Submissão: 28/02/2020 Aprovação: 15/03/2020
Publicação: 15/04/2020
Fluxo
Contínuo
A alegria, a graça e a felicidade segundo Clément
Rosset[1]
Joy, grace and happiness
according to Clément Rosset
José Thomaz Brum
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Traduzido por
Dax Moraes
Professor Adjunto no Departamento de Filosofia da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN
Resumo: Este artigo tem por
objetivo apresentar as concepções de alegria, graça e felicidade nas obras de Clément Rosset.
Palavras-chave: Alegria;
Graça; Felicidade; Clément Rosset
Abstract: This article aims to
present the conceptions of joy, grace and happiness in Clément Rosset’s works.
Keywords: Joy; Grace; Happiness;
Clément Rosset
A alegria
A alegria é um tema constante na obra de Clément Rosset. Em seu primeiro livro, La philosophie tragique [A filosofia trágica] (1960), podemos
ler: “A alegria deve ser buscada
não na harmonia, mas na dissonância!”[2]. Em Le monde et ses remèdes [O mundo e seus remédios] (1964), nós
encontramos:
Há,
de fato, uma única forma de aquiescência ao real, que consiste em uma potência
puramente “irracional”, isto é, uma pura “dádiva” que não procede de nenhuma
causa nem de razão alguma, trata-se da alegria, ou, se se preferir, do absurdo
dinamismo vital, um imotivado desejo de ser[3].
Em
Le réel: traité de l’idiotie [O
real: tratado sobre a idiotia] (1977), a alegria [joie], (allégresse)[4] é compreendida como “o
amor do real”[5]
e Rosset afirma que ela supõe “um sentimento do real”[6]. L’objet
singulier [O
objeto singular] (1979), por sua vez, nos adverte: “A intensidade da
alegria pode ser medida pela quantidade de saber trágico que ela implica”[7]. Em cada um desses
registros nós encontramos o “pensamento maior” de Rosset: a alegria que importa
ao homem não é um contentamento que produza o esquecimento, a fuga perante o
real. A alegria que nos é preciosa consiste em uma força de admissão da grande
“verdade amarga” que perturba a vida: a morte.
Clément
Rosset desenvolveu em seus livros uma filosofia da alegria como uma “noção
capaz de dar conta desse paradoxo da perpetuação da vida no seio da morte”[8]. Eis porque a noção de
alegria não é, em Clément Rosset, algo de frívolo ou
etéreo. “Força maior”, como diz o título de seu livro de 1983, a alegria é a
única maneira de aceitar a existência em sua efemeridade e sua perecibilidade, e de desejá-la
como tal[9].
A graça
Se lemos Rosset atentamente, chegamos à conclusão de que a
alegria se liga a outra noção: a de graça. Em Le monde et
ses remèdes, Rosset
afirma: “Essa aquiescência à vida – que é uma ‘graça’ – é a única forma de
adaptação ao real, pois consiste em uma lucidez incontestável”[10]. Rosset, aqui, une o pensamento da alegria e o
pensamento lúcido, pois se trata de afrontar a “náusea” produzida pelo
pensamento sobre a morte; o pensamento que “perturba a degustação do real”[11]. Se “o conhecimento da morte desfaz todas as
bem-aventuranças [bonheurs]
da terra”[12], como podemos continuar a viver? Como podemos afirmar
uma existência “destinada à morte”[13]?
Há,
na obra de Clément Rosset, um texto privilegiado para
abordar essa questão: é o “Epílogo” de Le réel: traité de l’idiotie, antes
publicado sob o título “Savoir philosophique,
savoir de la
mort” [Saber filosófico, saber sobre a morte][14]. Esse texto pode ser
considerado como a síntese mais profunda de Clément
Rosset no que concerne à alegria. Nele, Rosset apresenta a graça como a
única noção capaz de afirmar a vida sem eliminar o pensamento sobre a morte. A graça no sentido jurídico, mágico,
estético e teológico. A graça como um “auxílio inesperado” ou como “a
superação [levée][15] final do malefício”. A graça,
acima de tudo, como um presente gratuito que nos é dado “em acréscimo”[16]. Mas Rosset enfatiza que
há algo “que resume toda a potência da graça sem que quanto a isso, no entanto,
se tenha de questionar uma indefinida instância sobrenatural”[17].
Essa
força não sobrenatural, “porém não menos misteriosa”[18], é a alegria [l’allégresse ou la joie]. A alegria é uma graça que nos ensina a amar o
real. A alegria é uma graça que nos permite degustar “uma existência efêmera,
perecível, sempre mutante [...]”[19]. Somente a alegria nos
permite degustar “o sabor da existência”, que é “o do tempo que passa e muda”[20]. Unindo “alegria” e
“existência”, Rosset culmina em uma filosofia da alegria de viver, sendo
a alegria a única força “ordinária” [courante] capaz de afrontar o trágico da vida.
A felicidade
Podemos dizer que há um pensamento sobre a felicidade
em Rosset? Sim, se à felicidade se vincula “a vivacidade da alegria de
viver pelo alegre reconhecimento [reconnaissance joyeuse] do caráter efêmero da vida”[21]. Não, se essa felicidade nos remete a algum
“otimismo” com relação à existência. À felicidade romântica, idealista, Rosset
opõe a felicidade trágica, “veloz e inelutável”[22].
O
filósofo mais indicado para ilustrar esse gênero de felicidade louvada por
Rosset é Friedrich Nietzsche. O Nietzsche do livro IV do Zaratustra, que
fala no “Canto ébrio”: “Lust ist tiefer noch als
Herzeleid” (“A alegria pesa mais do que a
tristeza”)[23], ou antes o Nietzsche das
páginas [iniciais] do Caso Wagner (1888) consagradas a Carmen.
Rosset, em A força maior, cita as palavras de Nietzsche que descrevem a
música “seca e límpida” de Bizet: “Ihr Glück ist kurz,
plötzlich, ohne Pardon” (“sua felicidade é breve, repentina, sem
perdão”)[24]. Essa é a única
felicidade admirada por Rosset, uma felicidade que se deixa atravessar pela
crueldade, a brusquidão e a brevidade da existência.
Referências
NIETZSCHE, F. Der Fall
Wagner – Ein Musikanten-Problem. Sämtliche
Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. KSA 6. Hrsg. von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Munique: de Gruyter, 1980.
ROSSET, C. La
philosophie tragique. Paris: PUF, 1960.
ROSSET, C. Le monde et
ses remèdes. Paris: PUF, 1964. (2. ed. 2000).
ROSSET, C. Le réel: traité de l’idiotie. Paris: Minuit,
1977.
ROSSET, C. L’objet
singulier. Paris: Minuit, 1979.
ROSSET, C. La force
majeure. Paris: Minuit, 1983. [trad. br.: Alegria: a força maior. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000.]
ROSSET, C. Le choix
des mots (suivi de La joie et
son paradoxe). Paris: Minuit, 1995.
ROSSET, C; MAUNOURY,
J.-L. De la joie et du réel, et de quelques autres mots. Atelier Clément
Rosset, 2008. Disponível em: <http://pierre.campion2.free.fr/rosset_maunoury.htm#_ftn1>. Acesso em: 13 fev. 2020.
ROSSET, C.; POIRIÉ, F.
Clément Rosset: une jubilation tragique. ArtPress,
Paris, fev. 1989.
[1] N.T.: Originalmente
publicado sob o título La joie, la grâce
et le bonheur selon Clément Rosset no periódico francês Alkemie: Revue
semestrielle de littérature et philosophie, n. 11 (Dossiê temático “Le
Bonheur”), junho de 2013, p. 54-56.
[2] ROSSET, La
philosophie tragique, 50. N.T.: Ver também p. 69: “Pour les musiciens:
ré-fa-la c’est l’harmonie. Si bemol c’est le tragique. Ré-fa-la-si bemol c’est
l’accord dissonant, c’est l’homme” [Para os músicos, ré-fá-lá é a harmonia. Si bemol é o
trágico. Ré-fá-lá-si bemol é o acorde dissonante, é o homem]
(apud: BRUM, J. T. Clément Rosset e Schopenhauer. In: Carvalho, R.; Costa, G.; Arruda, J. M. (Orgs.). Nietzsche-Schopenhauer: gênese e significado da genealogia.
Fortaleza: UECE, 2012. p. 14, n. 4).
[3] ROSSET, Le
monde et ses remèdes, 165. N. T.: Uma segunda edição, levemente revista pelo
autor, foi publicada em 2000, na qual o trecho citado pertence ao Epílogo, p.
157.
[4] N.T.:
Parênteses do autor, a quem agradeço pela indicação da seguinte elucidação
feita pelo próprio Rosset em uma entrevista concedida a Jean-Louis Maunoury: allégresse, ou joie, “implique quelque chose de plus stable, plus durable
[...] la gaieté
me semble plus tributaire de l’occasion alors que la joie
et l’allégresse ne dépendent
pas de l’occasion”
[implica algo de mais estável, mais durável [...] o contentamento parece-me
mais tributário da ocasião, ao passo que a alegria não depende da ocasião] (“De
la joie et du réel, et de quelques autres mots” [Sobre a alegria e o real, e sobre algumas outras
palavras, La Mètis, n. 3 (“La Joie”), julho de 1990; republicada em seu livro de 2013, Faits divers, Paris, PUF, p. 41-52 – o trecho
aqui citado encontra-se na p. 42).
[5] ROSSET, Le
réel, 78.
[6] Idem, ibidem,
80.
[7] ROSSET, L’objet
singulier, 102.
[8] ROSSET, Le
réel, 74.
[9] N.T.: Ver
ROSSET, La force majeure, 20.
[10] ROSSET, Le
monde et ses remèdes, 165. N.T.: 2. ed., p. 157. No original, “aveuglante lucidité”.
[11] ROSSET, Le
réel, 66.
[12] Idem, ibidem,
69.
[13] Idem, ibidem,
70. N.T.: “[...] due à la mort”. O autor adaptou de modo a incorporar em sua própria
sentença a expressão original de Rosset “dus à la mort”. A fim de evitar uma incorreta interpretação de
que haja qualquer relação causal, ou de condição a consequência, entre morte e
existência, a tradução verteu due como
“destinada” e não como “devida”. É nesse ínterim que Rosset remete ao
pensamento 63 de Horácio na Arte poética: Debemur
morti nos nostraque –
estamos destinados à morte, nós e tudo que é nosso. Então, explica Rosset:
“Isso que morre é mesmo eu, mas também tudo aquilo de que esse eu se instruiu e
de que se nutriu”.
[14] ROSSET,
C. Savoir philosophique, savoir de la mort. Annales de la Faculté des
Lettres et Sciences Humaines de Nice - n. 32: Le savoir philosophique. Paris: Belles Lettres, 1977. p.
131-138.
[15] N.T.: A
tradução procura verter a palavra levée sem
que se perca a dimensão tragicamente positiva dessa abolição, revogação,
supressão, pois o malefício, a morte inclusa, não é de modo algum “aniquilado”,
mas admitido.
[16] ROSSET, Le
réel, 76.
[17] Idem, ibidem,
77.
[18] Loc. cit.
[19] ROSSET, La
force majeure, 20. N.T.:
Trad. br., 20.
[20] Loc. cit.
[21] Clément
Rosset, entrevistado por François Poirié, “Une jubilation tragique”, 57. N.T.:
Entrevista realizada por ocasião da recente publicação de O princípio de
crueldade, traduzido para o português por José Thomaz Brum e, atualmente,
com edição esgotada.
[22] N.T.: Cf.
ROSSET, La force majeure, 48 (trad. br.).
[23] Essa sentença
de Nietzsche, frequentemente mencionada por Rosset, aparece, por exemplo, em Le
choix des mots [A escolha
das palavras], p. 107. N.T.: Trata-se da sentença final do §8, cujo teor é
tornado mais claro na versão oferecida por Brum. É significativo que as
entrevistas de Rosset com Alexandre Lacroix tenham
sido reunidas em livro precisamente sob o título La joie
est plus profonde que la tristesse.
[24]
NIETZSCHE, Der Fall Wagner, 15. N.T.: Ver “Sobre Nietzsche, Nietzsche e
a música”, in ROSSET, La force majeure, p. 47-48 (trad. br.). Rosset retoma o
assunto a partir da mesma citação ao final da primeira parte de O princípio
de crueldade, intitulada “O princípio de realidade suficiente” (ROSSET, C. O
princípio de crueldade. Trad. José Thomaz
Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 27).