Submissão: 03/04/2020 Aprovação: 03/04/2020
Publicação: 15/04/2020
Dossiê
O Parmênides, de Platão
Múltiplas coisas ou Coisas Múltiplas? – Dois sentidos para o Paradoxo de Zenão no Parmênides de Platão
Many things or Multiple things? - Two Senses for Zeno’s Paradox in Plato’s Parmenides
Renato Matoso
Professor de Filosofia na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ
Resumo: Neste
artigo, examino a duplicidade de sentidos que a tese pluralista “os seres são
múltiplos” ou “se há múltiplos seres” (πολλά ἐστι τὰ ὄντα)
comporta: pode significar uma multiplicade numérica,
isto é: a tese de que há mais de uma coisa no mundo, assim como pode significar
que uma mesma coisa possui mais de um atributo. Incialmente, argumento que
Sócrates estava consciente desta ambiguidade, pois as duas compreensões de
pluralismo representam perspectivas complementares de uma mesma posição
filosófica. Segundo minha interpretação, o reconhecimento dessa ambiguidade
permite melhor entender a crítica de Sócrates ao monismo eleático,
sua defesa da Teoria das Ideias e sua distinção entre Formas transcendentes e
propriedades imanentes. Estes dois sentidos de multiplicidade farão ainda parte
da estratégia utilizada por Parmênides na sua contra-argumentação à solução socrática ao paradoxo
de Zenão.
Palavras-Chave: Monismo
eleático; Pluralismo numérico; Pluralismo de
atributos; Formas
Abstract:
In this paper, I propose an original interpretation
for the duplicity of meanings that the pluralistic thesis (πολλά
ἐστι τὰ ὄντα)
comprises: it can mean a numerical multiplicity, that is: the thesis that there
is more than one thing in the world, as well as can mean that the same thing
has more than one attribute. Here it is argued that
Socrates was aware of this ambiguity, and that these two understandings of
pluralism represent complementary perspectives on the same philosophical
position. This interpretation allows me to better understand Socrates’
criticism against the Eleatic monism, and his distinction between Forms and
immanent properties. Finally, I demonstrate how these two meanings of
multiplicity are also part of the strategy used by Parmenides in his
counter-argument to the Socratic solution to Zeno’s paradox.
Keywords:
Eleatic monism; Numerical pluralism; Attribute pluralism; Forms
O Parmênides
descreve um diálogo travado entre Sócrates, ainda bastante jovem, Zenão, Parmênides e
Aristóteles, não o filósofo, mas um jovem que viria a se tornar um dos trinta
tiranos. A conversa que nos chega não é narrada por um dos presentes no
encontro, mas por Céfalo que o tinha ouvido de Antifonte,
meio irmão de Platão, que havia ouvido e memorizado a conversa a partir do
relato de Pitodoro. Pitodoro, por sua vez, havia ouvido a conversa por ser
companheiro de Zenão e ter abrigado os visitantes durante sua estada em Atenas
(Alcib.I. 119a).
Apesar de não ser o
único diálogo a apresentar este tipo de encadeamento narrativo[1], o Parmênides é o diálogo no qual o relato que nos é oferecido está mais distante da
conversa original, tanto no tempo quanto no número de “elos” da cadeia
narrativa. Afinal, aquele que lê o Parmênides (e,
portanto, “ouve” a narrativa de Céfalo) encontra-se no quarto estágio de uma
cadeia de transmissão do conteúdo de uma conversa que teria acontecido há, pelo
menos, cinquenta anos antes do momento dramático em que Céfalo oferece seu relato[2]. A estrutura narrativa descrita no prólogo do Parmênides pode ser
representada pela seguinte figura:
[ZENÃO / PARMÊNIDES / SÓCRATES
/ ARISTÓTELES]
[PITODORO
/ ANTIFONTE]
[ANTIFONTE / CÉFALO]
[CÉFALO / LEITOR]
Deste modo, o Parmênides relata
uma conversa travada entre Zenão, Parmênides, Sócrates e Aristóteles, que foi
narrada por Pitodoro a Antifonte, que narrou a mesma conversa a Céfalo, que,
por sua vez, narra ao leitor. Este fato nos é lembrado em, pelo menos, duas
passagens do texto, nas quais a cadeia de transmissão
é explicitada (130a e 136e). Além disso, essa estrutura nunca desaparece
plenamente de vista para o leitor do texto grego, pois todo o diálogo é em
forma de discurso indireto, com discursos diretos inseridos. É claro, portanto, que tamanha complexidade de estrutura
narrativa não pode ser acidental. Platão certamente intencionava passar alguma
mensagem por meio da apresentação de um prólogo tão cuidadosamente construído e
é tarefa do intérprete levantar hipóteses acerca
destas intenções.
Como a maior parte dos comentadores observa, a primeira lição que podemos tirar da estrutura narrativa do Parmênides diz
respeito à ausência total de veracidade histórica do relato. Ao estabelecer uma
longa distância temporal entre a narrativa que nos é
oferecida e o fato dramático que nos é narrado, Platão indica ao leitor que o
conteúdo do Parmênides é plenamente ficcional e que ninguém deve tentar confirmar nenhum dos
seus detalhes, mesmo que um encontro entre Parmênides e Sócrates tenha de fato acontecido, coisa que a maior parte dos
comentadores considera improvável ou mesmo impossível[3].
A segunda conclusão que podemos extrair da complexa estrutura narrativa
apresentada no Parmênides diz respeito ao efeito dramático que este tipo de prólogo pretende criar no leitor. Nosso diálogo se inicia com a história
de que, cinquenta anos após um encontro entre Parmênides, Zenão e Sócrates, um
grupo de pessoas “bastante interessadas em questões de sabedoria” (μάλα φιλόσοφοι) é
levado a deixar Clazômenas para cruzar o mar Egeu em
busca de um ateniense que acreditam ter informações sobre o que teria se
passado nesta reunião. Este ateniense, apesar de não haver estado presente no
encontro, ocorrido antes mesmo de seu nascimento, considerava o conteúdo da conversa ali desenrolada tão importante que decidiu
dedicar-se a decorá-la durante sua juventude. A pessoa de quem este ateniense
ouviu a história, Pitodoro, tampouco participou ativamente da conversa, porém
igualmente decorou o conteúdo do diálogo e passou
adiante[4].
O prólogo do Parmênides nos gera, assim, uma sensação de curiosidade acerca do texto que estamos
prestes a ter acesso. Além disso, a longa lista de pessoas dedicadas à
preservação do conteúdo desta conversa, assim como a longa jornada de Céfalo e
seus companheiros em busca desta narrativa, nos
garante a seriedade e a importância daquilo que nos será revelado. Como observa
Allen, “a própria introdução do Parmênides, por si só, nos proíbe tratar o diálogo como um tipo estranho de piada ou
trivializar o diálogo como uma mera ginástica ou um
exercício de detecção de simples falácias”[5]. O prólogo do Parmênides adverte o leitor a se preparar, desde o início, para a profundidade e
relevância do conteúdo que será apresentado.
A característica mais importante da abertura de nosso diálogo, no
entanto, parece ter passado despercebida para maior parte dos comentadores.
Trata-se do fato de que a complexa estrutura narrativa montada no prólogo do Parmênides
encontra-se refletida na estrutura argumentativa do
diálogo. Diferente da maior parte dos diálogos, nos quais um mesmo interlocutor
expõe suas teses ou conduz a refutação de outro(s) personagem(ns), o Parmênides é constituído por uma série de momentos argumentativos distintos. Nosso diálogo começa com a leitura dos argumentos de Zenão e
uma menção aos detratores de Parmênides, contra quem estes argumentos são
endereçados. Logo em seguida, Sócrates aparece em cena e passa a argumentar
contra Zenão. Por fim, Parmênides entra na discussão
e passa a apresentar argumentos contra Sócrates. Desta maneira, temos
Parmênides oferecendo críticas à Teoria das Ideias de Sócrates, que havia sido
apresentada como uma refutação à argumentação de Zenão, que, por sua vez, havia
sido apresentada como uma crítica à tese pluralista,
defendida pelos detratores de Parmênides. Esta estrutura argumentativa pode ser
representada pelo seguinte esquema:
[ PARMÊNIDES / PLURALISTAS]
[
PLURALISTAS / ZENÃO]
[ ZENÃO /
SÓCRATES]
[SÓCRATES / PARMÊNIDES]
Da mesma forma que nossa história é narrada por
uma pessoa que conta o que lhe foi narrado por outra pessoa, que contou o que
lhe foi narrado por outra, os argumentos do diálogo são ordenados de tal modo
que cada um deles remete aos resultados alcançados pelos argumentos precedentes, ao mesmo tempo em que fornece a
base para o argumento que se seguirá. A estrutura argumentativa do Parmênides
encontra-se, assim, refletida e prenunciada na estrutura narrativa descrita no
prólogo do diálogo.
O paradoxo
de Zenão
O primeiro argumento apresentado ao leitor do Parmênides é
atribuído a Zenão. Como sabemos, Zenão foi um defensor do monismo eleata e seus
argumentos receberam muito prestígio, ainda na antiguidade. O interesse acerca
do pensamento de Zenão faz com que muitos
comentadores do Parmênides
analisem o paradoxo zenoniano presente no diálogo em comparação ao que sabemos dos
argumentos do Zenão histórico. Esta atitude pode ser vista, por exemplo, em
Próclus, que interpreta o paradoxo presente no Parmênides em função do conteúdo de uma obra atribuída a Zenão, na qual este
paradoxo estaria descrito (In Parm. 694)[6].
Nos comentadores modernos, esta abordagem também parece prevalecer.
Assim, Cornford dedica toda primeira seção de seu comentário ao Parmênides à
questão da relação entre Zenão e seus oponentes da
escola pitagórica[7]. Brisson, igualmente, passa boa parte de sua introdução ao Parmênides
discutindo a relação entre as teses de Zenão e Parmênides, não como personagens
do drama platônico, mas como figuras históricas[8]. Ambos autores, mesmo reconhecendo a escassez de fontes sobre o tema, acabam
por projetar a sua compreensão do pensamento do Zenão histórico na
interpretação do papel desta figura no interior de nosso diálogo.
Em contrapartida a essa atitude, a importância
do paradoxo de Zenão na estrutura dramática e argumentativa do Parmênides tem
sido, na maior parte das vezes, negligenciada pelos comentadores. Como observa
Harte, “muito constantemente, o interesse em examinar a relação entre as
deduções [da segunda parte do diálogo] e a crítica de
Parmênides às Formas deu-se às
custas de uma
consideração da conversa inicial entre Sócrates e Zenão”[9]. Uma das razões para esta negligência está, sem dúvida, no fato de que
os comentadores consideram relativamente clara a relação desta conversa inicial com o restante da obra.
Segundo a opinião geral, o paradoxo de Zenão serve como um pretexto para que
Sócrates apresente a Teoria das Ideias. Sendo assim, os comentadores tecem
rápidas considerações sobre o paradoxo de Zenão e, na
maior parte das vezes, já em função da solução apresentada por Sócrates para
este paradoxo[10].
No entanto, caso adotemos este tipo de interpretação para o papel do
paradoxo de Zenão no diálogo, estaremos, de início, comprometendo a unidade da
argumentação do Parmênides. Pois,
segundo este ponto de vista, o paradoxo de Zenão não está diretamente implicado
na argumentação do restante do diálogo e não passa de uma deixa dramática para
entrada em cena de Sócrates e sua teoria. Sendo assim, evitarei abrir a caixa de pandora do conteúdo do pensamento eleático e me
limitarei a oferecer uma interpretação para o paradoxo de Zenão à altura do
papel de destaque que este argumento recebe no nosso diálogo. No Parmênides, o
paradoxo de Zenão dá ensejo a toda discussão
subsequente. Portanto, segundo o princípio de relação entre os argumentos do
diálogo esboçado na seção precedente, os conceitos envolvidos neste paradoxo
devem ressoar por todo o restante da argumentação.
Dois sentidos
de multiplicidade e unidade
implicados na
argumentação zenoniana
A narrativa de Céfalo inicia-se com a descrição de uma leitura pública
dos “escritos de Zenão” (τῶν τοῦ Ζήνωνος γραμμάτων) realizada na casa de Pitodoro. É o próprio Zenão quem realiza a leitura e
Sócrates, acompanhado de muitos outros, faz parte da audiência que se reuniu
ansiosa para escutar o que seria dito, uma vez que esta era a primeira vez que
tais escritos eram trazidos para Atenas. Ao final da apresentação, Sócrates pede para que seja lida, novamente, a primeira hipótese do
primeiro argumento e, ao fim, diz:
Que queres dizer com isso, Zenão? Que,
se os seres são múltiplos, então é preciso que eles sejam tanto semelhantes
quanto dessemelhantes, mas que isso é impossível, pois
nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes,
dessemelhantes? Não é isso que queres dizer?
Πῶς, φάναι, ὦ Ζήνων, τοῦτο λέγεις; εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα, ὡς ἄρα δεῖ αὐτὰ ὅμοιά τε εἶναι καὶ ἀνόμοια, τοῦτο δὲ δὴ ἀδύνατον· οὔτε γὰρ τὰ ἀνόμοια ὅμοια οὔτε τὰ ὅμοια ἀνόμοια οἷόν τε εἶναι; οὐχ οὕτω λέγεις; (127e1-5)
Zenão responde afirmativamente e somos apresentados, assim, ao primeiro
argumento do diálogo. Platão constrói este argumento de maneira bastante
resumida, nos fornecendo, apenas, as premissas e a
conclusão da argumentação zenoniana. Fica claro, a partir do resumo de
Sócrates, que estamos lidando com uma redução ao absurdo da tese
pluralista, segundo a qual os seres
são múltipos (πολλά ἐστι τὰ ὄντα). O sentido preciso desta
tese, contudo, não está claro de imediato. Sobretudo,
porque, logo depois, Sócrates irá reformulá-la por meio do condicional “se os
múltipos são” ou “se há múltiplas [coisas]” (εἰ πολλά ἐστιν) (128d5). No primeiro caso: εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα, o adjetivo πολλά (múltiplos) é apresentado como um predicado do sujeito ὄντα (seres), significando que os seres são múltiplos no sentido de que
possuem vários atributos. Já no segundo caso, o adjetivo substantivado [τὰ] πολλά torna-se o sujeito de uma
sentença absoluta, podendo ser traduzida por “se
múltiplas [coisas] são” ou “se há múltiplas [coisas]”[11].
Temos, portanto, dois sentidos distintos para o argumento de Zenão. O
argumento pode estar visando demonstrar a impossibilidade de uma pluralidade
numérica, isto é: da tese de que há mais de uma coisa no mundo, ou pode estar
visando demonstrar a impossibilidade de uma mesma
coisa possuir mais de um atributo. Neste último caso, seu objetivo é demonstrar
que cada coisa é perfeitamente simples, homogênea e indivisível. Naturalmente,
estas duas teses são independentes uma da outra. Afinal, podemos sustentar que só há uma coisa no mundo, porém considerando esta coisa
como múltipla, dotada de várias partes ou atributos. Ao passo que, por outro
lado, podemos sustentar que há várias coisas, no entanto considerarmos cada uma
delas como simples e indivisível. Sócrates, contudo,
oferece tanto εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα quanto εἰ πολλά ἐστιν como formulações válidas para
uma mesma hipótese. Sendo assim, devemos entender que, ao menos em nosso
diálogo, estas duas teses estão sendo apresentadas em conjunto, representando
dois lados de uma mesma moeda ou duas perspectivas
complementares de uma mesma posição filosófica.
Os personagens do Parmênides
parecem reconhecer esta dualidade inerente à
argumentação zenoniana. Sócrates, por exemplo, dá sinais de sua compreensão
deste fato ao ressaltar ora um, ora outro aspecto da
argumentação zenoniana. Em 127e8-128a1, por exemplo, Sócrates pergunta a Zenão:
Será que é
isso que querem dizer teus argumentos: não outra coisa senão sustentar
decididamente, contra tudo o que se afirma, que não
há múltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι)? E disso
mesmo crês ser prova para ti cada um dos argumentos, de sorte
que também acreditas apresentar tantas provas de que
não há múltiplas coisas quantos
argumentos escrevestes?
ἆρα τοῦτό ἐστιν ὃ βούλονταί σου οἱ λόγοι, οὐκ ἄλλο τι ἢ διαμάχεσθαι παρὰ πάντα τὰ λεγόμενα ὡς οὐ πολλά ἐστι; καὶ τούτου αὐτοῦ οἴει σοι τεκμήριον εἶναι ἕκαστον τῶν λόγων, ὥστε καὶ ἡγῇ τοσαῦτα τεκμήρια παρέχεσθαι, ὅσουσπερ λόγους γέγραφας, ὡς οὐκ ἔστι πολλά;
(127e8-128a1)
Nesta passagem, por meio do uso repetitivo de
expressões no plural, Sócrates indica a incongruência da atitude de Zenão, que
afirma que não haver múltiplas coisas (οὐ πολλά ἐστι), não obstante fazendo uso de múltiplos argumentos para provar esta
afirmação. Como observa Sócrates, ao tentar provar a inexistência de uma
pluralidade de coisas por meio de múltiplos argumentos, Zenão enquadra-se em um
caso clássico de paradoxo performativo, dando prova
justamente daquilo que ele nega ser possível.
Ora, fica claro que, neste momento, Sócrates está tratando o argumento de
Zenão como uma prova da impossibilidade da existência de múltiplos indivíduos
ou como uma defesa da tese de que só há uma única
coisa (monismo numérico). Esta identificação é ainda reafirmada por Sócrates
quando ele estabelece, logo em seguida, a equivalência entre o argumento de
Zenão e a tese parmenídica de que “o todo é um” (ἓν εἶναι τὸ πᾶν).
Este comentário é geralmente considerado como a
palavra final de Sócrates acerca do sentido da argumentação zenoniana, sendo
seguido por uma longa fala em que a Teoria das Ideias é apresentada e o
paradoxo de Zenão é superado e não mais invocado na discussão. Esta leitura do
texto leva a maior parte dos comentadores a
interpretar o paradoxo de Zenão como uma defesa, apenas, da tese do monismo
numérico, sem que esteja implicada no paradoxo uma prova da impossibilidade das
coisas possuírem múltiplos atributos[12]. O defensor mais radical deste tipo de
interpretação é, sem dúvida, Luc Brisson (1990), que, com base nesta passagem,
pretende não apenas limitar a argumentação de Zenão a uma afirmação do monismo
numérico como, também, identificar a expressão τὸ πᾶν, traduzida por ele como “o universo” ou “o
conjunto de todos os conjuntos de todas as coisas sensíveis”, como o sujeito
implícito de todas as formulações da tese unitarista[13].
Entretanto, a identificação da
argumentação de Zenão com o monismo numérico de Parmênides só é estabelecida,
explicitamente, nessa passagem. Por todo o restante do diálogo, Platão faz uso
de expressões deliberadamente ambíguas para se referir tanto à tese pluralista, alvo do paradoxo de Zenão, quanto à tese
monista defendida por Zenão e Parmênides. Isto fica claro a partir do
inventário realizado por Giovanni Casertano, que nos lista todas as formulações
das teses monista e pluralista
presentes no Parmênides, divididas entre afirmações diretas e formulações hipotéticas[14]. Como afirmações hipotéticas, em sentenças condicionais, temos:
1)
εἰ πολλά ἐστι τὰ ὄντα (127e1)
2)
εἰ γὰρ πολλὰ εἴη (127e7)
3)
εἰ ἕν ἐστι (128d1)
4)
εἰ πολλά ἐστιν (128d5)
5)
ἡ τοῦ ἓν εἶναι (128d5)
6)
εἰ πολλά ἐστι (136a6)
7)
εἰ μή ἐστι πολλά (136a6)
Como assertivas diretas, temos:
8)
ἀδύνατον δὴ καὶ πολλὰ εἶναι (127e6-7)
9)
ὡς οὐ πολλά ἐστι (127e9)
10)
ὡς οὐκ ἔστι πολλά (127e9-128a1)
11)
ἓν φῂς εἶναι τὸ πᾶν (128a7-b1)
12)
οὐ πολλά φησιν εἶναι (128b2)
13)
τὸν μὲν ἓν φάναι, τὸν δὲ μὴ πολλά (128b3)
14)
τὰ πολλὰ λέγοντας
15)
τῆς ἐμαυτοῦ ὑποθέσεως (...) εἴτε ἕν ἐστιν εἴτε μὴ ἕν, (137b3-4)
Com base neste inventário, é possível constatar que somente na passagem
número 11 τὸ πᾶν é apresentado como o sujeito
explícito da hipótese de Parmênides. Por todo o restante do diálogo, Platão faz
uso de expressões ambíguas, sem sujeito definido, para se referir tanto às
teses de Parmênides e Zenão quanto às teses dos defensores do pluralismo[15]. Portanto, dado o grande número de passagens em que a tese monista de
Zenão e Parmênides não aparece diretamente vinculada ao monismo numérico, não
temos razão para projetar aquilo que encontramos em uma única passagem como a
interpretação definitiva para todas as outras.
Caso tenhamos em mente a ambiguidade inerente à formulação do paradoxo de
Zenão, poderemos notar que o segundo sentido de multiplicidade implicado na sua
argumentação emerge como a interpretação natural para outras passagens do
diálogo. Em uma destas passagens, a possibilidade de
um mesmo indivíduo possuir uma multiplicidade de partes é apresentada por
Sócrates como um dos resultados da sua solução para o paradoxo. Em 129c,
Sócrates diz:
Mas se
alguém demonstrar que eu sou um[16] e múltiplas coisas, que há nisso de espantoso? Quando quiser
mostrar que eu sou múltiplas coisas, dirá que uma coisa é meu lado direito,
outra, o esquerdo, e que uma coisa é a frente, outra, a parte de
trás, e do mesmo modo com relação à parte inferior e posterior, pois participo, creio, da quantidade; e, por outro lado,
quando [quiser mostra] que sou um, dirá
que, dos sete que aqui estão, eu sou um homem,
participante que sou também do um.
εἰ δ' ἐμὲ ἕν τις ἀποδείξει ὄντα καὶ πολλά, τί θαυμαστόν, λέγων, ὅταν μὲν βούληται πολλὰ ἀποφῆναι, ὡς ἕτερα μὲν τὰ ἐπὶ δεξιά μού ἐστιν, ἕτερα δὲ τὰ ἐπ' ἀριστερά, καὶ ἕτερα μὲν τὰ πρόσθεν, ἕτερα δὲ τὰ ὄπισθεν, καὶ ἄνω καὶ κάτω ὡσαύτως – πλήθους γὰρ οἶμαι μετέχω – ὅταν δὲ ἕν, ἐρεῖ ὡς ἑπτὰ ἡμῶν ὄντων εἷς ἐγώ εἰμι ἄνθρωπος μετέχων καὶ τοῦ ἑνός·
(129c4-d1)
A importância desta fala de Sócrates na compreensão do conteúdo da
argumentação de Zenão não parece ter sido notada pelos comentadores. Isto deve-se ao fato desta colocação fazer parte de um discurso mais amplo, no qual
Sócrates desafia seus interlocutores a demonstrarem
que suas Formas estão sujeitas à predicação de opostos, tal como estão
sujeitos, os objetos sensíveis. Contudo, se limitarmos nossa interpretação
destas palavras de Sócrates à questão da copresença de opostos, a introdução do tema da unidade e multiplicidade torna-se
completamente incidental. Afinal, Sócrates poderia ter apresentado seu desafio
por meio de qualquer outro par de propriedades opostas. Na verdade, de acordo
com esta linha de raciocínio, o aparecimento dos
conceitos de unidade e multiplicidade nessa passagem é, inclusive,
desnecessário, uma vez que Sócrates já havia formulado seu desafio por meio das
propriedades “semelhante” e “dessemelhante”. No entanto, não podemos considerar
meramente ocasional esta específica formulação,
sobretudo em meio a uma discussão centrada na questão da viabilidade teórica da
noção de multiplicidade. É claro que, na dinâmica conversacional do diálogo,
qualquer afirmação sobre o tema da unidade/multiplicidade remete o leitor diretamente ao paradoxo de Zenão e à compreensão de seu
significado.
A observação de Sócrates deixa de ser irrelevante e passa a fazer
sentido, se entendermos o paradoxo de Zenão como uma prova, também, da
impossibilidade de uma coisa única qualquer possuir múltiplos
atributos. Sócrates está tornando explícito, nesta passagem, o segundo sentido
de multiplicidade negado pela argumentação de Zenão, a multiplicidade de partes
ou atributos de um mesmo indivíduo. Segundo Sócrates, não há nada de espantoso,
ao contrário do que pretende afirmar Zenão, no fato
de uma dada coisa única ser, também, múltipla, dotada de várias partes.
Portanto, para defender o monismo de seu mestre Parmênides, Zenão
pretende demonstrar a contradição envolvida na admissão da multiplicidade tout court, quer
esta seja entendida como uma multiplicidade de indivíduos, quer como uma
multiplicidade de atributos de um mesmo indivíduo. Como veremos, o reconhecimento desta dualidade da argumentação zenoniana se mostrará
essencial para a compreensão dos argumentos seguintes. Pois estes dois sentidos
de multiplicidade estarão implicados na solução de Sócrates para o paradoxos de Zenão, assim como farão parte da estratégia
utilizada por Parmênides na sua contra-argumentação à solução socrática.
A redução da tese
pluralista ao absurdo
Tendo estabelecido os dois sentidos de multiplicidade afirmados pela tese
pluralista e negados pelo monismo de Zenão e Parmênides, podemos passar para a
análise do argumento zenoniano. De acordo com o resumo apresentado por Sócrates
em 127e1-5, a redução ao absurdo da tese
pluralista é operada por Zenão por meio do seguinte raciocínio:
1)
Suponha
que os seres são múltiplos (tese provisoriamente assumida).
2)
Se eles
são múltiplos, então eles são tanto semelhantes quanto dessemelhantes.
3)
Logo, os
seres são tanto semelhantes quanto dessemelhantes (a
partir de 1 & 2)
4)
Ora, é
impossível que uma mesma coisa seja semelhante e dessemelhante.
5)
Portanto,
os seres não são múltiplos. (afirma-se a negação de 1 com base
na contradição entre 3 & 4)[17].
A invenção do método de redução ao absurdo, que consiste em assumir temporariamente uma tese para, a partir dela,
derivar uma contradição e, assim, concluir a negação da tese inicial, não deve
ser atribuída a Zenão, embora saibamos que ele tenha usado extensivamente este método
argumentativo. Segundo Thomas Heath, o método de redução ao absurdo pode ter
sua origem traçada até a escola pitagórica e, no tempo de Platão, este
argumento já era usado largamente em provas
matemáticas envolvendo teoria dos números[18]. Sendo assim, podemos considerar que os leitores de Platão não viam com
estranheza este tipo de argumentação.
Da mesma maneira, a premissa número 2 do
argumento de Zenão parece bastante plausível e dificilmente
teria sua validade objetada. Zenão pode estar argumentando, por exemplo, que os
múltiplos seres, como seres, são semelhantes entre si, enquanto que como
múltiplos e, portanto numericamente distintos uns dos outros, são
dessemelhantes; ou, ainda, que as diversas partes de
um indivíduo são semelhantes entre si, enquanto partes de um mesmo indivíduo,
porém dessemelhantes, enquanto partes distintas.
No entanto, chama muita atenção o conteúdo da premissa número 4 do
argumento. Segundo esta premissa, uma mesma coisa não
pode ser, ao mesmo tempo, semelhante e dessemelhante. Mas por quê? Podemos pensar
em miríades de casos em que uma mesma coisa é tanto semelhante quanto
dessemelhante. Sócrates e Platão, por exemplo, são
semelhantes, pelo fato de ambos serem atenienses, no
entanto são dessemelhantes em vários outros aspectos, como em idade, condição
social, etc. Enquanto intérpretes, devemos tentar entender porque os
interlocutores do Parmênides consideram intrigante e paradoxal o fato de uma dada coisa possuir, simultaneamente, propriedades opostas, mesmo quando
estas propriedades representam termos relativos (semelhante-dessemelhante,
maior-menor, etc.).
A interpretação mais comumente aceita para o paradoxo consiste em dizer
que Zenão estaria tratando predicados relacionais
como predicados monádicos (ou adjetivos). Assim, ele estaria ignorando o
complemento existente nos predicados relacionais e tratando a propriedade “ser
semelhante a x” como equivalente à propriedade “ser semelhante simpliciter”, isto
é: estaria tratando um predicado incompleto (que
necessita de um complemento para ser significativo) como um predicado completo
(significativo por si só). Negligenciada a diferença entre estes dois tipos de
predicados, uma sentença do tipo: “A é maior que B e menor que C.” passa a ser equivalente a “A é maior e menor simpliciter.”,
tornando-se tão contraditória quanto a sentença
“A é quadrado e redondo.”
Este tipo de interpretação foi primeiramente apresentada por Cornford, segundo o qual: “nenhuma distinção é traçada entre qualidades e relações. Grandeza é tratada como se fosse uma qualidade como Brancura, inerente à
pessoa grande”[19]. Cornford observa, ainda, que este tipo de raciocínio parece ser
particularmente favorecido pela sintaxe grega, que permite sentenças do tipo: “Simmias é grande em relação (πρὸς) a Sócrates” ou, ainda,
“Simmias tem grandeza com relação (πρὸς) a Sócrates”, nas quais o segundo termo da relação binária
“ser-maior-que” não é necessariamente introduzido por um pronome relativo, mas pode ser introduzido pela preposição πρὸς. Este fato sintático teria,
supostamente, induzido os pensadores gregos a negligenciar o caráter relacional
de propriedades como “ser-semelhante-a” ou “ser-maior-que”, levando-os a
classificá-las como propriedades monádicas do tipo
“ser-branco” ou “ser-belo”.
No entanto, esta análise linguística, por si só, não pode ser considerada
uma explicação satisfatória. Caso assim fosse, Sócrates poderia simplesmente
argumentar em termos estritamente gramaticais e afirmar que usamos sentenças significativas com predicados relativos
cotidianamente e que, portanto, o paradoxo de Zenão deveria ser simplesmente
desconsiderado. Pois, só há contradição quando propriedades opostas são
atribuídas a uma mesma coisa, ao mesmo tempo, da mesma
maneira e em relação a uma mesma coisa[20].
A ausência de distinção entre predicados relacionais e predicados
completos no argumento de Zenão, no entanto, nos remete diretamente a um tema
extremamente recorrente nos diálogos: a copresença de propriedades opostas. Como sabemos, em diversos diálogos, Sócrates e
seus interlocutores consideram a copresença de propriedades opostas nos objetos
sensíveis algo intrigante e merecedor de uma explicação teórica complexa (vide: Phd. 74a-c; Symp.
210-211b, Rep. 523-525). Na realidade, o fato das entidades
sensíveis estarem submetidas a este tipo de predicação constitui aquilo que
mais propriamente as caracteriza, o que fica claro pelo uso de predicados
relacionais nas demonstrações socráticas da diferença entre o modo de ser das Formas e o modo de ser das coisas do mundo
sensível. Submetidas a uma multiplicidade de relações, as entidades sensíveis
estão sempre sujeitas à predicação de opostos, o que é tido por Sócrates como
uma evidência cabal da contradição interna e deficiência
ontológica desses objetos.
Portanto, devemos entender que os predicados “semelhante” e “dessemelhantes” do argumento de Zenão estão sendo empregados para ilustrar o fato de que os objetos sensíveis
têm suas propriedades definidas pelas relações em que
estão inseridos, o que resulta na copresença de opostos em um mesmo objeto e
lhes confere um caráter contraditório. Ora, é evidente que a extinção das
mútuas relações existentes entre os objetos sensíveis seria suficiente para
eliminar o problema da copresença de opostos, pois um
único objeto privado de qualquer relação é somente idêntico a si mesmo.
É justamente esta a estratégia da argumentação zenoniana. Reduzindo a
multiplicidade dos objetos sensíveis a uma única entidade, Zenão elimina por
completo as múltiplas relações entre eles, consequentemente resolvendo o
problema da copresença de opostos. Assim, enquanto
Sócrates usa a copresença de opostos para caracterizar a deficiência do mundo
sensível e, ainda, postular a existência de entidades não submetidas às
relações que geram esta copresença, Zenão usa esta característica para negar
toda possibilidade de multiplicidade, extinguindo por
completo qualquer tipo de relação e postulando a existência de uma única coisa
privada de qualquer atributo salvo sua auto-identidade.
A solução de Sócrates
para o paradoxo de Zenão
A despeito de todas as polêmicas acerca da
interpretação do Parmênides, a compreensão da solução oferecida por Sócrates ao
paradoxo de Zenão destaca-se como um ponto de notável consenso. Os comentadores
parecem concordar que a estratégia adotada por Sócrates consiste em desafiar o
conteúdo da premissa número 4 do argumento de Zenão, por meio da distinção
entre dois tipo de entidades, Formas e objetos
sensíveis. Sócrates entende que os seres (τὰ ὄντα)
sobre os quais fala Zenão são objetos sensíveis e, como solução ao paradoxo,
apresenta as Formas como um tipo de entidade imune à copresença
de opostos apontada por Zenão.
Recentemente, contudo, até mesmo este aparente consenso foi ameaçado.
Sandra Peterson, em seu capítulo sobre o Parmênides para The Oxford Handbook of Plato (2008), distingue sua própria interpretação das interpretações que
atribuem a Sócrates uma apresentação técnica da Teoria das Ideias. Ela acredita que “se consideramos que Sócrates
ostenta uma nova teoria de caráter técnico, com entidades desconhecidas [isto é: as Formas] (…) não percebemos o
genuíno poder de sua simples refutação”[21].
No entanto, como se daria a solução do paradoxo, caso Sócrates não
apelasse para Formas inteligíveis? Segundo a interpretação proposta por
Peterson, “Sócrates simplesmente aponta
pressuposições inegáveis da fala cotidiana (undeniable presuppositions of customary speech)” para refutar Zenão[22]. De acordo com Peterson, a estratégia geral da argumentação de Sócrates
consiste em demonstrar que predicados opostos são ordinariamente
atribuídos às coisas. Sendo assim, seu objetivo não seria provar a invalidade
do argumento de Zenão, mas sim a sua irrelevância: ao fim de sua argumentação,
Sócrates teria demonstrado que o argumento de Zenão não apresenta um paradoxo,
mas apenas uma verdade amplamente reconhecida.
Contudo, é preciso observar que a interpretação proposta por Peterson
encontra-se em clara oposição ao que um leitor dos diálogos poderia esperar.
Segundo o argumento de Zenão, é impossível que os seres sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes ou, de maneira geral,
que uma dada coisa possua qualquer par de predicados opostos (F e não-F). Ora,
um leitor acostumado com o tipo de argumentação que Sócrates desempenha nos
diálogos da fase média espera, naturalmente, que as
Formas sejam apresentadas como solução para este problema.
Esta expectativa é plenamente satisfeita quando Sócrates pede a Zenão que
aceite a existência de “uma Forma em si e por si da Semelhança e, por outro
lado, uma outra Forma, aquilo que é realmente Dessemelhante” (οὐ νομίζεις εἶναι αὐτὸ καθ'αὑτὸ εἶδός τι ὁμοιότητος, καὶ τῷ τοιούτῳ αὖ ἄλλο τι ἐναντίον, ὃ ἔστιν ἀνόμοιον 129a1). Dificilmente uma apresentação das Formas poderia ser feita de
maneira mais explícita. Além do termo εἶδος, Sócrates usa as expressões αὐτὸ καθ' αὑτὸ e ὃ ἔστιν, ambas extremamente recorrentes nos diálogos e, indubitavelmente, parte
do vocabulário relativo às Formas. Fica claro, portanto, que Sócrates
identifica os seres (τὰ ὄντα) aos quais Zenão se refere
como objetos sensíveis e, como primeiro passo na solução do paradoxo, introduz
suas Formas na discussão.
No entanto, a simples apresentação de entidades imunes à copresença de
opostos não se configura como uma solução ao paradoxo.
A premissa 4 de Zenão afirma a impossibilidade das coisas serem, simultaneamente,
semelhantes e dessemelhantes, o que certamente não exclui a possibilidade de
algo ser, exclusivamente, semelhante ou dessemelhantes. Para que a premissa 4 seja falsificada, é preciso que Sócrates
demonstre como os seres podem possuir propriedades opostas, sem que isso
implique em uma contradição. Portanto, de modo a servirem de solução ao
paradoxo, as Formas precisam não apenas estar imunes à copresença de opostos,
mas sobretudo explicar esta copresença nos objetos sensíveis. Para que isto seja
feito, Sócrates introduz a noção de participação (aqui representada pelos
verbos μεταλαμβάνειν e μετέχειν) e pergunta a Zenão se ele está disposto a aceitar que “algumas coisas,
tendo participação na Semelhança, se tornam
semelhantes, (...) que outras, tendo participação na Dessemelhança, [se tornam]
dessemelhantes, e que outras, [tendo participação] em ambas, se tornam
semelhantes e dessemelhantes” (129a3-8).
Caso Zenão esteja disposto a aceitar estas duas
hipóteses: 1) que existem Formas e 2) que os objetos sensíveis participam
destas Formas, a aparente contradição presente na premissa 4 do seu argumento pode ser dissolvida. Pois, uma vez que estes dois
pontos lhe sejam concedidos, Sócrates estará apto a
demonstrar como a copresença de propriedades opostas nos objetos sensívieis
pode ser explicada por meio da relação de participação que estes objetos mantêm
com as Formas[23].
No Parmênides, Sócrates não desenvolve em pormenores esta explicação, se limitando a
dizer que mesmo que todas as coisas sensíveis tenham participação em ambas
estas Formas e, em consequência desta participação, sejam semelhantes e
dessemelhantes, nada há nisso de espantoso
(129a8-b1). Esta brevidade da explicação de Sócrates pode ser remediada se
relacionarmos a solução aqui apresentada para o paradoxo de Zenão com a
explicação oferecida, no Fédon (101-103), para o fato de Simmias ser grande em relação a Sócrates e pequeno em relação a Fédon. A
assimilação entre as duas explicações parece justificada, uma vez que, em ambos
os diálogos, vemos Sócrates oferecer a Teoria das Ideias como solução para o
mesmo problema: a copresença de propriedades (relacionais) opostas nos objetos sensíveis[24].
Adotando o paralelismo entre estas duas explicações, podemos entender
que, tal como acontece no Fédon, a semelhança e dessemelhança, no Parmênides, deixam de ser predicados atribuídos diretamente ao sujeito em questão e
passam a ser predicados das propriedades imanentes[25] que este sujeito possui devido à relação de participação que mantém com
as Formas.
No Fédon, propriedades imanentes são evocadas como parte do argumento que procura
provar a diferença ontológica entre Formas e objetos sensíveis (74b7-c5) e, em seguida, fazem parte da explicação da copresença das propriedades
opostas (Grande e Pequeno) em Simmias (101-103). Em ambas as passagens, as
propriedades imanentes se diferenciam dos objetos sensíveis que as possuem por
não estarem, elas mesmas, sujeitas à predicação de
opostos que caracteriza estes objetos. O paralelismo entre estas passagens do Fédon e nossa
passagem do Parmênides torna-se evidente quando consideramos que αὐτὰ τὰ ἴσα (Phd. 74c) e αὐτὰ τὰ ὅμοιά (Parm. 129b1) representam as únicas ocorrências de expressões da forma αὐτὰ + adjetivo neutro plural,
no corpus platônico.
Portanto, encontramos total uniformidade no emprego desse tipo de
expressão em Platão. As duas únicas ocorrências desse tipo de expressão são usadas para designar as propriedades imanentes dos
objetos sensíveis, adquiridas por meio da relação de participação que estes
objetos mantêm com as Formas. Tal como as Formas, as propriedades imanentes não
estão sujeitas à copresença de opostos. Porém, em
oposição à unidade característica das Formas, estas entidades são múltiplas e
possuem um tipo de existência dependente dos objetos sensíveis, pois estão
localizadas nas coisas (τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος: Phd. 102d; ἡμεῖς ὁμοιότητος ἔχομεν: Prm. 130b).
Sendo assim, as múltiplas coisas do paradoxo de Zenão são tanto
semelhantes quanto dessemelhantes por participarem, simultaneamente, das Formas
do Semelhante e do Dessemelhante e, devido a esta participação, possuírem as
propriedades imanentes do semelhante e do
dessemelhante como partes de si. Portanto, quando dizemos que o objeto x é semelhante e
dessemelhante, estamos nos referindo a este fato de maneira inadequada. Pois
não é propriamente o indivíduo x que é semelhante e dessemelhante, mas a
semelhança-de-x que é semelhante e a
dessemelhança-de-x que é dessemelhante. Estabelecida a diferença entre Forma,
propriedades imanentes e objetos sensíveis, não há nada de contraditório no
fato de uma mesma coisa possuir, simultaneamente, propriedades imanentes opostas. Afinal, predicados opostos nunca estão sendo
atribuídos, propriamente, à mesma coisa.
A hipótese das Formas contradiz o conteúdo da premissa 4 do argumento de Zenão ao explicar aquilo que esta premissa afirmava ser
impossível: a copresença de propriedades opostas nos objetos sensíveis. Provada
a falsidade da premissa número 4 do argumento de Zenão, todo paradoxo é desfeito. Afinal, a redução ao absurdo da assunção inicial de que as coisas são múltiplas
depende, diretamente, da existência de contradição entre as premissas 3 e 4.
O desafio
de Sócrates
A proximidade entre a Teoria das Ideias apresentada no Parmênides e a
ontologia socrática dos diálogos da fase média é
reafirmada, ainda, no desafio lançado por Sócrates a seus interlocutores. Logo
após a apresentação das Formas como solução ao problema da copresença de
opostos, Sócrates compele seus interlocutores a demonstrarem, nas Formas, a validade dos mesmos problemas que Zenão acabara de apontar nos
objetos sensíveis. A passagem pode ser dividia em quatro partes:
1)
129b1:
Sócrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que as propriedades
imanentes αὐτὰ τὰ ὅμοιά e τὰ ἀνόμοια podem receber predicados opostos:
“Pois, se alguém mostrasse que αὐτὰ τὰ ὅμοιά se tornam dessemelhantes ou que τὰ ἀνόμοια se tornam semelhantes, seria assombroso, creio”.
2)
129b6-c1:
Sócrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que a Forma da Unidade é
múltiplas coisas e o Múltipo é um:
“Mas, se aquilo que é realmente
Um, alguém demonstrar que isso mesmo é múltiplas coisas e, de outra parte, que
o Múltiplo é um, já disso
me espantarei”.
3)
129c1-3:
Sócrates desafia seus interlocutores a demonstrarem que as Formas são tanto
unas quanto múltiplas:
“E do mesmo modo com respeito a
todas as outras coisas: se alguém mostrar que, em si mesmos, os gêneros mesmos
e as Formas mesmas são afetados por essas afecções
contrárias [unidade e multiplicidade], isso será digno de espanto”.
4)
129d6-130a1:
Sócrates desafia seus interlocutores a demonstrarem como as Formas podem estar
misturadas e separadas entre si:
Mas, dentre as coisas que há pouco mencionei, se alguém, em primeiro lugar, separasse
uma das outras as Formas mesmas em si mesmas – por exemplo: a Semelhança, a
Dessemelhança, a Quantidade, o Um, o Repouso, o Movimento e todas as coisas
deste tipo – em seguida mostrasse que estas, entre
si, podem ser misturadas e separadas, eu pelo menos, disse [Sócrates], ficaria
encantado, cheio de espanto, Zenão. Quanto àquelas coisas [sensíveis], acredito
terem sido tratadas por ti com muita determinação. Entretanto, eu, como digo, me encantaria muito mais se alguém pudesse, essa mesma aporia, da maneira como expuseste
no caso das coisas que se vêem, exibi-la, dessa mesma maneira, também no caso
das coisas apreendidas pelo raciocínio, entrelaçadas de todos os modos nas
Formas mesmas.
1 e 2 representam, basicamente, o mesmo tipo de desafio. Em 1, Sócrates diz que ficaria assombrado caso lhe mostrassem que as
propriedades imanentes αὐτὰ τὰ ὅμοιά e τὰ ἀνόμοια estão sujeitas à predicação de
opostos. Em 2, este desafio é expandido para as Formas da Unidade e da Multiplicidade
e Sócrates pede que lhe seja demonstrado como o Um é múltiplas coisas e o
Múltiplo um. No Fédon (102d-e), Sócrates havia afirmado que o Grande em si (αὐτὸ τὸ μέγεθος) jamais
aparecerá como grande e pequeno e que tampouco o
Grande em nós (τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος ) admitirá o pequeno ou consentirá em receber a pequenez e se tornar
contrário ao que ele é (102e2). A imunidade à predicação de opostos é,
portanto, válida igualmente para Formas e propriedades
imanentes. Neste ponto, αὐτὰ τὰ ὅμοιά e o Semelhante em si (αὐτὸ καθ'αὑτὸ εἶδός ὁμοιότητος) diferenciam-se dos objetos sensíveis e Sócrates desafia seus
interlocutores a lhe demonstrarem como qualquer uma destas entidades pode estar
sujeita à copresença de opostos que caracteriza os
objetos empíricos.
Logo após intimar Zenão e Parmênides a lhe demonstrarem que a Unidade (ὃ ἔστιν ἕν) é múltiplas coisas e que o Múltiplo é um, Sócrates muda o foco de sua
argumentação e, deixando de falar de um par
específico de Formas, passa a tratar de Formas, em geral (περὶ τῶν ἄλλων ἁπάντων). Sócrates então compele seus interlocutores a lhe provarem 3: que as Formas, elas mesmas, são afetadas, simultaneamente, pela unidade e
multiplicidade. Os comentadores costumam entender o desafio expresso em 3 como a
generalização do problema da copresença de opostos apresentado em 1 e 2.
Contudo, como dito anteriormente, não podemos
considerar uma mera casualidade o fato de Sócrates escolher as propriedades da
unidade e da multiplicidade para operar esta generalização. O debate entre
Sócrates e Zenão é motivado pelo tema da unidade/multiplicidade e a
reintrodução deste par de conceitos, neste momento,
remete o leitor à distinção inicial entre a multiplicidade de objetos sensíveis
(as coisas que chamamos muitas: τἆλλα ἃ δὴ πολλὰ καλοῦμεν) e a unidade característica
das Formas (τούτοιν δὲ δυοῖν ὄντοιν).
Devemos entender, portanto, que Sócrates, em 3, não está apenas generalizando o problema da copresença de opostos para
o conjunto de todas as Formas, mas está apresentando um novo desafio. Sócrates
desafia seus interlocutores a lhe provarem que as Formas, entidades caracterizadas por serem únicas e indivisíveis, podem ser
caracterizadas pela multiplicidade encontrada nos objetos sensíveis.
Como vimos, o paradoxo de Zenão pressupõe a afirmação da multiplicidade
das coisas em dois níveis distintos. Segundo Zenão, os objetos sensíveis são múltiplos tanto numericamente quanto por
serem divisíveis em múltiplas partes e receberem múltiplos predicados. Em
paralelo a esta dualidade inerente ao conceito de multiplicidade adotado por
Zenão, as Formas platônicas são ditas únicas tanto
numericamente, por só haver uma Forma da Beleza, em contraste com a pluralidade
de objetos belos, quanto por serem incompostas e indivisíveis. Neste momento do
desafio, devemos pressupor que os dois sentidos de unidade e multiplicidade
estão em jogo e que Sócrates está desafiando seus
interlocutores a demonstrarem a multiplicidade das Formas tout court, seja
ela entendida como a existência de uma multiplicidade numérica (diversas Formas
da Beleza, por exemplo) ou uma multiplicidade de partes ou atributos de uma mesma Forma.
Por fim, em 4, Sócrates afirma que ficaria surpreso caso alguém “separasse uma das
outras as Formas e, em seguida, mostrasse que estas Formas, entre si, podem ser
misturadas e separadas”. O sentido preciso desta afirmação não está claro de início e seu significado deve ser acessado pela
explicação que se segue. Nas sentenças seguintes, Sócrates esclarece que sua
surpresa está relacionada à possibilidade de alguém expor, no caso das Formas, a aporia que Zenão acabara de expor com relação às
coisas sensíveis. Como vimos, a aporia apresentada por Zenão consiste em
afirmar que os objetos sensíveis são múltiplos e, por conta disso, estão
sujeitos à predicação de propriedades opostas. Portanto, devemos entender que o
entrelaçamento ao qual se refere Sócrates implica na
demonstração de que as Formas são, tal como os objetos sensíveis, múltiplas e, por conta desta
multiplicidade, estão sujeitas à predicação de opostos.
Em sua fala, Sócrates enumera uma série de pares de Formas opostas:
Semelhança/Dessemelhança, Quantidade/Um,
Repouso/Movimento. Como observa Allen, o pronome ταῦτα em 129e2 possui como antecedente estas Formas tomadas como pares e não
cada uma delas isoladamente[26]. Sendo assim, a passagem afirma que não podemos considerar cada um destes pares de Formas como separados e, ao mesmo tempo, supor
que os dois membros do par estão misturados e caracterizando um ao outro.
Ora, está claro que o entrelaçamento ou participação de uma Forma em
outra faria com que elas perdessem sua unidade e uniformidade
característica e passassem a possuir uma multiplicidade de partes e atributos[27]. Além disso, caso Formas opostas estejam entrelaçadas entre si, cada uma
delas terá um predicado contrário à sua auto-predicação (a Semelhança será dessemelhante, o Movimento
estará em repouso, etc.). Portanto, em 4, Sócrates recapitula os desafios expressos anteriormente e reafirma a
distinção entre Formas e objetos sensíveis expressa em sua solução ao paradoxo
de Zenão.
O desafio apresentado por Sócrates retoma, portanto,
aspectos fundamentais da Teoria das Ideias: a uniformidade das
Formas, que se caracterizam por estarem imunes à predicação de opostos, e a unidade destas
entidades, que são numericamente singulares. Estas características estão
mutuamente implicadas, pois as Formas são ditas
únicas e homogêneas por serem, de maneira exclusiva, auto-predicativas. Em contraste como as coisas sensíveis, sujeitas a uma diversidade de
predicados, inclusive predicados opostos, as Formas são, exclusivamente, aquilo
que elas são. A Forma F é apenas F e nada mais,
estando imune à presença da propriedade oposta não-F e, de maneira geral, a
qualquer outro tipo de predicação[28]. Estas características das Formas são a base da
distinção ontológica entre Formas e objetos sensíveis e se encontram articuladas na solução de Sócrates para o
paradoxo de Zenão. Zenão acredita que as coisas são múltiplas e, por causa
disso, estão sempre sujeitas à predicação de opostos. Com o objetivo de
desfazer o paradoxo, Sócrates apresenta um novo tipo de entidade, caracterizada pela sua unidade e uniformidade. Segundo Sócrates, estas entidades podem
desfazer o problema da copresença de opostos por serem a causa das propriedades
encontradas nos objetos sensíveis e por estarem, elas mesmas, imunes à multiplicidade e copresença de opostos encontrada nos objetos
sensíveis.
Sendo assim, a demonstração de que as Formas são, elas
mesmas, sujeitas à copresença de opostos retiraria destas entidades a
capacidade de se apresentarem como causas das propriedades dos objetos sensíveis. Pois, segundo a compreensão de causalidade
apresentada por Sócrates no Fédon (96-101), é justamente o fato do Grande nunca se apresentar como pequeno o que faz
dele o candidato mais adequado para o cargo de causa da grandeza das coisas sensíveis. A Forma da Beleza deve ser incondicionalmente bela
para assegurar o seu papel de causa da beleza nas coisas. Por outro lado, a
atribuição de multiplicidade às Formas abriria a possibilidade do paradoxo de
Zenão se repetir em cada uma destas entidades, quer
entendamos esta multiplicidade como uma multiplicidade numérica ou como uma
multiplicidade de atributos. Pois, ou bem cada Forma seria composta por partes
semelhantes entre si (por serem partes de uma mesma Forma) e, ao mesmo tempo,
dessemelhantes (por serem partes distintas), ou bem
as múltiplas Formas de F seriam semelhantes (por serem, todas elas, Formas de
uma mesma propriedade F) e dessemelhantes (por serem numericamente distintas).
Em ambos os casos, as Formas estariam sujeitas aos mesmos problemas, encontrados nos objetos sensíveis, que,
supostamente, deveriam solucionar.
O desafio lançado por Sócrates é, portanto, uma consequência direta da
sua solução para o paradoxo de Zenão. A validade da hipótese das Formas como
solução ao paradoxo depende destas entidades manterem
estes dois aspectos fundamentais de sua constituição ontológica: imunidade à
copresença de opostos e unidade (numérica e aspectual). Afinal, estas
características são a base da diferenciação entre Formas e objetos sensíveis e a distinção entre estes dois tipos de entidade não restaria
estabelecida, caso estas características, próprias dos objetos sensíveis,
fossem encontradas também nas Formas. Portanto, caso a multiplicidade e predicação de opostos apontadas por Zenão
nos objetos sensíveis sejam válidas para as Formas, a solução apresentada por Sócrates se mostrará
falsa e o paradoxo de Zenão permanecerá irresoluto.
A importância do desafio de Sócrates para a compreensão da estrutura do Parmênides
dificilmente pode ser superestimada. A fala em que
Sócrates soluciona o paradoxo de Zenão e, em seguida, desafia seus
interlocutores a provarem a falsidade de sua resolução representa o mais longo
discurso ininterrupto do diálogo e possui um forte apelo dramático. No desafio
que encerra esta fala, Sócrates usa as palavras “maravilhado”, “encantado” e seus cognatos nada menos do que oito vezes e deixa bem claro ao leitor
quão arraigado é o seu comprometimento com as teses da uniformidade e unidade
das Formas e quão chocante e arrasador seria o
reconhecimento da falsidade destes princípios fundamentais de sua teoria. Esta
insistência no tema do maravilhamento de Sócrates faz parte da estratégia
dramática adotada por Platão, que pretende chamar atenção para importância
destas duas características fundamentais da
constituição ontológica das Formas e antecipar para o leitor o esquema geral do
ataque à Teoria das Ideias que será realizado por Parmênides. Afinal, como
sabemos, Parmênides aceitará o desafio lançado por Sócrates e localizará suas críticas, justamente, nos princípios de uniformidade e
unidade das Formas. Por meio da sequência de paradoxos que compõem o restante
da primeira parte do diálogo, Parmênides irá provar a Sócrates como estas
características das Formas mostram-se irreconciliáveis
com a noção de participação e, de maneira geral, com a tese de que as Formas
são causas das propriedades dos objetos sensíveis.
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[1] O Fédon, o
Banquete e o Teeteto também são
narrados por pessoas que não presenciaram os acontecimentos descritos.
[2] A data
dramática para a realização do suposto encontro entre Parmênides, Sócrates e
Zenão é estabelecida pela menção às Grande Panatenéias, festivais realizados de quatro em quatro anos
em honra a Atená. Segundo o diálogo, Parmênides e Zenão estariam em visita a
Atenas com o objetivo de participar deste festival. De acordo com as
informações que nos são fornecidas acerca da idade dos personagens do diálogo
(127b-c: Parmênides teria por volta de sessenta e cinco anos, Zenão estaria
próximo dos quarenta e Sócrates era ainda bastante jovem) podemos estabelecer o
festival do ano de 449/450 a.C. como a data base para
o encontro narrado. Como Céfalo não busca o
próprio Sócrates para ouvir o relato deste encontro, podemos deduzir, ainda,
que no momento da chegada de Céfalo e sua comitiva em
Atenas, Sócrates já havia sido executado, fato ocorrido em 399 a.C. Sendo assim, ao menos cinquenta anos separam o relato
de Antifonte do momento do encontro inicial. Não
temos razão para acreditar que o relato de Céfalo
esteja ocorrendo muito depois desta data, mas as indicações são precisas o
suficiente para deixar claro ao leitor a considerável distância entre a
narrativa que nos chega e a conversa original.
[3] A ausência de
pretensão histórica é notada por praticamente todos os comentadores recentes. Mansfeld, adotando 462/461 como data dramática para o
suposto encontro entre Parmênides e Sócrates, acredita, ainda, que este evento
nunca poderia ter acontecido como descrito por Platão, pois, nesta data,
Sócrates teria apenas oito anos de idade. “Nem ao menos se espera que os
leitores do Parmênides acreditem que o encontro tenha realmente
ocorrido...” (MANSFELD, Die Vorsokratiker, I: Milesier, Pythagoreer, Xenophanes, Heraklit,
Parmenides, p. 44).
[4] É importante
notar que, no momento em que Céfalo chega à Atenas em
busca de informações sobre o encontro de Sócrates, Zenão e Parmênides, todas as
pessoas que estavam presentes neste encontro já estão
mortas, incluindo o próprio Sócrates. Portanto, para Antifonte
e Céfalo, assim como para o leitor do diálogo, o Parmênides
narra momentos da vida de figuras de uma geração passada, uma geração de grande
importância para a comunidade filosófica grega, cujas conversas e debates
merecem ser lembrados e revividos meio século após seu
acontecimento. O prólogo do Parmênides presta, assim, uma homenagem a
esta geração de pensadores já perdida e o fato de Platão fazer com que vários
personagens tenham se dedicado ao ato de memorizar o conteúdo de um encontro
entre estas pessoas indica, ainda, o apreço de Platão por estes indivíduos.
[5] ALLEN, Plato’s “Parmenides”,
p.71.
[6] Dillon, em sua introdução ao Comentário ao Parmênides
de Proclo, defende a tese de que Proclo dá claros sinais de possuir um manuscrito da obra de
Zenão e que, portanto, devemos considerar válidas suas observações sobre o
conteúdo desta obra. A mais famosa destas observações afirma que o paradoxo
apresentado no Parmênides fazia parte de um livro que conteria quarenta
argumentos. (cf.
MORROW&DILLON, Proclus' Commentary on Plato's Parmenides, p.
xxviii-xliii).
[7] CORNFORD, Plato and Parmenides,
p. 53-62.
[8] BRISSON, Platon Parmenide,
p.15-28.
[9] HARTE, Plato on Parts and Holes,
p.52.
[10] Allen, Plato’s “Parmenides”,
é uma exceção.
[11] A diferença
entre estas duas formulações não é tão bem definida em grego quanto sugerem as
traduções por mim apresentadas. Afinal, τὰ ὄντα pode estar subentendido
como sujeito da segunda sentença, o que tornaria as duas
formulação idênticas. Trata-se de um caso de ambiguidade sintática, em
que as duas leituras são possíveis para cada uma das formulações. De acordo com
minha interpretação, este tipo de ambiguidade, recorrente na primeira parte do
diálogo, é proposital.
[12] Vide, por exemplo,
o comentário de Rossvaer: “Zenão
toma como ponto de partida a hipótese de que as coisas são múltiplas.
Mas não é exatamente isso o que ele quer dizer. O que ele quer dizer é que o
Ser (o todo) é Um, tal como seu mestre. (ROSSVAER, Laborious Games, p. 15). No mesmo sentido, cf. COXON, The
Philosophy of Forms, p. 97. O único autor que reconhece
a dualidade implicada na argumentação de Zenão é El Murr
(Les Forms sans L'ame. Parm.
131a-133a), embora a interpretação oferecida por MacCabe
(Unity in Plato’s
Parmenides) também pressuponha este
reconhecimento.
[13] Brisson vai além e identifica τὸ πᾶν como o sujeito
subentendido de todas as hipóteses da segunda parte do Parmênides (Platon Parmenide,
pp. 18-27). No entanto, ao afirmar a expressão τὸ πᾶν como o sujeito oculto
de todas as expressões em que o um aparece ligado ao verbo “ser”, tanto
na primeira quanto na segunda parte do diálogo, Brisson
está oferecendo uma interpretação, claramente, violenta ao texto do Parmênides.
Afinal, Platão dificilmente esconderia a chave para compreensão de
todo o diálogo em uma única ocorrência da expressão τὸ πᾶν, em meio a esta fala,
aparentemente, despretenciosa de Sócrates.
[14] Cf.
CASSERTANO, Critica delle idee
ed argomentazione
dialettica nella prima
parte del “Parmenide”,
pp. 386-388.
[15] Com a exceção,
é claro, da sentença número 1, que, como já observamos, apresenta πολλά como
predicativo do sujeito τὰ ὄντα.
[16] Coloco “um” em
itálico, nesta e nas seguintes passagens, para diferenciar o atributo “ser-um” do artigo indefinido.
[17] Trata-se de um
argumento em Modus Tollendo Tollens,
isto é, um argumento que, negando (tollendo)
o consequente da implicação expressa na premissa, nega (tollens), por consequência lógica, também o
antecedente. Em notação formal: P → Q;
~Q; ├ ~P
[18] Cf. HEATH, A History of Greek
Mathematics, pp. 294-295.
[19] CORNFORD, Plato
and Parmenides, p.78.
[20] De fato, em
uma passagem da República IV (436b-c), Sócrates formula uma
versão da Lei da Não-Contradição, na qual todas estas qualificações são
mencionadas.
[21] PETERSON, “Parmenides”, pp. 383-411.
[22] PETERSON, “Parmenides”, p. 387.
[23] Note que
Sócrates apresenta estas duas hipóteses (a existência das Formas e a relação de
participação) por meio de uma pergunta (129a1-3). Isto indica que ele está
introduzindo um novo material conceitual e que espera um assentimento, por
parte de seus interlocutores, com relação à viabilidade teórica destas
hipóteses. A estratégia de Parmênides será admitir, temporariamente, a validade
das hipóteses de Sócrates, com o objetivo de submetê-las a uma nova redução
ao absurdo.
[24]Além da
identidade de temas, as passagens do Fédon e do Parmênides
apresentam grande semelhança de vocabulário: εἶδος (Fédon 102b1);
αὐτὸ καθ' αὑτὸ (Féd.78D3);
ὄντοιν (Fédon 71a13),
αὐτὰ τὰ ὅμοιά (Fédon 74c1, αὐτὰ τὰ ἴσα). De fato, a
assimilação entre os dois diálogos é extremamente comum entre os comentadores. Scolnicov, por exemplo, afirma que “esta passagem é uma
breve reafirmação da doutrina das Formas desenvolvida no Fédon”
(SCOLNICOV, Plato's Parmenides, p. 48). Gill oferece
sua explicação para resolução do paradoxo de Zenão por meio da teoria
apresentada no Fédon (cf. GILL, Plato:
Parmenides, p. 12-18). Cornford
também adota a estratégia de explicar a solução do paradoxo através da analogia
com a solução do problema da copresença de opostos no
Fédon e afirma haver, já em 1951, aceitação geral (it is generally agreed)
de que “a teoria das ideias aqui apresentada é idêntica à afirmada
anteriormente no Fédon.” (CORNFORD, Plato
and Parmenides, p. 70).
Ainda, Brisson (Platon Parmenide:introduction
et notes, p. 29), Sayre (Parmenides' Lesson, p. 65) e Turnbull (The Parmenides and Plato's Late Ontology, p. 16)
assumem a identidade entre a teoria do Fédon e a teoria do Parmênides.
[25] Entendo por
“propriedade imanente” o efeito, nos objetos sensíveis, resultante da
participação nas Formas.
[26] ALLEN, Plato’s “Parmenides”,
p. 101.
[27] No argumento
desenvolvido em 142c8-143a2, por exemplo, conclui-se que se o um é, então o um é constituído de partes. Pois, afirmar
que “o um é” equivale a afirmar que uma parte do um participa da
unidade e outra parte participa do ser (οὐσίας μετέχειν). O argumento
pressupõe, portanto, que a participação em mais de uma Forma (entrelaçamento) é
suficiente para concluir a existência de múltiplas partes do objeto
participante.
[28] As afirmações
de que F é única, uniforme, indivisível etc. representam meta-predicados
atribuídos a todas as Formas. Estes meta-predicados devem ser entendidos
como afirmações restritas ao âmbito da Teoria das Ideias e não entram em
conflito com a auto-predicação
das Formas.