando suas consequências, no
contexto das próprias cinco ou seis críticas presentes na primeira parte do Parmênides (127a-135c), com o objetivo
claro de desconstruir essas críticas na mesma medida em que aqueles problemas
vão sendo elucidados e bem compreendidos.
Além disso, tentarei mostrar que alguns aspectos
cênicos do diálogo são determinantes para a compreensão e avaliação do
potencial crítico das supostas cinco ou seis objeções presentes na primeira
parte da peça. Refiro-me ao fato específico de que é o ilustre Parmênides quem
faz certas perguntas, as quais parecem direcionar fortemente o jovem Sócrates a
dar certas respostas. Nesse sentido, é notável – e não pode ser simplesmente
ignorado – o fato de que o inexperiente Sócrates é incapaz de fazer frente ou
resistência ao ataque crítico e tendencioso (em uma direção que procurarei
mostrar) do renomado Eleata.
Através desses procedimentos todos, tenho esperança
tanto de demonstrar que as críticas do Parmênides
não são letais à própria hipótese platônica das Ideias quanto de apontar a
viabilidade teórica dessa última, haja vista a preservação de sua coerência
lógica interna, ainda que não concordemos com ela e prefiramos, ao final,
rejeitá-la como um todo.
III
Antes, contudo, cabe uma rápida abordagem da questão eleática que enseja a discussão filosófica no Parmênides, e que talvez seja o verdadeiro
leitmotiv do diálogo como um todo[1]. No contexto dramático dessa peça, a exposição da
hipótese das Ideias por Sócrates é uma reação contra-argumentativa
à leitura da primeira hipótese do primeiro argumento do livro de Zenão de
Eleia, recém feita pelo próprio autor. Tal hipótese zenoniana, conforme a reconstrução do jovem Sócrates, rezava o seguinte:
[...] se os seres são múltiplos [ei pollà esti tà ónta], então é preciso que
eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes, mas [...] isso é impossível
[adýnaton],
pois nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes,
dessemelhantes? [...] Então, se é impossível as coisas
dessemelhantes serem semelhantes e as semelhantes, dessemelhantes, é também
impossível haver múltiplas coisas [adýnaton [...] pollà eînai], não é? Pois, se
houvesse múltiplas coisas, seriam afetadas pelo que é impossível [Portanto, não
há múltiplas coisas] (Prm. 127e; interpolações minhas)[2].
Da releitura dessa hipótese zenoniana,
na sequência imediata do diálogo (Prm. 127e-128e),
Sócrates deduz que Zenão está dizendo o mesmo que seu mestre Parmênides, apenas
que o discípulo afirma “não haver múltiplas coisas” (ouk ésti pollá),
enquanto o mestre afirmara em seu poema “o todo ser um” (hèn eînai tò pân). Zenão não nega essa interpretação de Sócrates, ao
contrário, a confirma, embora esclareça que escrevera
o tal livro na juventude, e que sua hipótese fora motivada por espírito juvenil
de controvérsia contra aqueles que acusavam as consequências ridículas da tese parmenídica (i.e.,
de que o “um é [real]” – hén esti),
devolvendo-lhes na mesma moeda e mostrando que o contrário daquela tese (ou
seja, de que o “múltiplo é [real]” – pollá estin) implica consequências igualmente ridículas.
Portanto, afirma o discípulo Zenão: sim, seus argumentos visam prestar auxílio
à principal tese filosófica de seu mestre Parmênides, a saber, aquela que, de
forma absoluta e sobre os aspectos lógico e ontológico, indiscernivelmente,
de um lado afirma a necessidade do um (hén esti) e de outro nega a possibilidade do múltiplo (ouk ésti pollá).
Desse modo, a prova zenoniana
da hipótese parmenídica é construída ex negativamente,
isto é, uma vez demonstrados os absurdos implicados na hipótese da “existência
da multiplicidade” (pollá estin),
pretende-se que automaticamente esteja validada, lógica e ontologicamente, de
modo indiscernível (no que diz respeito à lógica e à ontologia), a hipótese
exatamente contrária, ou seja, a parmenídica, aquela
que afirma a “existência do um” (hén esti). Trata-se de um argumento que se estrutura na
forma de modus tollens[3], como segue: (1) se há multiplicidade [M], então há
contradição [C] na realidade; (2) ora, não pode haver contradição [~C] na
realidade (não é racional concebê-la); (3) logo, não há multiplicidade [~M].
Formalmente, então, temos: M → C, ~C ├ ~M[4]. A forma lógica desse paradoxo zenoniano, como comumente é chamado, é válida, apesar da obscuridade de todo o argumento[5]; trata-se de uma prova por reductio ad absurdum. E ainda que, especialmente para
a nossa mentalidade hodierna, seja custoso aceitar que de uma prova formal
lógica extraiam-se consequências ontológicas, é exatamente isso que vemos
acontecer na construção desse argumento de Zenão: da impossibilidade lógica da
contradição pretende-se extrair a impossibilidade ontológica de a
multiplicidade ser real.
Nesse sentido, Zenão parece estar pressupondo uma
espécie de pré-formulação do princípio de não-contradição, nos seguintes termos (Prm. 127e): o fato de admitirmos logicamente a multiplicidade – que
parece ser caracterizada como meramente
aparente, sob um ponto de vista eleático –
implicará que as coisas (tà ónta) sejam
semelhantes (hómoia)
e dessemelhantes (anómoia);
mas isso é impossível (adýnaton),
pois não podem nem os semelhantes serem dessemelhantes (tà hómoia anómoia),
nem os dessemelhantes serem semelhantes (tà anómoia hómoia).
Eis aí exposta a contradição, que inicialmente parece
revelar-se nos próprios termos: o semelhante [S] associa-se ao seu exato
contrário, isto é, o dessemelhante – que é igual ao não-semelhante [~S].
Configura-se assim a contradição formal: o semelhante é não-semelhante
[S ˄ ~S]. E o mesmo ocorre quando supomos a associação do dessemelhante [D] ao semelhante, que por sua vez é igual ao não-dessemelhante [~D], isto é, instaura-se a contradição
formal: o dessemelhante é não-dessemelhante [D ˄ ~D].
Embora Sócrates, nessa altura do diálogo (Prm. 127e-128b), ao reconstruir os termos
do argumento zenoniano, não mencione a palavra grega enantía (coisas
contrárias ou contraditórias), ela aparece logo a seguir, na boca do próprio
Zenão (Prm. 128d), que
afirma pretender demonstrar que a hipótese adversária àquela de Parmênides
implica tantas “coisas ridículas” (geloîa) e “coisas contrárias” (enantía) a ela mesma quanto os adversários
do mestre à hipótese dele objetam. Esta é, de fato, a primeira vez que uma
palavra – enantía
– associada às noções de contrariedade e de contradição aparece no texto do Parmênides. O que quero argumentar é que
seu emprego, aqui, e doravante na exposição socrática da hipótese das Ideias,
estabelece a arena teórica em que o eleatismo e o
platonismo medem forças no diálogo Parmênides,
a saber: trata-se do problema da contradição lógica e suas consequências
ontológicas para a construção do discurso filosófico que pretenda descrever a
estrutura da realidade.
IV
Na sequência do diálogo (Prm. 128e-130a), a hipótese das Ideias é exposta por Sócrates
exatamente como dissolução do paradoxo zenoniano
reconstruído acima; ele a expõe nos seguintes termos: inicialmente, trata-se de
uma distinção teórica (que parece ser, a um só tempo, lógica
e ontológica) entre, de um lado, a Ideia ou Forma em si e por si mesma (autò kath’ hautò eîdós – 129a) e, de
outro, as muitas coisas dela participantes (metalambánonta). Seguindo esse
esquema teórico, na continuidade da exposição de Sócrates, de um lado há a
Semelhança (homoiótetos)
em si e por si mesma, bem como seu contrário e contraditório (enantíon), a
Dessemelhança (anómoion)
em si e por si mesma; de outro lado, estão as coisas
múltiplas (pollá)
que delas são participantes, e que exatamente em função dessa participação (metalambánein)
exibem entre si semelhanças e dessemelhanças, podendo ser descritas nesses
mesmos termos – i.e., de serem
semelhantes e dessemelhantes[6]. Sócrates aponta para si mesmo, para Zenão (a quem se
dirige diretamente) e para as “outras coisas chamadas múltiplas” (pollá)[7] como exemplos de tais participantes das Ideias. Um
pouco mais adiante (Prm. 129c-d), ao retomar a si mesmo como
exemplo, Sócrates explicita o caráter múltiplo de tais coisas: trata-se de
terem elas múltiplos e distintos aspectos, como ele mesmo (Sócrates) tem um
lado direito e um lado esquerdo, uma parte da frente e uma parte de trás, uma
parte posterior e uma parte inferior; enfim, Sócrates é “um” (hén) em relação
aos outros (homens) ali presentes, mas é “múltiplo” (pollá) – isto é, de muitos
aspectos distinguíveis – em relação a si mesmo.
Essa caracterização das coisas múltiplas revela-se
importante na medida em que, desde elas e em contraste com elas, emerge a
natureza das próprias Ideias, das quais aquelas são participantes. Enquanto as
coisas múltiplas – tais como nós mesmos – apresentam muitos e distinguíveis
aspectos, as Ideias, por sua vez, são pura “unidade” (henós). Em síntese, o esquema
teórico da hipótese das Ideias, tal como exposta pelo jovem Sócrates nesse
início do Parmênides, configura-se
assim: há muitas coisas (de múltiplos aspectos)
que participam de uma Ideia (de um único aspecto).
Trata-se da reiterada fórmula básica da estrutura da hipótese platônica das
Ideias[8], a saber: há
muitas coisas múltiplas em relação a uma Ideia única – e tal fórmula será
literalmente enunciada logo adiante no texto do Parmênides (131b9), para descrever a estrutura desejável da relação
de proporção entre Ideia e seus participantes, nos seguintes termos: “hèn epì polloîs” (um para
muitos).
Todas as questões (potenciais objeções) do velho Eleata, dirigidas ao jovem Sócrates, na sequência do
diálogo, as quais refletem pontos críticos (i.e.,
de possível fragilidade) da própria teoria, dependem de uma
certa compreensão dessa estrutura fundamental – hèn epì polloîs – da hipótese das Ideias; são elas: (a) sobre a
extensão das Ideias; (b) sobre os
problemas da participação; (c) as
diferentes formulações do argumento do regressus ad infinitum; (d) sobre a natureza das Ideias; (e) sobre a separação entre Ideias e coisas e a possibilidade da (in)cognoscibilidade das primeiras.
Antes de avançarmos em tais questões críticas sobre a
teoria das Ideias, a partir das respectivas perguntas a ela objetadas por
Parmênides, há que se registrar que a hipótese exposta por Sócrates desativa o
paradoxo zenoniano através da enunciação positiva do
princípio de não-contradição, que opera no interior da
mesma hipótese lógico-ontológica das Ideias. Em síntese, dado o simples fato de
haver multiplicidade, não haverá contradição na realidade, já que as coisas
múltiplas (que assim o são em função de seus muitos e distintos aspectos)
apenas são afetadas e exibem diferentes características, em diferentes aspectos
e, podemos supor, por possibilidade óbvia, em diferentes tempos, devido à sua
participação nas Ideias. Já essas últimas (as Ideias), por sua vez, são as
características puras, postuladas como realidades em si mesmas (i.e., ontologicamente consistentes, de realidade própria, e distintas das coisas que delas participam).
Nesse sentido, afirma Sócrates, “não é espantoso” (oudé ti thaumastòn – Prm. 129d5) que uma coisa múltipla (de múltiplos aspectos) seja
semelhante e dessemelhante ao mesmo tempo, ou uma e múltipla, ou grande e
pequena, ou esteja em movimento e em repouso, já que estas são características
distintas que a afetam, que a qualificam (ontologicamente), em função de sua
participação nas Ideias (em si e por si mesmas) respectivas a tais
características, a saber: a Semelhança (homoióteta), a Dessemelhança (anomoióteta), a Unidade (tò hèn), a
Quantidade (plêthos),
o Movimento (kínesin)
e o Repouso (stásin
– Prm. 129d-e). Não
há contradição no fato de que coisas múltiplas, de diferentes aspectos e
imersas no tempo (i.e., no devir do
mundo físico – pois os exemplos de Sócrates são de “paus” [xýla] e “pedras” [líthous] – Prm. 129d), sejam
afetadas e exibam diferentes características, até mesmo contraditórias entre
si, desde que em diferentes aspectos ou tempos. Haveria contradição, e por isso
seria espantoso, se as próprias Ideias, contrárias ou contraditórias entre si,
misturassem-se, participassem-se umas das outras, já que elas não são coisas
múltiplas, mas puras unidades de significação, puras características[9], abstraídas, distinguidas (ou separadas), postuladas
como realidades independentes das coisas delas participantes e de consistência
ontológica própria (i.e., distinta
daquela das coisas múltiplas, tais como paus, pedras e homens).
Isso parece ser suficiente para demonstrar que a
hipótese das Ideias exposta pelo jovem Sócrates, no Parmênides, visa combater e desativar o paradoxo zenoniano – e nesse sentido ela se contrapõe a uma versão
do eleatismo, isto é, aquela de Zenão. A simples
presença de Parmênides e de seu discípulo predileto, na cena do diálogo, parece
avalizar a interpretação de que, aos olhos de Platão, o que está em questão
também é um combate ao eleatismo. Dito de outro modo,
desde fora do diálogo, parece ser um acerto de contas entre o platonismo e o eleatismo. E tal acerto de contas se dá através da questão
da contradição, nas disputas entre ambas essas filosofias sobre como compreendê-la
(i.e., a própria contradição), sobre como lidar com ela, tanto na construção de uma
lógica quanto de uma ontologia, ao tratar das difíceis relações entre um (hén) e múltiplo (pollá). Nesse
sentido, sugeri que a exposição da hipótese das Ideias no Parmênides, em seu embate com o eleatismo,
é motivada por uma questão puramente teórica, a saber, a da (não)contradição, da qual dependem quaisquer lógica e ontologia
que componham o discurso filosófico coerentemente.
V
Como já era de se esperar, a partir daquela exposição
da hipótese teórica das Ideias feita pelo jovem Sócrates, no diálogo, as
atenções – tanto as de Parmênides quanto as nossas – se voltam para as
seguintes questões: (1) quais Ideias (que tipo ou espécie de Ideias) realmente
existem? (2) qual a sua consistência ontológica (ou sua natureza)? (3) em que
sentido elas se distinguem ou se separam das coisas? (4) o que são as relações
de participação entre Ideias e coisas? (5) podem as Ideias ser conhecidas e
provadas? Essas parecem ser as questões fundamentais que estão por detrás das
aparentes objeções feitas por Parmênides à hipótese antes exposta por Sócrates.
Digo aparentes objeções porque, na
dinâmica dramática do diálogo, o Eleata apenas faz
perguntas, apresenta questões e problemas; ao que parece, é Sócrates quem as
toma como objeções fatais à sua hipótese, na medida em que não consegue
responde-las de forma a neutralizar seus efeitos aporéticos
sobre a possibilidade lógico-ontológica das Ideias.
O que pretendo mostrar, a seguir, é que a forma como
Parmênides constrói as suas questões – ainda que eu não possa examiná-las
todas, em particular e detalhadamente, agora – determina uma
certa compreensão da hipótese das Ideias, imediatamente assumida por
Sócrates, no interior da qual emergem certas respostas para aquelas cinco
perguntas suscitadas acima. Paralela e concomitantemente, quero argumentar que
existe sempre a possibilidade de uma leitura distinta daquela que é assumida
por Sócrates ao lidar com as questões de Parmênides e, portanto, também há
respostas alternativas possíveis àquelas mesmas perguntas apontadas no
parágrafo anterior. Esse procedimento, contudo, não deve nos impedir de
reconhecer quando as questões do Eleata nos
impulsionam, em sua própria direção implicitamente apontada, a conclusões e
argumentos corretos.
Já de início, em sua primeira intervenção no diálogo (Prm. 130a-b), Parmênides pergunta a
Sócrates:
Mas, dize-me: tu mesmo assim fizeste a divisão [diéiresai]
tal como falas: de um lado certas formas [Ideias] mesmas [chorìs mèn eíde autà átta], de outro as
coisas que delas participam [chorìs dè tà toúton
aû metéchonta]? E te
parece a semelhança mesma ser algo [eînai autè homoiótes], separada [chorìs] da semelhança que
temos [hemeîs homoiótetos
échomen], e também o um [hèn]
e as múltiplas coisas [pollà]
e todas as coisas que há pouco ouviste de Zenão? (Grifos dos tradutores.
Interpolações minhas)
Em resposta, Sócrates admite a distinção (diéiresai)
por ele feita entre Ideias (eíde) e coisas delas participantes (metéchonta).
Contudo, o que impressiona, nessa breve passagem, é o uso repetitivo, por
Parmênides, da palavra (um advérbio) “chorís”: ele a emprega três vezes, como podemos
ver no texto acima. Note-se bem: a pergunta do Eleata
não se restringe a (re)afirmar
a “distinção” (diéiresai)
entre Ideias e seus participantes, mas insistentemente induz o jovem Sócrates a
aquiescer a “separação” (chorís)
entre Ideias e coisas delas participantes, ao afirmar, de forma incisiva,
primeiro, de um lado as “chorís eíde autà” (Ideias mesmas separadas), de outro as “chorìs metéchonta” (coisas participantes separadas); depois,
de um lado a “autè
homoiótes chorìs”
(semelhança mesma separada), de outro a “hemeîs homoiótetos échomen” (semelhança que nós temos). Em síntese, as
perguntas de Parmênides argutamente empurram Sócrates a admitir que a
“distinção” (diéiresai)
entre Ideias e coisas delas participantes é equivalente à “separação” (chorís)
entre elas, e o Jovem o faz de forma completamente inadvertida, sem oferecer
qualquer resistência ao grande Eleata – o qual
continuará utilizando a palavra “chorís” insistente e repetidamente para se
referir à (distinção) separação entre
Ideias e seus participantes na sequência imediata do texto do Parmênides (v.g.: 130c1; 130d1; 131b1).
Em nenhum momento do diálogo, nem no que vimos até
aqui nem no porvir da discussão, Sócrates e Parmênides examinam, franca e
abertamente, o que significa a distinção (diéiresai) e a separação (chorís)
agora afirmadas entre as Ideias e os seus participantes. Exatamente essa
lacuna no exame da questão, que permanecerá mau-preenchida
pela simples aquiescência de Sócrates à sugestão parmenídica
da separação (chorís)
entre Ideias e coisas, é determinante para o desenvolvimento do diálogo. E
justamente aqui está o principal ponto de apoio dos argumentos que apresento em
prol de minha interpretação: o fato de que a “distinção” (diéiresai) e a
“separação” (chorís)
entre Ideias e coisas não são conceitualmente esclarecidas e firmadas, nem em
si mesmas nem em relação uma à outra, em nenhum momento do diálogo entre
Parmênides e Sócrates, leva a todas as aporias posteriores objetadas à hipótese
das Ideias, a saber: as dificuldades de se pensar a participação; as duas possibilidades de regressus ad infinitum nas Ideias; por fim, a
possibilidade da completa separação
ontológica entre
Ideias e coisas múltiplas (configurando-se duas esferas de realidades
completamente distintas) e da incognoscibilidade das próprias Ideias. Em resumo, o fato de
Sócrates não esclarecer, em termos conceituais claros, o que são as Ideias
(qual sua natureza, sua condição ou estatuto ontológico) e como elas se
distinguem ou se separam das coisas – e nem ser exigido, pela parte de
Parmênides, a prestar tais esclarecimentos – permitirá que o velho Eleata imediatamente comece a tratar das Ideias “como se fossem coisas” (objetos comuns de percepção), e como se existissem segundo
o mesmo estatuto ontológico dessas. Dito de forma direta: maliciosa ou
equivocadamente, Parmênides atribui às Ideias o mesmo status das coisas.
Naturalmente, se as Ideias existem como se fossem coisas, apenas que de uma única
característica (sob os pontos de vista lógico e ontológico), a distinção (ou
separação) entre elas e as coisas é a mesma que existe entre dois objetos (ou
coisas) quaisquer de nossa experiência comum (v.g., duas pedras, ou uma pedra e um pau), e as dificuldades de se
conceber a participação entre Ideias
e coisas serão do mesmo nível que seriam se quiséssemos falar que “uma pedra
participa de outra”. E ainda que, sobre o ponto de vista do personagem Parmênides, não possamos determinar se essa forma de tratar
as Ideias – haja vista a exiguidade da exposição de Sócrates sobre a própria
natureza das mesmas – é motivada por malícia ou por equívoco (ou
desinformação), penso que não é exagero cogitarmos (e até mesmo afirmarmos)
que, acerca do ponto de vista do autor Platão, tal tratamento das Ideias,
através do mesmo personagem (Parmênides), é proposital, de forma a nos advertir
nos seguintes termos: se tratarmos as Ideias como se fossem coisas (objetos de
nossa experiência comum), então cairemos em todas as aporias nas quais Sócrates
se vê enredado a seguir, no desenrolar do diálogo.
Podemos ver isso facilmente no próprio texto do Parmênides. Os efeitos da suposição não-discutida da separação (chorís) entre Ideia e
coisas dela participantes se mostram logo adiante, na construção da primeira
aporia da participação (Prm. 130e-131d), quando Parmênides induz
Sócrates, inicialmente, a aquiescer a tese de que “[...] cada uma das coisas
que têm participação ou bem têm participação na forma inteira, ou bem em uma
parte dela” (hólou toû eídous è mérous hékaston tò metalambánon metalambánei – Prm. 131a).
Disso, o Eleata deduz que a Ideia, sendo uma, inteira
e a mesma, não poderá estar em cada uma das coisas múltiplas separadas, sob pena de estar ela mesma (i.e., a Ideia) separada de si mesma[10]. Portanto, nessa forma de conceber-se a participação (metálepsis – Prm. 131a5), isto é, como alguma espécie de
presença da Ideia una nas coisas múltiplas separadas, a própria participação é
teoricamente inviabilizada (tanto de um ponto de vista lógico quanto
ontológico). Desse modo, a primeira possibilidade de conceber-se a participação
entre Ideia una e coisas múltiplas, enunciada acima naquela disjunção (ou as coisas participam do todo ou de parte da Ideia), é
impossibilitada: não é possível à Ideia una (sem perder seu caráter de
exclusiva unidade – não em termos de significação lógica, mas como se fosse uma
coisa) estar em cada coisa múltipla dela participante; e essa conclusão é
alcançada, por Parmênides, ainda que, nessa altura do diálogo, também não se
avance no que realmente significa a participação
entendida como “[...] a Ideia que é una e inteira estar [presente] em cada uma
das coisas múltiplas [...]” (hólon tò eîdos en
hekástoi eînai tôn pollôn hèn ón – Prm. 131a), e muito menos sobre o que esse entendimento acarretaria
para a compreensão da natureza (ou estatuto ontológico) das próprias Ideias.
Na sequência do diálogo, diante da alternativa
sugerida por Sócrates (Prm. 131b), de que as Ideias, como o “dia”
(heméra),
poderiam estar presentes em muitos lugares sem perder sua unidade, analogia
esta que é solenemente ignorada por Parmênides, este último imediatamente a
substitui pela imagem da “[...] vela
(histíon)
[de navio] que cobre muitos homens [...]”, como se fosse possível “[...] ser o
um inteiro sobre os muitos” (hèn epì polloîs eînai
hólon)[11]. Pois bem, eis as consequências absurdas que o Eleata extrai dessa fórmula na sequência imediata do
diálogo (Prm. 131c-e), a saber: as coisas
participariam apenas de parte da Ideia – já que a fórmula do “hèn epì polloîs” (um para muitos)
fora metaforizada na imagem da “vela de navio”, como se a Ideia fosse uma vela
(ou um grande pano, ou uma lona de circo) que cobre cada uma das coisas que
dela participam. Assim, cada uma das coisas participará apenas de uma parte da
Ideia, exatamente daquela parte que a cobre (Prm. 131c). Disso, extraem-se duas consequências igualmente absurdas e
inaceitáveis: a divisibilidade da Ideia (que, assim, deixa de ser
exclusivamente una), de um lado, e a impossibilidade da participação das coisas
na totalidade da Ideia, de outro[12].
Aplicando-se a casos específicos, essa compreensão do
que seja a própria Ideia – i.e., uma
vela estendida sobre as muitas coisas múltiplas dela participantes – leva a
absurdos lógico-ontológicos igualmente inaceitáveis, como segue: (i) coisas
múltiplas grandes serão grandes por
participarem de uma (pequena) parte
da Ideia de grandeza (Prm. 131c-d); (ii)
coisas múltiplas iguais serão iguais
por participarem de parte (que exatamente por ser uma parte menor passa a ser desigual do todo) da Ideia de igualdade
– o que equivale a afirmar que uma coisa é igual por participar de parte desigual da Igualdade em si (Prm. 131d); (iii) coisas múltiplas pequenas serão pequenas por participarem de uma parte menor da Ideia de pequenez
(e essa última, em relação à parte, é maior,
ou seja grande – o que é igual a
afirmar que “a Pequenez torna-se grande” em relação a suas partes); além
disso, as coisas participantes da Pequenez recebem
uma pequena parte do pequeno, pelo acréscimo do qual tornam-se ainda menores –
e não maiores, como seria de se esperar que se tornasse (maior) qualquer coisa
à qual se acresça algo (Prm. 131d-e).
Nessa rápida visada sobre tais consequências absurdas
extraídas da imagem de Parmênides, de que a Ideia seja uma espécie de vela de
navio estendida sobre as coisas dela participantes, sugestão através da qual
ele induz Sócrates a uma compreensão muito peculiar e favorável aos seus
próprios interesses da relação estrutural entre Ideia una e coisas múltiplas,
expressa na fórmula do “hèn epì polloîs”,
ficam evidentes duas características indeléveis presentes na compreensão da
hipótese das Ideias expressa pelo Eleata, a saber:
primeiro, que a Ideia é tratada como se
fosse uma coisa, um objeto qualquer da nossa experiência comum do mundo, tal
como o percebemos sensivelmente. Nesse sentido, a espacialidade e a
divisibilidade pressupostas à Ideia, presentes na imagem da “vela estendida
sobre as muitas coisas”, que condicionam as relações de participação entre a Ideia e seus participantes (na medida em que
uma coisa só participa da exata parte da “Ideia-vela” que a cobre), é indício
flagrante e inegável de que Parmênides trata das Ideias “como se fossem
coisas”. Trata-se de uma característica muito peculiar da leitura do Eleata sobre a hipótese das Ideias de Sócrates, mas que
resulta em uma compreensão distorcida dessa última e que acaba por
inviabilizá-la teoricamente. Nesse sentido preciso, trata-se de uma leitura anti-platônica, essa do velho
Parmênides, pois nega o elemento essencial do platonismo aqui, qual seja: a distinção ontológica – mas que não
implica completa separação (chorís) –
entre Ideias unas e coisas múltiplas.
Em segundo lugar, agora sob um ponto de vista
predominantemente lógico, as contradições apontadas pelo Eleata
(v.g.: coisas grandes que o são por
participarem de uma parte pequena da Grandeza em si; ou, uma coisa que é
igual por participar de parte desigual
da Igualdade em si), que ao fim e ao
cabo configuram-se como contradições nos
termos, evidenciam como a hipótese das Ideias também é resultante da lida
de Platão com o problema da contradição – e nessa perspectiva, podemos ver
aqui, nessa passagem do Parmênides
(131c-e), novamente, um eco do embate entre platonismo e eleatismo
em torno desse grande problema filosófico, i.e.,
o da contradição. Para além disso, nesse caso, a
abordagem lógica de problemas ontológicos também revela a indistinção teórica
entre esses dois planos, o lógico e o ontológico – o que para nós, em nosso
próprio tempo, pode ser difícil de compreender e aceitar. De todo modo, ao
contrário do aspecto anterior, que levou Parmênides a uma posição anti-platônica, a indistinção
entre lógica e ontologia aproxima o eleatismo e o
platonismo, revelando-se um traço teórico comum dessas duas grandes filosofias
antigas. Não é mero acaso, então, que o acerto de contas entre o eleatismo e o platonismo se dê exatamente nessa arena das
relações entre lógica e ontologia, através da questão central da contradição,
tomada como pedra-de-toque para a resolução lógica de problemas ontológicos.
Podemos ver isso claramente tanto no Parmênides
quanto no Sofista, ambos
diálogos que encenam tal acerto de contas entre platonismo e eleatismo, ainda que, sempre, desde a perspectiva do
primeiro.
Enfim, é essa mesma compreensão das Ideias – como se fossem coisas – que está na base
do mecanismo do regressus ad infinitum
a elas objetado, em suas duas ocorrências na sequência do Parmênides (131e-132b; 132d-133a) –
trata-se de versões do argumento tornado célebre pela alcunha aristotélica de
“terceiro homem”[13]. Note-se bem: por detrás de ambas essas formulações
do argumento de regressão infinita objetado à postulação das Ideias está a equiparação entre Ideias e coisas delas participantes,
como se ambas essas categorias de entidades tivessem o mesmo estatuto
ontológico e pudessem simplesmente ser equiparáveis. Na primeira formulação do
argumento do regressus ad infinitum
(Prm. 131e-132b), é isso que explica o
mecanismo que, diante da visada de um conjunto de coisas grandes, abstraída a
característica da grandeza e postulada a Grandeza em si mesma, então, numa
segunda visada, que agora abrange coisas grandes e a Grandeza em si, impõe a
exigência da postulação de uma segunda Ideia de Grandeza, e assim ad infinitum.
Ou então, na segunda formulação do mesmo argumento (Prm. 132d-133a), dado que há um conjunto de
coisas semelhantes entre si (v.g.:
a1, a2, a3), a semelhança dessas se explica pelo fato de se assemelharem a uma
mesma Ideia (v.g.: A em si), na
condição de “imagens copiadas” (eikasthênai – Prm. 132d4) dela;
ora, a simples equiparação entre coisas semelhantes (a1, a2, a3) foi condição
suficiente para postular a Ideia (A em si); agora, a equiparação entre coisas
semelhantes e a Ideia em si, dada a semelhança dessa última com as coisas dela
participantes (a1, a2, a3 e A em si), outra vez é razão suficiente, afirma
Parmênides no diálogo (Prm. 132e-133a), para postular uma segunda
Ideia (A² em si), e assim ad infinitum novamente. Fica claro, portanto, que em ambos
os casos da formulação do argumento do regressus ad infinitum, no Parmênides,
é a equiparação entre Ideias e coisas delas participantes que desencadeia o
mecanismo da regressão infinita na postulação de Ideias, como se ambas as classes de entidades em questão (i.e., Ideias e coisas) tivessem o mesmo
estatuto ontológico. Em uma expressão, trata-se, inequivocamente, de tratar das
Ideias como se fossem coisas comuns
da nossa experiência.
Evidentemente, por fim, essa mesma compreensão das
Ideias – como se fossem coisas[14] – está na base daquela que Parmênides considera, dramaticamente no diálogo (Prm. 133a-b), a mais terrível das aporias na qual a hipótese de
Sócrates pode estar enredada, a saber: a definitiva separação entre Ideias unas (que “não estão entre nós” – Prm. 133c5) e coisas múltiplas; a
consequente incognoscibilidade
(ágnosta
– Prm. 133c1; 135a5) das próprias Ideias por
todos nós, que estamos imersos e encerrados entre as coisas múltiplas, as quais
estão definitivamente separadas das Ideias (Prm. 133a-135a).
Aqui, não examinarei os detalhes dessa última aporia.
Entretanto, quero registrar um argumento: me parece
óbvio que essa última aporia é uma consequência inevitável de todo o tratamento
dado por Parmênides à hipótese das Ideias desde o começo do diálogo, no
seguinte sentido: uma vez estabelecida (1) a separação (chorís)
entre Ideias unas e coisas múltiplas delas participantes; (2) dado o tratamento
das Ideias como se fossem coisas [materiais];
(3) exatamente em função de (1) e (2), firmada a improbabilidade de qualquer
forma de participação (metálepsis
ou metalambánein),
seja no todo seja em parte, entre Ideias unas e coisas múltiplas; (4) a
conclusão do exame da hipótese das Ideias, conduzido segundo as perguntas
explícitas do Eleata, só poderia ser a completa
separação entre Ideias unas e coisas múltiplas – dentre essas últimas estamos
nós, por isso só a elas temos acesso – e a consequente incognoscibilidade
das primeiras para nós.
Ora, se minha interpretação do texto está correta, e
meus argumentos acima expostos são suficientes, então fica
demonstrado que a crítica da hipótese das Ideias, na primeira parte do Parmênides, é completamente dependente
de dois pressupostos contidos nas perguntas do velho Eleata,
os quais são simples e inadvertidamente aquiescidos pelo jovem Sócrates, a
saber: (1) a total separação (chorís)
entre Ideias unas e coisas múltiplas delas participantes; (2) o tratamento das
Ideias como se fossem coisas.
Entretanto, leitores atentos e familiarizados com Platão sabem que ambos esses
dois pressupostos não são necessários
à hipótese das Ideias, além de serem a ela externos e até mesmo estranhos. Com
base nisso, conforme procurei expor acima, a partir de uma leitura a contrapelo
da presumível crítica da hipótese das Ideias presente no Parmênides, crítica essa levada à cabo sob
a capitania do Eleata através de suas perguntas
capciosas, como vimos, ouso afirmar, mesmo que em tom especulativo: parece-me
que Platão está, aqui, a combater um certo
platonismo – e esse último é o real objeto da crítica platônica, e não a
hipótese das Ideias.
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[1] O encontro de Sócrates com Parmênides e Zenão de
Eleia talvez aponte o verdadeiro leitmotiv
de toda a construção filosófica do diálogo platônico Parmênides, a saber, o acerto de contas de Platão com o eleatismo – e esse acerto de contas não se encerra nessa
peça, mas alcança sua culminância em outra que dramaticamente a segue: o Sofista. Em ambos esses dois diálogos,
ainda que em tempos dramáticos muito distantes, o Sócrates platônico
encontra-se com representantes da escola de Eleia. No primeiro deles, o ainda
bastante jovem Sócrates tem um encontro com o núcleo duro, por assim dizer, de
tal escola filosófica, isto é, o seu fundador Parmênides e o seu mais próximo e
famoso discípulo, Zenão de Eleia – aliás, o próprio texto do diálogo nos
informa que o último fora o “favorito” (paidiká) do primeiro (Prm. 127b-c). Assim, logo no começo do diálogo (Prm. 128a-b), em função da leitura de um livro de Zenão (feita pelo
próprio autor), Sócrates traz à baila a tese filosófica central do eleatismo, que ele atribui à autoria de Parmênides: “o todo
é um” (hèn [...] eînai tò pân). E essa tese fora
alcançada, por Sócrates, indiretamente, a partir de um paradoxo recém exposto por Zenão (Prm. 127e): a “impossibilidade de o múltiplo ser” (adýnaton [...] pollà eînai).
Já no Sofista, o velho Sócrates,
quando está sendo processado, encontra-se com um Estrangeiro de Eleia, o qual
fará o papel de verdadeiro crítico do eleatismo,
chegando mesmo a valer-se da imagem do “parricídio” (patraloías – Sph. 241d) contra Parmênides. De um lado,
pois, no primeiro diálogo, o Parmênides,
encontramos Platão criticando a si mesmo, ao submeter sua hipótese das Ideias a
tão rigoroso teste (Prm. 127a-135c). De outro lado, no segundo
diálogo, o Sofista, vemos nosso
Filósofo pondo em cena a crítica final do eleatismo
também no quadro de uma autocrítica (eleática, nesse
caso), posta na boca do Estrangeiro de Eleia. Em ambos os casos, muito
provavelmente, parece mesmo tratar-se de um acerto de contas entre as ontologias platônica e eleática
– ou, simplesmente, entre o platonismo e o eleatismo.
[2] Sigo e cito –
aqui e em todas as ocorrências de citações diretas do texto do Parmênides nesse artigo – a tradução,
para o português do Brasil, de Maura Iglésias e
Fernando Rodrigues do Parmênides.
Nessa citação acima (Prm. 127e), a última frase, entre
colchetes, é acréscimo meu, a título de deixar explícita a conclusão lógica do
paradoxal argumento zenoniano.
[3] Ao afirmar a
estrutura formal do argumento zenoniano por modus tollens,
sigo: ALLEN, Plato’s Parmenides, p. 76.
[4] Como bem
aponta Allen (idem, p. 76) a forma lógica do argumento zenoniano,
embora obscura, é válida e se expressa em modus
tollens: M → C, ~C ├ ~M. Nessa formalização, “M”
[multiplicidade] e “C” [contradição] são letras que representam os enunciados,
o sinal “→ ” é o símbolo do condicional
e o sinal “├” indica que a seguir tem-se a conclusão do argumento; assim, do condicional
e da negação de seu enunciado consequente, que são premissas do argumento,
tem-se, como conclusão, a negação do enunciado antecedente do condicional. Em
outros termos, trata-se de um argumento que funciona por meio de uma prova
lógica de reductio ad absurdum.
[5] Allen (idem,
p. 76) julga o argumento “obscuro” (unclear) e “elíptico” (elliptical), e aponta para a sua
“aparência sofística”: “Zeno’s hypothesis
is a paradox. If things which are, are many,
it follows that the same things must be both like and unlike. This is
impossible; like things cannot be unlike, nor unlike things, like. Therefore,
there cannot be many things: plurality is impossible. In logical structure, this
paradox is valid; the form is modus tollens. Its sense, however, is extremely unclear. It
is not explained why plurality must imply that the same things are both like
and unlike; nor is it explained why, granted that this is true, such
qualification is to be regarded as absurd. The argument is elliptical and
appears to be a mere sophism” (Grifos do autor). Considero que Allen exagera um pouco no seu julgamento
do argumento zenoniano. Tal argumento, ainda que
paradoxal, sobretudo devido à sua indistinção pressuposta entre lógica e
ontologia, torna-se razoavelmente claro quando reconhecemos nele o uso negativo
de um princípio de não-contradição (avant la lettre), de um lado, e a própria indistinção entre as
premissas lógicas e suas consequências ontológicas que o compõem, de outro. Ao
final das contas, é a negação da possibilidade da contradição – formal, sob o
ponto de vista lógico – na realidade que garante a própria validade lógica do
argumento, bem como as aplicações de suas consequências para uma ontologia (eleática). No fundo, o que nos incomoda (i.e., a nossa mentalidade moderna),
parece-me, é o salto entre as esferas lógica e ontológica – em metáfora, um
característico pulo de gato, ou, pior
ainda, um passe de mágica – e não a
forma lógica do argumento como um todo.
[6] Aqui há a
questão sobre o que, exatamente, seriam a semelhança e a dessemelhança
presentes nas coisas participantes das respectivas Ideias da Semelhança em si e
da Dessemelhança em si. Platão, nessa passagem do Parmênides, parece descrever a semelhança e a dessemelhança
presentes nas coisas participantes das Ideias como se fossem características
(propriedades) presentes nas próprias coisas – no mesmo sentido que uma coisa
que participa da Ideia da Brancura em si torna-se branca, isto é, tem presente
em si, como uma característica ou propriedade sua, a brancura (dito em outros
termos, trata-se de uma “coisa branca”). Essa descrição pode soar estranha aos
nossos ouvidos, dada nossa mentalidade moderna, já que tendemos a pensar que
semelhança e dessemelhança não são características (propriedades) das próprias
coisas, tal como a brancura (ser branco), mas são caracterizações que fazemos
discursivamente apenas quando comparamos diferentes coisas. Ou seja, semelhança
e dessemelhança, nesse sentido, não são propriedades das coisas, mas relações
que nós estabelecemos discursiva e comparativamente entre elas, ao
relacionarmos umas com as outras. Nesse caso, semelhança e dessemelhança não
estariam nas coisas, como propriedades suas, mas em nossos juízos sobre as
coisas entre si (na exata medida que são comparadas
por nós). Em síntese, trata-se de diferentes usos do discurso quando
descrevemos as características próprias de uma coisa (v.g.: “A é branco”) e quando relacionamos duas ou mais coisas,
qualificando-as como semelhantes ou dessemelhantes (v.g.: “A1 e A2 são semelhantes”; “A e B são dessemelhantes”).
Obviamente, isso não elimina a questão sobre a presença de características ou
propriedades objetivas, presumivelmente existentes nas próprias coisas, que nos
permitam declará-las semelhantes ou dessemelhantes. De todo o modo, esse
problema, que salta aos nossos olhos, não é tratado no Parmênides; a hipótese exposta pelo jovem Sócrates simplesmente não
chega a esse nível de detalhamento – ainda que possamos entrever que são
exatamente esses problemas que estão por trás da hipótese das Ideias exposta
pelo jovem. Por mais estranho que nos pareça, a semelhança e a dessemelhança
presentes nas coisas (que são participantes dessas respectivas Ideias) são tratadas
por Sócrates como se fossem características próprias (propriedades) das coisas,
no mesmo sentido que “uma coisa é branca”. Em um outro
sentido, contudo, desde a perspectiva da hipótese platônica das Ideias, duas
coisas só podem ser ditas semelhantes, por serem realmente semelhantes, nos
seguintes termos: a1 e a2 são semelhantes entre si por participarem da mesma
Ideia de A. O problema é que Sócrates, nessa passagem do Parmênides (128e-130a), está supondo que essa Ideia de A seja a
Semelhança em si e por si, e não a Ideia de A em si mesma. Num exemplo
material, no caso de tratar-se de homens particulares semelhantes entre si,
seriam eles semelhantes pela sua participação na Ideia de Semelhança, e não na
Ideia de Humanidade em si e por si – nesse último caso, gerar-se-ia um outro raciocínio, a saber, dois homens (h1 e h2) são
semelhantes entre si por serem participantes da mesma Ideia de Humanidade (H em
si e por si mesma), no sentido de pertencerem a um mesmo gênero ou espécie de
coisas, sendo a humanidade uma propriedade distintiva e característica dessas
coisas. Em diferentes passagens do Parmênides,
e mesmo em diferentes diálogos platônicos, esses dois raciocínios,
aparentemente incoerentes entre si, compõem a hipótese das Ideias, sem
estabelecer uma regularidade na ordem da argumentação ou das razões. Enfim,
tais questões compõem problemáticas para a interpretação e a compreensão dessa
famosa hipótese platônica.
[7] Parmênides, 129a: “E que, nestas duas coisas [dyoîn óntoin], que
são, tanto eu quanto tu, quanto as outras coisas que chamamos múltiplas [pollà kaloûmen],
temos participação [metalambánein]?”
[8] Essa é uma
fórmula que aparece repetidamente em várias passagens textuais platônicas da República, por exemplo: 475e-476a;
490a-b; 493-494a; 507a-c; 596a-b.
[9] O potencial de
contradição, apontado por Sócrates nessa passagem do Parmênides (129d-e), diz respeito
exclusivamente à impossibilidade de Ideias completamente contrárias ou contraditórias,
tais como Semelhança (homoióteta)
e Dessemelhança (anomoióteta),
participarem-se (ou misturarem-se) mutuamente. Ora, tal contradição ficaria
evidente na exata medida que tais Ideias são as características puras e as
próprias significações, reificadas, da semelhança e da dessemelhança; nelas não
há qualquer outro aspecto (ontológico) ou significado (lógico) – nesse sentido,
a Ideia é postulada como pura unidade. Desse modo, cogitar-se que a “Semelhança
em si e por si mesma” possa participar (misturar-se) da “Dessemelhança em si e
por si mesma” é tão contraditório quanto afirmar que o significado de
semelhante é também o significado de dessemelhante, ou que “o quadrado é
redondo” – nesse sentido, tal enunciado, que afirmaria que “a Semelhança participa
(i.e., identifica-se com) da
Dessemelhança”, funcionaria como uma espécie de contradição nos termos (ainda que as Ideias não sejam apenas termos
de significação, mas realidades, com consistência ontológica
e distintas das coisas). Além disso, a presumida aplicação de um
mecanismo de não-contradição nos termos para impedir a
participação mútua entre Ideias contrárias ou contraditórias acentua o caráter
inegavelmente lógico da hipótese das
Ideias; nessa, a rigor, lógica e ontologia jamais se separam – são duas faces
da mesma moeda. Por fim, parece-me que Sócrates, aqui, não está tratando do
mesmo problema que será tratado no diálogo platônico Sofista – apesar de citar Movimento (kínesis) e Repouso (stásis), que são
Ideias centrais na construção teórica de tal diálogo (Sofista) – onde o tema da possibilidade da participação mútua entre
Ideias (ou “Gêneros” [géne],
como lá são chamadas) é o foco da discussão. No Sofista, a questão central é garantir a possibilidade da
diversidade entre as Ideias, e por decorrência a Diversidade ou Alteridade (héteros) como um
princípio da estrutura fundamental da própria realidade – ainda que para isso,
também no Sofista, o princípio de não-contradição seja a pedra-de-toque (ou o ponto de apoio)
no combate ao eleatismo. Diferentemente disso, aqui
no Parmênides (129d-e),
a questão é assegurar o caráter unitário das Ideias, quando contrastadas às
coisas múltiplas delas participantes, e nesse sentido escapar da contradição
presente no paradoxo zenoniano.
[10] “[Parm.] Então, parece-te que a forma
inteira [hólon tò eîdos], sendo uma
[hèn ón], está em
cada uma das múltiplas coisas [en hekástoi
eînai tôn pollôn]? Ou como seria?
[Sóc.]
Mas que impede, Parmênides, disse Sócrates, <que
ela seja>?
[Parm.]
Então, sendo uma e a mesma [hèn ... òn kaì tautòn], estará, inteira
[hólon],
simultaneamente, em coisas que são múltiplas e separadas [en polloîs kaì chorìs], e, assim, ela estaria separada de si
mesma [autò hautoû chorìs].” (Prm. 131a-b. Grifos e acréscimos dos tradutores).
[11] “[Sóc.] Não estaria, disse ele, se, pelo menos, como o dia [heméra],
<que>, sendo um e o mesmo, está
em muitos lugares simultaneamente e nem por isso está ele mesmo separado de si
mesmo [mía kaì he autè
oûsa pollachoû háma estì kaì
oudén ti mâllon autè hautês chorís estin], se
assim também cada uma das formas fosse uma
e a mesma, <estando> simultaneamente em todas as coisas [ei hoúto kaì hékaston tôn
eidôn hèn en pâsin háma
tautòn eíe].
[Parm.]
De bela maneira, Sócrates, disse ele, fazes uma
e a mesma coisa <estar> simultaneamente em muitos lugares [hèn tautòn háma pollachoû poieîs], como se, cobrindo com uma vela muitos homens [hoîon ei histíoi
katapetásas polloùs anthrópous], dissesses
ser ela, inteira, uma sobre múltiplos
[hèn epì polloîs eînai hólon].
Ou não é algo desse tipo que acreditas estar dizendo?
[Sóc.] Talvez, disse ele.” (Prm. 131b. Grifos e acréscimos dos tradutores).
[12] “[Parm.] Será então que a vela inteira estaria sobre cada um
[hólon ... hekástoi tò histíon eíe
án], ou uma parte dela sobre um [è méros autoû], outra sobre outro [állo ep’ álloi]?
[Sóc.]
Uma parte [Méros].
[Parm.]
Logo, Sócrates, disse ele, são divisíveis as formas mesmas [Meristà ... éstin autà tà eíde],
e as coisas que delas participam participariam de uma de suas partes [kaì tà metéchonta autôn mérous àn metéchoi],
e não é mais o todo que estaria em cada uma das coisas [kaì oukéti en hekástoi hólon], mas,
sim, uma parte caberia a cada coisa [allà méros hekástou àn eíe].
[Sóc.]
Parece pelo menos que é assim.
[Parm.]
Será então, Sócrates, que estarás disposto a dizer que a forma, uma [tò hèn eîdos], em
verdade, se nos divide e ainda será uma [hemîn ... merízesthai, kaì éti hèn
éstai]?
[Sóc.] De maneira alguma, disse Sócrates.” (Prm. 131c. Grifos dos tradutores).
[13] Aristóteles
menciona o argumento do “terceiro homem” (ho trítos ánthropos)
em diversas passagens de sua obra. A título de exemplo, cito algumas: Metaphysica, A, 9, 990b17; Z, 13, 1039a2-3; M, 4, 1079a13. Sophistici Elenchi,
XXII, 178b37-179a11.
[14] Podemos denominar esta compreensão das Ideias de
“materialista”, no sentido bem preciso e exclusivo de conceber-se
as mesmas como se fossem “coisas materiais”; ou ainda, poderíamos também chamar
essa mesma compreensão de “reificante” ou “coisificante” das Ideias, já que se trata de toma-las como se fossem coisas.