Publicação: 15/04/2020
Dossiê
O Parmênides de Platão
Apresentação
Foreword
José Lourenço Pereira da Silva
Professor de Filosofia na Universidade Federal de
Santa Maria, Santa Maria, RS
A cerrada argumentação dialética em torno do problema
do um e do múltiplo que põe em questão, na primeira parte do diálogo, a teoria
das Formas e, na segunda, se desenvolve como uma árida série de deduções da
tese do ser um para findar-se numa aporia desconcertante, notabiliza o Parmênides
de Platão como o diálogo que coloca as dificuldades exegéticas mais espinhosas.
O diálogo é claramente dividido em três atos.
Antecedido por um preâmbulo que conta a transmissão da narração, o primeiro ato
constitui-se na conversa entre Zenão e Sócrates; para qualificar o monismo
defendido por Zenão, Sócrates postula a existência de certas Formas
inteligíveis de cuja participação as coisas múltiplas
sensíveis recebem seus atributos. O segundo ato consiste no debate entre
Sócrates e Parmênides; o sexagenário eleata levanta
seis objeções, aparentemente ruinosas, à teoria do jovem Sócrates e sua mal
explicada relação entre as Formas e seus participantes. O terceiro ato, por
fim, compreende as oito ou nove deduções da afirmação e da negação da hipótese
sobre o um que Parmênides desenvolve em companhia de um jovem e passivo
interlocutor chamado Aristóteles. Além do reconhecimento dessa divisão, os
comentadores se põem de acordo sobre
muito poucas coisas acerca deste diálogo. E as controvérsias não concernem
apenas a questões ou passagens pontuais do Parmênides, mas próprio sentido
geral da obra tem sido objeto de controvérsia e de leituras variadas desde a
antiguidade.
Já Proclo distinguia duas
linhas interpretativas principais: (1) uma focalizada na lógica do diálogo; (2)
outra na metafísica, essa sendo a interpretação da própria escola neoplatônica,
para qual o Parmênides antecipa a doutrina do Um e da emanação, interpretação
difusa que foi historicamente dominante e endossada por Hegel na modernidade.
Nos tempos mais recentes, a leitura lógica tem predominado; nela se abriga a
abordagem ao texto como uma polêmica humorada a fim de reduzir ao absurdo o
monismo eleático. Mas para a maioria dos intérpretes
da vertente lógica, sobretudo os analíticos, os argumentos devem ser tomados
seriamente por tratarem de questões de semântica, da lógica da predicação e da
gramática filosófica. Alternativamente, há comentadores que examinam o Parmênides
à luz de um ensinamento oral de Platão, em doutrinas não-escritas
achando as respostas aos enigmas do diálogo; enquanto para outros estudiosos o
significado da obra e a solução de suas aporias seriam encontradas no próprio Parmênides
e/ou em suas relações com os diálogos tardios, especialmente o Sofista.
Se houver, ainda está por ser descoberta a chave de
leitura que resolva as principais querelas em torno dessa obra desafiadora.
Enquanto isso, na crescente literatura a seu respeito, os intérpretes seguem
com suas opiniões amplamente divididas acerca de questões tais como: que função
atribuir a Parmênides e a Zenão no diálogo e que relação há entre as doutrinas historicamente
defendidas por eles e o pensamento de Platão? Em que sentido deve-se
compreender a crítica endereçada à teoria das Formas na primeira parte do
diálogo? Qual o sentido do exercício dialético na segunda parte? Quais as
relações entre as duas partes do diálogo? Que lições tirar de seu final
aparentemente aporético? O que representa o Parmênides
no conjunto da obra platônica? Essas e outras questões foram debatidas por platonistas brasileiros e estrangeiros no “XIII Simpósio
Internacional da Sociedade Brasileira de Platonistas:
O Parmênides de Platão”, em outubro de 2017 na UFSM, cujos principais
resultados ora se publica neste dossiê.
O Parmênides, trazendo uma contundente crítica à
teoria das Formas, é considerado por muitos como assinalando uma crise no
pensamento de Platão que o exige rever sua própria ontologia. Partidário dessa
visão, Samuel Rickless revisita sua interpretação do Parmênides
para, diferenciando-a de interpretações alternativas e defendendo-a de
objeções, mostrar qual é, a seu juízo, o modo correto
de ler o diálogo. Para ele, satisfatória é a leitura que, articulando os
argumentos da primeira com os da segunda parte, demonstra como as Formas são
salvas ao evidenciar as assunções constituintes da teoria que devem ser
abandonadas porque falsas; tal é o caso da tese da Pureza das Formas, ou seja,
a alegação de que as Formas não admitem a compresença
de propriedades contrárias. Sendo as Formas tão impuras quanto os sensíveis,
aquelas se apropinquam destes talvez por serem um
gênero especial de coisas sensíveis.
José Gabriel Trindade Santos reflete sobre o
significado e função da aporia no Parmênides. Também julgando que os resultados
da parte II resolvem os problemas suscitados na parte I do diálogo, ele
escrutina as aporias que surgem no debate entre Zenão e Sócrates e nas críticas
de Parmênides às Formas, na primeira parte, e aquelas presentes nas conclusões
paradoxais das hipóteses sobre o um, na segunda. Trindade
Santos defende que a aporia tem a função propedêutica de preparar o
interlocutor/leitor do diálogo para uma euporia, isto
é, para encontrar uma resolução ao problema sob discussão. Nesse sentido, ele
alega, Parmênides exerce uma dialética reformulada que não se restringe ao uso
puramente negativo da redução ao absurdo zenoniana.
Pondo em feito seu aspecto construtivo, as aporias da parte II denunciam a
insuficiência da linguagem corrente para o estudo das relações mútuas das
Formas. Os problemas decorrentes dessa constatação serão enfrentados e,
eventualmente, resolvidos no Sofista.
Miguel Spinelli focaliza o prólogo do Parmênides buscando
patentear o sentido da cena inicial que permite entender a arquitetônica de
todo o diálogo. Em sua opinião, os personagens no introito do diálogo foram
propositalmente escolhidos para representar uma anabasis
no desenvolvimento histórico da filosofia: personagens oriundos da Jônia e da
Magna Grécia simbolizam a amplitude dos kosmos
histórico do filosofar que se concentra em Atenas. Spinelli vê a obra platônica
como empenhada em fazer renascer o passado no presente, ou melhor, confluir o
velho no novo. Nesse sentido, acredita o autor, aplicando o método
característico dos exercícios dialéticos na academia ao tratamento do problema
do Um e do Múltiplo, o Parmênides registra como a construção teórica de Platão
se apoia nos pilares fixados pelos filósofos da natureza e por toda uma
tradição precedente.
Renato Matoso também
atenta ao prólogo do diálogo, dessa vez
para evidenciar como a estrutura argumentativa do Parmênides se apresenta na
estrutura narrativa de seu preâmbulo. Feito isso, ele examina minuciosamente o
paradoxo de Zenão acerca da multiplicidade e a resposta avançanda por Sócrates
que afirma ser a multiplicidade a condição natural das coisas sensíveis, mas
desafia seja mostrado que o mesmo valha para o inteligível. Segundo Matoso,
Sócrates opera com uma deliberada ambiguidade da noção de multiplicidade: “os
seres são múltiplos” tanto pode significar uma multiplicidade númerica quanto
uma multiplicidade de atributos que uma mesma coisa possui. Ele então mostra de
que modo o desafio de Sócrates a Zenão foi crucial para consignar a
uniformidade e a unidade como características essencias de cada Forma,
exatamente os aspectos que tornam as Formas vulneráveis aos ataques de
Parmênides por serem eles incompatíveis com a relação de participação dos
sensíveis nos entes inteligíveis.
Em “Platão contra um certo
platonismo: a crítica da hipótese das Ideias no Parmênides”, Marcio Soares
chama a atenção para o que, a seu ver, seria o verdadeiro alvo da crítica do
personagem Parmênides, qual seja, uma leitura equivocada da teoria das Ideias
permitida pela falta de esclarecimento conceitual acerca da própria natureza
das Formas e da distinção entre estas e seus participantes sensíveis. Estes
pontos inexplicados são a causa de Parmênides tomar as Formas em um sentido
fisicista, isto é, como tendo o mesmo status ontológico dos objetos empíricos.
Mas a confusão cometida por Parmêndes, Soares argumenta, é, na verdade, um
artifício ou estratégia de Platão para advertir seus leitores sobre
mal-entendidos acerca de suas Formas inteligíveis.
O artigo de Gérson Pereira Filho advoga em favor do
primado do aspecto metodológico sobre o ontológico no Parmênides. O autor
destaca que a intenção de Parmênides é mostrar a Sócrates como realizar uma
investigação lógico-racional de uma tese. Pereira Filho então procede a uma
física e uma metafísica do tempo, noção presente na oitava consequência da
primeira hipótese sobre o um. E tendo explorado a variedade de sentidos do conceito
de tempo no Parmênides e em outros diálogos, discute a questão da temporalidade
na obra de Platão reverberando a elaboração de Hector Benoit sobre as
temporalidades como método de leitura do corpus platônico.
A abordagem dos diálogos desenvolvida pela escola de
Tübingen-Milão é trazida pela contribuição de Dennys Garcia Xavier. Conforme
esta linha interpretativa, existe uma protologia, isto
é, uma doutrina sobre os princípios primeiros, conteúdo de ensinamentos orais
na academia, que lança luz sobre os problemas contidos nos trabalhos escritos.
Dentre as questões que essa protologia ajuda a resolver, uma das principais é o
problema do um e do múltiplo ou de como derivar a multiplicidade a partir da
unidade e reduzir à unidade a multiplicidade. Elementos das doutrinas não-escritas, Xavier alega, se apresentam de forma críptica
na segunda parte do Parmênide. De acordo com ele, o Um e o Outro (a
Diversidade) são os princípios primeiros com que Platão conta para explicar o
“sistema de nexos” das Ideias com as coisas, das Ideias umas com as outras e,
enfim, dos Princípios com as Ideias, tudo isso constituindo a totalidade
organizada do real.
Como acima referido, o Parmênides intriga e divide os
comentadores desde a época antiga, não se deixando facilmente classificar
quanto a seu escopo e orientação filosófica geral. Chiara Bonuglia se volta a
esse assunto ocupando-se com a recepção do Parmênides na tradição platônica dos
primeiros séculos de nossa era, mais especificamente no médio platonismo. Ela
reúne e avalia as evidências textuais em exegetas e
autores antigos – Proclo, Alcino, Diógenes Laércio, entre outros – que
corroboram o entendimento de que, ao menos no médio platonismo, prevaleceu a
interpretação lógica do Parmênides, tomado como “diálogo expositivo” que
ensinava o método lógico.
Em “Plotin et l’argument du
troisieme homme”, Luca Pitteloud indaga qual teria sido a posição de Plotino a
propósito do argumento do terceiro homem (TMA), objeção às Formas que o
neoplatônico não menciona em parte alguma de sua obra, apesar de exaustivamente
ter tratado da relação entre o sensível e o inteligível. Pitteloud demonstra
que nas explicações oferecidas por Plotino para a participação não há espaço
para quaisquer compromissos com quaisquer das premissas usualmente apontadas
como geradoras do argumento do terceiro homem no Parmênides, notadamente, a
autopredicação, a semelhança simétrica, o um sobre muitos; de sorte que, o
argumento seria completamente anódino para o autor das Enéadas. Pitteloud
conclui que a lógica de uma regressão ao infinito ascendendo do sensível ao
inteligível é absolutamente incompatível com o pensamento de Plotino, que
concebe, ao contrário, que a derivação descende do mais simples, o inteligível,
o Nous, ao mais plural, o sensível.
A SBP, por ocasião do simpósio, prestou uma homenagem
póstuma ao grande platonista brasileiro Marcelo Pimenta Marques, dedicando a
sua memória uma mesa-redonda composta por professores e professoras que foram
seus orientandos. Como resultado dessa seção, aqui se publica o artigo de Diogo
Noberto Mesti, “Marques ilustrando as imagens no Sofista de Platão”, no qual o
autor retoma o tema da imagem, tão caro a Marques, para elaborar sobre as
epígrafes que o homenageado citara em seu livro, Platão, pensador da diferença,
como ilustração do estututo ontológico da imagem.
Ao “pélago de palavras” formado pelas diversas
aproximações e interpretações do Parmênides, permitimo-nos acrescentar a breve
consideração seguinte. As aporias envolvidas na relação de participação entre Formas
e sensíveis e aquelas que aparecem nas deduções do múltiplo a partir do um
podem ser entedidas como preparando o terreno para a que talvez seja a mais
fundamental inovação na ontologia platônica, da qual o Sofista é palco: a
koinonia como condição de ser do que quer que seja. Ideia que tem uma
implicação política importantíssima, pois não há cidade senão enquanto seus
membros se mantêm em uma comunhão ordenada, na qual o múltiplo se unifica numa
unidade que respeita a diversidade. Essa é uma lição platônica a ter no
espírito, sobretudo quando nos vemos assolados por crises e por uma pandemia, e
quando forças autoritárias emergem como ameaça ao presente e futuro próximo da
sociedade humana.
Para finalizar essa apresentação, gostaríamos de
expressar nossa gratidão pelas diversas formas de ajuda recebidas que tornaram
possível o encontro de platonistas e a publicação deste documento. Agradecemos à CAPES, ao Departamento de Filosofia e ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da UFSM pelos recursos financeiros e humanos sem os
quais não teria havido o simpósio. Agradecemos à Revista Voluntas, na pessoa de
seu editor-chefe Vilmar Debona, por publicar os resultados de nosso encontro.
Esse dossiê, acreditamos, representa uma contribuição acadêmica importante da
parceria entre a Voluntas e a Sociedade Brasileira de Platonistas.
Abreviaturas
Para abreviaturas das obras de Platão e de outros
autores antigos, adota-se o sistema do Greek-English Lexicon (LSJ).
Albinus [Alb.]
Alb. Prol. = Introductio in Platonem
Alexander Aphrodisiensis [Alex.Aphr.]
Alex. Aphr. In Top = in Aristotelis Topicorum
libros octo commentaria
Aulus Gellius [Gell.]
Aul.
Gell. Noct. att. = Noctes Atticae
Diogenes
Laertius [D.L.]
Diog.
Laert. Vit. Phil. = Diogenis Laertii de clarorum philosophorum vitis . .
libri decem
Plato [Pl.]
Alc. 1, 2 = Alcibiades 1, 2
Ap. = Apologia
Chrm. = Charmides
Cra. = Cratylus
Cri. = Crito
Ep. = Epistulae
Epin. = Epinomis
Euthd. = Euthydemus
Euthphr. = Euthyphro
Grg.
= Gorgias
Hp.Ma.,
Mi. = Hippias Major, Minor
Ion
La.
= Laches
Lg.
= Leges
Ly.
= Lysis
Men.
= Meno
Mx.
= Menexenus
Phd.
= Phaedo
Phdr.
= Phaedrus
Phlb. = Philebus
Plt. = Politicus
Prm. = Parmenides
Prt. = Protagoras
R.
= Respublica
Smp. = Symposium
Sph. = Sophista
Tht. = Theaetetus
Ti. = Timaeus
Plotinus
[Plot.]
Enn. = Enneades
Proclus
[Procl.]
Procl. In Prm = in
Platonis Parmenidem commentarii