DOI

Publicação: 15/04/2020

 

 

Dossiê O Parmênides de Platão

 

Apresentação

 

Foreword

 

José Lourenço Pereira da Silva

Professor de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS

 jlourenco38@gmail.com

 

A cerrada argumentação dialética em torno do problema do um e do múltiplo que põe em questão, na primeira parte do diálogo, a teoria das Formas e, na segunda, se desenvolve como uma árida série de deduções da tese do ser um para findar-se numa aporia desconcertante, notabiliza o Parmênides de Platão como o diálogo que coloca as dificuldades exegéticas mais espinhosas.

O diálogo é claramente dividido em três atos. Antecedido por um preâmbulo que conta a transmissão da narração, o primeiro ato constitui-se na conversa entre Zenão e Sócrates; para qualificar o monismo defendido por Zenão, Sócrates postula a existência de certas Formas inteligíveis de cuja participação as coisas múltiplas sensíveis recebem seus atributos. O segundo ato consiste no debate entre Sócrates e Parmênides; o sexagenário eleata levanta seis objeções, aparentemente ruinosas, à teoria do jovem Sócrates e sua mal explicada relação entre as Formas e seus participantes. O terceiro ato, por fim, compreende as oito ou nove deduções da afirmação e da negação da hipótese sobre o um que Parmênides desenvolve em companhia de um jovem e passivo interlocutor chamado Aristóteles. Além do reconhecimento dessa divisão, os comentadores se põem de acordo sobre muito poucas coisas acerca deste diálogo. E as controvérsias não concernem apenas a questões ou passagens pontuais do Parmênides, mas próprio sentido geral da obra tem sido objeto de controvérsia e de leituras variadas desde a antiguidade.

Proclo distinguia duas linhas interpretativas principais: (1) uma focalizada na lógica do diálogo; (2) outra na metafísica, essa sendo a interpretação da própria escola neoplatônica, para qual o Parmênides antecipa a doutrina do Um e da emanação, interpretação difusa que foi historicamente dominante e endossada por Hegel na modernidade. Nos tempos mais recentes, a leitura lógica tem predominado; nela se abriga a abordagem ao texto como uma polêmica humorada a fim de reduzir ao absurdo o monismo eleático. Mas para a maioria dos intérpretes da vertente lógica, sobretudo os analíticos, os argumentos devem ser tomados seriamente por tratarem de questões de semântica, da lógica da predicação e da gramática filosófica. Alternativamente, há comentadores que examinam o Parmênides à luz de um ensinamento oral de Platão, em doutrinas não-escritas achando as respostas aos enigmas do diálogo; enquanto para outros estudiosos o significado da obra e a solução de suas aporias seriam encontradas no próprio Parmênides e/ou em suas relações com os diálogos tardios, especialmente o Sofista.

Se houver, ainda está por ser descoberta a chave de leitura que resolva as principais querelas em torno dessa obra desafiadora. Enquanto isso, na crescente literatura a seu respeito, os intérpretes seguem com suas opiniões amplamente divididas acerca de questões tais como: que função atribuir a Parmênides e a Zenão no diálogo e que relação há entre as doutrinas historicamente defendidas por eles e o pensamento de Platão? Em que sentido deve-se compreender a crítica endereçada à teoria das Formas na primeira parte do diálogo? Qual o sentido do exercício dialético na segunda parte? Quais as relações entre as duas partes do diálogo? Que lições tirar de seu final aparentemente aporético? O que representa o Parmênides no conjunto da obra platônica? Essas e outras questões foram debatidas por platonistas brasileiros e estrangeiros no “XIII Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Platonistas: O Parmênides de Platão”, em outubro de 2017 na UFSM, cujos principais resultados ora se publica neste dossiê.

O Parmênides, trazendo uma contundente crítica à teoria das Formas, é considerado por muitos como assinalando uma crise no pensamento de Platão que o exige rever sua própria ontologia. Partidário dessa visão, Samuel Rickless revisita sua interpretação do Parmênides para, diferenciando-a de interpretações alternativas e defendendo-a de objeções, mostrar qual é, a seu juízo, o modo correto de ler o diálogo. Para ele, satisfatória é a leitura que, articulando os argumentos da primeira com os da segunda parte, demonstra como as Formas são salvas ao evidenciar as assunções constituintes da teoria que devem ser abandonadas porque falsas; tal é o caso da tese da Pureza das Formas, ou seja, a alegação de que as Formas não admitem a compresença de propriedades contrárias. Sendo as Formas tão impuras quanto os sensíveis, aquelas se apropinquam destes talvez por serem um gênero especial de coisas sensíveis.

José Gabriel Trindade Santos reflete sobre o significado e função da aporia no Parmênides. Também julgando que os resultados da parte II resolvem os problemas suscitados na parte I do diálogo, ele escrutina as aporias que surgem no debate entre Zenão e Sócrates e nas críticas de Parmênides às Formas, na primeira parte, e aquelas presentes nas conclusões paradoxais das hipóteses sobre o um, na segunda. Trindade Santos defende que a aporia tem a função propedêutica de preparar o interlocutor/leitor do diálogo para uma euporia, isto é, para encontrar uma resolução ao problema sob discussão. Nesse sentido, ele alega, Parmênides exerce uma dialética reformulada que não se restringe ao uso puramente negativo da redução ao absurdo zenoniana. Pondo em feito seu aspecto construtivo, as aporias da parte II denunciam a insuficiência da linguagem corrente para o estudo das relações mútuas das Formas. Os problemas decorrentes dessa constatação serão enfrentados e, eventualmente, resolvidos no Sofista.

Miguel Spinelli focaliza o prólogo do Parmênides buscando patentear o sentido da cena inicial que permite entender a arquitetônica de todo o diálogo. Em sua opinião, os personagens no introito do diálogo foram propositalmente escolhidos para representar uma anabasis no desenvolvimento histórico da filosofia: personagens oriundos da Jônia e da Magna Grécia simbolizam a amplitude dos kosmos histórico do filosofar que se concentra em Atenas. Spinelli vê a obra platônica como empenhada em fazer renascer o passado no presente, ou melhor, confluir o velho no novo. Nesse sentido, acredita o autor, aplicando o método característico dos exercícios dialéticos na academia ao tratamento do problema do Um e do Múltiplo, o Parmênides registra como a construção teórica de Platão se apoia nos pilares fixados pelos filósofos da natureza e por toda uma tradição precedente.

Renato Matoso também atenta ao prólogo do diálogo, dessa vez para evidenciar como a estrutura argumentativa do Parmênides se apresenta na estrutura narrativa de seu preâmbulo. Feito isso, ele examina minuciosamente o paradoxo de Zenão acerca da multiplicidade e a resposta avançanda por Sócrates que afirma ser a multiplicidade a condição natural das coisas sensíveis, mas desafia seja mostrado que o mesmo valha para o inteligível. Segundo Matoso, Sócrates opera com uma deliberada ambiguidade da noção de multiplicidade: “os seres são múltiplos” tanto pode significar uma multiplicidade númerica quanto uma multiplicidade de atributos que uma mesma coisa possui. Ele então mostra de que modo o desafio de Sócrates a Zenão foi crucial para consignar a uniformidade e a unidade como características essencias de cada Forma, exatamente os aspectos que tornam as Formas vulneráveis aos ataques de Parmênides por serem eles incompatíveis com a relação de participação dos sensíveis nos entes inteligíveis.

Em “Platão contra um certo platonismo: a crítica da hipótese das Ideias no Parmênides”, Marcio Soares chama a atenção para o que, a seu ver, seria o verdadeiro alvo da crítica do personagem Parmênides, qual seja, uma leitura equivocada da teoria das Ideias permitida pela falta de esclarecimento conceitual acerca da própria natureza das Formas e da distinção entre estas e seus participantes sensíveis. Estes pontos inexplicados são a causa de Parmênides tomar as Formas em um sentido fisicista, isto é, como tendo o mesmo status ontológico dos objetos empíricos. Mas a confusão cometida por Parmêndes, Soares argumenta, é, na verdade, um artifício ou estratégia de Platão para advertir seus leitores sobre mal-entendidos acerca de suas Formas inteligíveis.

O artigo de Gérson Pereira Filho advoga em favor do primado do aspecto metodológico sobre o ontológico no Parmênides. O autor destaca que a intenção de Parmênides é mostrar a Sócrates como realizar uma investigação lógico-racional de uma tese. Pereira Filho então procede a uma física e uma metafísica do tempo, noção presente na oitava consequência da primeira hipótese sobre o um. E tendo explorado a variedade de sentidos do conceito de tempo no Parmênides e em outros diálogos, discute a questão da temporalidade na obra de Platão reverberando a elaboração de Hector Benoit sobre as temporalidades como método de leitura do corpus platônico.

A abordagem dos diálogos desenvolvida pela escola de Tübingen-Milão é trazida pela contribuição de Dennys Garcia Xavier. Conforme esta linha interpretativa, existe uma protologia, isto é, uma doutrina sobre os princípios primeiros, conteúdo de ensinamentos orais na academia, que lança luz sobre os problemas contidos nos trabalhos escritos. Dentre as questões que essa protologia ajuda a resolver, uma das principais é o problema do um e do múltiplo ou de como derivar a multiplicidade a partir da unidade e reduzir à unidade a multiplicidade. Elementos das doutrinas não-escritas, Xavier alega, se apresentam de forma críptica na segunda parte do Parmênide. De acordo com ele, o Um e o Outro (a Diversidade) são os princípios primeiros com que Platão conta para explicar o “sistema de nexos” das Ideias com as coisas, das Ideias umas com as outras e, enfim, dos Princípios com as Ideias, tudo isso constituindo a totalidade organizada do real.

Como acima referido, o Parmênides intriga e divide os comentadores desde a época antiga, não se deixando facilmente classificar quanto a seu escopo e orientação filosófica geral. Chiara Bonuglia se volta a esse assunto ocupando-se com a recepção do Parmênides na tradição platônica dos primeiros séculos de nossa era, mais especificamente no médio platonismo. Ela reúne e avalia as evidências textuais em exegetas e autores antigos – Proclo, Alcino, Diógenes Laércio, entre outros – que corroboram o entendimento de que, ao menos no médio platonismo, prevaleceu a interpretação lógica do Parmênides, tomado como “diálogo expositivo” que ensinava o método lógico.

Em “Plotin et l’argument du troisieme homme”, Luca Pitteloud indaga qual teria sido a posição de Plotino a propósito do argumento do terceiro homem (TMA), objeção às Formas que o neoplatônico não menciona em parte alguma de sua obra, apesar de exaustivamente ter tratado da relação entre o sensível e o inteligível. Pitteloud demonstra que nas explicações oferecidas por Plotino para a participação não há espaço para quaisquer compromissos com quaisquer das premissas usualmente apontadas como geradoras do argumento do terceiro homem no Parmênides, notadamente, a autopredicação, a semelhança simétrica, o um sobre muitos; de sorte que, o argumento seria completamente anódino para o autor das Enéadas. Pitteloud conclui que a lógica de uma regressão ao infinito ascendendo do sensível ao inteligível é absolutamente incompatível com o pensamento de Plotino, que concebe, ao contrário, que a derivação descende do mais simples, o inteligível, o Nous, ao mais plural, o sensível.

A SBP, por ocasião do simpósio, prestou uma homenagem póstuma ao grande platonista brasileiro Marcelo Pimenta Marques, dedicando a sua memória uma mesa-redonda composta por professores e professoras que foram seus orientandos. Como resultado dessa seção, aqui se publica o artigo de Diogo Noberto Mesti, “Marques ilustrando as imagens no Sofista de Platão”, no qual o autor retoma o tema da imagem, tão caro a Marques, para elaborar sobre as epígrafes que o homenageado citara em seu livro, Platão, pensador da diferença, como ilustração do estututo ontológico da imagem.

Ao “pélago de palavras” formado pelas diversas aproximações e interpretações do Parmênides, permitimo-nos acrescentar a breve consideração seguinte. As aporias envolvidas na relação de participação entre Formas e sensíveis e aquelas que aparecem nas deduções do múltiplo a partir do um podem ser entedidas como preparando o terreno para a que talvez seja a mais fundamental inovação na ontologia platônica, da qual o Sofista é palco: a koinonia como condição de ser do que quer que seja. Ideia que tem uma implicação política importantíssima, pois não há cidade senão enquanto seus membros se mantêm em uma comunhão ordenada, na qual o múltiplo se unifica numa unidade que respeita a diversidade. Essa é uma lição platônica a ter no espírito, sobretudo quando nos vemos assolados por crises e por uma pandemia, e quando forças autoritárias emergem como ameaça ao presente e futuro próximo da sociedade humana.

Para finalizar essa apresentação, gostaríamos de expressar nossa gratidão pelas diversas formas de ajuda recebidas que tornaram possível o encontro de platonistas e a publicação deste documento. Agradecemos à CAPES, ao Departamento de Filosofia e ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSM pelos recursos financeiros e humanos sem os quais não teria havido o simpósio. Agradecemos à Revista Voluntas, na pessoa de seu editor-chefe Vilmar Debona, por publicar os resultados de nosso encontro. Esse dossiê, acreditamos, representa uma contribuição acadêmica importante da parceria entre a Voluntas e a Sociedade Brasileira de Platonistas.

Abreviaturas

 

Para abreviaturas das obras de Platão e de outros autores antigos, adota-se o sistema do Greek-English Lexicon (LSJ).

 

Albinus [Alb.]

Alb. Prol. = Introductio in Platonem

 

Alexander Aphrodisiensis [Alex.Aphr.]

Alex. Aphr. In Top = in Aristotelis Topicorum libros octo commentaria

 

Aulus Gellius [Gell.]

Aul. Gell. Noct. att. = Noctes Atticae

 

Diogenes Laertius [D.L.]

Diog. Laert. Vit. Phil. = Diogenis Laertii de clarorum philosophorum vitis . . libri decem

 

Plato [Pl.]

Alc. 1, 2 = Alcibiades 1, 2

Ap. = Apologia

Chrm. = Charmides

Cra. = Cratylus

Cri. = Crito

Ep. = Epistulae

Epin. = Epinomis

Euthd. = Euthydemus

Euthphr. = Euthyphro

Grg. = Gorgias

Hp.Ma., Mi. = Hippias Major, Minor

Ion

La. = Laches

Lg. = Leges

Ly. = Lysis

Men. = Meno

Mx. = Menexenus

Phd. = Phaedo

Phdr. = Phaedrus

Phlb. = Philebus

Plt. = Politicus

Prm. = Parmenides

Prt. = Protagoras

R. = Respublica

Smp. = Symposium

Sph. = Sophista

Tht. = Theaetetus

Ti. = Timaeus

 

Plotinus [Plot.]

Enn. = Enneades

 

Proclus [Procl.]

Procl. In Prm = in Platonis Parmenidem commentarii