Submissão: Submissão: 03/04/2020
Aprovação: 03/04/2020 Publicação: 15/04/2020
Dossiê
O Parmênides de Platão
O Parménides como diálogo aporético
The Parmenides as an
aporetic dialogue
José Gabriel Trindade dos Santos
Professor visitante de Filosofia na Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, CE
Resumo: O objetivo deste texto é evidenciar o papel
desempenhado pela noção de “aporia” no Parménides de Platão. Depois de ter
descrito alguns dos usos da noção nos diálogos platónicos, o texto concentra-se
no Parménides, analisando: 1. O debate de Sócrates com Zenão; 2. O conjunto de
objeções apresentadas por Parménides ao uso por Sócrates das noções de
“separação” e “participação”, focadas em particular no “Argumento do Terceiro
Homem”; 3. Algumas conclusões paradoxais resultantes das oito “Hipóteses sobre
o Um”, na segunda parte do diálogo. Com o objetivo de sustentar a unidade da
Obra, argumentando a favor do uso dos “resultados atingidos na II parte do
diálogo para resolver os problemas levantados na I”, defendemos que o exercício
de Parménides sobre o Um e os Outros propõe uma reformulação da dialética,
denunciando a deficiência da prática atribuída a Zenão, de reduzir ao absurdo
as consequências da hipótese “Se há muitos”. Em vez disso, o Eleata examina as
consequências de “Se há Um”, mediante a relacionação do Um consigo próprio e
com cada um dos Outros; depois dos Outros consigo próprios e com quaisquer
outros, primeiro afirmando, depois negando, a hipótese.
Palavras-chave: Platão; Parménides;
Aporia; “Terceiro Homem”; Predicação; Autopredicação
Abstract: This text aims at illuminating some of the roles
played by the notion of “aporia” in Plato’s Parmenides. Having described some
of its uses in Plato’s dialogues, it concentrates on the Parmenides, analyzing:
1. Socrates” debate with Zeno; 2. The set of objections presented by Parmenides
to Socrates” use of “separation” and “participation”, focusing on the “Third
Man Argument”; 3. Some paradoxical conclusions resulting from the eight
“Hypotheses on the One”, in the second part of the dialogue. Our objective is
to sustain the unity of the work arguing in favor of using “the results
attained in its II part to solve the problems presented in the I”. Parmenides’
exercise on the One and the Others proposes a reformulation of dialectics. It
denounces the deficiency in Zeno’s practice of reducing to absurdity the
consequences of the hypothesis “if there are many”. Instead it examines the
consequences of “If there is One” relating the One to itself and to each of the
Others; then the Others in relation to themselves and to whatever other thing,
first asserting the hypothesis and then denying it.
Keywords: Plato; Parmenides; Aporia; “Third Man”;
Predication; Self-predication
À letra, ‘aporia’ significa “sem passagem”. Aplicado a
diversas estratégias erísticas, como é o caso dos conhecidos “Paradoxos de
Zenão”, tipicamente o termo capta a situação em que se acha o proponente de uma
tese quando dela são extraídas duas proposições contraditórias[1].
Diferentemente do que ocorre com Aristóteles, que a
insere no confronto entre pensadores da tradição reflexiva, elegendo-a como
instrumento de pesquisa (Met. B1,
995a22-b3[2]),
nos diálogos platônicos, a aporia desempenha duas funções complementares: uma
destrutiva, outra construtiva. O recurso à primeira é constante no grupo
“socrático”, condensando o resultado atingido pela conclusão da refutação (elenchos). Usando o interrogatório para
extrair de uma resposta dada à pergunta “O que é?” uma outra proposição que
direta ou indiretamente a contradiz, Sócrates reduz o interlocutor à aporia,
deixando desse modo provada a nulidade das pretensões do outro à sabedoria (sophia: Ap. 23a-b). Por outras palavras,
partindo da infalibilidade como pressuposto – e não atributo – do saber[3],
a refutação constitui prova cabal de que aos interlocutores de Sócrates nunca
poderá caber o epíteto de ‘sábios’ (Ap.
21b-23b).
Outros diálogos recorrem à aporia para induzir no
interlocutor – e através dele, no leitor – um estado de perplexidade,
resultante do confronto da investigação relatada com uma dificuldade
intransponível. Desta vez, porém, a aporia pode não produzir o efeito
paralisante, característico da situação anterior[4], se
acontecer, na sequência do argumento, ela vir a ser ultrapassada por uma
proposta de resolução do problema que a tinha causado. Pode então se dizer que
desempenha no diálogo a função propedêutica de preparar o interlocutor/leitor
para enquadrar a proposta introduzida no contexto amplo do programa de pesquisa
documentado. Entre muitos exemplos possíveis, é bem conhecido, no Sofista, o modo como a “Comunhão dos
Sumos Gêneros” (254b-257a), conducente à reformulação da negativa como
alteridade (257b-c) e posteriormente à exposição da teoria do enunciado
predicativo (260a-264b), supera as dificuldades atrás levantadas pela
impossibilidade de dizer “o que não é” (237b-241b).
Há, contudo, situações em que são formuladas questões
para as quais os investigadores não conseguem encontrar resposta, terminando o
diálogo com o reconhecimento de que a pesquisa levada a cabo não foi capaz de
produzir resposta satisfatória à questão que a percorre. Neste grupo de obras,
será notório o caso do Teeteto, em
cuja conclusão é manifesta a concordância dos investigadores sobre o fato de as
três respostas apresentadas por Teeteto à pergunta “O que é o saber?” se terem
revelado estéreis (210a-c).
Nesta mesma linha, porém, a culminância da
perplexidade gerada no leitor dos diálogos é atingida no Parménides, que recorre à aporia em situações e contextos, nos
quais o confronto dialético induz efeitos muito diferentes. Extraio da obra
três exemplos que a seguir analisarei. O primeiro é o debate da tese
reproduzida por Sócrates a partir da audição da releitura da primeira hipótese
do primeiro argumento de Zenão (127d-e). O segundo refere-se ao conjunto de
problemas e objeções endereçados por Parménides ao uso das noções de ‘Forma’ e
de ‘participação’ pela parte de Sócrates (130a-136a), entre os quais avulta o
“argumento do Terceiro Homem”. O terceiro, que engloba e supera cada um destes
dois, abarca as conclusões paradoxais resultantes da série de “Hipóteses acerca
do um”, desenvolvidas por Parménides na II parte do diálogo (137c ad fin.).
Zenão e Sócrates
Eis a tese de Zenão, tal como Sócrates a formula:
“Se
os seres são muitos (ou “múltiplos”), é preciso que sejam semelhantes e
dessemelhantes, o que é impossível”(127e1-3).
A multiplicidade dos seres é uma hipótese introduzida
por Zenão para ser reduzida ao absurdo. Essa intenção é patente na
“impossibilidade” referida (127e3, 6, 7, 8), resultante de os muitos seres
receberem predicados alegadamente contrários e excludentes. Embora o argumento
não explique a razão pela qual recebem esses predicados, cremos ser possível
conjecturar que a “os muitos seres” serão atribuídas a semelhança por serem
seres e a dessemelhança por serem muitos[5],
parecendo Zenão se basear na alegação implícita de que, se fossem semelhantes,
seriam um.
No entanto, se for assim, o argumento deve ser
considerado falacioso, pois, não sendo relativamente ao mesmo item que esses
predicados são atribuídos, não haverá contradição[6] no
fato de serem “semelhantes e dessemelhantes”. Para comprovar esta
interpretação, Sócrates lembra a seguir (129c-d) que nada impede que um ser –
ele próprio, no caso – seja um, num grupo de vários, e muitos, em relação às
partes de que é composto[7].
Portanto, questionada a justificação conjecturada,
fica claro que a conclusão de que a hipótese conduz a consequências impossíveis
(127e3, 6, 7, passim) não procede. Todavia, além de falacioso, o argumento é
mau e por duas razões. Ao considerar “semelhantes” todos os seres, enquanto
seres (negando haver “dessemelhança” entre eles), Zenão alega que “não são
muitos” pela simples razão de “serem um” (128d1-6); com o que se limita a
repetir a tese eleática, segundo a qual “o ser é um” (128a8-b1, d1). E, no
entanto, na forma em que é apresentado, o argumento viola a tese da unidade do
ser, pois, para pôr em causa a hipótese de os seres serem muitos, recorre à
“semelhança e dessemelhança”, como se de “dois seres” seres se não tratasse
(128e6-129a2)[8].
Parménides e
Sócrates
Aprofundando a refutação de Zenão, Sócrates
reinterpreta ‘semelhança’ e ‘dessemelhança’ como duas Formas opostas, das quais
participa a multiplicidade dos seres (128e-129b), possivelmente por serem
afetados pela compresença de opostos (hama:
R. V 478d5-6[9];
ver R. V 438a-c). São assim distintas
“semelhança e dessemelhança em si mesmas” (129b1, c2-3) da “semelhança e dessemelhança”
nos muitos [seres] que delas participam (129a-130a). O objetivo de Sócrates é
mostrar aos dois Eleatas que, enquanto a multiplicidade (adiante caracterizada
como “visível”: 130a2) participa em qualquer destas Formas opostas (129d8-e2),
as Formas, em si mesmas (128e6-7, 129b1, c2-3, passim; captadas pelo raciocínio: 130a2-3), não podem participar
uma da outra pelo fato de “se distinguirem em si e por si separadamente”
(129d7-8). Com este movimento, é cancelada não só a possibilidade de, em si
mesmas, as Formas opostas serem afetadas por propriedades contrárias (129c1-3),
mas também a de se dividirem em partes e de se combinarem entre si (129e2-3)[10].
O ponto de apoio da nova objeção de Sócrates a Zenão
incide na introdução da “separação” (chôris:
129d7, 130b2, 3, d1) para distinguir as Formas opostas, impedindo-as de se
misturarem e separarem, tanto umas das outras (129d8-130a1), como dos muitos
que nelas participam (130a2-3).
É este novo tópico que dá origem à cadeia de aporias
que vai condensar a crítica do Eleata à participação, tal como Sócrates a
propõe, às quais o próprio filósofo não será capaz de dar resposta. Ao longo de
toda esta seção, o que Parménides quer é que Sócrates lhe explique como é
possível que cada Forma inteligível permaneça una e separada, sendo participada
por uma multiplicidade de sensíveis (130b).
Aporias da
participação
A primeira aporia desponta numa dissimulada armadilha
sobre a possibilidade de admitir a separação, atribuindo Formas a classes
naturais (Homem, Fogo, Água[11]).
Não prestando atenção à dificuldade oculta, resultante da não-compresença[12]
de opostos nestas Formas, Sócrates começa por aceitá-las. Mas Parménides não
desarma. Se a “semelhança em nós” participa da Semelhança (130b3-4), tal como o
“homem em nós” do Homem, apesar de ser separado de nós (130c1-3), de que
[Formas] participarão “cabelo, lama, imundície” (c8-9, d1)? A pergunta nem
sequer é formulada, dado Sócrates responder que estas coisas são “como as
vemos” (130d3-4), por considerar absurda a admissão de Formas para seres
desprezíveis como esses (130d). Com essa resposta, porém, não se dá conta de
que ignora a prática de postular uma Forma para cada pluralidade à qual é
atribuído o mesmo nome (que é o da Forma epônima: R. X 596a6-7: ver R. VI
507b-c; Phd. 78e, 102b; Prm. 130e; Ti. 52a).
Por isso, Parménides não deixa de explorar a
inconsistência nas respostas dadas pelo seu interlocutor, cumprindo o objetivo
imediato de levá-lo a admitir que sobre a questão se encontra na aporia
(130d-e). Mas o seu fim último continua a ser o de colocar no fulcro do debate
a questão da difícil compatibilidade da participação com a separação (131a
ss.).
E de fato é nela que as aporias seguintes se
concentram, denunciando a carência das metáforas sugeridas para explicar a
participação[13].
Como podem as Formas comungar com os muitos que nelas participam, se são
separadas (131a-b)? Como pode a multidão dos seres participar na Forma una sem
que ela se separe de si própria quer permaneça um todo, quer seja distribuída
em partes (131c-e)? Embora muitas das objeções traiam uma intenção erística, é
para elas que serão propostas sucessivas escapatórias.
A primeira consistiria em explicar este poder do “um
sobre muitos” (UsM) a partir de uma Forma única. Quando muitas coisas parecem
ser (132a2), por exemplo, grandes, parece haver sobre elas uma e a mesma
característica (mia tis idea... autê:
132a2-3), e é por isso que se acha que o Grande é um. Mas a proposta dá origem
a uma dificuldade. Pois, se a Forma é convocada para suportar a unidade que
agrega os muitos em um, essa agregação só poderá ser explicada se sobre a Forma
gerada (F1) e os muitos que nela participam “aparecer” (132a6, 7, 9) uma outra
Forma (F2: a6, 9) pela qual todos aparecem grandes (a11)[14].
Como consequência desta objeção não haverá apenas uma Forma sobre cada
multiplicidade, mas uma pluralidade indefinida sobre cada uma delas (132b1-3).
É este regresso de uma infinidade de Formas sobre a
Forma una que a proposta seguinte de Sócrates tenta evitar propondo que, a
partir da referência em 132a5-7, cada Forma seja encarada como um pensamento na
alma (132b; ver 132a6). A sugestão esbarra, porém, com uma intransponível
rejeição. Mesmo como “pensamentos”, as Formas teriam ainda assim de ser ou
pensamento de nada – o que é impossível[15] (132b8-10)
–, ou então de algo que é (b11-c2). E neste caso, teriam de pensar essa
característica única que cobre cada multiplicidade, desse modo caindo na aporia
anterior.
Outra possibilidade, que constitui uma contribuição
original de Sócrates em defesa das Formas, consistiria em encarar cada uma
delas como um paradigma na natureza, de que os muitos que nela participam
seriam semelhanças ou cópias (132d1-5; Phdr.
250a-d; Plt. 300c-301a; Ti. 50c). Todavia, se se admitir que a
relação de semelhança entre as Formas e os seus participados é recíproca, tal
reciprocidade[16]
exige que, para explicar essa semelhança, sobre ambos apareça uma nova
Semelhança, e sempre outra e outra[17]
(132e-133a). E a situação se repetirá indefinidamente enquanto a participação
for explicada pela semelhança (133a).
A culminar a cadeia de argumentos concentrada na
problemática da ‘participação’, uma derradeira aporia se deixa agora insinuar,
com vista à exploração do outro corno do dilema: o de, renunciando à explicação
proporcionada pela ‘semelhança’, encontrar outro modo de caracterizar a
participação (133a5-6), sob pena de ter de abandoná-la de todo[18].
Todavia, são muitas e graves as consequências da
decisão de “postular sempre uma Forma una, distinguindo-a de cada uma das
coisas que são” (133b1-2, 134e-135a). Entre elas, avultará a de as Formas serem
incognoscíveis (133b), dado as relações que mantêm entre si não valerem em
relação a nós (133c-d). Será o caso de um senhor e de um escravo quaisquer, em
comparação com o paradigma estabelecido pelo senhor e o escravo, em si mesmos
(133d-e). Análoga objeção valerá para o saber, em si, em comparação com o,
menos rigoroso, saber de cada um de nós (134a-c). Pior ainda, da perspectiva
inversa, a extrema exatidão do saber divino não consentiria ao deus o
conhecimento das coisas humanas, nem a capacidade de intervir em relação a elas
(134d-e).
Nos casos aqui relatados, o perigo reside em a
inviabilidade da participação do sensível no inteligível arruinar o poder da
dialética e o programa da filosofia (135b-c). Contra ele, Parménides advoga a
estratégia propedêutica de desenvolver o treino na arte de discorrer,
concentrando-se nas Formas, apreensíveis através do discurso (135c-e). Um bom
ponto de partida para iniciar este exercício passa pelo retorno ao exame do
argumento de Zenão sobre o um e os muitos. Mas, como se verá, a proposta obriga
à total reformulação da argumentação desenvolvida pelo discípulo do Eleata.
Pois, não bastará simplesmente avaliar hipótese – “se
há muitos seres” –, a partir do exame das consequências que dela decorrem
(135e). Será necessário, primeiro, examinar “se um é” em relação a si próprio e
a cada um dos outros; depois cada um dos outros tanto em relação a si próprios,
quanto em relação ao que quer que seja. Finalmente, seguir idêntico
procedimento para a hipótese contrária: “se um não é” (136b-c). Por exemplo, a
partir de “se um é”, a Primeira e Segunda Hipóteses examinam as consequências
que resultam para o “um”, e as Terceira e Quarta as que resultam para “os
outros”. Concluído este exame, o mesmo esquema deverá ser aplicado à negação da
Hipótese original: “se um não é”.
As “Hipóteses
sobre o um”
Nesta segunda seção do diálogo, a temática da
‘participação’ do visível no inteligível perde o protagonismo que desde a
refutação de Zenão lhe fora concedido[19]. É
assim pelo fato de, lido programaticamente, o passo 135e anunciar a intenção da
investigação de se concentrar na pesquisa das Formas, implicitamente
renunciando à abordagem da participação com a única finalidade de explicar a
relação dos “visíveis” com “as coisas captadas pela razão” (logôi: e2).
É essa nova orientação que, a partir de 136a, permite
que a natureza aporética do diálogo comece a se manifestar plenamente através
de uma cadeia de flagrantes contradições, patente nas deduções que partem das
oito Hipóteses sobre o um. Argumentando alternadamente a partir de cada um dos
sentidos isolados do termo[20],
toda a seção pode ser vista como um exercício sobre a ambiguidade e a
inconsistência[21].
No entanto, para lá do aceno a Zenão, a nota erística que por vezes a
caracteriza[22]
poderá ser amenizada, se se aceitar que a mais imediata das finalidades da
seção será a de revelar os equívocos e ambiguidades a que se presta um bom
número dos termos que comandam cada uma das deduções.
Será, por excelência o caso do ‘um’, que pode ser
encarado como uma Forma platônica (entendida na posição de ‘sujeito’) – o Uno
(ver, na Hipótese III: 157b-158b) –, o atributo da ‘unidade’ conferido a algo
(como ‘predicado’: ibid. 158b-c), ou
qualquer “um”, distributivamente (ibid.:
158c-159b)[23].
A aparente contradição emerge logo na Hipótese I – 137c-138e –, na qual, a
partir de “se é um” (ei hen estin:
137c4), são negados ao “um” – e consequentemente aos “outros” –, em virtude de
aquele apenas “ser um” antepredicativamente (137d2-4; 139c3-6), quaisquer
predicados que lhe possam ser atribuídos. São estes: parte/todo; em si/em outro
lugar; movimento/repouso; mesmo/diferente; semelhante/dessemelhante;
igual/desigual; mais velho/mais jovem[24].
Pelo contrário, na Hipótese II (142b-157b) – “se um é” (hen ei estin: 142b3) –, todos estes deverão lhe ser
predicativamente atribuídos.
Voltemos então a Zenão, tentando apontar, no
desenrolar das Hipóteses, alguns desenvolvimentos que se apliquem ao seu
argumento contra a multiplicidade[25].
O mais momentoso, completamente ruinoso para a tese de que “o todo é um”
(128a8-b1) – sobre a qual, como se viu, se apoia o argumento –, emerge logo no
início da Hipótese II, expresso na constatação de que, se o ser do um for o
mesmo que o um, “dizer que o um é seria dizer que o um um” (142b7-c2). Não é,
porém, isso que acontece, pela simples razão de que:
“se
o é é dito do um que é e o um [é dito] do ser um, a entidade (ousia: “o fato de o um ser”) e o um não
são mesmo”[26]
(142d1-3).
Ou seja, “[o fato de] o um ser” (“isto ou aquilo”,
“existir”, “ser verdade”) não é o mesmo que “[o fato de o um] ser um”. Ao
distinguir o primeiro destes – a Forma platônica, o Uno –, do segundo, a
unidade – em si, ou atribuída a qualquer coisa que é (na diversidade de
sentidos em que ‘é’ pode ser lido) –, o argumento denuncia a profunda
ambiguidade que contamina a terminologia que opera ao longo da cadeia das
Hipóteses. Só essa denúncia será bastante para desarticular o argumento de
Zenão, manifestando a intenção aporética que leva Platão a colocar na boca de
Parménides a desconstrução da argumentação do outro Eleata.
Ao contrário da dedução da Hipótese I, na qual,
separado de todas as coisas e bloqueando o discurso, o um não é um todo,
porque, não sendo, não pode ter partes (137c-142a; atrás 128a8-b1 ss.; 166a4)
–, a Hipótese II exibe a gama dos sentidos com que ‘um’ e ‘é’ podem ser lidos.
É deste modo tornada possível a afirmação de outros não em oposição ao um, mas
ao lado dele, seja como partes contidas num todo (142d8-9; 143a2[27]),
seja como um todo contido em si ou em algo outro (145e; pois, “O que veio a ser
veio a ser sempre um todo”: Sph.
245d).
Todavia, Zenão não será a única vítima da estratégia
dedutiva montada por Parménides. Pois, também o espanto e a admiração que
Sócrates repetidamente alardeou perante a possibilidade de haver combinações
entre Formas opostas (129d-e) serão atingidos pelo projeto de as deduções
mostrarem que, além de serem separadas, são infinitas as possibilidades de as
Formas se combinarem entre si:
“Quer
[o] um seja, quer não seja, ele próprio e os outros, tanto em relação a si
próprios, como em relação uns aos outros, ambos são e não são e tanto aparecem,
como não aparecem, todas as coisas de todos os modos” (166c).
Distinguindo e contrapondo dois tipos de entidade – os
do um e dos muitos –, bem como dois modos de ser – em relação a si próprios e
em relação a outros –, esta conclusão condensa a mais profunda inovação do Parménides. Pelo fato de serem sempre em
relação a si próprios “aquilo que são”, dada a polissemia de ‘ser’, um e muitos
são obrigados a não deixar de ser também em relação uns aos outros.
Na reciprocidade destas relações se manifesta a
proposta da nova dialética, anunciada em 136a-c, a qual dissolve a evidência da
contradição numa teia de aporias, como vimos, apenas aparentes[28].
Se ‘ser’ e ‘um’ são dois, cada um deles é, e não só não é o outro, como não é
sem o outro, sob pena de nem sequer ser (Hipótese III: 157b-159b[29]).
É a partir deste envolvimento que “limite” e “ilimitado” (158c-d), logo
‘existência’ e ‘predicação’, poderão emergir como condição de possibilidade de
todo o discurso sobre “o que é” e “as coisas que são”.
Regresso a
Parménides: o “Terceiro Homem”
A mais saliente prova da incomensurabilidade das duas
lógicas confrontadas através da cadeia das oito Hipóteses – a eleática e a
platônica – está condensada na superação das aporias expressas nos dois mais
fortes argumentos contra o paradigmatismo das Formas: aquele que a tradição
cunhou com a designação de “Terceiro Homem”[30]
(132a-b, 132e-133a); e o outro, que Parménides caracteriza como “a maior
[aporia]”: a da incomunicabilidade dos dois mundos, das Formas e dos seres que
nelas participam (133b-135a). Vamos examiná-los.
Em “o Grande em si é grande” (AP; 132a5-7; ver 2-3),
‘grande’ é lido como o predicado comum ao Grande (F1) e aos “muitos grandes”
(UsM: 132a1-3, 5): o “aspecto uno e idêntico pelo qual o Grande é um” (132a2-3)[31].
É, contudo, claro que a AP não deve ser interpretada como uma predicação normal
– na qual o predicado é diferente da entidade predicada –, pelo fato de
expressar “aquilo que o Grande é”[32]
na sua relação consigo mesmo (AP). Consequentemente, não se distinguindo F1 do
predicado produzido a partir dela (“O Grande” e “aquilo que ele é”; ver Phd. 100c-e), a reaplicação de UsM, para
justificar a comunidade de F1 com “os muitos” que dela participam, rejeitando
NI, não produzirá uma F2 diferente de F1[33];[34];[35].
Este é um dos dois tipos de relação registrados no Sofista[36] (255c12-13 ss): aquele em que cada
Forma é dita em relação a si própria (pros
heautên: 256a12-b1), e aquele em que é dita em relação a outra ou a outros
(pros heteron: 255d1). Portanto, se
nada do que ocorre com uma predicação pros
heauton pode se confundir o que
ocorre numa predicação pros heteron,
o argumento do Terceiro Homem repousa sobre o equívoco de tratar a
autopredicação – expressa na relação de qualquer natureza consigo própria –
como se fosse análoga à predicação que relaciona duas entidades distintas[37];[38].
Do mesmo ponto de vista, embora o conhecimento das
Formas não se confunda com o que é o “conhecimento para nós” (133b-134c) tanto
um como outro se referirão às Formas: o primeiro, autopredicativamente, por
relacionar as Formas umas com as outras (“aquilo que o Conhecimento é”), o
outro, “heteropredicativamente”, por relacionar dois conhecimentos distintos[39]
(Phd. 73c-77a). O argumento equivoca
quer por inviabilizar o trânsito entre os dois episódios cognitivos afins, quer
por tratar o que é conhecimento para nós como um caso de conhecimento
relativamente às Formas, e viceversa[40];[41],
esquecendo que, no contexto da Reminiscência, nenhum deles pode ser sem o
outro.
A prova de que Platão tinha consciência desta solução
acha-se no passo do Sofista, acima
citado, no qual a dificuldade é superada na proposta de resolução do problema
da participação, avançada pelo Hóspede de Eleia (255c12-13). Superando as
explicações da participação através de sugestivas metáforas (como a
“semelhança”; os próprios termos ‘comungar’, ‘participar’, ‘participação’ são
metafóricos), a distinção mostra que a participação só é possível por implicar
dois tipos de predicação distintos e irredutíveis, porém, inescapavelmente
relacionados um com o outro: aqueles em que, apesar de cada Forma existir, por
participar do Ser (256a1), e ser aquilo que é, por participar do Mesmo, em
relação a si própria (256a12-b1), mediante a participação do Outro (256a-b)
ainda poder ser aquilo que não é[42].
Logo a seguir, o HE se apressa a resolver a aparente
aporia, registrando formalmente a inovação de acordo com a qual, nesta última
proposição, a negativa não significa ‘contrariedade’ mas ‘alteridade’[43]
(257b-c). Mas será um exagero atribuir a esta mudança no sentido da negativa a
responsabilidade exclusiva pela resolução da aporia. Pois, a dificuldade do
argumento não se concentra na negativa, mas nos dois sentidos de predicação,
anunciados e aplicados no Parménides,
e propostos no Sofista. Fechando a
“dedução dos Sumos Gêneros”, vemo-los como chave do argumento que permite a
plena emergência do Não-Ser como Gênero (258a-e), como “contraposição” (antithesis: 257e6, 258b1; mais quatro
vezes em diversas expressões, no passo 257d-258e) do Ser com uma parte de si
próprio[44];[45](257d-258b).
O resultado desta revolucionária concepção está
expresso na síntese que proclama a interdependência pela qual:
“…
… … os gêneros se misturam entre si, e o ser e o outro atravessam entre si
todos os gêneros, incluindo-se um ao outro: de um lado, o outro existe, depois
de ter participado do ser, e, por causa dessa participação, não é exactamente
aquilo em que teve participação, mas outro; de outro, uma vez que é outro em
relação ao ser, com toda clareza possível é necessariamente não ser! E o ser,
por sua vez, tendo tomado participação do outro, seria outro em relação aos
outros gêneros, e, uma vez que é outro, não é cada um deles, nem todos os
outros, a não ser ele próprio; … …” (259a-b).
Os diversos
sentidos de ‘aporia’ no Parménides
São muitos os motivos que nos levaram a considerar o Parménides um diálogo aporético[46].
No entanto, embora a aporia se ache presente ao longo de toda a obra, talvez o
fator quantitativo seja o menos relevante, em comparação com a diversidade de
modos com que se manifesta. Consideremos, além dos exemplos clássicos,
proporcionados pelo argumento de Zenão e pelas objeções de Parménides à
participação, na I parte do diálogo – já de si bem diferentes um do outro –, a
cadeia das “Hipóteses sobre o um”, desenvolvida na II. Pontualmente alinhadas
as duas primeiras, é sobre esta última que nos vamos debruçar.
Um bom número de intérpretes reagiu a este desafio
posto pelo conjunto de dificuldades avançado, para o qual nenhuma solução
explícita é proposta, dedicando-se à tarefa de mostrar como “os resultados
atingidos na II parte podem ser usados para resolver os problemas levantados na
I”[47].
Entre outros comentadores, análoga é a posição de C. Meinwald[48]
, de S. Scolnicov[49],
de S. Peterson[50]
e C. H. Kahn[51],
contrastando com o diagnóstico sombrio de F. M. Cornford[52].
Consequentemente, com o objetivo de defender a unidade
do diálogo, perguntamos se haverá algum programa que confira sentido às
constantes contradições expressas no argumento. Não prestando atenção a algumas
falácias que tornam intratável a argumentação (por exemplo, 141e, 148a), contra
os detractores da teoria das Formas[53],
defendemos acima que o exercício desenvolvido por Parménides propõe uma
revolucionária reformulação da dialética pelo fato de não se contentar com a
redução ao absurdo das teses examinadas (136a). Situando a argumentação
exclusivamente no plano das Formas (135e), as aporias visarão à denúncia da
insuficiência da linguagem corrente para o estudo das relações que as Formas
mantêm entre si, especificamente no que se refere aos sentidos da ‘negativa’,
nos domínios da participação e predicação. O objetivo de Platão na cadeia das
“Hipóteses sobre o um” parece ser o esboço de um sistema ordenado de pontos de
vista contrastantes, mas não contraditórios[54].
Foi esse o motivo pelo qual consideramos
deliberadamente aporética a grande maioria das contradições registradas.
Cremos, porém, ser necessário repetir que este programa visa a tornar possível
a aludida transformação de um uso puramente negativo da dialética – como aquele
praticado por Zenão –, num outro, proposto com a finalidade última de
constituir um instrumento de análise da realidade (por mais que este objetivo
não seja atingido no Parménides[55]).
Consideramos o diálogo aporético pelo fato de – à semelhança do que ocorre no Teeteto – propor tanto a Sócrates, como
aos ouvintes/leitores do diálogo, dificuldades para as quais não são
apresentadas soluções explícitas, sendo consensual apontar o Sofista[56]
como o lugar em que essas dificuldades são confrontadas e, como apontamos
atrás, eventualmente resolvidas[57].
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[1] ARISTÓTELES, EN VII, 3, 1146a22-27: “Os sofistas
querem refutar para mostrarem habilidade e, quando o conseguem, o raciocínio
obtido produz a aporia: pois a mente é encadeada quando não quer se deter, por
um lado, por não poder aceitar a conclusão, e, por outro, por não poder
avançar, ao ser incapaz de desenlaçar o argumento”.
[2] “Por isso se
torna necessário contemplar primeiro todas as dificuldades, não só pelo que foi
dito, mas porque os que investigam sem terem explorado antes as aporias (diaporêsai prôton) são semelhantes aos
que ignoram onde devem ir, por nem sequer saberem se encontraram o que
buscavam; pois a finalidade [da investigação] só é manifesta a quem previamente
considerou as aporias (proêporêkoti).
E ainda é necessário que se ache em melhor situação para decidir aquele que -
como se de litigantes se tratasse - deu ouvidos a todos os argumentos opostos.”
[3] A exigência de
infalibilidade, característica do saber deve ser lida num contexto
não-predicativo, como condição observada por qualquer pronunciamento para que
possa lhe ser conferido valor epistêmico (SANTOS, Metamorfoses do logos: do
não-predicativo ao predicativo, p. 9).
[4] Note-se que
nas obras em que Sócrates aplica a metodologia elênctica, a refutação incide
sobre respostas invariavelmente oferecidas pelos interlocutores do filósofo.
[5] PETERSON, The
“Parmenides”, p. 384
[6] Como estipula
a R. IV 436b, na sua caracterização
da ‘contrariedade’
[7] Veja-se o
paralelismo com 129b5-6 ss. É implícita a analogia com o argumento de Zenão:
Sócrates será semelhante, enquanto um, e dessemelhante, enquanto composto de
muitas partes. Já neste passo, a contraposição de “ser um entre muitos” e
“muitos” (por “participar de muitos”: 129b8) assume uma relevância que adiante
se estenderá a todo o diálogo.
[8] PETERSON, The
“Parmenides”, p. 387
[9] Não há
compresença de opostos nas “formas em nós”, como evidenciam os exemplos das
alturas relativas de Fédon, Símias e Sócrates, a seguir comparados com os casos
do fogo e da neve (Phd. 103c-e). As
Formas respondem ao “avanço” dos seus contrários, “se afastando” ou “perecendo”
(Phd. 102d-103a).
[10] KAHN, Plato and the Post-Socratic Dialogue, p. 3
[11] A pergunta é
respondida afirmativamente no Timeu
(51b-e), mediante remissão para o dualismo ontoepistemológico que comanda duas
das três narrativas da construção do cosmos vivo (27d-28a; 51b-e).
[12] Em qualquer
das classes naturais elencadas – o homem, o fogo, a água, em nós – a compresença não pode se manifestar.
Mais sutilmente, não sendo estas Formas de contrários, sobre que premissa se
apoiará a separação?
[13] Símiles como
“dia” e “vela” (131b-c) são sumariamente descartados com a alegação de
aplicarem vagamente um princípio do “um sobre muitos” (UsM: hen epi pollois: 131b9; R. X, 596a6-7).
[14] A “aparição”
de F2 sobre o conjunto constituído pela agregação de F1 ao grupo formado pela
multiplicidade homônima resulta da reaplicação do princípio UsM (132a1-3; KAHN,
Plato and the Post-Socratic Dialogue,
p. 6), associado à tese que defende a “autopredicação” (AP) das Formas
(132a6-7: “o Grande ... pelo qual todos estes parecem grandes”). A sucessiva
reaplicação de UsM, gerando o regresso, é necessitada pela conjugação de AP com
a premissa oculta que sustenta a não identidade (NI) de F1 com F2… Fn.
[15] Se as Formas
fossem apenas pensamentos, não poderiam explicar a comunidade da característica
unificadora de qualquer multiplicidade homônima.
[16] A objeção
obriga a encarar a semelhança entre Formas e participantes como uma relação
simétrica (hipótese combatida por diversos intérpretes: por exemplo KAHN, Plato and the Post-Socratic Dialogue, p.
14-15; ca. SCHOFIELD, Likeness and Likenesses in the “Parmenides”,
p. 66-68). De resto, a impossibilidade de algo ser – seja identidade ou
diferença –, se o um não é (Hipótese VIII, 166a5-c2; CORNFORD, Plato and Parmenides, p. 242-244),
confirma a alegação.
[17] Numa leitura
alternativa do argumento, o regresso se dá não pela multiplicação de sempre
novas Formas, mas pela multiplicação da Forma original, que deixa de ser uma
(RICKLESS, How Parmenides Saved the Theory of Forms, p. 530-533).
[18] Além dos
passos acima citados, o tópico da ‘semelhança’ receberá atenção na segunda
seção do diálogo (139e-140a, 158e-159a, 159e-160a), chegando a merecer
definição: “é semelhante o que acontece (peponthos)
do mesmo modo” (139e8-9, 159e3). Deverá, portanto, se admitir a possibilidade
de Platão aceitar a semelhança dos sensíveis aos inteligíveis (ver 133a),
porém, descartá-la como explicação da participação de uns nos outros.
[19] Permanecendo
embora no diálogo como problema de fundo, a temática será abordada noutras
obras, nomeadamente no Sofista, como
se verá adiante.
[20] CORNFORD, Plato and Parmenides, p. 109-112;
MORAVCSIK, Forms and Dialectic in the Second Part of the “Parmenides”,
p. 137
[21] KAHN, Plato and the Post-Socratic Dialogue, p. 18
[22] CORNFORD, Plato and Parmenides, p. 110-114
[23] KAHN, Plato and the Post-Socratic Dialogue, p. 19
[24] Por exemplo,
enquanto um e composto de partes, cada todo é um e muitos, limitado e
ilimitado, será e não será no lugar; e assim sucessivamente, em relação a cada
par de atributos aparentemente contraditórios (KAHN, Plato and the Post-Socratic Dialogue, p. 39).
[25] Logo
antecedendo o exercício dialético a que se entregará, Parménides denuncia a
insuficiência do argumento de Zenão, “deduzindo conclusões que aquele supunha
serem contraditórias, com vista à obtenção de resultados puramente negativos”
(CORNFORD, Plato and Parmenides, p.
105-106). Pois não basta examinar as consequências da “os seres serem muitos”,
mas o que decorre dessa hipótese, “para os muitos, em relação a eles próprios e
ao um, e para o um, em relação a ele próprio e aos outros”, seguindo o
procedimento anterior a partir da negação da hipótese (136a).
[26] Ver a aporia
em que a que são reduzidos os monistas, no Sofista
244b-d, pelo fato de sustentarem que “só um é” usando os dois nomes ‘ser’ e
‘um’: “E o um é o nome do um e, por sua vez, é o um do nome”.
[27] Em oposição
nítida ao argumento de Zenão.
[28] RICKLESS, How Parmenides Saved the Theory of Forms, p.
542-543; PETERSON, The “Parmenides”, p. 402-404
[29] Sem participar
da entidade, o um não é (142b5-6). Sem participar do um, as partes [do um] são
reduzidas a uma “multidão indefinida” (158b6-7, c7-8; 158b-d).
[30] A designação
foi registrada por Aristóteles, na Metafísica
A9, 990b17, passim. Aparentemente o objetivo do argumento é denunciar a
deficiência da noção de ‘participação’.
[31] PETERSON, The
“Parmenides”, p. 395-397
[32] Descomprimindo
o enunciado – “o Grande é [a coisa] grande” –, o ‘é’ é o da definição (KAHN, Plato and the Post-Socratic Dialogue, p.
26; FREDE, Plato’s “Sophist” on False Statements, p. 402), comprovando
que a argumentação pros heauton
significa “tal como incluído na sua definição”, e a pros ta alla “na maneira da sua relação com atributos alheios ao
seu conteúdo definicional” (MEINWALD, Plato’s Parmenides, p. 46-75; apud PETERSON, The “Parmenides”,
p. 404).
[33] KAHN, Plato and the Post-Socratic Dialogue, p. 10-12, 26; MEINWALD, Plato’s
“Parmenides”, p. 373-376: apoiada
em FREDE, Prädikation
und Existenzaussage, p. 12-36;
Plato’s “Sophist”, p. 401-402; ca.
COHEN, The Logic of the Third Man, p. 297
[34] Kahn contesta
a AP por outra via: “Não sendo o Grande grande do mesmo modo que as coisas
grandes o são (por participarem do Grande), não haverá base para postular um
grupo expandido que inclua o grupo das coisas grandes e o Grande em si,
evitando o regresso” (ibid. p. 11).
[35] Para quem a
autopredicação resulta da aplicação do princípio UsM (131b8-9), responsável
pelas “deficiências da sua teoria da predicação”.
[36] FREDE, Prädikation und Existenzaussage, p. 12-36; “Plato’s
Sophist”,
p. 401-403; BROWN, The “Sophist” on Statements, Predication and Falsehood,
p. 449-451
[37] MEINWALD, Good-Bye to
the Third Man, p. 378-387; KAHN, Plato
and the Post-Socratic Dialogue, p. 24-27, 38, 43-44; ca. admitindo a autopredicação: LEIGH, Two Modes of Being at “Sophist”,
p. 1-28
[38] Ao longo da
sua análise do Parménides, em
diversos passos do diálogo, Kahn encontra exemplos da contraposição das
predicações per se/per aliud.
[39] Um bom exemplo
poderá ser colhido do argumento da reminiscência, no Fédon, no qual coexistem dois episódios cognitivos simultâneos: um
conhecimento a partir das sensopercepções e um outro, por captação na mente (ennoian elaben: Phd. 73d).
[40] Se as Formas
são cognoscíveis em virtude de serem “conhecimento na alma” (Phd. 73a), o nosso conhecimento será
possível por, mediante a reminiscência das Formas, participar desse conhecimento.
[41] MEINWALD, Good-Bye to
the Third Man, p. 387-389
[42] SANTOS, Metamorfoses
do logos: do não-predicativo ao predicativo.
[43] Esta inovação
será adiante reforçada pela solene rejeição da leitura da negativa
exclusivamente como contradição, da qual o argumento – 237b-241b – mostrou
decorrer a alegação de indizibilidade e irracionalidade de “o que não é”
(258e-259a; remetendo para 238c10, e6, 239a5).
[44] Contrapostas
são as duas relações da Forma: consigo própria (pros heauton) e com as outras que dela participam (pros alla: 255c13).
[45] SANTOS, Introdução,
p. 107-124
[46] GUTHRIE, A History of Greek Philosophy V, p. 58, passim
[47] RICKLESS, How Parmenides
Saved the Theory of Forms, p. 544-545
[48] MEINWALD, Plato’s “Parmenides”, p. 170-172; Good-Bye to the Third Man,
p. 391
[49] SCOLNICOV, Plato’s “Parmenides”, p. 3-17
[50] PETERSON, The “Parmenides”, p. 406-409
[51] KAHN, Plato and the Post-Socratic Dialogue, p. 2-3
[52] CORNFORD, Plato and Parmenides, p. 115
[53] RYLE, Logical Atomism in
Plato’s “Theaetetus”; Plato’s “Parmenides”.
Visão amenizada em OWEN, Notes on Ryle’s
Plato
[54] Recordemos que
as consequências da Hipótese assumida devem ser avaliadas – “para si/para os
outros, em relação a si própria/em relação aos outros” –, sendo seguidas de
análogo esquema com vista à avaliação da negação da Hipótese. Esta estrutura
dialética dispensa a justificação da participação pela semelhança da
multiplicidade sensível na unidade da Forma (132e6-133a6), remetendo a solução
do problema para as teorias sobre a Comunhão dos Gêneros e do enunciado
predicativo, no Sofista 252e-264a.
[55] Só a proposta
de uma teoria predicativa do logos a
tornará possível (SANTOS, Metamorfoses do logos: do não-predicativo ao
predicativo).
[56] Embora o traço
que une as duas obras se manifeste no plano dramático (Sph. 217c), chegará, para considerar deliberado o vínculo
estabelecido, a menção da recordação de Sócrates ao “grande discurso” levado a
cabo por Parménides, ao qual esteve presente, enquanto ainda jovem.
[57] KAHN, Plato and the Post-Socratic Dialogue, p. 2-3. Antecipando um
breve percurso pela “versão canônica da TF”, o A. alarga esta contraposição dos
programas “aporético” e “euporético”, além do Teeteto e o Sofista, ao Filebo e Timeu.