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01/04/2020 Aprovação: 01/04/2020 Publicação: 15/04/2020
Dossiê
O Parmênides de Platão
O Parmênides de Platão
revisitado
Plato’s “Parmenides”
revisited
Samuel Rickless[1]
Professor de Filosofia na Universidade da Califórnia,
San Diego, EUA.
Resumo: O Parmênides de Platão é um
diálogo notoriamente desafiador. Para apresentar uma interpretação
completamente satisfatória dele, cada argumento precisa ser reconstruído em
seus próprios termos e se todas as reconstruções forem acuradas, as
interconexões lógicas entre os argumentos de ambas as partes do diálogo devem
revelar a mensagem geral do Parmênides. Aqui gostaria de resumir minha
interpretação e considerar algumas importantes objeções e alternativas a ela,
particularmente como estas aparecem nos trabalhos de Constance Meinwald e Mary
Louise Gill. Quero explicar por que a interpretação de Meinwald é
significativamente menos convincente do que a minha e, como Gill e eu chegamos
a conclusões semelhantes, quero destacar as diferenças importantes entre nossas
interpretações.
Palavras-chave: Parmênides; Impureza dos
sensíveis; Pureza das Formas, Participação; Deduções
Abstract: Plato’s Parmenides is a notoriously
challenging dialogue. To provide a completely satisfying interpretation of it,
each argument needs to be reconstructed on its own terms and if all the
reconstructions are accurate, the logical interconnections among the arguments
of both parts of the dialogue should reveal the overall message of the
Parmenides. Here I would like to summarize my interpretation, and consider a
few prominent objections and alternatives to it, particularly as they appear in
the work of Constance Meinwald and Mary Louise Gill. I want to explain why
Meinwald’s interpretation is significantly less persuasive than mine and, because
Gill and I reach similar conclusions, I want to highlight the important
differences between our interpretations.
Keywords: Parmenides; Impurity of the Sensibles;
Purity of the Forms; Participation; Deductions
Gostaria de começar agradecendo aos organizadores
desta maravilhosa conferência por me convidarem e pela gentileza e
hospitalidade. Sou muito grato por ter sido incluído como participante e espero
que minhas observações hoje contribuam para o avanço dos estudos de uma obra
tão importante no corpus platônico.
O Parmênides
de Platão é um diálogo notoriamente desafiador. A história da literatura
crítica recente sobre Platão revela, grosso modo, duas fases: uma primeira na
qual as técnicas de uma cuidadosa reconstrução analítica dos argumentos foram
empregadas para dar sentido aos argumentos individuais na primeira parte do
diálogo; e uma segunda fase na qual os estudiosos tentaram ler o diálogo como
um todo unificado, o que exigiu que explicassem como os cerca de 180 argumentos
da segunda parte, organizados em oito deduções (com um apêndice às duas
primeiras), estão relacionados com os argumentos da primeira parte. Minha
opinião é que não há como oferecer uma interpretação completamente satisfatória
do Parmênides sem que as técnicas
louváveis da primeira parte sejam utilizadas na louvável empresa da segunda
parte. Cada argumento precisa ser reconstruído em seus próprios termos, com
muita atenção ao texto e, se todas as reconstruções forem acuradas, as
interconexões lógicas entre os argumentos devem, se tivermos sorte, revelar a
mensagem geral do diálogo.
Nesta palestra, gostaria de resumir minha
interpretação e considerar algumas importantes objeções e alternativas a ela,
particularmente como estas aparecem nos trabalhos de Constance Meinwald e Mary
Louise Gill. Quero explicar por que a interpretação de Meinwald é
significativamente menos convincente do que a minha ou a de Gill e, como Gill e
eu chegamos a conclusões semelhantes, quero destacar as diferenças importantes
entre nossas interpretações. Em um livro recente, Gill não explica os
principais modos como nossas interpretações se assemelham, nem como diferem[2]. Assim, leitores menos cuidadosos podem pensar que
concordamos (ou discordamos) mais do que realmente concordamos. Então, espero
que o que eu disser hoje esclareça a questão e também forneça razões adicionais
para aceitar a interpretação que defendi em trabalhos anteriores[3].
Começo apresentando um resumo do que considero a
melhor leitura do Parmênides. Após
uma seção introdutória que prepara a discussão (126a-127c), Zenão lê seu livro
e Sócrates esclarece que parte do ponto dos argumentos de Zenão é mostrar que,
se as coisas são múltiplas, são semelhantes e dessemelhantes, e possuem muitos
outros pares de propriedades contrárias além desse (127e). Depois de alguma
insistência de Sócrates, Zenão afirma que seu objetivo final é enredar aqueles
que afirmam que o monismo parmenideano (o todo é um) implica contradições,
fazendo com que reconheçam que a afirmação oposta (de que todo é múltiplo)
“sofre consequências ainda mais absurdas” (128d5). Sócrates faz, então, um
longo discurso (128e6-130a2) que levanta os seguintes pontos: (i) há uma
distinção a ser feita entre formas e sensíveis (“pedras e paus e coisas assim”)[4]: os sensíveis são F por participarem da F-idade, e
também são con-F (isto é, o contrário de F) por participarem da con-F-idade –
por exemplo, as coisas são unas por participarem da unidade (ou: o um), e as
coisas são múltiplas por participarem da multiplicidade (ou: o múltiplo). E
mais, Sócrates enfatiza que, enquanto as coisas sensíveis podem ter
propriedades contrárias (ele próprio é um na medida em que é um entre sete, mas
ele é múltiplo na medida em que tem muitas partes) e que não há nada de espantoso
nisso, as formas não podem ter propriedades contrárias. De fato, Sócrates diz
em várias ocasiões que ficaria surpreso
ou espantado ao descobrir que o um
fosse múltiplo, ou o múltiplo um.
Observe que Sócrates está aqui pressupondo que o
problema com a F-idade ser con-F é que a F-idade já é F, de modo que, se a
F-idade fosse con-F, então a F-idade teria propriedades contrárias, o que é
impossível. Por exemplo, o problema com o um ser múltiplo é que ele já é um, de
modo que, se o um fosse múltiplo, teria propriedades contrárias (um e
múltiplo), o que é impossível. Dados os paralelos com os diálogos do período
intermediário (particularmente Fédon,
República e Banquete), é razoável supor que Sócrates esteja comprometido com
teses básicas do que passou a ser conhecido como teoria das formas: um grupo de
axiomas, hipóteses auxiliares e os teoremas que se seguem desses axiomas e
hipóteses. Em particular, as coisas são F por participarem da F-idade
(Causalidade, que é uma generalização da alegação de que os sensíveis são F por participarem da
F-idade), a F-idade é F (Autopredicação – que é um nome terrível para um
fenômeno real: o fato de simplesmente uma forma ser corretamente descrita como
possuindo a propriedade à qual corresponde), é possível que os sensíveis tenham propriedades contrárias
(Impureza dos Sensíveis), mas é impossível que as formas tenham propriedades contrárias (Pureza das Formas). (Aqui,
vou ignorar a diferença entre duas alegações distinguíveis: que a F-idade não
pode ser F e con-F e que a F-idade não pode ter quaisquer propriedades contrárias)[5].
Se tudo isso estiver certo, podemos explicar por que o
discurso de Sócrates é uma espécie de resposta aos argumentos de Zenão. Pois
Zenão estava falando de coisas sensíveis (130a1), afirmando que é um absurdo
supor que estas coisas tenham propriedades contrárias. Mas isso é algo que
Sócrates nega em seu discurso.
Essencialmente, o ponto de Sócrates é que Zenão assumiu erroneamente a pureza
dos sensíveis. Se Sócrates estiver
certo, o argumento de Zenão é falho.
Mas a própria resposta de Sócrates supõe que as formas são puras, e ele repetidamente
desafia Zenão e Parmênides a mostrar que elas não sejam puras. É razoável
esperar que a afirmação, enfatizada e repetida várias vezes no discurso, de que
ele ficaria totalmente espantado e muito impressionado se alguém demonstrasse
que as formas são tão impuras quanto os sensíveis, estruture pelo menos parte
do resto do diálogo.
E, de fato, o exame cuidadoso da primeira parte do
diálogo reforça essa expectativa. Depois de levantar questões sobre a extensão
das formas (existem formas correspondentes a tipos naturais? Existem formas
correspondentes a coisas indignas e sem valor? – 130b1-130d5), Parmênides
suscita cinco objeções (ou conjuntos de objeções) claramente distintas à teoria
das formas pressuposta no discurso de Sócrates: o Dilema Todo-Parte
(130e4-131c11) (junto com quatro problemas subsidiários – 131c11-131e2), o
Argumento do Terceiro Homem (132a1-132b2), o Argumento contra as Formas como
Pensamentos (132b3-132c8), o Argumento contra o Paradigmatismo (132d1-133a7) e
a Maior Dificuldade (133c3-134e8). Cada uma dessas objeções, à exceção da
última, tem como alvo a afirmação de que as formas são puras.
No caso do Dilema Todo-Parte, o problema diz respeito
ao que acontece quando a participação, uma relação que Platão não teorizou no Fédon (em 100d), é interpretada de
acordo com o Modelo Torta [Pie Model] (de modo que participar de X é uma
questão de ter literalmente uma partilha em X, seja numa parte de X seja no
todo de X). Se muitas coisas separadas têm toda a forma quando nela participam,
a forma será separada de si mesma, o que é absurdo. Mas se muitas coisas
separadas têm partes diferentes da forma quando nela participam, a forma terá
partes; e, assim como ter partes é suficiente para tornar Sócrates múltiplo,
também ter partes é suficiente para tornar a forma múltipla. Isso não seria tão
ruim não fosse também o caso de Sócrates assumir que, como ele, cada forma é
una. Mas, infelizmente para Sócrates, isso é algo que ele também assume. E o
que o Dilema Todo-Parte mostra é que, se Sócrates quiser evitar dizer que as
formas são separadas de si mesmas, ele será forçado a reconhecer que elas são
unas e múltiplas e, portanto, impuras.
Agora, muitos estudiosos assumem que o Argumento do
Terceiro Homem tem como alvo a afirmação de que as formas são únicas, ou seja, que a cada propriedade
F corresponde exatamente uma forma de F-idade. E, é claro, o Terceiro Homem tem como alvo essa afirmação. Mas o que
acho que tem sido esquecido é que a devida atenção ao texto do Terceiro Homem
mostra que o argumento nos dá razão para preocuparmo-nos com o fato de que cada
forma seja ao mesmo tempo una e múltipla. O argumento gera um regresso
infinito, sim, mas a regresso é um meio para a conclusão mais fundamental de
que as formas são impuras. E esse problema é particularmente grave, uma vez que
existe independentemente de como se interprete a natureza da relação de
participação.
O Argumento do Terceiro Homem começa com Sócrates aceitando
que sua razão de pensar que “cada forma é una” é essencialmente que “cada forma
é uma sobre muitos”, ou seja, sempre que várias coisas são F, existe uma forma
de F-idade que por participarem dela aquelas coisas são F. E o argumento
termina com Parmênides alegando que se segue desse raciocínio que “cada uma de
suas formas não mais será uma, mas infinitamente muitas”. Assim Parmênides está
oferecendo uma reductio da teoria das
formas, com a contradição relevante sendo que cada forma é uma e não uma. Como
ele faz isso? Eis um esboço. Considere algumas coisas sensíveis comuns grandes
(uma casa, um elefante e um avião). Por Um-Sobre-Muitos, segue-se que há uma
forma de grandeza (L1), participando da qual essas três coisas são grandes.
Mas, por Autopredicação, L1 é uma coisa grande. Assim pode ser agrupado junto
com a casa, o elefante e o avião. (Alguns de vocês podem não gostar disso, mas
não se preocupem, voltarei a isso). Por Um-Sobre-Muitos novamente, há uma forma
de grandeza (L2) participando da qual as três coisas sensíveis e L1 são
grandes. A questão, agora, é se L2 é idêntico a L1. No texto do Terceiro Homem,
é claro que Parmênides pressupõe que L2 não é idêntico a L1, pois ele diz:
“Portanto, outra forma de grandeza aparecerá, surgindo ao lado da própria
grandeza e das coisas que dela participam”. Sócrates não discutiu, então
precisamos nos perguntar por que ele não fez isso. Por que Sócrates não parou
Parmênides e disse: “Não, Parmênides, não seria outra forma de grandeza,
porque L1 é grande por participar de si
mesma!”? A resposta é que Sócrates deve estar assumindo algo como a
afirmação de que nenhuma forma pode participar de si mesma
(Não-Auto-Participação), que se segue de sua afirmação anterior, em 130b, de
que cada forma é separada (choris)
das coisas que dela participam. Assim, porque L1 participa de L2, segue-se que
L1 não é idêntico a L2. E desse modo estamos progredindo em um regresso
infinito de formas de grandeza. Mas observe que isso não mostra que “cada forma
de grandeza é múltipla”. Simplesmente mostra que existem muitas formas de
grandeza. Então, como o Terceiro Homem mostra que cada forma de grandeza é
pluralizada? A melhor resposta, penso eu, é que participar de muitas coisas é
suficiente para que algo se torne múltiplo. Dado que o raciocínio mostra que
cada forma de grandeza participa de infinitas formas de grandeza, ele prova que
cada forma de grandeza não é apenas múltipla,
mas infinitamente múltiplas.
Assumindo-se, além disso, que as formas são puras, de modo que é impossível que
qualquer forma seja ao mesmo tempo una e múltipla, decorre diretamente do fato
de que cada forma de grandeza é múltipla que ela é, como diz Parmênides, “não
mais uma”.
Assim, considerando cada passagem individualmente,
vemos que Parmênides mira na assunção de Sócrates de que as formas são puras,
ou seja, que as formas não podem ter propriedades contrárias. O Argumento
contra as Formas como Pensamentos e o Argumento contra o Paradigmatismo também
envolvem claramente a construção de regressos infinitos, e, portanto, é
razoável supor que, por mais que sejam entendidos os detalhes desses
argumentos, eles pretendem suscitar o mesmo tipo de dificuldade para a teoria
das formas, a saber, o comprometimento com os axiomas da teoria, notadamente a
pureza, obriga Sócrates a admitir que cada forma é uma e, por ser também
múltipla, não uma.
Deixando de lado a Maior Dificuldade (que, a meu ver,
não tem como alvo a afirmação de que as formas são puras), segue-se que quatro
das objeções de Parmênides às formas, razoavelmente entendidas, visam
exatamente o que esperamos que elas visassem, ou seja, a afirmação de Sócrates
em seu discurso anterior de que as formas são puras. Nesse ponto, Sócrates fica
perplexo e cabe a Parmênides explicar que há uma saída. Ele diz a Sócrates que os
problemas que ele acabou de levantar para as formas levam qualquer um que os
ouve a negar sua existência (135a). Mas ele também diz que “um homem muito
talentoso pode vir a saber que para cada coisa existe um gênero, um ser em si e
por si” (135a7-b1). Em seguida, ele propõe um método de treinamento (ou
exercício) destinado a provar que existem formas, contornando assim os quatro
principais problemas, que não a Maior Dificuldade (136a4-136c4).
Esse método, como Parmênides o descreve, é motivo de
controvérsia. O que Parmênides diz é que devemos primeiro hipotetizar que X é, e examinar as consequências dessa
hipótese; depois, devemos hipotetizar que essa
mesma coisa (seja o que for) não é,
e examinar as consequências dessa hipótese. Ele diz que nos fornecerá um
exemplo, como o aplicado ao caso em que X é idêntico ao um (to hen). Isso nos dá um princípio de
divisão para os argumentos que seguirão: um grupo estabelecerá resultados da
forma se o um é, então blá-blá-blá; e
um segundo grupo estabelecerá resultados da forma se o um não é, então
blá blá blá. Parmênides então oferece um segundo princípio de divisão que
se aplica a cada um dos dois grupos de argumentos que seguirão: ele diz que
devemos investigar as consequências da hipótese, tanto para o um quanto para os
outros. Então esperamos que o primeiro grupo de argumentos seja dividido em
dois, com o primeiro subgrupo estabelecendo resultados da forma se o um é, então o um é blá-blá-blá;
e o segundo subgrupo estabelecendo resultados da forma se o um é, então os outros
são blá-blá-blá. E esperamos que o segundo grupo de argumentos também seja
dividido em dois, com o primeiro subgrupo estabelecendo resultados da forma se o um não, então o um é
blá-blá-blá; e o segundo subgrupo estabelecendo resultados da forma se um não é, então os outros
são blá-blá-blá. E, de fato, é exatamente isso que encontramos na segunda
parte do diálogo.
Isso está claro. Agora vamos à controvérsia que tem
envolvido estudiosos notáveis como Constance Meinwald, Kenneth Sayre e Sandra
Peterson[6]. Parmênides continua descrevendo o que parece ser um
terceiro princípio de divisão, a ser aplicado no interior de cada um dos quatro
subgrupos de argumentos. O princípio proposto diz respeito a saber se as
consequências para X (o um ou os outros) são em relação a si mesmo (pros heauto) ou em relação aos outros (pros ta alla). O pensamento aqui é que a
primeira Dedução, por exemplo, estabelecerá resultados da forma se o um é, então o um é blá-blá-blá em relação a si mesmo, enquanto a
segunda Dedução, por exemplo, estabelecerá resultados da forma se o um é, então o um é blá-blá-blá em
relação aos outros.
Meinwald argumenta, engenhosamente, que Parmênides
está nos dizendo aqui que as qualificações em-relação-a indicam que existem
dois tipos de predicação: predicação pros
heauto e predicação pros ta alla,
e que reconhecer a existência dessa distinção nos permite evitar os problemas
levantados por Parmênides na primeira metade do diálogo, notadamente o Terceiro
Homem. Meinwald supõe que dizer que X é F pros
heauto é dizer que ser F é parte do que é ser X, e dizer que X é F pros ta alla é apenas dizer que X
exemplifica a característica de ser F. Nessa visão, a grandeza é grande pros heauto, porque ser grande é parte
do que é ser grande, enquanto não é o caso que a grandeza é grande pros ta alla, porque a grandeza não
exemplifica a característica de ser grande. Mas o elefante, a casa e o avião
são todos grandes pros ta alla sem
serem grandes pros heauto. E nessas
condições, é impossível agrupá-los com L1 (a primeira forma de grandeza
revelada pela aplicação do Um-Sobre-Muitos), de modo a formar um novo grupo ao
qual o Um-Sobre-Muitos poderia se aplicar pela segunda vez. O Argumento do
Terceiro Homem é, portanto, bloqueado porque existe uma ambiguidade no âmago da
Autopredicação, e todos podemos voltar para casa felizes, seguros de que essa é a lição do diálogo como um todo.
Em trabalho recente, Meinwald deixou claro que acha
que Mary Louise Gill e eu não conseguimos compreender o sentido do apelo de
Parmênides às qualificações em-relação-a na descrição que ele faz do exercício
de treinamento da segunda parte do diálogo, e que é esse fato, acima de
qualquer outro, que condena nossas interpretações[7]. Minha resposta a isso é: não tão rápido.
É, de fato, uma marca a favor da interpretação de
Meinwald ela poder explicar por que Parmênides apela às qualificações
em-relação-a em sua descrição do plano do exercício (as qualificações servem
como o terceiro princípio de divisão, levando-nos de quatro deduções a oito,
que é aproximadamente o que encontramos). Mas, por outro lado, há muita coisa
que a interpretação de Meinwald não explica,
algumas de suas interpretações são baseadas em evidências textuais frágeis, e
sua solução para o Terceiro Homem não bloqueia todo possível caminho para o regresso infinito. Deixe-me explicar.
Primeiro, a interpretação de Meinwald não explica por
que é importante para Platão que haja mais de duas Deduções. Por que Platão simplesmente
não nos diz, por meio de Parmênides, de maneira ainda mais simples, que existem
dois tipos de predicação e devemos acabar com o assunto? Além disso, a
interpretação de Meinwald não explica por que Parmênides se importa em suscitar
o Dilema Todo-Parte e os quatro problemas dele decorrentes, dado que nenhum
desses problemas implica a premissa da Autopredicação. Ademais, a primeira
Dedução, cujas consequências devem ser predicações pros heauto, termina com o resultado de que se o um é, então o um não é um. E, todavia, é verdade, segundo
Meinwald, que o um é um pros heauto
(porque ser um é parte do que é ser um). E, finalmente, Parmênides agrupa os
resultados das várias Deduções[8]. Mas esses agrupamentos não fazem sentido ou são
muito enganadores na visão de Meinwald, na medida em que envolvem tipos
radicalmente diferentes de predicação.
Segundo, há pouca ou nenhuma evidência textual para
apoiar a particular interpretação de Meinwald da importância das qualificações
em-relação-a. Platão não nos diz que o significado de dizer que X é F pros heauto é que ser F é parte do que é
ser X. No geral, a evidência que Meinwald encontra para essa leitura em
particular é fraca[9].
Terceiro, a distinção pros heauto/pros ta alla
não bloqueia todas as rotas para um regresso, porque existem, de fato,
autopredicações pros ta alla
verdadeiras envolvendo formas. Por exemplo, é verdade que o um é um pros ta alla e, portanto, o um pode, de fato, ser agrupado com outras
coisas que são unas pros ta alla,
provocando, assim, a aplicação do Um-Sobre-Muitos e a Não-Auto-Participação
para revelar a existência de uma segunda forma de unidade.
Nessas circunstâncias, vale a pena perguntar se existe
outra maneira de explicar o apelo de Parmênides às qualificações em-relação-a
em sua descrição do exercício. A resposta é que existe. Como fica claro quando
se lê as oito Deduções, muitas das consequências derivadas da hipótese de que o
um é e da hipótese de que o um não é concernem à relação, em um sentido
perfeitamente comum, entre o um e ele mesmo e entre o um e os outros, bem como
entre os outros e eles mesmos e entre os outros e o um. Assim, por exemplo, na
segunda Dedução, Parmênides tenta estabelecer que se o um é, então o um é
semelhante em relação a si mesmo e semelhante em relação aos outros, maior em
relação a si mesmo e maior em relação aos outros, e assim por diante. Não há
mistérios aqui.
E há outra maneira de explicar o terceiro princípio de
divisão de Parmênides (o princípio que nos leva de quatro a oito Deduções):
algumas consequências derivadas da hipótese são positivas, enquanto outras são
negativas. Assim, a primeira Dedução nos diz que se o um é, então não é o caso que o um é F e não
é o caso que o um é con-F, enquanto a segunda Dedução nos diz que se o um é, então é o caso que o um é F
e é o caso que o um é con-F. Da
mesma forma para as outras Deduções. Portanto, não é o abandono das
qualificações em-relação-a com um terceiro princípio de divisão para o
exercício que nos deixa incapazes de explicar por que existem oito Deduções em
vez de quatro.
Mas isso nos deixa com a questão de como o exercício
deve mostrar que há realmente formas,
que o Dilema Todo-Parte e o Argumento do Terceiro Homem (assim como os outros
dois argumentos dirigidos ao regresso) podem ser evitados. Depois de
entendermos o papel crucial da assunção de pureza na geração do problema no
âmago do Terceiro Homem, podemos ver que os esforços de Parmênides na segunda
parte do diálogo são destinados a provar que a assunção é falsa: as formas,
como se constata, têm propriedades contrárias e, portanto, são tão impuras
quanto os sensíveis.
A história não é simples e não tenho tempo para
analisar todas as Deduções aqui. Confie em mim quando digo que faço todo o
trabalho braçal necessário em meu livro[10]. Mas algumas questões são bastante claras. A primeira
Dedução começa argumentando que, se o um é um, então o um não é múltiplo. Disso
Parmênides argumenta que o um não pode ter partes e, portanto, não pode ser um
todo, que não pode ter limites (que seriam partes), que não pode estar em si ou
em outro, e assim por diante. Mas na segunda Dedução, Parmênides argumenta que
se o um é, então o um tem partes, é um todo, tem limites, está em si e em
outro, e assim por diante. Se os argumentos forem seguros, então as duas
primeiras Deduções representariam uma reductio
da hipótese de que o um é, pois teríamos, por exemplo, que se o um é, então o um não tem partes e que se o um é, então o um tem partes. Mas sabemos que Parmênides quer
que o exercício estabeleça que as formas existem, não que elas não existam.
Torna-se pior, é claro, porque se os argumentos das Deduções Cinco e Seis forem
válidos e as premissas verdadeiras, essas Deduções representariam uma reductio da hipótese de que o um não é.
E assim seríamos forçados a concluir tanto que o um não é quanto que o um é. E
essa é uma contradição evidente.
Existem duas opções quando confrontados com argumentos
que produzem consequências indesejáveis (que o um não é, e que o um é e não é
ao mesmo tempo). A primeira opção é questionar a validade dos argumentos.
Alguns estudiosos fizeram isso e, em alguns casos, como reconheço, eles têm
razão. Nem todos os argumentos da segunda parte do Parmênides são válidos. Por exemplo, afirmo que o argumento da
primeira Dedução se destinava a mostrar que, se o um é, então o um não é diferente de si mesmo e não é o mesmo que
outro comete a falácia da equivocação[11]. Mas se você examinar cuidadosamente cada um dos 180
argumentos, verá que muito poucos
argumentos são inválidos e é realmente muito
difícil perceber que eles são inválidos. Agora é possível que Platão queira
que tratemos a segunda parte do diálogo como um exercício de descoberta de
falácias em lugares onde são difíceis de ser encontradas. Mas é improvável. A
principal razão para isso é que não há conexão direta entre as falácias e a
primeira parte do diálogo: você não pode resolver o Dilema Todo-Parte ou o
Argumento do Terceiro Homem tratando-os como falácias do tipo que encontramos
na segunda parte do diálogo.
A segunda opção, a que prefiro, é questionar pelo
menos uma das premissas dos argumentos. E não é difícil ver qual é a principal
premissa a ser questionada, porque ela direciona toda a primeira Dedução.
Trata-se da premissa de que o um não pode ser um e múltiplo, por isso que
Parmênides conclui que o um não é múltiplo pelo fato de que o um é um. Se essa
premissa for verdadeira, então o um não existe e somos forçados a entrar em
contradições. Portanto, a premissa é falsa. E o restante das deduções pode
então ser usado para mostrar que o um é; pois, se o um não fosse, então o um
teria propriedades contraditórias (e não meramente contrárias).
Superficialmente, então, as Deduções se parecem com os
argumentos de Zenão: se o um é, então o
um é semelhante e dessemelhante, limitado e ilimitado, e assim por diante.
Mas a situação é mais complicada do que isso, porque Parmênides deriva as
mesmas consequências da hipótese de que o
um não é, e também deriva as negações dessas consequências tanto da
hipótese de que o um é quanto da
hipótese de que o um não é. Assim,
supondo que ele quisesse que os argumentos fossem seguros, a mensagem de Platão
para nós seria que estamos enredados em contradições e que não há saída. Mas
essa é uma interpretação absurda do diálogo. O ponto principal do exercício é
que ele deve nos dar uma receita para escapar da contradição e salvar as
formas. Portanto, deveria ser óbvio aos leitores de Platão que eles precisam
encontrar a saída. E minha tese é que não precisamos olhar muito longe ou
abaixo da superfície do texto para descobrir a solução que Platão deseja que
encontremos. As formas são impuras e, se são tais, então o Dilema Todo-Parte e
o Argumento do Terceiro Homem (juntamente com os outros dois argumentos
centrados no regresso da primeira parte do diálogo) não nos forçam a aceitar
contradições. O que nos resta é a Maior Dificuldade, o que não é surpresa.
Esta é a conclusão a que devemos chegar, apenas
olhando para o Parmênides por si só.
Mas note que a interpretação que tenho defendido recebe mais apoio a partir do
que Platão diz nos diálogos que quase todo mundo aceita serem posteriores ao Parmênides. (Há um debate sobre se o Timeu conta como médio ou tardio, por
isso não vou incluí-lo na lista de diálogos tardios). Temos evidências no Sofista e no Filebo de que Platão abandona a assunção de que as formas são
puras. Como parte da prova de que existem cinco grandes gêneros no Sofista, o Estrangeiro de Eleia mostra
que o movimento é o mesmo e diferente e que o repouso é o mesmo e diferente e,
portanto, que tanto o movimento quanto o repouso têm propriedades contrárias. O
mesmo é verdade do mesmo e do diferente, que são os mesmos e diferentes. E no Filebo, Sócrates e Protarco concordam
que conhecimento e prazer são um e múltiplos e, portanto, têm propriedades
contrárias. Finalmente, podemos ver que o método de divisão e reunião, que é
peculiar aos diálogos tardios e bastante proeminente tanto no Sofista quanto no Político, não faz sentido a menos que as formas que são analisadas
usando-se o método sejam uma e múltiplas (uma, porque haverá uma definição da
forma relevante; e múltipla, porque a forma tem partes nas quais o método a
dividirá)[12].
Tudo isso dito, as evidências de que Platão quer que o
Parmênides nos ensine que as formas
são realmente impuras, ao contrário de uma assunção central nos diálogos do
período intermediário, são esmagadoras. E o interessante dessa interpretação é
que ela revela menos uma separação entre o mundo das formas e o mundo dos
sensíveis. Platão está nos dizendo que as formas podem muito bem ser coisas
sensíveis, talvez gêneros especiais de coisas sensíveis diferentes de paus e
pedras, na medida em que explicam por que paus e pedras têm as propriedades que
têm.
Obviamente, é possível empregar medidas
interpretativas desesperadas para encontrar uma mensagem alternativa no
diálogo. Alguns podem afirmar que tudo é uma paródia, a tentativa de Platão de
zombar do monismo eleático; mas Platão trata o monismo eleático com mais
seriedade no Sofista, oferecendo
argumentos de que existem muitas coisas. Além disso, a interpretação de que
seria uma paródia não dar sentido à estrutura lógica e dialética do Parmênides. Outros podem afirmar que a
segunda parte do diálogo é uma tentativa de desenvolver uma metafísica
neoplatônica complexa; mas os neoplatônicos assumem, ao contrário do que
Parmênides diz explicitamente em 136a, que os sujeitos das hipóteses diferem de
uma Dedução a outra; ademais, eles não conseguem explicar como a segunda parte
do diálogo está relacionada à primeira. Ainda outros veem no diálogo um
“registro de uma perplexidade honesta”[13]. Mas esse é o tipo de coisa que se diz quando a
pessoa se fixa firmemente em um argumento ou nas Deduções, e não em todo o
diálogo, incluindo a descrição do exercício de Parmênides.
Antes de encerrar, gostaria de comparar e contrastar
minha interpretação do diálogo com a oferecida no Philosophos de Gill e na Introdução ao Parmênides da Hackett[14]. Existem semelhanças significativas, mas também, como
se constata, diferenças significativas.
Deixe-me começar com um breve esboço das semelhanças.
Gill e eu concordamos que, em seu discurso de abertura, Sócrates nos oferece
algo que se aproxima da teoria das formas do período intermediário, que
Parmênides critica a teoria em seu exame de Sócrates, que Parmênides nos
oferece um método para salvar as formas (revisando a teoria das formas) na
descrição transitória do exercício, e que as Deduções devem mostrar quais
elementos da teoria devem ser abandonados. Também concordamos que os
consequentes dos condicionais estabelecidos nas Deduções são mutuamente
contraditórios e que há apenas um sujeito em questão ao longo das Deduções (a
saber, a forma de Unidade). Finalmente, concordamos que o Dilema Todo-Parte
destaca a assunção de Sócrates de que as formas não podem ser unas e múltiplas
e que as Deduções são destinadas a estabelecer que essa assunção é falsa.
(Concordamos sobre muitas outras questões, mas esses são os pontos centrais do
acordo.)
Mas, como se costuma dizer, o diabo está nos detalhes.
Vamos começar com o discurso de Sócrates. Como você deve se lembrar, Sócrates
diz que as Formas são introduzidas para explicar por que os sensíveis têm as
propriedades que possuem: é participando da semelhança que são semelhantes as
outras coisas que não a semelhança, e assim por diante. Mas Gill diz que as
Formas são introduzidas para explicar o que de outra forma seria um fenômeno
paradoxal, a saber, que coisas sensíveis têm propriedades contrárias (como
semelhante e dessemelhante, grande e pequeno, etc.). Ela pensa que o fenômeno é
paradoxal porque a grandeza e a pequenez, por exemplo, são consideradas
propriedades monádicas e, portanto, a afirmação de que Símias é grande e
pequeno (porque ele é maior que Sócrates e menor que Fédon) é tão paradoxal
quanto a afirmação de que algo é redondo e quadrado, dado que uma propriedade
exclui a outra. Mas se uma propriedade realmente exclui a outra, então as
Formas não ajudarão a dissolver o paradoxo: não é possível que a mesma coisa
participe da redondeza e da quadratura, porque é impossível que a mesma coisa
seja redonda e quadrada.
No que Gill se equivoca aqui é que não há nada inerentemente paradoxal ou problemático
no fato de uma mesma coisa ter propriedades contrárias. E isso é algo que
Sócrates realmente enfatiza em seu
discurso: ele diz que não há nada paradoxal em ser um e múltiplo, e o que isso
significa é que a propriedade de ser um não exclui a propriedade de ser
múltiplo. O que precisamos perceber é que Sócrates pensa que existe um problema
especial com a Unidade ser ao mesmo
tempo uma e múltipla e, mais geralmente, com qualquer Forma ser uma e múltipla. Mas esse é um problema específico para as
formas: não tem nada a ver com as propriedades,
que não são intrinsecamente incompatíveis.
Outra complicação é que Gill acha importante que
Sócrates introduza caracteres imanentes
em sua ontologia. Para ela, a explicação adequada para o fato de Símias ser
grande pressupõe não apenas Símias, a forma grandeza e a relação de
participação, mas também outra coisa, uma quarta coisa, a grandeza em Símias. A grandeza em Símias não é uma Forma: é uma
característica imanente em Símias que corresponde à forma de grandeza. Gill
considera que isso é verdade porque Sócrates parece comprometer-se com a visão
de que a semelhança, digamos, é separada da semelhança que temos (130b). E,
como Gill vê, Sócrates apela a caracteres imanentes para dissolver o paradoxo
envolvido na posse de propriedades contrárias. A solução de Sócrates para o
paradoxo, diz ela, é que, quando dizemos que Símias é grande e pequeno, estamos
falando vagamente. A rigor, não é realmente Símias que é grande e pequeno: há
uma parte de Símias (a saber, sua grandeza) que é grande e há outra parte de
Símias (que é sua pequenez) que é pequena.
Mas isso não faz sentido no caso de outras
propriedades contrárias, como um e múltiplo. Considere o fato de que Sócrates é
um porque ele é um entre os muitos que se reuniram para ouvir Zenão ler seu
livro, e Sócrates é múltiplo porque tem muitas partes (direita e esquerda,
frente e costas, e assim por diante). De acordo com Gill, não é realmente
verdade que Sócrates é um e múltiplo: o que é realmente verdade é que a unidade em Sócrates é uma e a
multiplicidade em Sócrates é múltipla. Mas isso não está certo: não é a unidade em Sócrates que é uma entre as
muitas pessoas na sala, é Sócrates; e
não é a multiplicidade em Sócrates que tem muitas partes, é Sócrates. Portanto, não aceito a
alegação de Gill de que Sócrates fala vagamente quando diz que os sensíveis têm
propriedades contrárias. As coisas sensíveis realmente têm propriedades
contrárias, e isso não é um problema: Símias é maior que Sócrates, então Símias
é grande; Símias também é menor que Fédon, então Símias é pequeno. Simplesmente
não há necessidade de apelar a caracteres imanentes para resolver um problema
aqui: não há problema.
Mas há um
problema em supor que a grandeza seja
grande e pequena. O problema diz respeito a um princípio de causalidade que
Platão aceita nos diálogos intermediários e que reaparece no Parmênides nos quatro problemas
subsidiários discutidos após o Dilema Todo-Parte. O princípio é que nada que é
F pode fazer com que algo seja con-F. Eu chamo esse princípio de “Não
Causalidade por Contrários”. Há muitas ilustrações desse princípio: algo frio
não pode aquecer outra coisa, algo grande não pode tornar outra coisa pequena e
assim por diante. Mas uma das principais assunções da teoria das formas é que
as formas são causas: isto é, as formas são as coisas que fazem os sensíveis
terem as propriedades que possuem. Portanto, se a grandeza pudesse ser pequena,
uma coisa pequena faria coisas grandes ser grande, e isso é impossível.
Assumindo, então, que a grandeza seja grande (isso é apenas a Autopredicação),
mas que a grandeza não pode ser pequena, segue-se que a grandeza não pode ser
grande e pequena. Isso é algo que se segue da teoria das formas e não tem nada
a ver com caracteres imanentes ou propriedades mutuamente excludentes.
Já em sua Introdução ao Plato: Parmenides, Gill argumenta que caracteres imanentes
desempenham um papel importante no Dilema Todo-Parte. Suponha que a participar
de uma forma seja uma questão de obter uma partilha na forma. Gill diz que a
questão norteadora do Dilema Todo-Parte é: “Quando algo participa de uma forma,
ele tem como caráter imanente a totalidade da forma ou apenas uma parte dela?
Por exemplo, quando Símias participa da forma de grandeza, a grandeza nele é toda
a grandeza ou apenas uma parte dela?” (p. 26) Mas isso não faz sentido, supondo
que as formas sejam separadas de seus caracteres imanentes correspondentes: se
a grandeza é separada da grandeza em Símias, então a grandeza em Símias não
pode ser toda a grandeza e não há
dilema. Compreensivelmente, Gill revisa sua interpretação no Philosophos, abandonando a ideia de que
o Dilema Todo-Parte diz respeito a caracteres imanentes. Em vez disso, ela
aceita a visão que eu aceito, a saber, que a questão norteadora é saber se
obter uma partilha numa forma é uma questão de obter toda a forma ou uma parte
dela.
Mas Gill ainda acha que caracteres imanentes
desempenham um papel importante nas críticas de Parmênides à teoria das formas,
particularmente no Argumento do Terceiro Homem e no Argumento Contra o
Paradigmatismo. Aqui, focalizarei o Argumento do Terceiro Homem, porque o que
digo sobre ele se aplica, mutatis
mutandis, ao Argumento Contra o Paradigmatismo. Gill acha que o argumento
funciona assim. Olhe para o elefante, a casa e o avião, com seus olhos. Se você fizer isso, esses três objetos parecerão
compartilhar “um caráter [imanente], o mesmo que você vê em todos eles”. Mas as
coisas têm caráter imanente porque participam de formas: assim, pelo fato de
esses três objetos possuírem o mesmo caráter imanente, deve haver uma forma da
qual todos participam: L1. Como L1 é uma forma de grandeza, L1 é grande (por
Autopredicação). Agora olhe para o elefante, a casa, o avião e L1, mas desta vez com os olhos da mente. Desta vez, você verá outro caráter imanente
que é compartilhado pelas quatro coisas. E porque as coisas têm caracteres
imanentes porque participam das formas, deve haver uma forma da qual todos os
quatro objetos participem: L2. A questão agora é se L1 é idêntico a L2. A
resposta de Gill é que L1 não é idêntico a L2, e a razão para isso é que as
formas são separadas dos caracteres imanentes que elas explicam. Assim, se L2
explica o caráter imanente da grandeza em L1, então L2 deve existir separado
desse caráter imanente; e porque esse caráter imanente está em L1, L2 deve
existir separado de L1; e, portanto, L2 não pode ser idêntico a L1. E essas
suposições são suficientes para gerar um regresso infinito de formas de
grandeza.
Mas há problemas textuais significativos na
reconstrução de Gill do Terceiro Homem. Primeiro, ela insiste que a palavra
“idea” de Platão, que aparece pela primeira vez no diálogo no início deste
argumento, não se refere a formas,
mas a caracteres imanentes. Mas, como
ela também reconhece, Platão costuma usar “idea” para se referir às formas. De fato, ele usa de modo
intercambiável “idea” e “eidos” para formas no
resto do diálogo. Por exemplo, na Maior Dificuldade, Parmênides nos diz que
formas relacionais (como a forma de mestre e a forma de escravo) têm seu ser em
relação a elas mesmas, mas não em relação às coisas que nos pertencem. Quando
diz isso, Parmênides usa a palavra “idea”, não a palavra “eidos”. E, no
entanto, ele está claramente falando sobre formas, não sobre caracteres
imanentes. Portanto, não há razão para supor que a “idea” no Argumento do
Terceiro Homem se refira a um caráter imanente: quando você vê várias coisas
grandes, a razão pela qual você pensa que a grandeza é uma é que há uma forma que explica o fato de essas
coisas serem grandes. Platão diz o mesmo na República,
e há todas as razões para pensar que ele está usando a mesma assunção aqui.
Outro problema com a interpretação de Gill do Terceiro
Homem diz respeito ao fato de que, na opinião dela, quando você olha para os
três grandes sensíveis, há um caráter imanente, “o mesmo para o qual você olha
em todos eles”. Mas isso é impossível. De acordo com a teoria dos caracteres
imanentes, a grandeza no elefante é uma coisa, a grandeza na casa é outra e a
grandeza no avião é uma terceira. Esses caracteres imanentes não podem ser os
mesmos, porque as coisas em que eles são imanentes são separadas umas das
outras e, como supõe o Dilema Todo-Parte, a mesma coisa não pode estar separada
de si mesmo.
Segue-se disso que a reconstrução de Gill do Terceiro
Homem é imprecisa e, portanto, o problema levantado pelo argumento tem nada a
ver com a assunção de que as formas são separadas dos caracteres imanentes que
elas explicam. Como muitos estudiosos, Gill derrapa no fato de que a última
frase do argumento não conclui que existem infinitas formas de grandeza, mas
conclui que cada forma de grandeza é infinitamente muitas. O principal problema
levantado pelo Terceiro Homem, como argumentei, é que cada forma de grandeza é
múltipla em virtude da participação em muitas outras formas de grandeza. E, no
entanto, cada forma de grandeza é uma. Assim, cada forma de grandeza é ao mesmo
tempo uma e múltipla, a possibilidade disso é exatamente o que Sócrates negou
em seu discurso.
A interpretação de Gill da Maior Dificuldade também é
problemática, mas não tenho espaço para discutir os detalhes no momento. Basta
dizer que Gill pensa que a Maior Dificuldade diz respeito a algo que se supõe
seguir do fato de que Sócrates até agora não foi capaz de dar uma verdadeira
teoria da participação, a saber, que formas e sensíveis não suportam entre si relação
alguma. Mas essa é uma leitura exagerada da Maior Dificuldade, que apenas
diz respeito a formas relacionais que são o que são em relação a outras formas,
em particular conhecimento e verdade, bem como a sensíveis relacionais que são
o que são em relação a outros sensíveis. Sandra Peterson viu esse ponto há
muitos anos e acho que ela está absolutamente certa[15].
Por fim, deixe-me explicar em que discordo da
interpretação de Gill sobre o exercício. Gill se concentra principalmente nas
quatro primeiras Deduções. Ela pensa que as duas primeiras Deduções provam que
o um não é, porque se o um é então o um é nada (o que é falso), e se o um é
então o um é tudo (que também é falso). Além disso, ela argumenta que o
Apêndice às duas primeiras Deduções tenta conciliá-las, argumentando que o um é
F e não F em momentos diferentes, mas que essa tentativa falha porque leva a
outra contradição, a saber, que o um nem é F nem não-F em um instante (exaiphnes). Finalmente, ela argumenta
que a Terceira Dedução encontra um meio termo produtivo entre as duas primeiras
Deduções, combinando suas perspectivas,
considerando as coisas como o que são em virtude de si mesmas (auta kath’ auta) e em relação às outras
coisas (pros alla), mostrando que o
um é um em um aspecto, mas múltiplo em outro aspecto. A Quarta Dedução tenta
então estabelecer que a conclusão da Terceira Dedução é falsa. Mas, como
leitores do diálogo, devemos ver que a Quarta Dedução se baseia em uma premissa
falsa, a saber: que o um não pode ser múltiplo. As quatro últimas Deduções
mostram, grosso modo, que várias contradições decorrem da hipótese de que o um
não é, da qual se segue que o um é. E as repetições desse exercício, aplicadas a
outras formas que não o um, estabelecem não apenas que essas formas, como o um,
existem, mas também que elas são unas e múltiplas, ou pelo menos têm outras
propriedades contrárias.
A conclusão final de Gill é semelhante à minha. Mas eu
discordo da maneira como ela a alcançou. O primeiro ponto importante é que
Parmênides não acha que os consequentes dos condicionais estabelecidos na
Segunda Dedução sejam falsos. De acordo com Gill, Parmênides argumenta que se o
um é, então o um é ao mesmo tempo F e con-F, e, portanto, que o um é todas as
coisas, o que é impossível. Mas as conclusões da Segunda Dedução não são tão
radicais quanto isso. Como argumento em um trabalho anterior, o objetivo da
Segunda Dedução é argumentar, sem apelar para a pureza das formas, que se o um
é, então o um tem um número significativo de pares de propriedades contrárias
(um e múltiplo, limitado e ilimitado, em repouso e em movimento, o mesmo e
diferente, semelhante e dessemelhante, etc.)[16]. Como as quatro últimas Deduções constituem uma reductio da hipótese de que o um não é,
segue-se que o um é. E, portanto, resulta da Segunda Dedução que o um tem
propriedades contrárias, o que conflita com a assunção inicial de Sócrates de
que as formas são puras.
Gill está certa, penso eu, quanto a Primeira Dedução e
a Quarta Dedução estarem ambas baseadas na mesma premissa falsa, que o um não
pode ser um e múltiplo, e que parte do trabalho do estudante intrépido aplicado
ao exercício é reconhecer isso. Mas enquanto Gill pensa que a solução para
nossos problemas está na Terceira Dedução,
eu a vejo em todas as Deduções, mas primariamente na combinação da Segunda Dedução com o resultado
estabelecido pelas últimas quatro, que o um é. Afinal, a Segunda Dedução é de
longe a mais longa das Deduções, e há uma razão para isso. Deve-se notar também
que a Terceira Dedução, que é comparativamente muito curta, na verdade se
baseia implicitamente nos resultados da Segunda Dedução para chegar a suas
conclusões.
Então aí está a interpretação correta da estrutura e
do propósito do Parmênides como eu o
leio. Talvez sua interpretação do diálogo seja diferente da minha. Mas então
perguntarei a você, não apenas o que essa ou aquela parte do texto deve
mostrar, mas como a sua reconstrução desta parte do texto dá sentido a todo o
diálogo: os argumentos de Zenão, a resposta de Sócrates nos moldes de uma
teoria das formas, as seis objeções de Parmênides a essa teoria, a descrição de
Parmênides do exercício de treinamento como um meio de salvar as formas e, em
seguida, a implementação do próprio exercício, em todos os seus detalhes
notáveis. Minha interpretação, eu diria, dá sentido a cada parte, da função de
cada parte em relação ao todo e do todo em si. Se você puder fazer isso e sua
interpretação diferir da minha em aspectos fundamentais, ficarei totalmente e
completamente surpreso.
Tradução
de José Lourenço Pereira da Silva.
GILL, M. L. Philosophos: Plato’s Missing Dialogue. Oxford: Oxford University
Press, 2012.
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to Plato: Parmenides. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company,
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Plato’s Late Ontology: A Riddle Resolved. Princeton: Princeton University
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SAYRE, K. Parmenides’
Lesson: Translation and Explication of Plato’s Parmenides. South Bend:
University of Notre Dame Press, 1996.
VLASTOS, G. The Third Man Argument in the Parmenides, Philosophical Review, 63, 1954, pp.
319-349.
[1] A substância
dessa palestra será também publicada no capítulo Parmenides In: POLITIS, V.;
LARSEN, P. (eds.). The Platonic Mind.
London: Routledge, no prelo. A publicação dessa versão portuguesa está
autorizada pelo autor e editora.
[2] GILL, Philosophos:
Plato’s Missing Dialogue.
[3]
RICKLESS, How Parmenides Saved the Theory of Forms; Plato’s Forms in Transition; Plato’s “Parmenides”,
The Stanford Encyclopedia of Philosophy.
[4] Note o
paralelo com Fédon 74b, a discussão
de como pedras e paus iguais são distintos da forma o Igual em si.
[5] Para mais
sobre isso, ver meu Plato’s Forms in
Transition, capítulo 1.
[6] Ver MEINWALD, Plato’s “Parmenides” e Good-bye to
the Third Man; SAYRE, Plato’s Late
Ontology: A Riddle Resolved e Parmenides’
Lesson: Translation and Explication of Plato’s “Parmenides”; PETERSON, Plato’s
“Parmenides”: A Principle of Interpretation and Seven Arguments, The
Language Game in Plato’s “Parmenides” e New Rounds of Exercise in
Plato’s “Parmenides”.
[7] Ver MEINWALD, How Does
Plato’s Exercise Work?
[8] Uma vez no
início do apêndice das duas primeiras deduções, quando ele diz que “se o um é
como o descrevemos, sendo um e múltiplo e nem um nem muitas ...” (155e); uma
segunda vez no final da quarta Dedução (“se o um é, o um é todas as coisas e
não é nem um, tanto em relação a si mesmo quanto, igualmente, em relação aos
outros” – 160b); e uma terceira vez no final do diálogo (“se um é ou não é, ele
e os outros são e não são, e ambos aparecem e não aparecem todas as coisas de
todas as maneiras, tanto em relação a si mesmos quanto em relação um com o
outro” – 166c).
[9] Para mais
sobre isso, ver meu Plato’s Forms in
Transition, pp. 103-105.
[10] Ver meu Plato’s Forms in Transition, capítulos
5-7.
[11] Ver meu Plato’s Forms in Transition, pp.
121-123.
[12] Para mais
sobre isso, ver meu Plato’s Forms in
Transition, pp. 240-250.
[13] VLASTOS, The Third Man
Argument in the “Parmenides”.
[14] GILL, Philosophos: Plato’s Missing Dialogue, capítulos 1-2, e GILL, Introduction
to Plato: “Parmenides”.
[15] PETERSON, The Greatest
Difficulty for Plato’s Theory of Forms: The Unknowability Argument of
“Parmenides” 133c-134c.
[16] Ver meu Plato’s Forms in Transition, capítulo 5.