Submissão: 12/11/2019 Aprovação: 04/12/2019
Publicação: 18/12/2019
Fluxo
contínuo
Liberdade, responsabilidade moral e justiça eterna em Schopenhauer
Freedom, moral responsibility
and eternal justice in Schopenhauer
Aguinaldo
Pavão
Professor
do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade
Estadual de Londrina (UEL).
Resumo: Para Schopenhauer, a liberdade moral não pode ser
entendida como um poder que o homem teria de, a cada ação, decidir agir de um
modo ou de outro com base em sua própria vontade. Embora as ações humanas
estejam submetidas à mais estrita necessidade, a responsabilidade é possível
haja vista que a vontade do homem como coisa em si, seu caráter inteligível, é
livre. Além disso, Schopenhauer defende que o mundo é regido pela justiça
eterna. De acordo com essa noção, a atribuição de responsabilidade moral ao atormentador
pelos sofrimentos que causa ao atormentado prende-se a uma diferença que não
atinge a coisa em si. Algoz e vítima são unos, visto que a vontade vive em
ambos. Nesse artigo, exploro esses pontos para tentar mostrar o insucesso de
Schopenhauer ao procurar elucidar os juízos de responsabilidade moral.
Palavras-chave: Liberdade; Responsabilidade; Vontade; Justiça
eterna
Abstract: According
to Schopenhauer, moral freedom cannot be understood as a power that man would
have, at every action, to decide to act in one way or another on the basis of
his own will. Although human actions are subject to the strictest necessity,
responsibility is possible since man's will as a thing in itself, its
intelligible character, is free. Moreover, Schopenhauer argues that the world
is governed by eternal justice. According to this notion, the attribution of
moral responsibility to the tormentor for the sufferings he causes to the
tormented is linked to a difference that does not affect the thing itself.
Tormentor and the victim are one, since the will lives in both. In this
article, I explore these points to try to show Schopenhauer's failure to elucidate
judgments of moral responsibility.
Keywords:
Freedom; Responsibility; Will; Eternal justice
Introdução
No início de Sobre
a liberdade da vontade, Schopenhauer sustenta que o conceito de liberdade,
em seu sentido físico, implica o reconhecimento de que homens e animais são
considerados livres quando nada obstaculiza suas ações, isto é, quando eles
podem agir sem que laços, prisões ou paralisias os detenham. Em suma, quando
nenhuma oposição física ou material impede que suas ações ocorram de acordo com
suas vontades (E I, 32). Ao que tudo indica, o reconhecimento da liberdade
física permite a admissão da liberdade de ação. Nesse caso, parece coincidirem
as posições de dois célebres compatibilistas, Hobbes e Hume, com a de
Schopenhauer[1]. Haveria
assim lugar na teoria Schopenhauer para a assimilação compatibilista da
liberdade à necessidade ou da liberdade ao determinismo. Será realmente esse o
caso?
A resposta
para essa pergunta não apresenta maiores dificuldades. Ela consiste em perceber
que a liberdade da ação admitida não envolve nada de moralmente relevante.
Quando Schopenhauer discute a liberdade moral, ele nega a liberdade da ação.
Pode-se dizer que a liberdade da ação só vale em termos físicos, sem relevância
para a discussão moral. Ora, esse não é o caso de Hobbes e Hume. Eles assumem
consequências morais quando afirmam a liberdade de ação e negam a liberdade da
vontade. A responsabilidade moral não requer a liberdade da vontade nesses
autores, o que não é o caso de Schopenhauer. Sendo assim, sinto-me autorizado a
afirmar que a comitiva de predecessores de Schopenhauer, destacada no capítulo
4 de Sobre a liberdade da vontade, representa uma comitiva de
antecessores e aliados num aspecto que tem relevância moral menor, pois a
contribuição deles é meramente negativa, isto é, eles (especialmente Hobbes, e
Hume[2]) não são
autênticos aliados de Schopenhauer quando se trata de pensar a noção de
responsabilidade moral. Na verdade, penso que, num sentido mais rigoroso, tendo
em vista a compreensão unidimensional que eles adotam, Hobbes e Hume acabam
subtraindo as bases da responsabilidade moral.
Schopenhauer,
assim, pode até ser considerado um compatibilista se pensarmos apenas na
liberdade física e na intelectual, porém, como essas duas formas de liberdade
não garantem a imputação moral, ele não é um compatibilista quando pensamos,
como se costuma fazer, que o compatibilismo diz respeito à compatibilidade entre
a existência de agentes livres e moralmente responsáveis e o determinismo
natural. Uma declaração no capítulo 5 de Sobre a liberdade da vontade
deixa claro o fato de Schopenhauer não se alinhar com compatibilistas de índole
análoga a de Hobbes e Hume.
A liberdade não é
removida pela minha exposição, mas apenas deslocada do domínio das ações
individuais, onde é demonstrável que não pode ser encontrada, para uma região
superior, não tão fácil de acessar para a nossa cognição: ela é transcendental
(E I, 109).
Sobre seu não alinhamento com os compatibilistas, cabe
citar ainda a seguinte passagem dos Parerga:
Depois de meu
ensaio premiado sobre a liberdade moral nenhuma pessoa pensante pode ainda
duvidar de que esta não deve ser buscada de modo algum na natureza, mas
unicamente fora dela. A liberdade moral é algo metafísico, impossível, porém,
no mundo físico (PP II, Sobre ética, § 116, 70).
Vale
destacar a postura profundamente consequente de Schopenhauer com relação à tese
da não liberdade moral das ações (isso precisa ser computado como um de seus
notáveis méritos)[3]. Embora, como indicado, ele se alinhe ao
compatibilismo de Hobbes e Hume, colocando esses filósofos como seus
predecessores, uma vez que, como eles, assume o determinismo dos eventos naturais,
ele também assume o determinismo das ações com a coerente consequência de que
esse determinismo subtrai a liberdade (moral) delas[4], o que – insisto - Hobbes e Hume não fizeram. Se o
mundo dos fenômenos se refere tão somente ao conhecimento, regido pelo
princípio de razão, a necessidade precisa ser admitida sem reservas. Ora,
admitida a necessidade de tudo o que ocorre, temos de admitir, se quisermos ser
coerentes, a impossibilidade de ações verdadeiramente livres, isto é, temos de
aceitar que ações livres não podem ter lugar no mundo considerado apenas do
ponto de vista da representação. Ora, a liberdade no sentido moralmente
relevante implica negação da necessidade. Logo, deve ela ser encontrada e
reconhecida em outro domínio, ou declarada impossível. Mas, como a citação
acima deixa claro, Schopenhauer de modo algum sugere ser a liberdade moral das
ações algo impossível ou quimérico.
Antes
de prosseguir, gostaria de abrir um parêntese. Preciso registrar que não é meu
objetivo nesse texto recuperar teses gerais da cosmologia schopenhaueriana e
tampouco discutir teses interpretativas sobre se o mundo como vontade e como
representação seria apenas um duplo ponto de vista, ou envolveria algo de cunho
ontológico quando considerado como vontade. Uso a expressão “ponto de vista” a
partir do que se pode ler, por exemplo, em O
mundo, tomo I, § 27 e § 71.
O que em si é
vontade existe de outro ponto de vista como representação, ou seja, é aparência
[was an sich Wille ist, ist andererseits
als Vorstellung da, d.h. ist Erscheinung] (W I, § 27, 203).
Esta vontade e
este mundo são justamente nós mesmos, e a ele pertence à representação em geral
como um de seus lados: a forma desta representação é espaço e tempo, de modo
que, deste ponto de vista [für diesen Standpunkt], tudo o que existe tem
de estar em algum lugar e num dado tempo (W I, § 71, 517).
Pois bem, que Schopenhauer se comprometa com a tese da
necessidade das ações, parece não pairar dúvidas. Ainda assim, abonos são
sempre bem-vindos. Em Sobre a liberdade
da vontade encontramos explicitamente a alegação segundo a qual é preciso
remover “inteiramente
a liberdade das ações humanas, reconhecendo-as como completamente subordinadas
à necessidade mais estrita” (E I, 105)[5].
I.
Acredito,
todavia, que o raciocínio de Schopenhauer, embora faça sentido em grandes
linhas, apresenta um embaraço incontornável para a elucidação dos juízos de
reponsabilidade moral. Explico-me. Um juízo
de responsabilidade moral somente é possível quando podemos afirmar que
determinada ação praticada pode ser imputada ao agente. Esse, por sua vez,
precisa ser entendido como um ser livre do qual promana a ação a ele atribuída
(como um feito seu)[6], portanto um agente entendido como autor no sentido
forte, que poderia ser chamado de uma causa livre e, assim, jamais um mero elo
numa cadeia causal.
Pergunto, porém, ao leitor desse texto: você acredita
que está exercendo agora sua liberdade, que está sendo livre lendo esse artigo?
Imagino que seria muito razoável afirmar que sim. Você está livremente
dedicando sua atenção a essas linhas, pois se quisesse poderia interromper a
leitura. Você é livre porque depende de você não apenas fazer o que quer fazer,
mas poder, se quiser, não fazer o que está fazendo. E afirmar que esse “se
quiser” depende de você significa dizer que depende da sua vontade. Não seria
um abuso glosar essa última frase assim: depende da decisão que você tomar.
Você pode decidir prosseguir a leitura ou abandoná-la. Você controla a ação (ou
se quiser, acredita que controla[7]). E você presumivelmente faz isso não apenas como
alguém que continua lendo porque quer, sendo indiferente ao fato de, por
exemplo, poder sair da cabine de estudos da biblioteca e ir tomar água no
bebedouro a 10 metros de distância. Não me parece possível sermos indiferentes
em nossa autocompreensão de sujeitos livres com respeito ao fato de
alternativas de ação estarem em nosso poder.
Schopenhauer,
quando saía para passear com o lendário poodle Atma, acreditava que sua ação
não era livre? Ele acreditava, antes de pôr o pé na rua com seu cão, que certos
motivos se apresentavam e que ele, tendo tal caráter, não poderia fazer outra
coisa do que passear em tal horário com o amável Atma? Se fosse assim, parece
que ele propriamente não agia, mas algo nele agia, os motivos e o caráter como
causas do passeio com o poodle. Digo que algo agia nele e não ele propriamente,
pois a ideia de que os motivos não possam ser reconduzidos à nossa
individualidade moral parece pacífica – com efeito, eles comportam sempre uma
exterioridade em relação a nosso ser moral. “Todos os motivos são causas e toda
causalidade traz consigo necessidade” (E I, 57). Já o mesmo, aparentemente, não
pode ser dito do caráter. Poder-se-ia dizer que ele se confunde com nosso
próprio “eu moral”.
Antes de
avançar e abordar o tema do nosso ser em si moral, vale registrar que
Schopenhauer aproxima-se muito do reconhecimento da procedência da alegação que
venho fazendo. Com efeito, ele diz:
como é o querer livre que se torna visível na pessoa e
em toda a sua conduta, estando para esta como o conceito está para a definição,
segue-se que cada ação isolada do ser humano deve ser atribuída à vontade livre
e também se apresenta imediatamente enquanto tal à consciência: eis por que cada
um de nós [...] considera a si mesmo a
priori (vale dizer, segundo seu sentimento originário) livre, inclusive nas
ações particulares, no sentido de em qualquer caso dado ser possível qualquer
ação, porém só a posteriori, a partir
da experiência e da reflexão sobre ela, reconhece que seu agir foi produzido de
modo completamente necessário a partir do confronto do caráter com os motivos (W I, § 55, 374).
Há algumas
dificuldades em torno dessa passagem. Primeiro, Schopenhauer, logo na
sequência, desconsidera esse sentimento dizendo que seguir esse sentimento
originário seria próprio de uma pessoa tosca. Em segundo lugar, ele não admite
que eu possa licitamente considerar que poderia
ter agido de modo diferente. Ele aceita o sentimento de que, ao agir, penso que
posso agir de modo diferente.
Ademais, Schopenhauer em Sobre a
liberdade da vontade não consagra relevância ao sentimento de liberdade da
ação, mas ao sentimento de responsabilidade. É o sentimento de responsabilidade
que pode com legitimidade servir de sustentação para se afirmar a liberdade
(cf. E I, 105). Nesse sentido, também é importante destacar que, para
Schopenhauer, há uma diferença capital entre (i) tentar apoiar a liberdade da
vontade individual num sentimento e (ii) tentar fundá-la na autoconsciência.
Este último
tópico, sobre o possível fundamento da liberdade da vontade na autoconsciência,
é tratado em detalhes por Schopenhauer em Sobre
a liberdade da vontade. Para ele, resumidamente, a autoconsciência é
incapaz de fazer um pronunciamento válido sobre se nossa vontade é livre para
querer o que quer. A autoconsciência consegue licitamente apenas afirmar que
“posso fazer o que quero” (E I, 41). E, como indiquei acima, Schopenhauer
corretamente considera isso insuficiente em termos morais, pois, sob o ponto
vista moral, não basta admitir a liberdade física e intelectual[8].
Vale insistir nessa ideia: em que pese a negação da
liberdade das ações, Schopenhauer, como defensor da validade dos juízos de
responsabilidade moral, defende, coerentemente, a existência da liberdade moral
(por ele chamada de “verdadeira liberdade moral” [wahre moralische Freiheit], que não se confunde com a doutrina do
livre arbítrio). Não se trata mais de pensar apenas em motivos, uma causalidade
em última instância física, mas de considerar o nosso caráter inteligível, pois
é ele que confere significado metafísico à noção de autoria moral[9] sem a qual os juízos responsabilidade seriam tão
somente atos verbais. Nessa perspectiva, cabe assinalar que Schopenhauer
sustenta que somos autênticos autores de nossas ações, não apenas porque operari sequitur esse, mas, mais
profundamente, porque
tão somente se a
essência íntima do ser humano é sua própria vontade, por conseguinte,
apenas se ele, no sentido mais estrito do termo, é sua própria obra, são seus
atos exclusivamente seus e assim são-lhes imputáveis. Por outro lado, se o ser
humano tem uma origem outra ou é obra de um ser diferente de si mesmo, toda a
sua culpa recai sobre essa origem ou autor (W II, cap. 47, 704).
Essa importante tese do capítulo 47 dos Suplementos já havia sido apresentada no
§ 55 do tomo I de O mundo, embora sem
referência expressa à imputação. No tomo I, Schopenhauer havia dito que o
“homem é a sua própria obra antes de todo conhecimento” (W I, § 55, 379). Essa
parte em que se lê “antes de todo conhecimento” dá ensejo à pergunta singela:
como posso ser obra de mim mesmo antes de todo conhecimento? Como posso
escolher ser isto ou aquilo sem conhecimento? Eu não dispunha de alternativas
rivais para decidir ser quem eu sou? Se eu sou minha própria obra, que tipo de
artífice de mim mesmo eu sou?
Deve-se
conceder que o conhecimento do que se é, ainda que não pleno, joga luz na
possível autocompreensão do sujeito moral como autor de suas ações. Se, com o
tempo, chego a conhecer que minha índole moral é egoísta num grau acentuado,
torna-se mais fácil entender que as ações injustas que realizo e a indiferença
que sinto em relação ao sofrimento alheio são minhas, pois estampam, como num
selo, o carimbo de um caráter inteligível moralmente deficiente em termos
morais[10].
Quando pensamos em decisão, pensamos em ponderação de
alternativas rivais. Ao terminar de escrever esse texto, ou ao suspender sua
escrita para um descanso, posso fazer um pequeno passeio com minhas filhas ou
ir à cozinha preparar mais um café para logo voltar a essas linhas (entre
outras alternativas, claro). Para tanto, preciso entender o que significa fazer
um passeio com minhas filhas ou preparar um café. Ou seja, é preciso, para
acreditar que exerço essa liberdade, ter algum conhecimento das alternativas
disponíveis (não posso, como ser humano, guiar minha conduta sem o auxílio de
conceitos, sendo, pois, decisiva a liberdade intelectual). E quando decido ser
o ser moral que sou, eu decido com base em algum conhecimento de alternativas
possíveis? No primeiro caso, de acordo com Schopenhauer, não - o caso das
ações, pois nelas impera o determinismo. A rigor, no caso do meu agir, a
decisão é assistida por mim, ou dito de forma mais franca, a decisão é tomada em
mim, mas não por mim[11]. Talvez se possa conceder isso às ações (façamos essa
concessão para argumentar). Mas e no segundo caso, no caso em que eu sou minha
própria obra[12]? Como entender a decisão, se é que há uma, com
respeito a eu ser quem sou? Essa pergunta tem, por certo, uma importância
crucial para entendermos a moralidade desse ser que é autor de si mesmo. E não
acredito que ajude a esclarecer a afirmação de que “nosso caráter deve ser
visto como o desdobramento temporal de um ato extratemporal, portanto,
indivisível e imutável da vontade” (W I, § 55, 389). Com efeito, há necessidade
de mais detalhes sobre o que pode vir a significar “ato extratemporal da
vontade”. Como devemos entendê-lo? Ora, não se encontra em Schopenhauer os
pormenores sobre o significado dessa expressão. Se pensarmos em jogar alguma
luz afirmando que se trata de uma metáfora, de um recurso último da linguagem,
não logramos êxito. Ao menos eu não entendo o que possa vir a significar alguém
responder moralmente por algo que não fez, não escolheu, por algo que não é seu
ato no sentido comum do termo, isto é, o fazer ou agir intencional próprio dos
seres humanos[13].
A meu ver, o
sentimento de que somos livres ao agir, mesmo que tenha um fundo filosófico
frágil[14], é
constitutivo de nossa autocompreensão. Insisto sobre esse ponto, ao qual já me
referi antes ao falar sobre a autocompreensão do sujeito e da aparente
impossibilidade de sermos indiferentes à existência de alternativas rivais para
os cursos de ação que adotamos. Nesse contexto, julgo oportuno chamar a atenção
para a passagem em que Schopenhauer, ainda considerando uma ilusão a liberdade
do agir e do querer individual, isto é, considerando essa autocompreensão como
ilusória, a qualifica de natural. Vejamos.
‘Posso fazer o
que quero’, que nós examinamos extensamente no primeiro capítulo, algo que
ouvimos especialmente quando vários motivos exercem influência entre si por
solicitações e exclusões recíprocas. Então, tudo isso em conjunto é a fonte da
ilusão natural [natürlichen Täuschung], pela qual floresce o erro de que
em nossa autoconsciência há a certeza de uma liberdade de nossa vontade, no
sentido de que, contrariamente a todas as leis do entendimento puro e da
natureza, está algo que decide sem razão suficiente, e que suas decisões, em
dadas circunstâncias, poderiam resultar nesta direção ou em outra direção
oposta em um e mesmo homem (E I, 62).
Mesmo que
seja uma ilusão natural [natürlichen Täuschung], a crença na liberdade
do agir e do querer individual tem de ser acolhida na elucidação dos juízos de
responsabilidade moral. Interpreto, assim, a ilusão natural a que Schopenhauer
faz referência como uma ilusão necessária, constitutiva de autocompreensão que
os seres humanos têm de si mesmos. O acolhimento da crença na liberdade do agir
e do querer individual é decisivo sobretudo quando se trata de pensar a
autoatribuição de reponsabilidade. Nesse sentido, poderia parecer mais
aceitável se essa ideia fosse restringida à primeira pessoa (o agente), sem
estendê-la à terceira pessoa (o observador). Defendo, porém, que se estou, de
alguma forma, autorizado a considerar a mim mesmo responsável por me julgar
capaz de agir e querer livremente, devo, por analogia, aplicar o mesmo para
outros seres humanos.
Na linha dessas reflexões, outro
ponto merece atenção. Schopenhauer confia no sentimento de responsabilidade,
considerando-o perfeitamente claro e seguro (E I, 105). Para ele, o sentimento
de responsabilidade autentica a legitimidade da tese de que eu sou o autor de
minhas ações, sendo tal sentimento o único dado que pode garantir a liberdade
moral e a consequente imputação das ações ao caráter do homem (cf. E I, 106).
Ora, por que confiar apenas no sentimento de responsabilidade e não confiar no
sentimento de liberdade? Não seria igualmente possível considerar ilusório
também o sentimento de reponsabilidade? Talvez. É importante frisar, contudo,
que a perspectiva mais estimulante envolve o entendimento de que esses
sentimentos são inabaláveis e compõem nossa própria constituição psicológica.
Resulta, a meu ver, ocioso afirmar que o sentimento de que sou livre é ilusório,
pois não temos como extirpá-lo sem com isso erradicar as bases da
reponsabilidade moral. Além disso, se tal sentimento é constitutivo de nossa
estrutura psicológica, não faz diferença que seja destituído de conteúdo, isto
é, que não denote nada diferente dele mesmo.
II.
A referência à relação entre sentimento e
reponsabilidade nos conduz a um outro e instigante tópico. Refiro-me à noção de
justiça eterna. De acordo com essa noção, a atribuição de responsabilidade
moral ao atormentador pelos sofrimentos que causa ao atormentado prende-se a
uma diferença que não atinge a coisa em si, pois algoz e vítima são unos, visto
que “a vontade vive em ambos” (W I, § 63, 452). O mundo é responsável pelo
próprio mundo.
Em tudo o
que acontece ou pode acontecer a cada um a justiça sempre lhe é feita. Pois sua
é a vontade: e tal como a vontade é, é o mundo. A responsabilidade [Verantwortlichkeit]
pela existência e índole deste mundo só este mundo mesmo pode assumir; ninguém
mais; pois como outrem poderia ter assumido essa responsabilidade? – Caso se
queira saber, em termos morais, o que valem os humanos no todo e em geral,
considere-os em seu destino no todo e em geral: trata-se de carência, miséria,
penúria, tormento e morte. A justiça eterna prevalece: se os seres humanos
tomados como um todo não fossem tão índigos, então o seu destino tomado como um
todo não seria tão triste (W I, § 63, 449-450).
Provavelmente será admitido por todos, sem maiores
dificuldades, que tal pensamento gera um notório desconforto. Em Sobre a
liberdade da vontade encontra-se a afirmação de que nos sentimos
responsáveis por nosso ser, sentimento que subscreve filosoficamente a
legitimidade dos juízos de louvor e censura dirigidos a indivíduos. Contudo, na
passagem citada, Schopenhauer nos diz que o mundo é responsável pelo próprio
mundo, o que implica uma inculpabilidade moral universal. Ora, ou a
reponsabilidade individual é válida e consistente na filosofia de Schopenhauer,
indo de encontro à justiça eterna, ou a justiça eterna é um desdobramento
imprescindível da metafísica pessimista do autor de O mundo e interdita
as pretensões de justificação da responsabilidade moral dos seres humanos
(entendidos, claro, no sentido de seres individuais). Diante disso, sou do parecer
de que a justiça eterna não pode ser acolhida por quem queira esclarecer
filosoficamente a reponsabilidade moral dos indivíduos. Outrossim, julgo que,
para o autor de O mundo, a justiça eterna possui proeminência metafísica
de maior vulto diante da responsabilidade moral individual. Por conseguinte,
sinto-me compelido a declarar que considero a tentativa de Schopenhauer de
esclarecer os juízos louvor e censura morais uma tentativa frustrada. Na
sequência, tentarei deixar mais clara essa posição mostrando a relevância do
problema acerca da conflituosa relação entre responsabilidade moral e justiça
eterna.
Preliminarmente,
deve-se notar que, no I tomo de O mundo, somente ao falar de justiça
eterna (§ 63) é que Schopenhauer se refere à reponsabilidade [Verantwortlichkeit] [15]. Ora, como não se trata da responsabilidade de um
indivíduo pelos seus atos, mas sim de uma responsabilidade que poderia ser
chamada de supra individual ou cosmológica, parece-me plenamente compreensível
que se indague: como é possível atribuir responsabilidade ao um ser como o
mundo, algo não individual, desprovido do sentimento de culpa?
Em apoio à pertinência desse problema, vale mencionar
dois comentaristas simpáticos à causa schopenhaueriana, Ramos e Bacelar[16]. Ramos declara: “Sendo toda multiplicidade mera
aparência, então também a responsabilização individual é ilusória: só há uma
única vontade que carrega em si tanto o malumculpae como malumpoenae[17]. Já Bacelar tenta pensar na responsabilidade em
conexão com a justiça eterna. Contudo, ele mesmo reconhece que Schopenhauer não
logra êxito.
Se a
responsabilidade ou imputabilidade consiste na atribuição da autoria a uma ação
criminosa que lesa uma lei clara e acarreta uma sanção, como compreender a
culpa da Vontade? Nesse empreendimento de inculpação cosmológica maciça em que
todos os seres por essência contraem uma dívida para com a justiça eterna
anterior à existência, que será expiada nela mesma de maneira desigual,
Schopenhauer ignora a contribuição de cada um na maldade do mundo. Ao não
correlacionar os diferentes graus de sofrimento com os diferentes graus de
culpa, Schopenhauer bloqueia, por assim dizer, a eficácia da categoria de
responsabilidade pessoal pela ação ao inculpar coletivamente: todos os seres
são irmanados numa essência pecaminosa que explica e justifica a maldade no
mundo[18].
Bacelar conclui num tom mais favorável, aludindo a uma
passagem da Metafísica dos costumes em que Schopenhauer reconhece a
dificuldade de compatibilizar justiça eterna e reponsabilidade moral
(individual). Vale citar esse trecho: “Adicionalmente, surge a questão de como
se mantém a participação de todos os homens na culpa, apesar de que a grande
diversidade ética dos caracteres se mantenha em todo momento, sem enganar a
consciência que incrimina um e deixa em paz o outro” (HN III, 122). Na minha
opinião, contudo, essa passagem apenas indica o reconhecimento de uma
dificuldade. Schopenhauer não deu uma solução para esse problema, seja
descartando o conceito de justiça eterna, seja assumindo a inculpabilidade
universal[19].
Uma visão convergente em
muitos pontos com a minha leitura de Schopenhauer encontra-se no artigo
“Individualidade em sentido moral e justiça eterna”, de Orrutea Filho. O autor
concorda com a ideia de que a justiça eterna não pode ser acolhida se quisermos
esclarecer filosoficamente a reponsabilidade moral dos indivíduos. Corretamente
Orrutea Filho percebe que “a Justiça Eterna falha miseravelmente em um ponto
fundamental: ela simplesmente não parece explicar nossos juízos morais, e este
é o grande objetivo da parte ética da filosofia de Schopenhauer”[20]. Em que pese essa concordância, o autor pretende oferecer uma
interpretação que mostre que a filosofia da vontade de Schopenhauer pode
dispensar a noção de justiça eterna. O comentarista defende essa posição
justamente a fim de salvar a possibilidade da compreensão schopenhaueriana dos
juízos de reponsabilidade moral.
Uma alegação muito
estimulante no artigo de Orrutea Filho consiste na afirmação da natureza
autocontraditória da justiça eterna[21]. Ele afirma:
se
portanto relegássemos a individualidade moral à condição de simples ilusão –
como aliás, repita-se, o próprio Schopenhauer faz diversas vezes – abrindo uma
espécie de abismo entre individualidade e coisa-em-si, porque ausente qualquer
dimensão ou elemento intermediário, o resultado seria uma compreensão segundo a
qual apenas a Vontade impessoal afirma a si mesma, e os indivíduos não seriam
afirmadores, mas uma espécie de objeto de afirmação desta “Vontade” terrível e
cruel [...]
Portanto,
para que a justiça eterna seja, afinal, justa, ela deve se referir a atores que
afirmam suas vontades. Mas também sabemos, pela mesma teoria, que a vontade de
cada um é a mesma que aparece em todas as coisas. Logo, o indivíduo é e
não é esta vontade ao mesmo tempo, o que constitui uma contradição. Esta
parece ser a base de toda a justiça eterna de Schopenhauer: uma contradição –
que acreditamos refletir uma indecisão quanto às raízes metafísicas da
individualidade humana[22].
Ora, não há que se falar em
autocontradição nesse caso, pois a responsabilidade não recai sobre o
indivíduo. Isso não é de modo algum assumido por Schopenhauer. O que ele assume
no § 63, como já destacado, é que o mundo é responsável por tudo que acontece
no mundo. Ademais, a justiça eterna não pretende ser justa no sentido da
justiça temporal ou da justiça como virtude[23]. Note-se que, na passagem citada de MVR I, § 63, Schopenhauer se
refere, com mais rigor, “aos seres humanos tomados como um todo”, ao “seu
destino tomado como um todo”. Não se trata de indivíduos tomados em suas
singularidades volitivas e morais, mas de indivíduos considerados como vontade[24].
Poder-se-ia falar em
contradição se o “é” e o “não é” fossem tomados no mesmo sentido[25] ou, se preferirmos, sob o mesmo aspecto. Por certo, para Schopenhauer,
o indivíduo é e não é a vontade ao mesmo tempo, mas - frise-se - não sob o
mesmo aspecto. Dessa forma, rigorosamente não é o caso de uma contradição,
muito menos de autocontradição. Quando afirmo que o indivíduo é vontade, afirmo
que o núcleo do seu ser em si não é fenomênico (num certo sentido, ele não é
sequer um indivíduo, sim, isso teria de ser admitido, mas não nos leva à
autocontradição). Se digo que o indivíduo não é vontade, apenas digo que ele é
meramente um fenômeno (embora seja uma afirmação filosoficamente unilateral,
ela não é falsa). No fundo, todo e qualquer objeto tem de ser e não ser
vontade, mas sempre sob aspectos diferentes, ou seja, vontade e representação[26].
Outro ponto destacado por
Orrutea Filho diz respeito à incongruência entre justiça eterna e o método da
filosofia de Schopenhauer. De acordo com o autor, se Schopenhauer tivesse sido
fiel ao método que preconizou para sua filosofia, ele não poderia ter assumido
a ideia da justiça eterna, dado ser essa uma justiça que avilta nossas
intuições morais elementares ao distribuir a reponsabilidade pelo ato de
agressão tanto à vítima como ao agressor[27]. Não penso que seja esse o caso. Sou do parecer que Schopenhauer não
comete deslize algum quando entende o livro IV de O mundo como
sintético. Não resultou desse método apenas a noção de justiça eterna. A
exposição que se encontra no livro IV de O mundo – que me seja permitida
a declaração de uma trivialidade - é crucial para entendermos a íntima conexão
entre a metafísica da vontade com o tema sobre o sentido e valor da existência
humana, objeto desse livro (cf. W I, § 53, 353). Note-se que, nesse caso, há
uma diferença importante com o escrito Sobre o fundamento da moral, pois
este tem um objetivo mais restrito. Aliás, conquanto restrito, um propósito que
somente pode ser atingido se penetrarmos no domínio metafísico, tal como
encontrado no livro IV de O mundo, o que é feito nos §§ finais, 21 e 22,
de Sobre o fundamento da moral. Para Schopenhauer, portanto, o
tratamento do tema acerca do fundamento da moral não pode se furtar a uma
elucidação metafísica. Se uma explicação metafísica do fenômeno ético originário
da compaixão pudesse ser obtida nos domínios da psicologia, não seria requerido
um esclarecimento mais fundamental que exige um contato com o método sintético[28].
Porém, muito mais
importante que a discussão sobre qual seria o método adequado para a filosofia,
é a alegação segundo a qual o entendimento de Schopenhauer sobre a justiça
eterna tem implicações contraintuitivas[29]. Ora, antes de tudo, é preciso dizer que Schopenhauer não dá sinais de
que essas implicações sejam filosofalmente corrosivas, nem que nelas haja
implicações contraintuitivas[30]. E ele não faz isso por ter dado um passo em falso em termos
metodológicos, esquecendo-se de levar em conta o entendimento moral comum ou o
método analítico. O que ocorre, na verdade, é que ele não poderia reconhecer
uma perturbação filosófica nesse passo sem ter reconhecido nos passos iniciais
e mais essenciais de seu pensamento. Por acaso é facilmente conciliável com a
compreensão comum que as pessoas têm do universo moral a tese de que nosso
intelecto é servo da vontade, vontade essa entendida como ímpeto cego e esforço
destituído de conhecimento? Será compatível com o entendimento comum a tese de
que o teísmo é um equívoco não apenas por admitir uma transcendência
indemonstrável, mas também, e sobretudo, por subtrair a reponsabilidade moral
do indivíduo (cf. PP I, Fragmentos sobre história da filosofia, § 13,
177-185)? Harmoniza-se com o entendimento comum a tese de que não somos livres
para agir de modo diferente do que agimos, mas apenas livres metafisicamente,
isto é, livres em virtude da asseidade de nosso caráter inteligível, livres
devido a um ato extratemporal da vontade? Entendo que a própria tese central de
Schopenhauer, que estabelece por analogia a relação entre o micro e o
macrocosmo[31] e, assim, afirma ser a vontade a coisa em si mesma, digo, essa tese não
é uma clarificação da compreensão comum que as pessoas têm sobre suas vontades
e compreensões do mundo; não é, sobretudo, uma tese congruente com nossa
cosmologia intuitiva. Aliás, a filosofia para Schopenhauer visa não meramente a
clarificar a experiência, mas a conferir sentido metafísico a essa experiência.
“A filosofia nada é senão a compreensão correta e universal da experiência
mesma, a exegese verdadeira do seu sentido e conteúdo” (W II, Cap. 17, 223)[32].
Cabe enfatizar que a
justiça eterna é uma noção plena de significado e coerência com as premissas da
metafísica de Schopenhauer. Se ele mesmo afirma que a justiça eterna reside na
essência do mundo (W I, § 63, 449), poderia o
leitor, em nome de uma revisão interpretativa, mas não de uma repulsa a pontos
basilares do pensamento do autor que se quer interpretar, conferir outro lugar
para justiça eterna, ou um não lugar, um desterro dos domínios da metafísica
pessimista de Schopenhauer? Penso que não.
Conclusão
Com base no exposto nesse texto, acredito poder
afirmar que Schopenhauer não logrou êxito na
elucidação dos juízos de responsabilidade moral. Ele não conseguiu explicar
satisfatoriamente a autocompreensão que o sujeito moral tem sobre ser capaz de
agir de modo diferente (seja esse um sentimento ilusório ou não). Tampouco foi
capaz de explicar como podemos nos compreender como seres que são autores de
sua própria existência moral, visto que deixa envolta numa espessa neblina as
noções básicas de escolha e decisão, subtraindo destas o elemento epistêmico
que me parece necessário. Outrossim, a justiça eterna, noção cara à metafísica
pessimista de Schopenhauer, não pode ser compatibilizada com os requerimentos
individualizadores da responsabilidade moral. A adoção de um procedimento
arbitrário de excisão da justiça eterna poderia restituir dignidade filosófica
aos juízos de louvor e censura morais, mas, nesse caso, teríamos de abandonar a
imagem de um filósofo que pretende comunicar um pensamento único.
UM PENSAMENTO
ÚNICO, por mais abrangente que seja, guarda a mais perfeita unidade. Se,
todavia, em vista de sua comunicação, é decomposto em partes, então a coesão
destas tem de ser, por sua vez, orgânica, isto é, tal em que cada parte tanto
conserva o todo quanto é por ele conservada, nenhuma é a primeira ou a última,
o todo ganha em clareza mediante cada parte, e a menor parte não pode ser
plenamente compreendida sem que o todo já o tenha sido previamente (W I,
19-20).
A questão sobre se Schopenhauer obtém êxito em
preservar uma coesão orgânica, salvaguardando assim a mais perfeita unidade ao
pensamento único, foge do escopo desse texto. Porém, acredito que a reposta
negativa dada aqui à sua tentativa de elucidar os juízos de imputação moral
responde, de modo parcial e indireto, também à questão sobre a perfeita unidade
de seu pensamento único. Responde, por certo, de modo igualmente negativo.
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[1] Cf.
HOBBES, Thomas. Hobbes’s Treatise of Liberty and Necessity. In: Hobbes and
Bramhall on Liberty and Necessity;
HOBBES, T. Leviathan., chap. 21, p. 139-140; HUME, D. An
Enquiry concerning Human Understanding, section 8, p. 148-164; HUME, D. A
Treatise of Human Nature, Book II, part III, sections 1-2, p. 257-261.
[2] Schopenhauer
cita diversos autores, entre os quais Kant, o qual, porém, representa um caso à
parte. Digo isso porque Kant faz uma defesa transcendental da liberdade, não
aceitando, assim, soluções unidimensionais para a responsabilidade moral. Em
outras palavras, Kant compreende a liberdade a partir da distinção
transcendental entre fenômeno e coisa em si. Dessa forma, Kant representa, se
não exatamente um predecessor, certamente o maior inspirador da visão de
Schopenhauer sobre o tema da liberdade e responsabilidade moral.
[3] Compreenda-se a
rejeição da tese da não liberdade moral das ações não em virtude do
determinismo delas, o que Schopenhauer sustenta, mas em virtude de as ações
refletirem a liberdade moral do caráter inteligível (operari sequitur esse).
A liberdade não pertence às ações, mas à vontade, ao caráter inteligível. Cabe
notar, porém, que ao me referir ao mérito, penso na consistência interna do
pensamento de Schopenhauer, isto é, levo em conta a coerente acomodação dos
três tipos de liberdade. Mais para a frente, pretendo destacar duas críticas
externas à sua visão, a saber, sobre a autocompreensão do sujeito moral e
acerca da justiça eterna.
[4] O que implica
dizer: subtrai as bases da responsabilidade moral.
[5] No mesmo sentido, ver: E II, § 10, 91. Vale lembrar
que a tese da necessidade do agir individual perpassa todo o importante § 55 do
tomo I de O mundo.
[6] Essa é
aproximadamente a compreensão de Kant. Na introdução à Metafísica dos costumes, Kant afirma: “Imputação no sentido moral é o juízo por meio do qual alguém é
considerado como autor (causa libera)
de uma ação, que, pois, chama-se feito
(factum) e está sob leis” (KANT, I. Metafísica dos costumes, p. 33).
Acredito que, nesse sentido geral, Schopenhauer concordaria com Kant, visto que
para o autor de O mundo o operari é imputado ao esse, que é livre. Estou, porém, ciente de que a discussão sobre
causalidade e liberdade em Schopenhauer não segue o pensamento de Kant, sendo,
na verdade, interditada em virtude da compreensão segundo a qual a causalidade
somente pode valer para a representação, jamais para a vontade como coisa sem
si. Vale destacar que acima apenas registro um pressuposto geral de minha compreensão sobre a
reponsabilidade moral. Não se trata, pois, nesse caso, da apresentação do
pensamento de Schopenhauer sobre o tema. A propósito, para quem quiser ter
contato com uma instigante discussão sobre a liberdade em Kant e Schopenhauer e
ponderar uma compreensão divergente da que aqui se defende, recomendo a leitura
de: DEBONA, Vilmar. Caráter, liberdade e
Aseität: sobre a assimilação das noções de caráter inteligível e caráter
empírico de Kant por Schopenhauer, pp. 32-50.
[7] Mais para a
frente vou me deter no ponto sobre a crença na liberdade da vontade ao agir.
[8] A liberdade
intelectual é aquela que o indivíduo goza quando sua faculdade cognoscitiva
funciona sem perturbações constantes ou passageiras e quando as circunstâncias
externas não falsificam a apreensão dos motivos. Por exemplo, se o intelecto
está acometido por loucura, delírio ou convulsões, ele perde sua liberdade
intelectual, assim como perde alguém que serve veneno pensando ser um remédio ou
confunde um membro da casa com um ladrão e atira contra ele (cf. E I, 110).
[9] O sentido da
expressão “autoria moral” está, aqui, destituído de qualquer ingrediente do
direito positivo, ou melhor, é independente do direito positivo brasileiro ou
de qualquer outro país.
[10] Tenho em mente aqui a famosa passagem de Schopenhauer
segundo a qual o caráter inteligível do
homem está “presente [...] em todos os [seus] atos [...] e impresso em todos
eles, como o carimbo em mil selos” (E II, § 10, 89).
[11] “A decisão propriamente dita é por ele [intelecto]
esperada de modo tão passivo e com a mesma curiosidade tensa como se fosse a de
uma vontade alheia” (W I, § 55, 377).
[12] Esse é caso,
como quer Schopenhauer, em que sou portador de asseidade (Aseität). Se
devesse minha existência a um outro ser, não seria livre. Para Schopenhauer,
não há como sustentar que seres moralmente responsáveis sejam criaturas, isto
é, obras de um outro ser (eis um dos erros fatais do teísmo). “Liberdade moral
e reponsabilidade ou imputabilidade simplesmente pressupõem ASSEIDADE. As ações
sempre provêm necessariamente do caráter, isto é, da constituição própria e,
portanto, inalterável do ser, sob a influência dos motivos e de acordo com
eles. Por conseguinte, se esse indivíduo tiver de ser responsável, precisa
existir originariamente e em virtude de sua própria plenitude de poder” (P I, Fragmentos sobre história da filosofia, p. 179). Veja também: N, 210; PP II, Sobre
a ética, § 118, 81; W II, cap. 25, 385-386, W II, cap. 47, 704.
[13] Assim sendo, não
vejo razões para adotar aqui um pensamento diferente daquele defendido em
PAVÃO, Aguinaldo. “Liberdade e imputação moral em Schopenhauer”. In: Schopenhauer:
metafísica e moral.
[14] Frágil significa
aqui apenas a impossibilidade de obtenção de uma prova demonstrativa ou com
evidências empíricas robustas. Talvez tenhamos apenas, se eu estiver certo, uma
base psicológica forte para a atribuição da liberdade também ao agir (a
autocompreensão do sujeito agente).
[15] No tomo I, nenhum esclarecimento mais expansivo é
fornecido sobre a responsabilidade individual. Nem no § 55 de MVR I, dedicado
ao tema da liberdade, Schopenhauer desenvolve expressamente o assunto. Já no
tomo II, texto posterior ao escrito Sobre a liberdade da vontade,
encontramos esclarecimentos sobre a noção de responsabilidade moral.
[16] Digo “simpáticos
à causa schopenhaueriana” usando, naturalmente, uma linguagem mais coloquial.
Quero significar com isso apenas a impressão que tenho de que esses autores não
pretendem desferir ataques diretos aos pilares da filosofia schopenhaueriana.
[17] RAMOS, F. C. A
teoria da justiça de Schopenhauer, p. 183.
[18] BACELAR, A responsabilidade pela “essentia et existentia” em Schopenhauer, p. 242.
[19] É digno de nota
que, na sequência imediata da citação acima da Metafísica dos costumes,
Schopenhauer parece encolher-se para afirmar que nem tudo pode ser resolvido.
“Isso se esclarecerá mais adiante, quando veremos quão estreitamente ligada ao
mundo está a maldade e que o virtuoso se encontra próximo a esse último passo
que conduz à redenção do mundo e suas penas. (Ademais, eu não me comprometo a
solucionar todos os temas nem a responder satisfatoriamente qualquer pergunta
possível; limitamo-nos a perseguir o rastro da verdade na medida de nossas
possibilidades e, se a solução de muitos problemas origina alguns novos que
permanecem insolúveis, isso não desfigura a vantagem que alcançamos graças a
uma profunda compreensão. Dia chegara em que outros mergulhem mais
profundamente ainda: multi pertransibunt et augebitur scientia [Muitos
indagarão e o saber crescerá]” (HN III, 123).
[20] ORRUTEA FILHO, Individualidade em sentido moral e justiça
eterna, p. 197.
[21] Embora o
comentarista acabe mitigando sua posição inicial. “Arriscamos dizer que, na
melhor das hipóteses, a justiça eterna expressa não uma autocontradição, mas
uma tensão entre elementos aparentemente contraditórios entre si, mas que na
verdade se complementam (p. 194). Independente disso, para os propósitos
meramente argumentativos que tenho em mira aqui, considero e rejeito apenas a
possibilidade dessa suposta autocontradição.
[22] ORRUTEA FILHO, Individualidade em sentido moral e justiça
eterna, p. 193-194.
[23] Para Schopenhauer, mesmo o homem bom permanece, com
justiça, atado ao sofrimento por causa da justiça eterna. “De acordo com a
verdade, justamente o próprio nascimento do ser humano é o ato da sua
vontade livre, por consequência idêntico com o pecado original, e, assim, com a
essentia e existentia do ser humano já entraria em cena o pecado
original, do qual todos os demais pecados são consequência (W II, cap. 48,
720-721 - itálicos meus). Como se vê, não se
trata apenas de usar o conceito de pecado original como uma alegoria proveniente
do cristianismo. Embora destituído de seu conteúdo religioso, trata-se na
verdade da apropriação do que talvez seja o núcleo mais significativo do
conceito de pecado original, isto é, a natureza congênita e hereditária dessa
excêntrica falta. Acredito que não é preciso uma demorada detenção crítica
nesse ponto. Limito-me a registrar, em consonância com o que argumento acima,
que, se as coisas fossem assim, nós seríamos moralmente culpados não por atos
nossos, mas pela nossa simples natureza humana pecadora, o que implica dizer
que seríamos simplesmente culpados por existirmos (digo pecadora aqui por
carregar o erro da existência).
[24] Não pretendo,
com isso, endossar o pensamento de Schopenhauer, mas apenas mostrar a não
procedência da pretensão de avaliar a justiça eterna a partir de perspectivas
temporais e individualizadoras.
[25] “Aparência se
chama representação, e nada mais: toda representação, não importa seu tipo,
todo OBJETO é APARÊNCIA. Por sua vez, COISA EM SI é apenas a VONTADE: como tal
não é absolutamente representação, mas toto genere diferente dela” (W I,
§ 21, 168). Esse ponto provavelmente faz o leitor de Schopenhauer lembrar de
seus entusiasmados aplausos à conciliação entre liberdade e necessidade na
filosofia de Kant. Ora, Kant padeceria da mesma dificuldade apontada por
Orrutea Filho, visto que, segundo o autor da Crítica da razão pura, uma
e a mesma ação é determinada por causas naturais e compreendida como livre no
sentido transcendental (cf. KANT, Crítica da razão pura, A 542-558/B
570-586). Mas, como argumento acima, esse não é o caso, haja vista ser possível
pensar tal conciliação como não contraditória.
[26] É o que está
consignado no início desse texto com os abonos de W I, § 27, 203; e W I, § 71,
517.
[27] Com razão ele
lembra de uma passagem em que Schopenhauer defende exclusivamente o método
analítico para o autêntico filosofar. “Minha filosofia surgiu e se apresenta no
caminho analítico, e não no sintético” (PP I, Fragmentos sobre história da filosofia, §
14, 188).
[28] A seguinte
passagem pode servir de abono ao que afirmei: “A partir de uma metafísica dada
admitida como verdadeira atingir-se-ia o fundamento da ética pelo caminho
sintético; assim, este seria construído a partir de baixo, e, consequentemente,
a ética apresentar-se-ia apoiada firmemente. Em contrapartida, com a separação,
posta nesta tarefa como necessária, entre a ética e a metafísica, nada resta
senão o procedimento analítico, que parte dos fatos, quer da experiência
externa, quer da consciência. Estes últimos podem, com feito, reconduzir à
última raiz na mente do ser humano, a qual tem de se afirmar como fato
fundamental, como fenômeno originário, sem que esse fato seja a seguir
reconduzido a qualquer outra coisa. Com isso toda explicação permanece
meramente psicológica” (E II, § 1, 8-9).
[29] Quanto a isso
mantenho uma posição convergente com Orrutea Filho. Todavia, o que está em
questão aqui é avaliar se esse poderia ser entendido como um problema para
Schopenhauer. É justamente a respeito disso, como procuro deixar claro, que
nossas visões divergem.
[30] Há o
reconhecimento de que certa dificuldade no texto póstumo Metafísica dos
costumes. Sobre isso, ver nota 20 do presente artigo.
[31] Sobre o tema da
analogia e da relação entre o micro e o macrocosmo em Schopenhauer, vale a pena
citar a excelente tese de Jorge Prado. Metafísica e ciência: a analogia da
vontade entre o micro e o macrocosmo, 2019.
[32] Logo na
sequência se lê que a metafísica “jamais se afasta por completo da experiência,
mas permanece a simples interpretação e exegese desta, já que nada fala da
coisa em si senão em sua referência à aparência” (W II, Cap. 17, 223). Outra
afirmação análoga: “Em verdade, a tarefa da metafísica não é a observação de
experiências singulares, mas sim a explicação correta da experiência em seu
todo. O fundamento da metafísica, portanto, tem de ser de tipo empírico” (W II,
Cap. 17, 220)