Submissão: 03/04/2020 Aprovação: 03/04/2020
Publicação: 15/04/2020
Dossiê
O Parmênides de Platão
Comentários ao diálogo Parmênides de Platão
Comments
on Plato’s Parmenides
Miguel Spinelli
Professor de Filosofia na Universidade Federal de Santa
Maria, Santa Maria, RS
Resumo: Este estudo se ocupa com algumas questões do
prólogo do Parmênides, que, em geral, passam desapercebidas,
mas são importantes para a compreensão da arquitetônica do diálogo. Haverá de
ter, por exemplo, algum significado o fato de Platão trazer para dentro do
Diálogo, Céfalo de Clazômenas
(da Jônia), que veio para Atenas encontrar Antífon e
ouvir dele um relato de Pitodoros sobre o que
Parmênides e Zenão, vindos de Eleia (da Magna Grécia), confabularam com
Sócrates em Atenas. Clazômenas é a terra de
Anaxágoras, daquele que, a convite de Péricles, fundou em Atenas uma escola
filosófica. Do debate que ocorreu entre Parmênides, Zenão e Sócrates, na casa
de Pitodoros, foi Pitodoros,
quem, por primeiro, registrou de memória; depois ele passou a Antífon (irmão de Platão por parte de mãe), e, Antífon, passou a Céfalo, que,
enfim, veio a ser, e não o irmão de Platão, o relator do Diálogo. Há, pois, um
fluxo de personagens e de regiões que compõem o Diálogo. Há ainda algo
inusitado: Zenão, perante Sócrates e seus companheiros, na casa de Pitodoros, fez uma leitura de seus “escritos”, dos quais,
no final, Sócrates pediu a Zenão que relesse apenas “o primeiro argumento”: o
do paradoxo do Um e do Múltiplo, tema sobre o qual incidiram o debate e a
construção do Diálogo. Este estudo cumpre três etapas: comenta o introito,
esboça a tratativa do Um e do Múltiplo e ensaia algumas possibilidades de
leitura e de interpretação do Parmênides.
Palavras-chave: Platão;
Parmênides; Prólogo
Abstract: This paper deals with some questions at Parmenides’
prologue that generally go unnoticed, despite their significance to understand
the architecture of the Dialogue. There must be some meaning, for example, in
the fact of Plato having brought into the Dialogue Cephalus
of Clazomenae (in Ionia), who came to Athens to see
Antiphon and hear from him Pythodorus’ report on what
Parmenides and Zeno, both coming from Elea (in Magna Greece), talked with
Socrates in Athens. Clazomenae is the land of
Anaxagoras, who, invitated by Pericles, founded a
philosophical school in Athens. The debate between Parmenides, Zeno, and
Socrates that took place at Pythodorus’ house was,
for the first time, written by heart by Pythodorus
himself, and then passed on to Antiphon (Plato's brother on his mother's side),
who, by his turn, transmitted the report to Cephalus
who ended up being the reporter of the Dialogue, in place of Plato's brother.
Therefore, a flow of characters and regions makes up the Dialogue. There still
is something unusual: Zeno, in front of Socrates and his companions at Pythodorus’ house, read his “writings”, of which, in the
end, Socrates asked Zeno to re-read only “the first argument”: that one about
the One and Many paradox, which is the theme of the debate and of the
construction of the Dialogue. This paper develops three stages: it comments the
prologue of the Dialogue, outlines the treatment of the One
and Many problem, and presents some possibilities of reading and interpreting
the Parmenides.
Keywords: Plato; Parmenides; Prologue
1. Comentários ao prólogo do diálogo
1.1 O diálogo o Parmênides
se introduz dizendo que um tal de Céfalo,
residente (oíkothen) na cidade de Clazômenas, veio a Atenas com o objetivo específico de
acompanhar um grupo de compatriotas (polîtaí)
amantes da filosofia (philósophoi).
Este Céfalo[1] ao
qual o diálogo se refere haveria, por certo, de ser um daqueles sofistas gregos
que perambulavam pela Grécia a fim de angariar o próprio sustento: quer
vendendo seu próprio saber (recolhido em livros ou diretamente da confabulação
com os sábios), quer acompanhando os que excursionavam
(“filósofos” ou interessados pela filosofia) em busca de saber. O Céfalo referido pelo diálogo se enquadra na segunda
condição: na do acompanhante de um excurso pelo saber. O que o qualificou para
isso decorre certamente do fato de ele já ter estado em Atenas numa outra
ocasião, que não necessariamente aquela em que Parmênides e Zenão por lá
estiveram, e, além disso, por conhecer Antífon.
O diálogo se inicia com a seguinte assertiva, dadas
como palavras de Céfalo: “Estando em Atenas, vindos
de Clazômenas, onde residimos, encontramos na Ágora Adimanto e Gláucon” (Prm. 126a)[2].
Esse evento se dá bem depois da vinda a Atenas de Zenão e Parmênides, e também
alguns anos depois da morte de Sócrates e de Pitodoros.
Céfalo ciceroneava seus compatriotas em busca de Antífon (irmão de Platão por parte de mãe), que, “quando
ainda jovem, se ocupou em decorar” o teor das conversações havidas na casa de Pitodoros. Foi de tanto ouvir Pitodoros
– fato que permite inferir uma continua preleção pública do teor da referida
conversação entre Parmênides, Sócrates e Zenão – que Antífon
findou por saber de cor, guardar de memória o conteúdo da conversação.
Quanto a essa chegada de Céfalo
em Atenas, ela merece destaque e algumas considerações: a) Céfalo
vem de Clazômenas, de uma importante cidade da Jônia,
terra de Anaxágoras, justo daquele que Péricles trouxe à Atenas (na Ática) sob
o propósito de erigir e fazer ali prosperar uma escola filosófica; b) Céfalo com seus compatriotas se dirige à Ágora, ou seja,
justo ao centro de maior efervescência humana, política e econômica do
cotidiano de Atenas, e lá encontra, não um, mas dois irmãos de Platão, Adimanto e Gláucon; c) Céfalo, como já referido, viera com os companheiros ouvir
de Antífon, ou seja, de outro irmão Platão, o relato
do encontro entre Sócrates, Parmênides e Zenão ocorrido na casa de Pitodoros.
O diálogo, portanto, se inicia pondo implicitamente em
evidência alguns dados muito importantes: a) evidencia, por exemplo, o recinto
familiar de Platão: afinal, vieram ouvir um meio-irmão de Platão e encontraram
na Àgora os outros dois irmãos, Adimanto
e Gláucon, e mais, foram eles que levaram Céfalo e os “filósofos” de Clazômenas
até à casa de Antífon[3]; b)
além do recinto familiar de Platão é de algum modo evidenciado o da Academia:
afinal, Adimanto e Gláucon
são dois importantes interlocutores da dialógica platônica[4]; c)
além da Academia, fica também implicitamente evidenciada a Escola de
Anaxágoras: Céfalo, afinal, com seus companheiros
“filósofos” vem de Clazômenas (na Jônia), terra do
filósofo Anaxágoras, daquele que veio a ser o arquiteto e mentor da primeira
escola filosófica em Atenas; d) uma vez que implicitamente se põe em evidência
a Escola de Anaxágoras, não há como não se pensar na linhagem filosófica
construída com a “escola”, quer por Anaxágoras quer por Arquelau;
e) dá-se que Arquelau é pela tradição considerado
mestre de Sócrates[5],
deste que, por sua vez, além de mestre de Platão, veio a ser o principal
personagem da dialógica com a qual Platão edificou o seu próprio projeto e
legado filosófico.
Diz o Diálogo
que não era a primeira vez que Céfalo vinha a Atenas.
Pelo que consta no introito, ele por
lá estivera uma outra ocasião quando ainda menino (paîs), ou seja, bem jovem, de modo que naquela
ocasião deve ter ido acompanhado ou de algum mestre ou de algum familiar.
Destacamos esse fato em razão de que o Diálogo
assegura que Céfalo, apesar de ainda menino (paîs), manteve
contado, naquela passagem por Atenas, com os referidos irmãos de Platão: Adimanto, Gláucon e Antífon. Aqui se impõe, evidentemente, a pergunta: e com
Platão, Céfalo não teve contato? Dado que Céfalo não era de modo algum estranho aos familiares de
Platão, por suposto, também haveria de ser conhecido do próprio Platão!
Quanto à primeira viagem de Céfalo
a Atenas em relação à segunda, ela vem expressa no Diálogo em termos de que “faz muito tempo”, mas, tudo indica que
não haveria de ser tanto tempo assim. Não deveria em vista de que Céfalo, uma vez em Atenas, e circulando pelo Mercado,
reconhece e é reconhecido pelos dois irmãos de Platão – por Adimanto
e Gláucon – que se encontravam lá no Mercado. Depois,
quando levado a Antífon, também imediatamente o
reconhece. Daí que, por esse reconhecimento,
fica logo evidenciado que o visage do menino Céfalo não mudara tanto assim, e permite, inclusive,
inferir que ele, na primeira viagem, não haveria de ser assim tão menino, mas
por certo um jovem adolescente com traços fisionômicos já bem definidos.
Em tudo isso há um fato inusitado, sobretudo, curioso,
que pede por algumas considerações. O fato é este: Céfalo
veio de Clazômenas com seus conterrâneos amantes da
Filosofia não para ouvir Platão, e sim para ouvir a versão de Antífon, ou seja, do irmão mais novo de Platão a respeito
do relato do encontro de Sócrates com Parmênides e Zenão na casa de Pitodoros.
Redunda igualmente inusitado o fato de que o diálogo o Parmênides não é, na verdade, um registro que corresponderia aos escritos de Zenão lidos na casa de Pitodoros, e sim um registo do debate memorizado por Antífon, irmão de Platão, a partir de Pitodoros,
e que, enfim, foi grafado por Platão como sendo um relato do próprio Céfalo que conta, de memória, o que ouviu de Antífon, a partir de Pitodoros. A
questão é: por que toda essa cênica, tendo em vista que Platão poderia
simplesmente ter grafado o diálogo ouvindo apenas o seu irmão, ou, até mesmo,
pedido para ele redigir (colocar por escrito) o que tinha guardado na memória!
Outro fato inusitado pode ser observado a partir da
seguinte assertiva presente no Parmênides:
“Estas palavras (assegura o Diálogo)
foram para nós dita por Antífon a partir de Pitodoros” (Prm. 136 e).
Ora, este para nós faz uma referência direta a Céfalo,
mas, mesmo assim, permite questionar: será que não se aplicaria indiretamente
também a Platão? É de supor que sim, porque, caso não se aplicasse, resultaria
então de todo inusitado o fato de que não foi diretamente de Antífon, ou seja, de seu irmão, que Platão concebeu o Pamênides, mas,
indiretamente, sob a mediação de um relato de Céfalo
de Cazômenas, que, enfim, veio até Atenas
primordialmente ciceronear seus
conterrâneos amantes da filosofia que queriam ouvir o, por suposto, afamado
relato da confabulação mantida na casa de Pitodoros.
Segue-se, consequentemente, e isto não deixa de ser igualmente
inusitado, que a versão escrita do Parmênides de Platão (versão do diálogo
mantido entre Sócrates, Zenão e Parmênides) veio a ser, digamos – no que
estamos formalmente de acordo com Proclo –, de
quarta “memória”. São, afinal, três transposições memorativas: de Pitodoros para Antífon, de Antífon para Céfalo e de Céfalo para Platão. O que, em última instância, se transpôs
não foi propriamente o conteúdo dos escritos de Zenão (grammáton),
mas sim o conteúdo da discussão coloquial da diálexis
entre Sócrates, Zenão e Parmênides realizada logo após a leitura feita por
Zenão “dos escritos” do próprio Zenão. O fato inusitado ainda é que o debate
não se estende aos escritos, e sim apenas a uma hipótese. “Terminada a leitura”
– eis o que consta na escrita do Diálogo
– Sócrates pediu a Zenão que relesse “a primeira hipótese do primeiro escrito –
tèn próten
hypóthesin toû prótou lógou”. Assim
que Zenão releu, Sócrates perguntou: “o que queres dizer com isso?” (Prm. 127e). Daí que foi às voltas da
“hipótese do primeiro escrito” que se desenrola todo o debate, do qual Antífon guarda em detalhes todo o suposto desenvolvimento
argumentativo da discussão.
1.2 – Sobre a estada de Parmênides e de Zenão em Atenas,
em geral, não se contesta e, portanto, é tida como verdadeira, ou seja, dá-se
crédito histórico ao relato de Platão. O que está posto em dúvida, por
imprecisão cronológica, é a presença de Sócrates nesta ocasião. O primeiro a
questionar essa presença, foi Ateneu de Náucratis, um
egípcio que viveu em Roma entre o final do século II e o início do III d.C. Foi ele, no Depnosofistas/Banquete
dos sábios, quem pressupôs ser “muito difícil admitir que o Sócrates de
Platão possa ter conversado com Parmênides, porque a sua juventude não o
permitia ter acesso ou mesmo compreender uma tão sofisticada linguagem”[6].
Eis o que consta no introito de Diálogo: “Parmênides já era bem idoso, de cabelos brancos (...) e
deveria ter uns sessenta e cinco anos. Zenão se aproximava dos quarenta.
Sócrates, naquela ocasião, era muito jovem (sphódra néon)” (Prm. 127a-c). Por
essas indicações podemos inferir algumas datas e tecer algumas considerações. O
dilema, a partir de Ateneu, veio a ser: se Parmênides tivesse a idade que
Platão diz ter, Sócrates, que nasceu por volta de 470 a.C.,
no demos de Alopece, ainda não teria nascido. Se
Sócrates estivesse de fato estado lá, então (isto é o que supomos), o encontro
haveria de ter ocorrido por volta de 453/54 a.C.,
ocasião em que Sócrates, que viveu entre 470-399 a.C., teria por volta de uns
17/18 anos. A data de sua morte, 399, é bastante segura. Platão, na Apologia, fez o seguinte registro, como
palavras de Sócrates: “pela primeira vez, com mais de setenta anos, compareço a
um Tribunal” (Ap. 17 d).
Mantendo-se, entretanto, a data de 530-460 a.C., em geral cifrada pela tradição como o período em que
viveu Parmênides, então Sócrates, quando Parmênides morreu, teria apenas nove
(9) anos, o que, de fato, daria sentido ao registro de Ateneu. Quer dizer: para
que o encontro possa de fato ter ocorrido em 453/454 (como cabe e é preciso
supor caso damos crédito ao que consta no Diálogo),
então é preciso manter-se fixo o período em que Sócrates viveu, mas não o de
Parmênides, que, para ter os 65 anos, teria que, de 530-460 a.C.,
ser modificado para 518-448 a.C. O que faz sentido: trata-se de uma data bem
plausível, visto que levaria Sócrates para os 17/18 anos, e Zenão, conforme diz
o Diálogo, teria por volta de 40
anos, o que colocaria seu nascimento entre 485-483 a.C., justamente dentro da
cifra que, em geral, registra a tradição. E mais: colocaria Zenão como um
coetâneo de Péricles (495-429 a.C.), o que também faz
sentido.
Platão, efetivamente, insiste neste encontro, do qual
faz referência tanto no Teeteto
quanto no Sofista. No Teeteto, ele põe
na boca de Sócrates as seguintes palavras referidas a Parmênides: “Tive a
oportunidade de vê-lo quando eu ainda era muito jovem (pánu néos) e ele já de idade avançada” (Tht. 183e). No Sofista, Platão põe
igualmente como fala de Sócrates a seguinte assertiva: vou “empregar o método
do interrogatório que, em dias distantes, se serviu o próprio Parmênides ao
desenvolver, já em idade avançada, e perante mim, ainda jovem (egò néos),
maravilhosos argumentos” (Sph. 217c).
A tirar pela época em que o encontro entre Parmênides,
Zenão e Sócrates se deu em Atenas, dois outros importantes personagens, mesmo
que não estejam explicitamente referidos no Diálogo,
também merecem consideração: Anaxágoras de Clazômenas
(500-428 a.C.) e Péricles (495-429 a.C.). O primeiro,
na ocasião do encontro, supondo-se que ele ocorrera por volta de 453/54 a. C.,
haveria de ter, pelas cifras que lhe são atribuídas, uns 47 anos; Péricles
teria por volta de uns 40/42, e, portanto, seria um coetâneo de Zenão. Há,
entretanto, relativo a Péricles, um testemunho de Plutarco, segundo o qual ele
“se fez auditor do eleata Zenão”[7].
Pelo teor do relato de Plutarco fica claro que Zenão esteve efetivamente em
Atenas, sem que isso permita afirmar que Péricles o ouviu naquela ocasião
referida pelo Diálogo. Pelo que consta
relativo a Parmênides, era a primeira vez que ele
vinha a Atenas. Zenão, entretanto, por lá estivera em outra
ou outras ocasiões. A esse respeito, no Primeiro Alcibíades, por exemplo, Platão assegura que Pitodoros e Cálias foram alunos
de Zenão. Diz que “foi com o auxílio de Zenão que os dois findaram por ser
sábios e ilustres, isso depois de cada um ter pago cem
minas de honorários” (Alc. 1. 119a). Com certeza houve entre Zenão, Pitodoros e Cálias uma convivência, que se deu, não em Eleia[8],
mas em Atenas, em cuja ocasião, certamente, também Péricles haveria de ter
frequentado o ensino de Zenão.
A figura que aqui mais importa destacar, mais que a
figura de Péricles, é a de Anaxágoras, visto que, afinal, é de Clazômenas, terra de Céfalo e de
seus companheiros. Anaxágoras – eis o que mais importa – é tido, senão como o
primeiro, ao menos o mais importante mentor, em Atenas, de uma Escola
filosófica erigida sob o sustento político e econômico do governo Péricles. Da
“escola” participaram Arquelau, mestre de Sócrates, e
o próprio Sócrates, mestre de Platão. Mesmo protegido por Péricles, o exílio de
Anaxágoras se deu por volta de 431, ocasião em que Sócrates haveria de ter uns
38 anos, e, sendo assim, estaria por volta de uns 21/22 anos distanciado do
suposto encontro com Zenão e Parmênides. Naquela ocasião – isto é bom lembrar –
Platão, que viveu entre os anos de 428-348 a.C., ainda
sequer tinha nascido. A mudança de Anaxágoras para Atenas, sob a proteção de
Péricles, e a vinda de Parmênides e de Zenão para Atenas compõem uma
contemporaneidade, visto que se deu mais ou menos na mesma época.
Se Parmênides e Zenão, entretanto, estiveram
efetivamente em Atenas, como assegura o Diálogo,
é de todo improvável que, inadvertidamente, Anaxágoras e Arquelau,
inclusive Péricles[9]
e outros, deixaram passar tão extraordinária oportunidade de ouvir um dos mais
louvados filósofos da Grécia: Parmênides, e, junto dele, Zenão. Anaxágoras, por
certo, estivera por lá, não há como deixá-lo de fora, ainda mais que, naquela momento, ele, e não Sócrates, era o filósofo mais
ilustre de Atenas. Sócrates era apenas um de seus discípulos e assíduo
frequentador de suas lições, bem como das de Arquelau.
A expressão – “Sócrates e alguns outros (Socrate kaì állous tivàs)” – com a qual
Platão se referiu aos que com Sócrates estiveram presente na casa de Pitodoros (Prm.
127c), por ser ambígua e aberta, permite pôr nela uns quantos personagens da
época, mas não, evidentemente, qualquer um.
Deixando essa pressuposição de fora, o que importa
destacar é o entrançamento dos personagens, que, por sua vez, representam
linhagens filosóficas implícita e explicitamente lembrados no
Introito do Diálogo.
Parmênides e Zenão representam a escola de Eleia, ou melhor, a linhagem eleática; Anaxágoras a linhagem Jônica, em particular a de
Mileto. Eis o que registrou o pseudo-Galiano na sua História da Filosofia apud Diels & Kranz: “Anaximandro preparou Anaxímenes que veio a ser o
mestre de Anaxágoras, que, enfim, trocou Mileto por Atenas, onde fez de Arquelau o primeiro ateniense iniciado na filosofia”[10].
Anaxágoras, portanto, mantinha um forte vínculo com a linhagem filosófica de
Mileto (cidade, aliás, da qual Péricles repatriou Aspásia, que, em Atenas, veio
ser uma eminente professora de Retórica, inclusive de Sócrates, de Alcibíades e
de Péricles do qual findou por ser a esposa). Além de representar a linhagem
Jônica, Anaxágoras representa igualmente, com a participação de Arquelau e do jovem Sócrates, o germinar do desenvolvimento
de uma tendência do filosofar imperante em Atenas. Cabe aqui, enfim, como
ilustração, o que escreveu, no Stromateîs, Clemente de Alexandria: “Depois de
Anaxímenes, veio Anáxagoras de Clazômenas
(...), que transpôs da Jônia para Atenas o ensinamento filosófico, e que teve
como sucessor Aquelau, do qual Sócrates foi discípulo”[11].
É, enfim, bem característico da obra platônica o
referido entrelaçamento de personagens e de linhagens filosóficas. Assim, por
exemplo, como Platão põe Sócrates, no Parmênides,
como um auditor dos escritos de Zenão (Zénonos grammáton), no Fédon, faz dele, também “ainda jovem”, um auditor dos escritos de
Anaxágoras. Lá no Fédon, sob estilo
igualmente aberto e impreciso, diz Platão que Sócrates “ouviu alguém ler um
livro que dizia ser de Anaxágoras” (Phd.
97b-d), de cuja leitura Sócrates supôs ter encontrado a explicação da causa
inteligível, ou seja, do um
explicativo de tudo o que existe. Daí que, a respeito da tematização filosófica
do “um”, Platão faz de Sócrates auditor não só dos escritos de Zenão (elaborados
tendo em vista defender a doutrina de Parmênides) como também dos escritos de
Anaxágoras.
É evidente, portanto, o enlaçamento (verdadeira estromateîs
platônica), e, com ele, a anábasis (a incursão) histórica promovida por Platão ao
interior do desenvolvimento histórico da Filosofia, em particular da filosofia
da phýsis,
que, historicamente, se desdobrou em filosofia do kósmos e filosofia da pólis. Tal
entrelaçamento e anábasis
se estendem por toda a obra platônica, e se constitui num método heurístico mediante o qual Platão, o
remodelador do éthos
grego, põe o seu filosofar na senda do passado, a fim de com ele fazer renascer
o presente ajustando-o em vista de novos horizontes abertos em busca do saber.
Ao modo da Fênix, a obra platônica tem em tudo por meta fazer renascer o
passado no presente, o velho, no novo, e assim regenerar o arcaico sob novos parâmetros de idealidade. O passado, entretanto, o
velho e o arcaico, que a obra platônica tende em tudo a regenerar diz respeito
não a uma arqueologia, e sim a uma teleologia construída sob a análise do
passado imerso no presente, cuja realidade, fecundada por idealidades do
passado, faz do hoje, ou seja, da realidade de agora, daquela que germina o amanhã, velha e arcaica. Daí igualmente porque a obra
platônica é tão realista quanto idealista e, além disso, aberta, conciliatória
e não dogmática.
1.3 – Zenão e Parmênides estavam “hospedados na casa de Pitodoros, para além dos muros, no Cerâmico”. Cerâmico era o nome da região, rica em
argila, que abrigava as olarias, as oficinas do artesanato, cujo nome findou
por se associar aos produtos e às artes, ditas de cerâmica, ali produzidas. O nome, entretanto, Cerâmico foi derivado, tal como consta em Pausânias,
do herói Ceramo, do qual se dizia ser filho de
Dioniso (o Baco dos latinos) e de Ariadne, esposa de Dioniso[12].
A região do Cerâmico, tal como consta em Tucídides, História da Guerra do Peloponeso (II, 34), se estendia em frente ao
grande Pórtico de entrada de Atenas, cortado por uma grande avenida que ia do
Pórtico ao Demos de Academos,
justo naquele em que Platão sediou a Academia. Margeando as laterais da grande
avenida, encontrava-se o mais importante cemitério de Atenas, no qual eram
enterrados os heróis de guerra e outros nobres. A avenida
do Cerâmico, em Atenas, veio a ser o protótipo, em Roma, da Via Appia, lugar em que os romanos, imitando os gregos,
passaram a enterrar seus nobres e seus heróis, cujos túmulos muitos deles ainda
hoje lá se encontram. Lá também, na Via Appia, assim
como no Cerâmico foram morar, em grandes mansões os ricos quer da antiga Roma
quer da antiga Atenas, e por uma razão bem simples: porque, estando ali
“descansando” os nobres e os heróis, era o lugar mais protegido e seguro que um
grego ou um romano poderia encontrar.
Foi para lá, para o Cerâmico, que “Sócrates e alguns outros” se dirigiram,
e com um objetivo bem preciso: “ouvir a leitura dos escritos (tôn grammáton)
de Zenão, que, pela primeira vez, eram apresentados em Atenas” (Prm. 127a-c). Da parte de Zenão, pelo que
consta no Diálogo, seu objetivo
consistia em combater por escrito os contraditores da principal tese de
Parmênides segundo a qual a hipótese do Um propicia bem menos consequências
absurdas que a do Múltiplo. A iniciativa desse embate público em favor de seu
mestre tinha também uma justificativa: os referidos escritos de Zenão foram
roubados, e isso ainda antes (segundo ele diz) de estarem filosoficamente
acurados, e que, bem por isso, acabaram promovendo grandes mal-entendidos. Daí
a razão pela qual Zenão, fazendo-se acompanhar de Parmênides, se deslocou até
Atenas, e o fez unindo o útil ao agradável, ou seja, justamente numa das
grandes Panateneias[13],
ocasião em que para lá se dirigiam intelectuais de todos os cantos, de modo que
se constituía no melhor momento e lugar para Zenão exercitar publicamente o seu
intento.
Os escritos a serem lidos eram, sim, de Zenão, mas
versavam sobre a doutrina de Parmênides. Eram escritos com uma finalidade bem
específica: fazer uma defesa apaixonada da doutrina do mestre. Tratava-se,
pois, de escritos de defesa, e,
consequentemente, de contestação, que, portanto, se constituíam num conjunto de
argumentos relativos ao tema do um.
Por ser, entretanto, de contestação, disso
se segue, que, na época, as teses de Parmênides produziram muita controvérsia,
sobretudo mal-entendidos, que não devem, com certeza, serem reputados somente a
Zenão e ao mal acabamento de seus escritos. Escritos,
como já foi assinalado, roubados antes de que o
próprio Zenão, como ele mesmo diz, “decidir se os tornaria público ou não”; e
tem mais: tratava-se de escritos que
foram elaborados (como também diz Zenão a Sócrates) movidos “por um amor
juvenil à controvérsia (hypò nèou philonikías), e não “por
um desejo amadurecido de prestígio” (Prm.
128d-e). São palavras que Platão põe na boca de Zenão dotadas de senso
explicitamente metodológico, em termos de, por exemplo, não desqualificar
diretamente a doutrina filosófica dos dois extraordinários mestres de Eleia, e,
claro, do consuetudinário filosófico grego.
Trata-se aqui – é o que supomos – de um método que nos remete, por exemplo, aos
exercícios dialéticos praticados pelos escolásticos na atividade acadêmica como
forma de se esquivar da subordinação à ortodoxia religiosa da época. A
estratégia funcionava assim: sempre que um professor, em função de suas
opiniões teológicas pouco ortodoxas, era chamado a prestar contas a uma
autoridade eclesiástica, sempre se desculpava dizendo que as sustentava sem a preocupação
de demonstrar se eram verdadeiras ou falsas, e sim apenas promover o exercício
escolar da disputa dialética (gratia exercitii, probabiliter o disputationis
causa[14]).
Lá em Zenão, na assertiva do diálogo, e, segundo palavras dele, “fiz por amor
juvenil à controvérsia”, soa aproximadamente nos mesmos termos, como se ele
quisesse preventivamente angariar de Sócrates benevolência crítica. Entretanto,
o mesmo Zenão não é assim tão benevolente com o próprio Sócrates, ao qual, sem
rodeios, acusa de não entender bem o sentido de sua obra:
Sim,
Sócrates, teria dito Zenão, tu não entendeste o verdadeiro sentido da minha
obra... O meu intento é defender a tese de Parmênides contra os que pretendem
ridicularizá-lo. É um escrito de combate (...), com a intenção manifesta de
mostrar como decorrem consequências muito mais absurdas da hipótese do
Múltiplo, por eles defendida, que da hipótese do Um... (Prm.
128c-d).
Aqui está o cerne da questão. Mas, ainda quanto ao
arranjo cênico do Prólogo do Diálogo, cabe antes considerar que, assim que
Zenão procedeu à leitura de seus escritos, consta que, nesse momento, ali
estiveram presentes apenas “Sócrates e alguns outros” de sua companhia. Quer
dizer: naquele justo momento, tendo em vista o fato de ter Zenão e Parmênides vindo
de tão longe, com tantos intelectuais presentes na Panateneia,
o público parece bastante minguado, restrito. No momento da leitura, Parmênides
e Pitodoros estavam casualmente fora do
recinto. Ambos retornaram “quase no fim”, quando Pitodoros,
o anfitrião, “entrou acompanhado de Parmênides e daquele Aristóteles que mais
tarde veio a ser um dos trinta” (Prm.
127 d)[15].
“Mais tarde” significa no ano de 404 a.C., logo após a
guerra do Peloponeso[16],
em que Atenas se submeteu (mesmo que por curta duração, apenas um ano) a uma
cruel tirania de magistrados, quase todos conhecidos e muitos deles parentes,
caso de Cármides e Crítias,
o primeiro tio, o outro primo em segundo grau de Platão[17].
Assim que Pitodoros e
Parmênides, acompanhados do referido Aristóteles, retornaram, o Diálogo apresenta, em vista da ausência
e atraso, apresenta a seguinte justificativa: “Pitodoros
ouvira antes, do próprio Zenão” (Prm. 127d)! Daí que é de se supor que, naquela ocasião, Zenão leu
(apresentou publicamente) seus escritos mais de uma vez. Por certo não leu só
para Pitodoros, e sim para um outro
público. O fato é que – tal como relata Antífon –
terminada a leitura, Sócrates pede a Zenão que releia “a primeira hipótese do
primeiro argumento”, e, em cima desta hipótese, que começa o debate, a diálexis entre Sócrates, Zenão e Parmênides.
Não podemos aqui deixar de realçar que o Introito do Diálogo destaca dois eventos entre si
bem distintos: um, o encontro de Zenão e Parmênides com Sócrates e os de sua
companhia (ocorrido, como pressupomos, por volta de 453/54 a.C.);
outro, bem mais tarde, o encontro de Céfalo e seus
acompanhantes, primeiro, com os dois irmãos de Platão no Mercado, depois com Antífon, na casa de Antífon, onde
foram especificamente para ouvir do mesmo Antífon o
relato do relato de Pitodoros sobre o debate (a diálexis)
construído a partir da releitura da “primeira hipótese do primeiro argumento”
que Sócrates pediu a Zenão que relesse.
São, com efeito, dois eventos distintos. Entretanto, o
Diálogo em si mesmo, ou seja, aquele
grafado por Platão, se constitui ele próprio num
terceiro evento: 1º) Zenão leu seus escritos para “Sócrates e alguns outros”,
e, assim que terminou, começou o debate; 2º) Céfalo e
seus compatriotas, assim que chegam na casa de Antífon,
se cumprimentaram e logo pediram que relatasse as conversações. Antífon, a princípio relutou, seria muito cansativo, mas,
sem demora, fez, de memória, uma longa exposição; 3º)
a grafia do relato das conversações, feita por Platão, e que se inicia
exatamente assim: “Antífon disse que Pitodoro disse...”.
São, portanto, vários registros: 1º) o registro
memorativo de Pitodoros; 2º) o registro de Antífon guardado na memória “depois de repetidas vezes ouvir o relato de Pitodoros”; 3º)
a audição (o registro memorativo) de Céfalo a partir
da exposição memorativa de Antífon; 4º) o registro
gráfico (por escrito) de Platão, cuja grafia – isso é muito importante de ser
realçado – é apresentada como sendo feita (fruto) a partir de um relato de Céfalo. É assim, afinal, que Platão dá início ao todo do Diálogo, como sendo uma fala de Céfalo: “Estando em Atenas, vindos de Clazômenas,
onde residimos, encontramos na Ágora Adimanto e Gláucon” (Prm.
126a).
Aqui até poderíamos dizer que o diálogo, o Parmênides, grafado por Platão é fruto
de pura oralidade, mas isso pode não ser plenamente verdadeiro. Dá-se que não
podemos de modo algum desconsiderar os escritos de Zenão. Afinal, quando ele
esteve na casa de Pitodoros levou consigo cópia de tais
escritos, que, além de ler, deve tê-los difundido, propagado em manuscritos –
hábito bastante comum entre os intelectuais gregos. Por suposto não eram os
escritos que foram roubados, ou seja, aqueles que foram
elaborados, como o próprio Zenão disse, movido “por amor juvenil à
controvérsia”, e sim textos reescritos,
amadurecidos, ou seja, aptos para serem intencional e livremente dados a
público, e, consequentemente, angariar ou não prestígio.
Quer dizer: mesmo que o diálogo sob o registro da
grafia platônica acentua a oralidade e a transmissão mnemônica, de modo algum
dá para excluir o acesso de Platão aos referidos escritos, que, pelo que consta, se
constituíam num rol de argumentos. No entanto, como já referido, o diálogo o Parmênides não se ocupou em reproduzir
os escritos, ou seja, o conjunto do
livro de Zenão, e sim o debate que se concentrou na “primeira hipótese do
primeiro escrito ou argumento”. Há, até diríamos, um agravante no sentido de
que a “hipótese do primeiro argumento” não é reproduzida com palavras de Zenão,
e sim de Sócrates, concebidas a partir de Zenão.
Estas são as palavras (na tradução de Carlos Alberto
Nunes):
Que
queres dizer com isto, Zenão? Se os seres são múltiplos, por força terão de
mostrar, a um só tempo, semelhanças e dissemelhanças,
o que não é possível. Nem o semelhante pode ser dissemelhante, nem o
dissemelhante semelhante. Declaraste isso mesmo, ou fui eu que não compreendi
direito? Isso mesmo, respondeu Zenão (Prm.
127e)[18].
Aqui começa o dificultoso imbróglio da discussão a
respeito do um e do múltiplo: um tão entranhado debate que mereceu dos próprios
personagens alguns comentários. Zenão, por exemplo, dirigindo-se a Sócrates
aconselha-o a agir “ao modo dos cães farejadores de Esparta” caso quisesse
efetivamente “descobrir e trilhar a pista do discurso” a respeito do um e do
múltiplo com o qual estavam se ocupando (Prm.
128c). O próprio Parmênides, na medida em que se dispõe a entrar no debate,
compara a si próprio com “o cavalo de Íbico”, que,
outrora, fora um grande campeão de corridas, e que, agora, não tinha tanto
fôlego para se lançar a “um jogo tão cansativo” (Prm.
137b). A tirar, portanto, pela força das expressões proferidas por filósofos
tão celebrados, tal como Parmênides, Zenão e Sócrates, isso mostra o quanto o
tema do um e do múltiplo era
desafiador, e, sobretudo, o quanto intrigava a mente dos filósofos
tradicionais.
Entra aqui ainda uma outra
questão: a de que o diálogo o Parmênides
não se restringe ao status quo do
debate restrito à época em que supostamente se deu a leitura feita por Zenão
seguida da discussão entre Zenão, Sócrates e Parmênides na casa de Pitodoros. O diálogo comporta um status quaestionis que ultrapassa Zenão e Parmênides, e que,
portanto, vai além dos postulados restritos aos eleatas,
visto que tende a englobar o debate “atual” da Academia, ou seja, pertinente ao
momento ou momentos em que o tema entrou na pauta da discussão e findou,
através de Platão, por ser redigido.
Daí a razão pela qual, como já visto, o diálogo
comporta um introito que ultrapassa, ou seja, vai igualmente além dos termos da
questão teórica com a qual o diálogo se move. Ele é bem mais que um simples prólogo. Dá-se que, mais do que conter
um logos introdutório atinente à
tratativa do diálogo, ele põe em prática o método da anábasis (da incursão) ao
interior do desenvolvimento histórico da Filosofia mediante o qual dá ênfase à
extensão e ao percurso histórico da tratativa. Sob a referência de duas póleis – de Clazômenas e
de Eleia – o diálogo põe em evidência o esplendor de duas grandes regiões, a da
Magna Grécia e a da Jônia, e, com elas, a amplitude do kósmos histórico do filosofar que
acaba, enfim, por se concentrar e tomar novo alento na Ática, em Atenas.
A Magna Grécia, no contraposto da Jônia, representava,
numa perspectiva grega, o Mundo Novo. Foi no mundo novo, portanto, que a
Filosofia encontrou uma extraordinária prosperidade. Mas agora, era no velho
mundo de Atenas, que ela vinha a renascer sob um novo alento, e justo a partir
de um jônico: de Anaxágoras de Clazômena. Ambas, a
Magna Grécia e a Jônia, foram centros extraordinários sob
vários aspectos: geográfico, geopolítico, administrativo, econômico e
cultural. Dentro do contexto da Magna Grécia, Eleia, se comparada, por exemplo,
a Crotona e a Taranto, cidades nas quais a Escola (a linhagem)
Pitagórica prosperou, foi na verdade uma pólis bem restrita e modesta. O
mesmo não se pode dizer de Clazômenas, que,
entretanto, não comportava o mesmo esplendor de Mileto.
Em Eleia prosperaram três nomes – Xenófanes,
Parmênides e Zenão – que fizeram história no contexto da cultura e da filosofia
grega. Com eles, Eleia se projetou como um dos mais importantes centros
irradiadores de saber por toda a Grécia, com extraordinária influência em toda
a Filosofia posterior. Eles fomentaram, inclusive, uma linhagem filosófica – um
génos ex Eléas, na expressão de Platão (Sph.
216a) –, que igualmente se projetou como um plus
perante os pitagóricos, e findou, inclusive, por contribuir, através de Filolau de Crotona e de Arquitas de Taranto para uma profunda renovação interna do
próprio pitagorismo. O curioso é que na base da
linhagem eleática está um jônico, Xenófanes
de Cólofon, e, na dos pitagóricos, um
outro jônico, Pitágoras de Samos.
Platão, ainda jovem, circulou por aquela região: por
Taranto e por Crotona. Diz a
tradição que “Filolau de Crotona
é o autor dos escritos pitagóricos”, que Platão “pediu, numa carta a Dion, que
lhe comprasse”. Diz ainda que foi a partir desses escritos que ele “escreveu o Timeu”[19].
No Sofista, referindo-se ao filósofo Parmênides, Platão o denominou,
respeitosamente, de “nosso pai – tòn tou patrós” (Sph. 241d): nosso,
por ser não só dele, mas também de Sócrates e de toda a filosofia pós
Parmênides, na qual, inclusive, se inclui Aristóteles. Platão, pelo que consta,
esteve também em Megara, cidade de Euclides, daquele
que se ocupou em arranjar uma linhagem filosófica casando proposições de
Parmênides com as de Sócrates.
Eis o relato:
Aos
vinte e oito anos, segundo Hermodoro, Platão
retirou-se para Megara com outros discípulos de
Sócrates, indo juntar-se a Euclides. Em seguida, prosseguiu para Cirene, ao encontro do matemático Teodoro, e de lá foi para
a Itália onde se encontrou com os pitagóricos Filolau
e Euritos; da Itália viajou para o Egito em visita
aos profetas...[20]
Há um círculo que se fecha no contorno das duas
referidas grandes regiões – da Jônia e da Magna Grécia – resultando que a
Filosofia grega partiu da periferia para centro, e não o contrário. Da Jônia, a
principal pólis era Mileto na qual floresceu a
tríade de filósofos (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) que vieram a ser os primeiros mestres da Filosofia e da Ciência grega.
Nas proximidades, um pouco acima, temos a ilha de Samos,
na qual floresceram Pitágoras e Melisso, e mais tarde
Epicuro. Logo na sequência geográfica vem Éfeso,
terra de Heráclito, com a qual a filosofia de Parmênides, apesar das distâncias
e das diferenças, mantém grandes ligações. Acima de Éfeso, vem Cólofon, terra de Xenófanes, um
dos fundadores de Eleia e mestre de Parmênides. Um pouco mais acima vem Clazômenas, terra de Anaxágoras (primeiro mestre de
Atenas), de onde partiu Céfalo com seus companheiros
em busca de Anfífon, a fim de ouvir o relato das
teses filosóficas dos eleatas.
O velho e o novo se confluem. Trata-se, aliás, de uma
confluência (em termos de uma dialética) que veio a se constituir numa
caraterística bem própria da dialógica platônica. Trata-se, pois, de uma
dialética bem ao estilo platônico, mediante a qual o passado e o presente são
concebidos imersos um no outro em que o passado dentro do presente se move numa
perspectiva de um continuo renascimento em vista de um futuro sempre melhor (do
béltistos).
É sob esse viés histórico, inerente ao qual Platão conflita a realidade e a
idealidade, que a sua dialógica comporta, enquanto método, uma
permanente anábasis[21],
ou seja, um retorno continuo para dentro dos caminhos (do território) da
própria Cultura grega, cuja imersão (no sentido de um voltar-se para dentro de
si efetivado no presente) haveria de continuamente fazer ressurgir, sob o signo
de uma constante revisão, o passado, sob novos parâmetros de melhoria presente.
Daí que o próprio introito do Diálogo
comporta essa anábasis
visto que, de um lado, se reporta a um Parmênides “bem idoso”, de outro, a um
Zenão de “meia idade”, e enfim, a um Sócrates “bem jovem”. O
inusitado dessa dialética do “bem idoso” e do ‘bem jovem” está no fato
de ela ser concebida por um Platão (quando grafa o Diálogo) supostamente de “meia idade”, já instalado na maturidade,
ou seja, ele próprio numa fase de revisão da própria vida e da própria obra
filosófica.
Aqui não dá, enfim, para olvidar que o Sócrates “bem
jovem” do Diálogo, ao mesmo tempo em
que representa o jovem Sócrates histórico, coincide com o jovem Sócrates
enquanto metáfora do projeto filosófico de Platão, que, disponibilizado para os
gregos, se vê na iminência de ser tragado pelos ideias
unificadores da Macedônia. Dá-se que,
por volta de 350 (Platão morre em 348), a força do poder do Império macedônico
já se manifestava explicitamente por toda a Grécia. Daí a necessidade de
igualmente concebermos toda a aporia com a qual se debate o Diálogo entre semelhantes (hómoiá)
e dissemelhantes (anómoia), o paradoxo entre o um e o múltiplo, dentro de uma dialógica que finda por resultar num
retrato iminente do futuro da própria Cultura grega, e, consequentemente, do devir da própria Grécia: daquela que,
nos termos de uma geo-metria
relativa à sua própria identidade, concebida como um todo múltiplo, é pensada como diferente dela mesma enquanto um todo único.
Dá-se que, primeiro, não havia, e não houve
efetivamente, naquela ocasião, ou seja, quando o todo grego começou a ser submetido aos ideais
helênicos unificadores da Macedônia, um logos que estava, ou estivesse, em condições de mesurar uma
identidade relativa ao ser grego; segundo, e em definitivo, a Grécia real, de
múltiplas identidades, cada pólis com sua politeía, de modo algum se conformava com os parâmetros de
uma Grécia ideal submetida a uma única identidade fechada, dogmática, dentro
dos ideais unificadores da Macedônia.
Tendo a filosofia platônica como característica
fundamental – que, aliás, é uma característica da própria Filosofia – a
racionalidade aberta, a perspectiva iminente de uma racionalidade fechada
(dogmática) se impunha como antídoto e morte quer do filosofar platônico quer
da própria Filosofia. Daí que o diálogo o Parmênides
vem a ser o prenúncio – e nisto está toda a sua complexidade – de que o um não poderia jamais asfixiar (matar) o
múltiplo, uma vez que é dele que ele retira a sua própria subsistência, sua
força e sua vida. O um que suprimisse
a multiplicidade asfixiaria a si mesmo, e, sendo assim, ele só teria uma saída:
acoplar-se à pluralidade de modo a continuamente se deixar envolver por ela, a
fim de retirar dela o seu vir a ser e sua existência, numa dialética tal em
que, da pluralidade, o um vem a ser,
enfim, a causa. Dá-se que há – em termos de que deve haver – uma profunda reciprocidade entre o um e o múltiplo,
sem a qual ambos perecem: o um sem a
fertilização da pluralidade resulta tirânico, e, a pluralidade, sem a
fertilização (feito um princípio de movimento) do um, se decompõe enquanto unidade. Trata-se de um movimento de
geração mediante o qual o um e o múltiplo estão destinados a proporcionar
reciprocamente uma unidade de mistura de contrários, sem o que, sob todos os
aspectos, quer da vida do Cosmos, quer da vida animal, quer da vida humana, não
há geração.
2. Possibilidades
de leitura e de interpretação do Parmênides
Não dá para deixar de lado, mesmo que sob uma reflexão
ligeira, o introito da intrincada discussão relatada por Platão no Parmênides a respeito do um e do múltiplo.
Tomemos como ponto de partida desta breve reflexão a “hipótese do primeiro escrito” reproduzida, ou melhor, enunciada, no
prólogo do debate, com palavras de Sócrates, nos termos supracitados e conforme
as traduções, de Carlos Alberto e de Maura e Fernando:
a)
De Carlos Alberto:
Que
queres dizer com isto, Zenão? Se os seres são múltiplos, por força terão de
mostrar, a um só tempo, semelhanças e dissemelhanças
(sic), o que não é possível. Nem o semelhante pode ser dissemelhante, nem o
dissemelhante semelhante. Declaraste isso mesmo, ou fui eu que não compreendi
direito? Isso mesmo, respondeu Zenão (Prm.
127e);
b)
De M. Iglésias e de F.Rodrigues:
Que
queres dizer com isso, Zenão? Que, se os seres são múltiplos, então é preciso
que eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes (sic), mas que isso é
impossível, pois nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as
semelhantes, dessemelhantes? Não é isso que queres dizer? É isso mesmo disse
Zenão (Prm. 127e).
Comparando uma tradução com a outra é possível fazer
as seguintes observações:
1ª) Ambas, a de Carlos Alberto e a de Maura e Fernando
verteram em português a assertiva grega “ei
pollá esti tà ónta” por “se os seres são múltiplos” de modo que
optaram por traduzir pollá
por múltiplos, concebendo-a sob a
forma de um adjetivo derivado de polýs e não de um advérbio no sentido de muitos. “Ei” é uma conjunção condicional que comporta o sentido de “se” ou
“no caso de”, de modo que “ei pollá” expressa uma hipótese, que, entretanto, comporta
uma consequência inevitável: “se os seres são múltiplos”, então,
necessariamente etc. Ambos também verteram tà ónta por os seres, se bem que as duas traduções tendem, em outras
assertivas, a substituir “os seres” por “as coisas”, como nesta, por exemplo,
de Maura e Fernando: “se é impossível as coisas
dessemelhantes serem semelhantes (...) é impossível haver coisas múltiplas”. Tà ónta merece
ainda uma observação: foi a partir dos escolásticos que tà ónta veio a ser latinizado por entia (“os entes”
ou “os existentes”) e o tò ón por ens, em
decorrência, sobretudo, das traduções tardias da Metafísica de Aristóteles, na qual ele deu ao tò ón (ao conceito dito pelos escolásticos
de ente) uma significação bem mais
abrangente que o tò ón de Platão.
2ª) Na sequência da assertiva, “Se os seres são múltiplos
– ei pollá esti tà ónta”,
vem a seguinte proposição, “hos ára deî autá
hómoia te eínai kaì anómoia”, traduzidas sob
perspectivas que permitem distintas interpretações: a) a de Carlos Alberto: “Se
os seres são múltiplos, por força deverão mostrar, a um só tempo, semelhanças e
dissemelhanças...”; b) a de Maura e Fernando: “Que, se os seres são múltiplos,
então é preciso que eles sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes...”.
Confrontando as duas versões o diferencial recai quanto aos predicados da semelhança e da dissemelhança. Do seguinte modo: a) a de Carlos Alberto assevera
que “Se os seres são múltiplos, por força deverão (deî = é forçoso, necessário)
mostrar (eínai),
a um só tempo” as semelhanças (ou seja, o que tem em comum, igual, concordante) e as dissemelhanças (o que não tem em
comum, diferente, discordante); b) a de Maura e Fernando “Que, se os seres são
múltiplos, então é preciso (deî = é necessário) que eles sejam (eínai) tanto semelhantes quanto
dessemelhantes”. Comparativamente, a versão de Carlos Alberto assevera que “se
os seres são múltiplos”, então deverão necessariamente mostrar, a um só tempo,
ou seja, de uma só vez, simultaneamente, semelhanças e dissemelhanças; a de
Maura e Fernando, que, “se os seres são múltiplos”, então eles deverão ser tanto quanto, ou seja, supomos que
em proporções idênticas (?), o ser semelhante e o ser dissemelhante;
3ª) A duas traduções, mesmo que plausíveis, leram eínai (presente
infinitivo de eimí
= ser) de modo distinto. A de Carlos
Alberto Nunes priorizou (no que concerne à chamada ontologia grega[22])
a perspectiva empírica mediante a qual eînai (= ser) diz respeito àquilo que se mostra, ou seja, que se põe perante nosso campo de
observação empírica em consonância com os vários modos (temos cinco modos)
sensíveis com os quais “tateamos” o que nos cerca (tateamos visto que carecemos da alfabetização e da nomeação para
começar a falar algo a respeito do que percebemos pelos sentidos). A de Maura e
Fernando priorizou a perspectiva intelectiva mediante a qual, dentro da suposta
ontologia grega, eînai
verbaliza (para não dizer predica,
visto que teríamos que sobrepor à Platão uma mentalidade aristotélica) o ser no sentido de aquilo que é, daquilo, ou seja, de um algo abordado somente através do logos intelectivo, que em si (referido como ser) contém ou preserva;
4ª) Em ambas as traduções segue a negativa condizente com
o texto grego (toûto dè dè adýnaton). Na de
Carlos Alberto Nunes, nestes termos: “Se os seres são múltiplos, por força
terão de mostrar, a um só tempo, semelhanças e dissemelhanças, o que não é possível”; e assim na de Maura
e Fernando: “Que, se os seres são múltiplos, então é preciso que eles sejam
tanto semelhantes quanto dessemelhantes, mas
que isso é impossível”[23].
Nas duas assertivas, cuja dificuldade não diz respeito à tradução, mas ao
texto, a negativa não está claramente direcionada a um sujeito, de modo que
permite a seguinte questão: é impossível exatamente o quê? Que os seres ou as coisas (tà ónta) poderão
(conforme a tradução de Carlos Alberto) “mostrar, a um só tempo, as semelhanças e as dissemelhanças”? Ou que
(conforme Maura e Fernando) é impossível que os seres ou as
coisas sejam tanto semelhantes
quanto dissemelhantes”? Sendo assim,
então é permitido inferir que os seres
poderão mostrar semelhanças e
dissemelhanças, mas não a um só tempo,
e sim em tempos diferentes?! Ou ainda, que é impossível ser tanto semelhantes quanto dissemelhantes, sendo possível
ser apenas semelhantes e dissemelhantes – sem que, na proposição, entretanto,
se saiba exatamente o que significa este tanto
quanto: seria tanto quanto no
sentido de proporção, ou de quantidade, ou de qualidade, ou de intensidade ou
de dosagem etc.?
5ª) Sem a sequência da explanação de Sócrates, feita no
intuito de entender o argumento de Zenão, a primeira assertiva restaria
indecifrável, justo porque os predicados – semelhantes
e dissemelhantes – não estão
claramente direcionados a um sujeito: se plural (tà ónta) ou se singular (tò ón), mesmo
que, efetivamente, o sujeito da assertiva seja plural. Quer dizer: o sujeito da
frase são os seres (tà ónta = as coisas), mas os atributos relativos
ao que é semelhante e ao que é dissemelhante, pelo que consta na sequência, se
aplicam não aos seres ou às coisas em geral, e sim ao ser ou à coisa em
particular. Ocorre que os seres, de um ponto de vista empírico e singularmente
considerados, ou seja, imersos em nosso campo de observação, efetivamente para
nós se mostram entre si semelhantes (iguais ou concordantes ou análogos) e
dissemelhantes (desiguais ou discordantes ou díspares) de modo que é pelo
sensível que os concebemos como múltiplos. O mesmo, entretanto, não se aplica
ao escrutínio do intelecto, que, do ponto de vista dito “ontológico”, não opera
com o múltiplo (com o tà ónta plural),
e sim com o um (com o tò ón singular,
com o que está sendo, tò eón[24])
no qual o semelhante e o dissemelhante pode (ou se deixa) ser intelectivamente
considerado. Mas, enfim, em dependência dos termos com os quais Sócrates
enuncia a tese de Zenão, o que importa aqui destacar é que o escrutínio (o
exame minucioso) intelectivo das coisas existentes, não se atém ou se restringe
aos parâmetros do sensível mediante o qual o ser pode, simultaneamente, se
apresentar como sendo assim
(semelhante) ou não sendo assim
(dissemelhante). O intelecto humano pode, sim, considerar o ser como sendo de
tal modo (como sendo assim) ou então considerar o ser como não-sendo
de tal modo (como não-sendo assim), porém em momentos diferentes, e não ao modo
enganoso dos sentidos em que o ser (ou algo) se deixa considerar (por força de
suas qualidades sensíveis, muitas vezes discordantes ou até mesmo
contraditórias entre si, por exemplo, pequeno e grande, duro e mole etc.) como
sendo múltiplo e em movimento;
6ª) A aporia do argumento de Zenão parece se construir
(do ponto de vista de Sócrates) da seguinte maneira: se as coisas, em sentido
plural, são múltiplas, então essas mesmas coisas, em sentido singular, devem, a um só tempo, ou seja, simultaneamente,
ser semelhantes e dissemelhantes, o que é impossível. É impossível em razão de
que o ser semelhante e o ser dissemelhante, do ponto de vista de Zenão, se
excluem, de modo que o que é semelhante, enquanto é semelhante, não pode ser
dissemelhante, nem o dissemelhante semelhante. As coisas, singularmente
consideradas, não podem, a um só tempo,
ser de tal modo e não-ser de tal modo: ser assim ou
não-ser assim, ser e não-ser. Daí, portanto, o pressuposto de Parmênides: se
algo é, então podemos percebê-lo com os sentidos, e, se o percebemos podemos
pensá-lo, ou seja, exercitar sobre ele o logos
humano com o qual conjugamos o pensar e o dizer, a intelecção e a nomeação; e
mais: se algo não é, então, e evidentemente, não podemos sensitivamente
percebê-lo, de modo que não se submete ao pensamento e “tampouco à palavra – oúte phrasais”[25],
restando, enfim, imperscrutável, ou seja, impensável e inominável, e, enfim,
incognoscível;
7ª) Resultam, entretanto, duas coisas necessárias de
serem evidenciadas e que implicam numa terceira: uma, a que diz respeito ao
atributo da semelhança pressuposto como um princípio de identidade que predica
o ser por sobre o aparecer; outra, a que diz respeito ao atributo da
dissemelhança tomado como contraposto da semelhança e que, enfim, põe
intelectivamente em evidência um princípio de diferença, de não-similitude, que
predica o não-ser; daí uma terceira, a de que o pressuposto como idêntico, no
contraposto do não-idêntico, leva necessariamente a uma constatação (empírica e
intelectivamente considerada) segundo a qual o ser assim relativo ao não-ser
assim é dada ao escrutínio do intelecto nos seguintes termos: do ser assim
como ser de um certo modo, e, do
não-ser assim, como um não-ser, mas não em sentido absoluto, e sim, em termos
positivos, não mais negativo) como um ser
de um outro modo.
A título de explanação tomemos o seguinte exemplo: o
Sócrates guerreiro e o Sócrates filósofo são e não-são,
a rigor, o mesmo Sócrates. Dá-se que o Sócrates enquanto guerreiro, ou seja,
guerreando, é e não-é o mesmo Sócrates enquanto
filósofo, ou seja, filosofando. Nesse caso, a semelhança e a dissemelhança se
dão nos seguintes termos: o Sócrates guerreando participa da semelhança do
Sócrates filosofando ou vice-versa. Entretanto, são dois Sócrates diferentes,
que (isto na medida em que, por força da dissemelhança do estar sendo assim e não de outro modo) resultam em ser assim (no sentido de ser de tal
modo) e em não-ser assim (no não-ser de tal modo) relativo
a Sócrates. O próprio Sócrates, enfim, que é em si mesmo um, aparenta em si
mesmo múltiplo. Donde resulta que o semelhante não pode ser dissemelhante e o
dissemelhante semelhante, mas sob a seguinte advertência (aliás, aquela que foi
feita por Sócrates ao argumento de Zenão), qual seja,
a de que o semelhante não pode ser dissemelhante enquanto é semelhante, porque esse mesmo semelhante enquanto é dissemelhante relativo ao ser
semelhante é dissemelhante.
Aliás, quando dizemos, por exemplo, João é semelhante
a Pedro, por esse dizer afirmamos que João é, de certo modo, dissemelhante a si
mesmo na medida em que é semelhante a Pedro, que, por sua vez, é, de certo
modo, dissemelhante a si mesmo. Temos aqui, em um só ser (como já referido), o
ser semelhante enquanto princípio de identidade e o ser dissemelhante, enquanto
princípio de diferença; temos igualmente (também como já referido) o não-ser assim como um ser de outro modo. Em conclusão: dizer
que as coisas ou seres não podem ser semelhantes e dissemelhantes resulta no
mesmo que afirmar que não existem o uno e o múltiplo. A esse respeito não deixa
de ser uma ironia de Sócrates, sobreposta ao argumento de Zenão, a consideração
feita por ele, ainda no introito, a respeito do conjunto dos argumentos dos quais Zenão se valeu para demonstrar que o múltiplo não
existe. Pergunta Sócrates: “Não estás convencido de que cada um dos teus
argumentos demonstra isso mesmo, e que, no teu modo de pensar, os argumentos
por ti apresentados são outras tantas provas de que o múltiplo não existe?” (Prm.
127e – 128a, tradução de Carlos Alberto Nunes). Moral do dilema: “cada
um dos argumentos – hécaston tôn lógon” – de Zenão formam um múltiplo de argumentos com os quais ele quer provar, enfim, que o múltiplo não existe.
Por fim, parafraseando aqui Aristóteles [naquele
adagio, que se tornou clássico, segundo o qual “uma só andorinha não faz verão,
tampouco um dia de sol” (Ética a Nicômaco I, 7, 1098 a 16)], parece muito acertado dizer
que um só argumento não faz a ciência, visto que, por “sua natureza”, ela não é
monológica. Foi, aliás, por sobre o conceito da dialogia e não da monologia, dentro de uma mentalidade dual pitagórica, que
Platão concebeu a tarefa da Filosofia e da Ciência. Ele persegue, em última
instância, o ideal heraclitiano segundo o qual as
semelhanças geram concórdia, as diferenças, discórdia, ou a guerra, ou tantas
coisas mais: a começar pela intolerância e pelo preconceito, seguida pela
reprovação recíproca perante o não-igual, e, com ela, o império intransponível da
discórdia, da antipatia, do desprezo, da discriminação e da segregação. Só a
lei, amparada sob princípios de bondade e de justiça,
harmoniza as diferenças, humaniza e dá cidadania, caso contrário, o diferente
resta excluído, destituído de valores e de direitos.
Pode aparentar estranho, mas esta é a lógica, que,
enfim, a partir do “tudo é um”, imperou na mentalidade filosófica grega: nós
(humanos) somos semelhantes porque somos dissemelhantes, e vice-versa, somos
dissemelhantes, porque somos semelhantes. Se fôssemos todos apenas semelhantes
então seríamos todos iguais, a ponto
de entre nós, quer de um ponto de vista sensível quer inteligível, haver apenas
uma única identidade de forma ou gênero humano, resultando que, antes de um
múltiplo humano, comporíamos apenas um todo
único, monolítico, destituído de diferenças ou de uma “pluralidade de
formas” (Sph. 220a; 221e). Se, ao contrário, fossemos todos apenas dissemelhantes
então seríamos todos totalmente desiguais ou
diferentes, a ponto de entre nós, quer do ponto de vista do sensível quer do
inteligível, ser totalmente impossível constituir um análogon relativo a uma
identidade inferida nas semelhanças, resultando, enfim, que, sem semelhanças,
comporíamos uma multiplicidade de entidades solitárias, isoladas e
incognoscíveis, sem qualquer possibilidade de se conceber (existir), entre
elas, uma unidade.
Foi assim, de um ponto de vista epistêmico, que findou
em Aristóteles a convicção segundo a qual a ciência se faz por amostra: a
partir de um número “x” de coisas ou de fenômenos observados, exprime-se, por
analogia dos casos semelhantes, um
juízo universal[26].
De um ponto de vista “político” a questão remonta a Heráclito, segundo o qual
as semelhanças unem enquanto que as dissemelhanças promovem a discórdia e a
guerra[27].
Daí a necessidade da lei no que diz respeito, sobretudo, às dissemelhanças.
Dá-se que as semelhanças, na medida em que espontaneamente unem,
em que promovem (como diz Empédocles) o amor,
então, por si só dispensam a severidade “unificadora” da lei, enquanto que as
dissemelhanças, que tendem a separar e a segregar, isto é, a promover o ódio, a requisitam.
Em ambos os casos, enfim, quer de um ponto de vista
epistêmico quer político é do pluralismo e não do monismo que imerge o um enquanto possibilidade da condição
necessária quer do conhecimento ou ciência quer da harmonia ou do ordenamento
da vida cívica. Visto que a justiça nasce da discórdia e que se realiza na
concórdia, ou, dito de outro modo: visto que a justiça tem sua origem no
conflito e seu fim na harmonia ou na paz, finda, então, que quanto maior, na
vida cívica, a abrangência do múltiplo, maior igualmente a possibilidade do que
hoje denominamos de Democracia. Dá-se que, assim como “os semelhantes (no dizer
de Empédocles) nutrem os semelhantes”[28],
do mesmo modo os dissemelhantes, à medida que os semelhantes entre si se
nutrem, ficam segregados ao desamparo caso não se promova, em nome do que é
bom, belo e justo, a lei enquanto princípio universal de contenção, mas também,
e, sobretudo, de união, de amor e de sabedoria entre os homens.
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[1] Não é o Céfalo de Siracusa, pai de Lísias
que vivia no Pireo (Rep. 327 a – 331 c); Céfalo de Siracusa era um comerciante de Armas, e veio
residir no Pireo a convite, e sob a proteção, de
Péricles.
[2] Quando não
indicarmos o tradutor, é porque a tradução é de nossa responsabilidade.
[3] Platão e seus
dois irmãos, Adimanto e Gláucon,
eram filhos de Áriston com Perictione.
Sua mãe, Perictione, após a morte de Áriston, esposou Pirilampo, um aristocrata e político
ateniense, com o qual teve Antífon (Górgias,
481 d-e). Platão também teve uma irmã, Potone, mãe de Espeusipo,
sucessor de Platão na direção da Academia.
[4] BOLZANI FILHO,
Glauco, o guardião do lógos, p.11-32; MOTTA, Gláucon, Adimanto e a
necessidade da filosofia, p. 87-113
[5] “Arquelau de Atenas, mestre de Sócrates” (DIELS & KRANZ,
Die
Fragmente der Vorsokratiker, 60 A 7); “a
Filosofia se restringia ao estudo da física e da ética <tò
physikòn kaì êthikón>” (Idem, p. 60 A 6). Mestre é
traduzido de kathegêtês que tem o sentido,
digamos, de “aquele que indicou o caminho ou que serviu de guia”.
[6] Deip. XI, 505 F, apud. DIELS & KRANZ, Die Fragmente der Vorsokratiker, 28 A 5
[7] PLUTARCO, Vies. Périclè-Fabius Maximus. Alcibiade-Coriolan, I, IV, 5
[8] Diógenes
Laércio registrou que Zenão preferiu viver em Eleia, que se estabelecer “na soberba Atenas” (Vite e
dottrine dei più
celebri filosofi, IX,
5, 28). Pelo teor do registro, Zenão certamente optou por Eleia depois de ter
vivido algum tempo, ou seja, construído uma experiência de vida, mesmo que
breve, em Atenas.
[9] Diodoro
da Sicília fez de Anaxágoras “mestre de Péricles” (DIELS & KRANZ, Die Fragmente der Vorsokratiker, 59 A
17).
[10] DIELS
& KRANZ, Die Fragmente der
Vorsokratiker, 59 A 7
[11] Strom. I, 63, apud DIELS & KRANZ, Die Fragmente der Vorsokratiker, 59 A 7
[12]
“Desde las puertas hasta el Ceramico hay porticos y delante de ellos estatuas de bronce de mujeres y
hombres que por algun motivo fueron famosos. (...). El
lugar del Ceramico tiene este nombre por el heroe Ceramo, del que se dice que
es hijo de Dioniso y de Ariadna” (PAUSÂNIAS, Descripción de Grecia, p.90-91).
[13] Nome das
festas ditas grandes quadrienais, coincidentes com a Olimpíada. Assim como as
ditas pequenas, ou seja, as Ateneias, elas eram realizadas em honra da deusa
Palas Atena: deusa da sabedoria e protetora da Ática. Em tais festas
vinculavam-se celebrações religiosas com gastronômicas, com eventos atléticos,
com concursos de poesias e de música, etc. Eram gastronômicas por conta das
oferendas e dos animais imolados em sacrifício: os gregos não desperdiçavam
nada, e tudo era festivamente partilhado e consumido. As panateneias,
pelo que o próprio nome diz (em que pan faz referência ao todo), congregavam em Atenas, além de
intelectuais, poetas, filósofos e artistas, reunia também governantes e
representantes de todas as póleis, de modo
que, além de promover celebrações universais da própria cultura grega,
promoviam igualmente a confraternização e o entendimento entre as póleis.
[14] SPINELLI, Herança Grega dos Filósofos Medievais, p.152 et seq.
[15] Diógenes
Laércio faz menção ao referido Aristóteles como sendo “um governante (politeusámenos)
ateniense, autor de agradáveis discursos forenses” (DIÓGENES
LAÉRCIO, Vite e dottrine dei più celebri filosofi,
V, 1, 35).
[16] Cf. XENOFONTE,
Helénicas, p.74
[17] Cf. Carta VII, 324 a
[18] Citamos aqui a
tradução de M. Iglésias e F. Rodrigues: “Que queres
dizer com isso, Zenão? Que, se os seres são múltiplos, então é preciso que eles
sejam tanto semelhantes quanto dessemelhantes, mas que isso é impossível, pois
nem as coisas dessemelhantes podem ser semelhantes nem as semelhantes,
dessemelhantes? Não é isso que queres dizer? É isso mesmo disse Zenão” (Prm. 127 e).
[19] DIELS
& KRANZ, Die Fragmente der
Vorsokratiker, 44 A 1. Até Galileu refere-se por duas vezes a Filolau como “mestre de Platão”: uma na Carta à Senhora
Cristina de Lorena; outra, nas Considerações sobre a opinião copernicana
[20] DIELS
& KRANZ, Die Fragmente der
Vorsokratiker, 44 A 5
[21] SPINELLI, Ética e Política: a edificação do éthos cívico da paideia
grega, p. 412ss
[22] O termo, quer como substantivo (ontologia)
quer como adjetivo (ontológico), é
incomum na linguagem filosófica grega. Entretanto, é muito utilizado, e, muitas
vezes, sobrepondo aos gregos a mentalidade escolástica
que o gerou.
[23] Há duas
cacofonias que tornam a assertiva pesada: “Que então é preciso (...), mas
que...”: “Quentão” e “masque”!
[24] eòn é a forma positiva do
nominativo-vocativo-acusativo neutro singular do particípio presente do verbo
ser/estar: sendo/estando.
[25] DIELS
& KRANZ, Die Fragmente der
Vorsokratiker, 28 B 2, 7-8
[26] Os termos da
dita dedução aristotélica, para além de Platão, remete a Filolau,
aos seguintes fragmentos: a) “todo ser cognoscível (gignôskómena) tem um número, sem
o qual nada poderíamos pensar ou conhecer (noêthêmen oúte ênôsthêmen)”
(DIELS & KRANZ, Die Fragmente der Vorsokratiker, 44 B 4); b) “nenhuma das coisas
[existentes] a ninguém seria evidente (autôn poth’ autá, no sentido de por
si mesma manifesta), nem nela mesma e nem na sua relação com outra coisa, se
não existisse o número e a essência (ousía) do número” (Idem, 44 B 11, 16-18 – os
colchetes e parênteses foram acrescentados). Arquitas
de Taranto (no livro Sobre as ciências
– Perì mathêmáthôn)
dizia que “o raciocínio (logismós),
quando encontrado, faz cessar a discórdia e aumenta a concórdia, e, ao invés da
superioridade (da pleonexía),
reina a igualdade; é ainda por ele que nos colocamos de acordo com os que
estamos em relações” (Idem, 47 B 3,7-10).
[27] Aristóteles,
na Ética a Eudemos,
teceu, a respeito de Heráclito, a seguinte consideração: “Heráclito censura o
poeta por ter dito: Cesse a discórdia
entre os deuses e os homens. Porque (segundo diz Heráclito) não poderia
haver harmonia na música se não houvesse sons graves e agudos, assim como não
poderia haver animais sem o macho e a fêmea, que são contrários” (Ét. a Eud. VII, I,
1235 a 25).
[28] DIELS
& KRANZ, Die Fragmente der
Vorsokratiker, 31 B 90