Submissão: 09/10/2019 Aprovação: 27/11/2019
Publicação: 18/12/2019
Dossiê
Filosofias da memória
Teorias sobre o lembrar: causalismo, simulacionismo e funcionalismo*
Theories of remembering: causalism,
simulationism, and functionalism
André
Sant’Anna
Pós-doutorando em Filosofia na Université
Grenoble Alpes, Grenoble, França
Kourken Michaelian
Professor de Filosofia na Université Grenoble
Alpes, Grenoble, França
kourken.michaelian@univ-grenoble-alpes.fr
Resumo: O que é o
lembrar? Quando podemos dizer que um sujeito lembra um evento do passado? Essas
são duas questões centrais na filosofia da memória, uma área que vem
experimentando uma rápida expansão nos últimos anos. Por quase meio século, a
teoria causal da memória, inicialmente proposta por Martin e Deutscher (1966),
dominou o debate sobre como devemos responder às duas questões iniciais. Mais
recentemente, no entanto, a teoria causal se tornou alvo de duras críticas, o
que motivou os filósofos da memória a desenvolverem duas novas teorias sobre o
lembrar: a teoria simulacionista e a teoria funcionalista. Neste artigo,
exploramos essas teorias em mais detalhes com o objetivo de tornar mais claro
quais são seus comprometimentos, assim como suas vantagens e desvantagens.
Palavras-chave:
Lembrar; Memória; Causalismo;
Simulacionismo; Funcionalismo
Abstract:
What is it to
remember? When can we say that a subject remembers an event from the past?
These are two central questions in philosophy of memory, an area that has
witnessed a rapid expansion in the past few years. For almost fifty years, the
causal theory of memory, initially proposed by Martin and Deutscher
(1966), dominated the attempts to answer the two initial questions. More
recently, however, the causal theory has been widely criticized, which has
motivated philosophers to develop two new theories of the nature of
remembering: the simulation theory and the functionalist theory. In this paper,
we discuss these three theories in more detail with the goal of clarifying
their commitments, as well as their motivations and problems.
Keywords:
Remembering; Memory; Causalism; Simulationism;
Functionalism
Introdução
O que é o lembrar? Quando podemos dizer
que um sujeito lembra um evento do passado? A teoria causal da memória, de
acordo com a qual, para se lembrar um evento, é preciso que a memória seja
causada pela experiência passada do evento, dominou por muitas décadas o modo
em que os filósofos da memória responderam a essas questões. Mais recentemente,
no entanto, novas teorias foram propostas como alternativas à teoria causal.
Por um lado, a teoria simulacionista diz que, dado o modo em que os sistemas
cognitivos responsáveis por produzirem nossas memórias funcionam, é implausível
exigir que todas as memórias sejam causadas pelas experiências passadas dos
eventos que elas representam. A memória, para o simulacionista, é melhor
entendida como uma capacidade que temos para imaginar eventos
experienciados por nós no passado. Por outro lado, a teoria funcionalista diz
que, ao analisar a memória, precisamos levar em conta não somente como os
sistemas cognitivos responsáveis pela memória funcionam, tal como é feito pela teoria
causal e pela teoria simulacionista, mas também o fato de que essas memórias
nos permitem formar crenças sobre o passado. Por oferecerem perspectivas
bastante diferentes sobre a memória, uma análise mais cuidadosa dos pontos de
divergência entre essas três teorias é de extrema importância para podermos
decidir qual delas oferece melhores respostas aos questionamentos iniciais. Com
isso em vista, o nosso objetivo neste artigo é o de caracterizar essas três
teorias, de modo a tornar mais claro quais são seus comprometimentos, assim
como suas vantagens e desvantagens. Procedemos do seguinte modo: nas Seções 1,
2, e 3, discutimos e caracterizamos, respectivamente, a teoria causal, a
teoria simulacionista, e a teoria funcionalista. Em cada seção,
apresentamos duas motivações e dois problemas que são discutidos no contexto de
cada uma dessas teorias. Notamos que, embora o objetivo central do nosso artigo
seja apresentar e caracterizar essas teorias, não discutiremos aqui como os
defensores de tais teorias respondem aos problemas que introduzimos ao longo do
artigo, dado que tal discussão extrapolaria o escopo da nossa proposta.
Indicamos, no entanto, referências relevantes na literatura recente que
desenvolvem os pontos relevantes em mais detalhes[1].
Notamos, mais ainda, que nossa discussão
se baseia em um recorte bastante específico da literatura filosófica, no qual
optamos por discutir teorias mais recentes do lembrar que foram desenvolvidas
em resposta à teoria causal. A teoria causal não é, entretanto, a primeira
teoria do lembrar a ser desenvolvida pelos filósofos. Mais notadamente,
abordagens empiristas, que tentam explicar o lembrar em termos da experiência
subjetiva que caracteriza a memória[2], e abordagens epistêmicas, que
tentam explicar o lembrar como uma forma de conhecimento[3], são abordagens proeminentes na
literatura que foram omitidas. Ao omitir essas teorias, no entanto, não
pretendemos sugerir que elas são menos importantes do que as teorias discutidas
aqui, mas somente que, para os propósitos de uma discussão mais geral sobre
teorias do lembrar que respondem diretamente à teoria causal, essas teorias não
se apresentam como centrais.
Antes de procedermos à discussão central
do artigo, será de utilidade definir com mais precisão o que entendemos por
memória ou lembrar. Embora existam diferentes tipos de memória que são
estudadas por psicólogos e filósofos, para os propósitos da nossa discussão,
focaremos apenas no que usualmente se denomina memória episódica[4]. Memórias episódicas são memórias de eventos
particulares que experienciamos no passado, tais como a memória da sua festa de
aniversário de dez anos ou a memória da sua formatura. Essas memórias são,
invariavelmente, acompanhadas por uma experiência consciente distintiva[5]; isto é, elas nos permitem “reviver” ou
“re-experienciar” os eventos que são lembrados[6]. Memórias episódicas são, portanto,
distintas do que podemos chamar de memória semântica ou memória
proposicional[7], tais como a memória de que Paris é a
capital da França ou a memória de que o Brasil se situa no hemisfério sul, que
nos permitem acessar certos fatos sobre o mundo que aprendemos no passado, mas
que não estão vinculadas a nenhum evento específico e, portanto, não são
necessariamente acompanhadas de uma experiência consciente distintiva. Com essa
clarificação em mente, as afirmações feitas pela teoria causal, pela teoria
simulacionista, e pela teoria funcionalista consideradas a seguir serão
restritas ao âmbito da memória episódica.
1.
A teoria causal da memória
A
teoria causal da memória, desenvolvida originalmente por Martin e Deutscher[8],
diz que lembrar um evento episodicamente requer a existência de uma conexão
causal entre uma representação mental que formamos desse evento no
presente—chamemos essa representação de representação mnêmica[9]—e
a representação mental que tivemos desse evento no passado—chamemos essa
representação de representação perceptual. Para ilustrar essa ideia[10],
suponhamos que eu tenha uma representação mnêmica da minha festa de aniversário
de dez anos, na qual meus pais estão presentes, na qual vejo-me jogando futebol
com meus amigos de infância, vejo-me comendo bolo de chocolate, etc. De acordo
com a teoria causal, para que essa representação mnêmica seja classificada como
uma ocorrência de memória episódica, e consequentemente, como uma ocorrência
genuína de lembrança, é preciso que ela seja causada pela experiência, ou
representação perceptual, desse evento.
De
modo geral, a ideia é que a representação perceptual do evento deve dar início
a uma cadeia causal que, em última instância, resultará na representação
mnêmica que tenho desse evento no presente. De modo mais detalhado, a sugestão
é que, durante a minha festa de aniversário, meus órgãos sensoriais foram
estimulados pelo evento em questão, levando à formação de uma representação perceptual
desse evento. Essa representação, por sua vez, estimulou certos processos em
minha mente ou cérebro que resultaram no registro e no armazenamento de
informações referentes à minha festa de
aniversário—por exemplo, que meus pais estavam presentes, que comi bolo de
chocolate, etc.—de modo que, no momento atual, essas informações são retomadas
em minha mente, causando então a produção de uma representação mnêmica da minha
festa de aniversário de dez anos. A existência dessa conexão causal é, de acordo
com Martin e Deutscher, uma condição necessária para a
memória, ou seja, uma condição que deve ser satisfeita em todas as ocorrências
de lembrança.
1.1. Motivações para a teoria causal
Existem duas motivações centrais
oferecidas em favor da teoria causal. A primeira diz que ela nos permite distinguir
entre ocorrências de lembrança e ocorrências de imaginação. A segunda diz que
ela nos permite distinguir entre ocorrências de lembrança e ocorrências de
“reaprendizado”.
1.1.1. Motivação 1: memória e imaginação
A
primeira motivação oferecida em favor da teoria causal diz que ela nos permite
distinguir entre ocorrências de lembrança e ocorrências de imaginação.
Consideremos um exemplo para ilustrar a ideia. Suponhamos que eu forme uma
representação mnêmica de ter visitado Paris quando criança. Suponhamos que, por
algum motivo, eu represente esse evento como tendo sido experienciado por mim,
ainda que ele não tenha ocorrido de fato. Neste caso, pelo menos do ponto de
vista intuitivo, parece natural dizermos que, embora pareça a mim que eu esteja
lembrando o evento de ter visitado Paris quando criança, na verdade, estou imaginando
tal evento, pois não é o caso que experienciei esse evento no passado. Não é
óbvio, no entanto, o que nos permite dizer que essa representação mnêmica é uma
imaginação, e não uma ocorrência de lembrança. A teoria causal nos dá um
critério bastante simples para distinguir entre os dois casos. No caso da
imaginação, a teoria causal diz, não há uma conexão causal entre uma
representação mnêmica formada no presente e uma representação perceptual
formada no passado. Assim, não podemos dizer que, quando tenho uma
representação mnêmica de ter visitado Paris, estou lembrando o evento em
questão, mas somente imaginando-o. Não há, em outras palavras, uma
representação perceptual desse evento particular que serve como causa para a
minha representação mnêmica.
1.1.2. Motivação 2: memória e “reaprendizado”
A
segunda motivação oferecida em favor da teoria causal é que ela nos permite
distinguir entre ocorrências de lembrança e ocorrências de reaprendizado (relearning).
Suponhamos que Roger foi a um show de mágica e, logo após, ele contou a sua
amiga, Ana, o que aconteceu no show. Suponhamos então que Roger se envolveu em
um acidente de carro, o que o fez desenvolver amnésia retrógrada—isto é, a
incapacidade de lembrar eventos que ocorreram antes do acidente. Imaginemos,
agora, que ao tentar ajudar Roger a lembrar eventos de seu passado, Ana faz um
relato muito detalhado do show a Roger, relato que reflete acuradamente o
relato anterior de Roger. Suponhamos, mais ainda, que logo em seguida Roger
forma uma representação mnêmica do show com base no relato de Ana. Nesse caso,
embora Roger tenha formado uma representação mnêmica acurada do show de mágica,
essa representação não se origina em conteúdo ou informação advindos de sua
experiência—Roger tem amnésia retrógrada—mas sim em conteúdo ou informação
“reaprendidos” ou readquiridos a partir do testemunho de Ana[11].
De acordo com Martin e Deutscher, embora possa parecer a Roger que ele
lembra o show de mágica—assumamos que ele confia no testemunho de Ana—a
representação mnêmica que ele forma desse evento não é uma memória
episódica; consequentemente, Roger não lembra de fato o show de mágica
depois do acidente. O problema que casos como o de Roger colocam diz respeito
ao fato de que a existência (ou a inexistência) de uma conexão causal entre uma
representação mnêmica e uma representação perceptual não nos permite distinguir
entre casos de lembrança genuína e casos de reaprendizado. Isso se dá porque,
em casos de reaprendizado, tais conexões causais também estão presentes. No
caso do show de mágica em particular, a representação perceptual de Roger
causou o seu relato a Ana, o que, por sua vez, foi a causa de Ana ter
registrado e retido certas informações sobre o evento. Essas informações são
então retomadas por Ana para compor o relato que ela faz a Roger após o
acidente, o que resulta, finalmente, na formação de uma representação mnêmica
por parte de Roger, representação esta que é causada em última instância por
sua experiência perceptual passada.
Para
distinguir entre casos de lembrança e casos de reaprendizado, Martin e Deutscher argumentam que é preciso que a relação
causal entre representação mnêmica e representação perceptual seja de um tipo específico
para que haja uma ocorrência de lembrança. Mais especificamente, a relação
causal precisa se dar por meio de um traço mnêmico que é causado
pela representação perceptual e que causa a representação mnêmica. O
traço mnêmico, para usar o termo de Martin e Deutscher[12],
deve ser “operativo” na produção da representação mnêmica. Além disso, o traço
deve ser também um estado interno ao sujeito que é preservado ao longo
do tempo—provavelmente um estado cerebral—e que registra e armazena conteúdo ou
informação sobre o evento experienciado, de modo que ele é retomado no momento
da lembrança[13].
Para
exemplificar, consideremos o caso de Roger novamente. Imaginemos que Roger
tenha ido ao show de mágica e tenha registrado certas informações sobre esse
show em seu cérebro a partir de uma representação perceptual—o estado cerebral
que registra essa informação é o traço mnêmico. Esse traço é então armazenado,
de modo que, quando Roger se lembra do evento antes do seu acidente,
esse traço é retomado em seu cérebro, causando, assim, uma representação
mnêmica do evento. Nesse caso, Martin e Deutscher dizem que Roger se lembra do evento, pois
a conexão causal entre sua representação mnêmica e sua representação perceptual
se dá de modo apropriado—isto é, através de um traço mnêmico. Considere
agora a situação em que, depois do acidente, Roger forma uma
representação mnêmica do show de mágica com base no relato de Ana. Para Martin e Deutscher, esse caso não pode ser classificado como
uma ocorrência de lembrança, mas sim como uma ocorrência de reaprendizado,
justamente porque a conexão causal entre a representação mnêmica e a
representação perceptual não se dá de modo apropriado—isto é, a representação é
causada pelo testemunho de Ana, e não por um traço mnêmico formado a partir da
experiência do evento. Além disso, a conexão causal é externa nesse
caso, pois ela se estende além do indivíduo. Podemos dizer, portanto, que para
a teoria causal, um sujeito S lembra um evento E somente se há uma conexão causal
por meio de traços mnêmicos entre a representação mnêmica e a representação
perceptual de S.
1.2. Problemas para a teoria causal
Dois problemas centrais são colocados à
teoria causal. O primeiro diz que ela é muito restrita, pois classifica casos
de lembrança como casos de “reaprendizado”. O segundo diz que a teoria causal é
incompatível com o caráter construtivo da memória.
1.2.1. Problema 1: casos de memória são classificados como casos
de “reaprendizado”
O primeiro problema que a teoria causal
enfrenta é que ela considera casos de representações mnêmicas que usualmente
classificamos como memórias ou ocorrências genuínas de lembrança como sendo
ocorrências de reaprendizado. Embora estejamos inclinados a dizer que, em casos
como o de Roger, o sujeito não lembra o evento reaprendido por meio do
testemunho, em vários outros casos, aceitamos prontamente que representações
mnêmicas formadas a partir do testemunho são ocorrências genuínas de lembrança.
Não é incomum, por exemplo, dizermos que lembramos genuinamente certos eventos
do nosso passado, como ter pescado um peixe grande quando criança, com base no
testemunho de nossos pais ou amigos, ainda que inicialmente não fossemos capaz
de retomar informações sobre esse evento sem o auxílio do testemunho de outras
pessoas. Dado que muitas de nossas memórias, ou pelo menos uma parte
significativa delas, são formadas desse modo, parece problemático excluir essas
ocorrências da categoria de memória ou lembrança genuína simplesmente porque
não existe um traço mnêmico que conecta a representação mnêmica com a
representação perceptual.
Uma reação natural a esses casos consiste
em dizer que, embora usualmente os chamemos de “memórias” no dia a dia, eles
não são, em um sentido mais estrito, memórias de fato, pois um elemento crucial
para que um processo cognitivo possa ser chamado de memória não está presente:
isto é, não há retomada de informação registrada e armazenada a partir da
representação perceptual. Desse modo, a força dessa objeção depende do quão
inclinados estamos a tentar incorporar a intuição inicial de que casos como os
descritos acima devem ser classificados como memórias. Ainda que reconheçamos
os limites dessa objeção, e ainda que a coloquemos de lado em nossa avaliação
da teoria causal, o segundo problema colocado a esta última, o qual discutimos
a seguir, destaca uma limitação muito mais preocupante.
1.2.2. Problema 2: o caráter construtivo
da memória
O
segundo problema enfrentado pela teoria causal se refere à possibilidade de
nossas memórias conterem, em alguns casos, mais informação do que a
informação contida na representação perceptual[14].
Pesquisas no âmbito da psicologia cognitiva mostram que, ao invés de ser um
simples processo de reprodução de experiências passadas, a memória
consiste numa reconstrução do que foi experienciado[15].
Por serem reconstruções, representações mnêmicas raramente serão reproduções
inteiramente fiéis das representações perceptuais. Nesse sentido, é um
resultado esperado, dado como o sistema cognitivo responsável pela memória
funciona, que muitas ocorrências genuínas de lembrança conterão, ainda que
minimamente, conteúdo ou informação que não estavam contidos na representação
perceptual. Retomemos o exemplo da minha memória da minha festa de dez anos.
Suponhamos que, ao formar uma representação mnêmica desse evento, tenho uma
representação que corresponde quase que inteiramente à representação perceptual
que tive do mesmo evento no passado, com a exceção de um único detalhe; isto é,
quando represento a cena em que me vejo jogando bola com meus amigos,
represento incorretamente que havia uma árvore atrás do gol. Nesse caso, a
minha representação mnêmica possui mais conteúdo do que a minha
representação perceptual do evento, o que, para a teoria causal, não nos
permite dizer que esse é um caso de lembrança. No entanto, parece muito
restrito dizer que deixo de lembrar o evento em questão porque represento
incorretamente detalhes mínimos sobre o evento, o que torna a teoria causal
muito restrita[16].
Note
que, embora tenhamos utilizado um exemplo em que há geração de conteúdo que não
estava presente na representação perceptual original, há um sentido mais fraco
em que a memória pode gerar ou ganhar conteúdo sem que,
necessariamente, a representação final contenha elementos inacurados[17].
Como discutimos em mais detalhe abaixo (ver Seção 2.1.1), o caráter construtivo
da memória implica a ideia de que representações mnêmicas inteiramente
verídicas ou acuradas podem conter informações que se originam em mais de uma
representação perceptual. Por exemplo, posso ter uma representação mnêmica da
minha festa de aniversário que seja inteiramente acurada, mas que alguns
elementos—o conteúdo ou a informação que comi bolo de chocolate—não se originam
em informação registrada e armazenada na representação perceptual da minha
festa de aniversário, mas sim na representações perceptuais que tive de outro
evento, como uma outra festa de aniversário. Nesse caso, a minha representação
mnêmica ganhou ou gerou conteúdo no sentido em que esse conteúdo, embora
verídico ou acurado, não tem sua origem na representação perceptual do evento
que é representado mnemicamente. Portanto, ainda que defensores da teoria
causal estejam inclinados a negar que casos em que há inacurácia, ainda que
mínima, constituem ocorrências genuínas de lembrança, é importante notar que o
aspecto construtivo da memória não implica a ideia de que ganha ou geração de
conteúdo resultará necessariamente em inacurácia[18].
2.
A teoria simulacionista da
memória
Em oposição à teoria causal, a teoria
simulacionista da memória, proposta recentemente por Michaelian[19], diz que para lembrarmos um evento episodicamente
é preciso que, primeiro, tenhamos formado uma representação perceptual do
evento no passado, e segundo, que a representação mnêmica formada no presente
seja produzida por um sistema de construção episódico que funciona
confiavelmente e que tem como objetivo representar um evento experienciado pelo
sujeito[20].
Não é preciso, para o simulacionista, que haja uma conexão causal entre
representação perceptual e representação mnêmica. Para
ilustrar essa ideia, consideremos novamente o exemplo da minha festa de
aniversário de dez anos. Suponhamos que eu tenha uma representação mnêmica da
minha festa de aniversário de dez anos, na qual meus pais estão presentes, na
qual vejo-me jogando futebol com meus amigos de infância, vejo-me comendo bolo
de chocolate, etc. De acordo com a teoria simulacionista, para que essa
representação mnêmica seja classificada como uma ocorrência de memória
episódica, e consequentemente, como uma ocorrência genuína de lembrança, é
preciso que eu tenha experienciado esse evento e que a representação seja
produzida por um sistema de construção episódico que funciona confiavelmente e
que tem como objetivo representar esse evento do meu passado.
A
ideia geral por trás da teoria simulacionista é que, para eu lembrar um evento
do passado, não é necessário que a representação perceptual desse evento dê
início a uma cadeia causal de eventos que, em última instância, dará origem à
representação mnêmica que tenho desse evento no presente. Basta que o sistema
cognitivo responsável por produzir minhas memórias—o sistema de construção
episódico—esteja funcionando confiavelmente e que tenha como objetivo produzir
uma representação de um evento que experienciei no passado. A noção de um
sistema de construção episódica é, portanto, central para entendermos a teoria
simulacionista. Para tornar essa ideia mais clara, no entanto, é preciso que
consideremos as motivações oferecidas em favor da teoria.
2.1. Motivações para a teoria
simulacionista
De
acordo com Michaelian, a teoria simulacionista é uma tentativa
de fornecer uma teoria da memória e uma análise do lembrar que leva em conta o
modo em que os sistemas cognitivos responsáveis por produzir nossas memórias
funcionam. Guiado por uma abordagem naturalista, o simulacionista diz que
devemos olhar para os estudos realizados pelas ciências empíricas, em particular
a psicologia cognitiva e a neurociência, para pensarmos sobre a natureza da
memória e do lembrar filosoficamente. Baseados em pesquisas recentes nessas
áreas, o simulacionista oferece então duas motivações centrais para adotarmos a
teoria simulacionista.
2.1.1. Motivação 1: o caráter construtivo
da memória
A
primeira dessas motivações tem a ver com o caráter construtivo da
memória. A ideia de que a memória não é somente uma reprodução, mas sim
uma reconstrução do passado não é nova[21];
no entanto, pesquisas recentes têm reforçado essa ideia em diferentes âmbitos.
Fenômenos bem documentados, como a extensão de limites[22]—isto
é, casos em que lembramos os limites de um certo cenário como sendo mais amplos
do que os limites originalmente experienciados—mudanças de perspectiva[23]—isto
é, casos em que lembramos eventos de uma perspectiva diferente daquela que
experienciamos—e o efeito DRM[24]—isto
é, casos em que lembramos certos itens como pertencendo a uma lista organizada tematicamente
que não continham tais itens—e outros fenômenos similares são alguns exemplos
que são utilizados em favor da ideia de que a memória é construtiva.[25]
Dado o caráter construtivo da memória, o simulacionista argumenta que pelo
menos algumas de nossas memórias terão mais conteúdo ou informação do
que o conteúdo presente em nossas experiências. Isso, no entanto, não deve ser
visto como uma falha no funcionamento da memória, mas sim como um resultado
comum devido a como o sistema cognitivo responsável por produzir nossas
memórias funciona[26].
A
permissão para que haja adição de conteúdo às representações mnêmicas em
comparação às representações perceptuais serve como ponto de partida para o
argumento simulacionista contra a ideia de que deve haver uma conexão causal
entre representação mnêmicas e representações perceptuais. O argumento procede
em três etapas distintas. A primeira etapa diz que, dado o caráter construtivo
da memória, algumas de nossas representações mnêmicas de um evento E terão
conteúdo ou informação que não são derivados da representação perceptual de E.
Mais ainda, a presença de conteúdo ou informação advindos de outras
representações perceptuais não torna, automaticamente, aquela representação
mnêmica uma ocorrência de outro processo cognitivo—por exemplo, uma imaginação.
Consideremos o exemplo da festa de aniversário de dez anos novamente.
Suponhamos que o conteúdo da minha representação perceptual seja composto pelos
seguintes elementos:
Cp
= <meus pais estavam presentes; joguei futebol com meus amigos; era um dia
ensolarado; a festa ocorreu em uma chácara; comi bolo de chocolate>[27]
Nesse
caso, o simulacionista diz que, dado o caráter construtivo da memória, não será
incomum que eu forme representações mnêmicas da minha festa de aniversário de
dez anos com o conteúdo Cm—no qual Cp = Cm—em
que um ou mais dos elementos que compõem Cm não se originem na minha
representação perceptual do evento em questão, mas na representação perceptual
de outro evento—por exemplo, posso ter uma representação mnêmica com conteúdo Cm
em que os elementos <meus pais estavam presentes; joguei futebol com meus
amigos; era um dia ensolarado; a festa ocorreu em uma chácara> se originam
na representação perceptual da minha festa, mas em que o elemento <comi bolo
de chocolate> se origina na representação perceptual de uma outra festa em
que comi bolo de chocolate. Nesses casos, para o simulacionista, é incorreto
dizer que as representações mnêmicas não são ocorrências de lembrança, visto
que, embora não se originem em uma única representação perceptual da minha
festa de aniversário de dez anos, o conteúdo das representações mnêmicas que
formo desse evento é acurado ou verídico.
Isso
nos leva à segunda etapa do argumento. Partindo da ideia de que a adição de
conteúdo é possível e que isso não desqualifica uma representação mnêmica de
ser potencialmente uma ocorrência de lembrança, o simulacionista argumenta que,
em alguns outros casos, é de se esperar que, dado o caráter construtivo da
memória, uma parte significativa do conteúdo ou da informação que compõem uma
representação mnêmica terão sua origem em duas ou mais representações
perceptuais. Consideremos o exemplo da festa de aniversário de dez anos
novamente. Imaginemos, agora, que formo a representação mnêmica com o conteúdo
Cm descrita acima, dos quais os elementos <meus pais estavam
presentes; joguei futebol com meus amigos> se originam em uma representação
perceptual com conteúdo Cp1, correspondente à representação
perceptual do evento original, mas o elemento <era um dia ensolarado> se
origina em uma representação perceptual com conteúdo Cp2 de um
segundo evento, e os elementos <a festa ocorreu em uma chácara; comi bolo de
chocolate> se originam em uma outra representação perceptual com conteúdo Cp3
de um terceiro evento. Nesse caso, embora a maior parte do conteúdo de Cm
tenha origem em representações perceptuais que não são a representação
perceptual Cp1 original da minha festa de aniversário, Cm
deve, para o simulacionista, ser classificada como uma ocorrência genuína de
lembrança, visto que seu conteúdo é acurado ou verídico.
A
terceira etapa do argumento diz, finalmente, que se o caráter construtivo da
memória requer que aceitemos que grande parte de nossas representações mnêmicas
classificadas como ocorrências genuínas de lembrança sejam compostas por
informação advinda de diferentes representações perceptuais, desde que a
representação mnêmica final seja acurada ou verídica, então, é possível, pelo
menos em princípio, que existam representações mnêmicas que são classificadas
como ocorrências genuínas de lembrança cujos conteúdos não são compostos por nenhuma
informação advinda da representação perceptual original do evento, desde que a
representação mnêmica final seja acurada ou verídica. Em outras palavras, é
possível que haja uma representação mnêmica de um evento E que seja uma
lembrança genuína de E sem que haja uma conexão causal com a representação
perceptual de E. Para ilustrar com o mesmo exemplo utilizado acima, suponhamos
que eu tenha uma representação Cm = <meus pais estavam presentes;
joguei futebol com meus amigos; era um dia ensolarado; a festa ocorreu em uma
chácara; comi bolo de chocolate>, na
qual os elementos que a compõem se originam em três representações perceptuais
com conteúdos diferentes: Cp2 = <meus pais estavam presentes;
joguei futebol com meus amigos>; Cp3 = <era um dia
ensolarado>; e Cp4 = <a festa ocorreu em uma chácara; comi
bolo de chocolate>. Embora nenhuma parte do conteúdo de Cm se
origina na representação perceptual original do evento com conteúdo Cp1,
Cm é, para o simulacionista, uma ocorrência genuína de lembrança,
uma vez que ela é uma representação acurada ou verídica do passado.
2.1.2. Motivação 2: memória como viagem
no tempo mental
A
segunda motivação para a teoria simulacionista surge em uma tentativa de
explicar por que a memória é um processo construtivo, e não meramente
reprodutivo. Baseado em uma ideia bastante popular na psicologia cognitiva, de
acordo com a qual a memória é uma forma de viagem no tempo mental[28],
o simulacionista argumenta que nossas memórias são produtos de um sistema
cognitivo mais geral que nos permite viajar no tempo mental, seja orientados ao
passado, como ocorre na memória episódica e em pensamentos episódicos
contrafactuais, seja orientados ao futuro, como ocorre na imaginação futura. A
ideia básica é que representar um evento do passado, como na memória, e
representar um evento do futuro, como na imaginação, são processos cognitivos
da mesma natureza que são produzidos por um sistema cognitivo comum e que
diferem somente em sua orientação temporal subjetiva. Para sustentar essa
afirmação, o simulacionista se utiliza de pesquisas empíricas recentes que
mostram que tanto a memória como a imaginação ativam áreas cerebrais
semelhantes[29],
além de outras evidências que explicitam a proximidade desses dois processos[30].
De modo mais crucial, o simulacionista diz que o motivo pelo qual o sistema
cognitivo que nos permite viajar no tempo mental foi selecionado durante a
evolução é porque ele nos permitiu viajar mentalmente ao futuro, isto é, porque
ele nos permite imaginar situações futuras[31].
Dado que a flexibilidade na produção das representações é vantajosa para
imaginarmos diferentes cenários possíveis, não é espantoso que seja comum que
as representações produzidas por esse sistema exibam essas características. É
por isso, finalmente, que a memória tem o caráter construtivo ao qual o
simulacionista apela para construir seu argumento contra a teoria causal. Em
outras palavras, é porque a memória é produzida por um sistema cognitivo mais
básico cuja função é permitir viagem no tempo mental—mais especificamente,
viagem mental ao futuro—e porque a produção flexível de representações por esse
sistema foi algo que lhe permitiu evoluir, é natural que a produção de
representações orientadas ao passado, ou viagem mental ao passado, seja
flexível no mesmo sentido.
Tendo
especificado essas motivações, podemos retornar à análise inicial do lembrar
oferecida pela teoria simulacionista para clarificar as noções utilizadas. De
acordo com a análise simulacionista, para que uma representação mnêmica seja
classificada como uma ocorrência de memória episódica, e consequentemente, como
uma ocorrência genuína de lembrança, é preciso que o sujeito tenha
experienciado o evento em questão e que a representação mnêmica seja produzida
por um sistema de construção episódico que funciona confiavelmente
e que tem como objetivo representar um evento do passado. A noção de um
“sistema de construção episódico” se refere, de modo mais específico, ao
sistema mais geral que permite viagem no tempo mental, tal como descrito acima,
e esse sistema “funciona confiavelmente” quando ele opera do modo em que ele
opera normalmente, isto é, quando ele realiza sua função própria[32].
Além disso, ele tem como objetivo representar um evento do passado quando a
orientação temporal subjetiva do sistema é produzir uma representação que nos
permite viajar mentalmente a uma experiência que tivemos no passado. Desse
modo, quando consideramos o funcionamento, e em última instância a função do
sistema que produz nossas memórias, o simulacionista nos diz que a memória
episódica nada mais é do que uma forma de imaginar aquilo que
experienciamos no passado.
Podemos
ver aqui, de modo mais claro, por que a teoria simulacionista não requer que,
para dizer que um sujeito lembra, é necessário que haja uma conexão causal
entre sua representação mnêmica e sua representação perceptual. Porque a
memória é uma forma de imaginar eventos experienciados por nós, a função do
sistema responsável por produzir nossas memórias é, quando dedicado a
representar o passado subjetivo, fundamentalmente aquela de representar um
evento do passado de modo verídico ou acurado, o que não exige a existência de
uma conexão causal entre representação mnêmica e representação perceptual. É
importante ressaltar que o simulacionista não nega que possa haver conexões
causais entre representações mnêmicas e representações perceptuais, e mais
ainda, que ele não nega que pode ser o caso que, na maioria das ocorrências
genuínas de memória, tais conexões causais estarão presentes, mas somente que a
existência de tais conexões não são necessárias para o sistema de construção
episódica produzir ocorrências genuínas de lembrança.
2.2. Problemas para a teoria
simulacionista
Embora a teoria simulacionista ofereça uma
teoria da memória que tenta incorporar os resultados das ciências empíricas,
ela enfrenta duas objeções importantes. A primeira diz que existem importantes
diferenças, do ponto de vista filosófico, entre memória e imaginação. A segunda
diz que a teoria simulacionista não consegue explicar a particularidade da
memória.
2.2.1. Problema 1: descontinuidades entre
memória e imaginação
O primeiro problema colocado à teoria
simulacionista se refere à afirmação de que memória e imaginação são, em sua
essência, processos cognitivos da mesma natureza. Embora do ponto de vista do
funcionamento do cérebro possa não haver uma diferença significativa entre
memória e imaginação, alguns filósofos argumentam que, do ponto de vista
metafísico, epistemológico, e fenomenológico, memória e imaginação são
processos distintos[33]. Na dimensão metafísica, argumenta-se que
os objetos da memória são diferentes dos objetos da imaginação; no caso da
memória, eventos particulares são representados, enquanto que no caso da
imaginação, eventos gerais são representados[34]. Na dimensão epistemológica, argumenta-se
que memória e imaginação nos colocam em diferentes posições epistêmicas em
relação ao mundo: por um lado, alguns autores argumentam que, enquanto a
memória nos permite conhecer o passado diretamente por estar causalmente
conectada aos eventos lembrados, a imaginação não nos permite conhecer o futuro
do mesmo modo, pois não há uma conexão causal com os eventos imaginados[35]; por outro lado, alguns autores
argumentam que a memória não é imune a erros por misidentificação (error
through misidentification), enquanto que a imaginação o é[36]. Na dimensão fenomenológica, argumenta-se
que a memória possui uma fenomenologia característica—isto é, é dito que ela é
acompanhada por um “sentimento de coisa passada” ou “sentimento de
familiaridade”[37]—enquanto que a imaginação não é
acompanhada por uma fenomenologia característica[38].
2.2.2. Problema 2: a particularidade da
memória
O segundo problema que se coloca à teoria
simulacionista tem a ver com a particularidade da
memória[39].
Memória episódica, tal como definida por Tulving[40] e tal como o termo é utilizado na
literatura recente, é entendida como memória de eventos particulares
experienciados no passado. O que, no entanto, explica essa particularidade?
Isto é, o que faz que uma representação mnêmica que ocorre no presente seja sobre,
ou tenha como referência, um evento que ocorreu no passado? De acordo
com a teoria causal, a particularidade da memória é estabelecida pela relação
causal entre representação mnêmica e representação perceptual. No entanto, uma
vez que o simulacionista diz que tais relações causais não são necessárias para
a memória, não é óbvio se é possível, e se sim, como é possível, que
representações mnêmicas sejam sobre, ou tenham como referência, eventos
particulares do passado. Na ausência de uma explicação de como a memória pode
ser sobre particulares, a teoria simulacionista parece implicar a ideia de que
aquilo que a teoria tenta explicar, isto é, a memória episódica ou a memória de
eventos particulares, é na verdade impossível.
3.
A teoria funcionalista da memória
A teoria funcionalista da memória,
desenvolvida por Jordi Fernández[41], diz que para lembrarmos um evento E episodicamente
é preciso que, primeiro, tenhamos uma representação mnêmica Rm de E,
segundo, que Rm cause em nós uma disposição a acreditar que E
ocorreu e que nós tenhamos representado perceptualmente E, e terceiro, Rm
tende a ser causada pelo fato de termos representado perceptualmente E. Para
ilustrar essa ideia, consideremos novamente o exemplo da festa de aniversário
de dez anos. Suponhamos que eu tenha uma representação mnêmica da minha festa
de aniversário de dez anos, na qual meus pais estão presentes, na qual vejo-me
jogando futebol com meus amigos de infância, na qual vejo-me comendo bolo de
chocolate, etc. De acordo com a teoria funcionalista, para que essa
representação mnêmica seja classificada como uma ocorrência de memória episódica,
e consequentemente, como uma ocorrência genuína de lembrança, é preciso que eu
tenha experienciado esse evento e que essa experiência tenda a causar em mim
uma representação mnêmica da minha festa de dez anos, tal que, por sua vez,
essa representação causa em mim uma disposição a acreditar que eu tive, de
fato, uma festa de aniversário de dez anos e que eu experienciei essa festa.
De
modo geral, a teoria funcionalista da memória é motivada pelo funcionalismo em
filosofia da mente, que é uma teoria mais geral sobre a natureza dos estados
mentais[42].
De acordo com o funcionalismo, estados mentais, como dores, crenças, desejos,
etc., são caracterizados pelo papel funcional que eles exercem dentro do
funcionamento de um sistema. Esse papel funcional é determinado, por sua vez,
em termos da relação exercida por um estado mental qualquer M entre os
estímulos que um sistema recebe do ambiente, chamados de inputs, e as
respostas que o sistema exibe em decorrência desses estímulos, chamados de outputs.
O exemplo da dor em seres humanos nos dá uma ilustração simples. Para o
funcionalista, a dor é caracterizada como um estado interno ao corpo humano que
tende a ser causado por danos ao corpo—esses são os inputs—e que causa
comportamentos de aversão, como estremecimentos e gritos, assim como outros
estados mentais, como a crença de que a fonte dos estímulos que causam dores
devem ser evitadas—esses são os outputs. Baseado nessa caracterização, o
funcionalista diz, então, que um sistema terá dor quando houver um estado
interno a esse sistema que exerça o papel funcional da dor, isto é, que
tenda a ser causado por certos inputs e que cause certos outputs.
Igualmente, o funcionalismo aplicado à memória dirá que um sistema terá uma
memória quando houver um estado interno—uma representação mnêmica Rm—a
esse sistema que exerça o papel funcional da memória, isto é, que tenda
a ser causado por certos inputs—o fato de termos representado perceptualmente
um evento E no passado—e que cause certos outputs—as crenças de que o
evento E ocorreu e que experienciamos E.
3.1.
Motivações para a teoria funcionalista
Existem
duas motivações para a teoria funcionalista. A primeira diz que uma teoria da memória
deve levar em conta o fato de que memória exige a formação de crenças sobre o
passado. A segunda motivação diz que a teoria funcionalista é compatível com o
caráter construtivos da memória.
3.1.1.
Motivação 1: memória e crença
A
principal motivação oferecida em favor da teoria funcionalista se refere à
ideia de que, para que possamos dizer que um sujeito qualquer lembra um evento
do passado, esse sujeito deve ter a disposição para formar certas crenças
sobre esse evento. De modo mais específico, o funcionalista diz que o sujeito
precisa ter a disposição para acreditar que o evento representado na memória
aconteceu e também que ele experienciou aquele evento. Para ilustrar o ponto de
contraste entre o funcionalismo, a teoria causal e a teoria simulacionista,
podemos recorrer ao conhecido exemplo do pintor introduzido por Martin e
Deutscher. Em sua discussão da teoria causal, Martin e Deutscher nos pedem para
imaginar o caso de um pintor que é pago para pintar uma cena qualquer, com a
única condição de que essa cena seja imaginada por ele. O pintor imagina então
uma cena de uma casa de fazenda em sua mente e pinta essa cena em seus mínimos
detalhes em uma tela. No entanto, ao ver a tela pintada, os pais do pintor
apontam que ela é uma representação muito fiel de uma casa que o pintor habitou
em sua tenra infância, sugerindo, portanto, que o pintor não imaginou a cena,
mas na verdade a lembrou. Na perspectiva da teoria causal, o que determina se a
representação que o pintor formou em sua mente antes de pintar o quadro era uma
ocorrência de lembrança ou de imaginação é se há ou não um traço mnêmico que
conecta essa representação a uma representação perceptual passada. Se o traço
mnêmico estiver presente, isso é suficiente para dizer que o pintor está lembrando,
e não imaginando, ainda que o pintor não tenha a crença de que ele esteja
lembrando[43].
De modo similar, na perspectiva da teoria simulacionista, o que determina se a
representação que o pintor formou em sua mente antes de pintar o quadro era uma
ocorrência de lembrança ou de imaginação é se o sistema de construção episódico
estava funcionando confiavelmente e se tinha como objetivo representar um
evento do passado do pintor. Em caso positivo, isso é suficiente para dizer que
o pintor está lembrando, e não imaginando, ainda que ele não tenha a crença de
que ele esteja lembrando. Para o funcionalista, no entanto, casos como o do
pintor não devem ser classificados como lembrança. Mais ainda, a teoria
funcionalista nos permite exclui-los como tais, visto que uma das condições
exigidas pelo funcionalista para uma representação mnêmica ser uma memória é
que ela tenda a causar no sujeito a disposição para acreditar que o evento
ocorreu e que ele experienciou o evento. No caso do pintor, nenhuma dessas
condições são satisfeitas, significando que a representação mnêmica formada por
ele não exerce o papel funcional da memória.
3.1.2.
Motivação 2: o caráter construtivo da memória
A
segunda motivação para a teoria funcionalista diz respeito à sua capacidade de
incorporar o caráter construtivo da memória. Como discutimos anteriormente,
dado o caráter construtivo da memória, é de se esperar que nossas memórias
contenham conteúdo ou informação que não estavam presentes na representação
perceptual. Para o funcionalista, ao contrário da teoria causal, a geração de
conteúdo ou informação é permitida desde que as representações mnêmicas em
questão exerçam o papel funcional da memória. Consideremos o exemplo da festa
de aniversário de dez anos. Suponhamos que o conteúdo da minha representação
perceptual tenha sido o seguinte:
Cp
= <meus pais estavam presentes; joguei futebol com meus amigos; era um dia
ensolarado; a festa ocorreu em uma chácara; comi bolo de chocolate>
Suponhamos
agora que formo uma representação mnêmica Rm desse evento com o
conteúdo Cm, em que
Cm
= <meus pais estavam presentes; joguei futebol com meus amigos; era um dia
ensolarado; a festa ocorreu em uma chácara; comi bolo de morango>
Neste
caso, tenho uma representação quase que inteiramente acurada do evento, com a
exceção de que represento ter comido bolo de morango, ao invés de bolo de
chocolate. Para o funcionalista, Rm será uma ocorrência de memória
se Rm causar em mim uma disposição a acreditar que a festa de
aniversário ocorreu, se eu tiver representado perceptualmente esse evento, e se
Rm tende a ser causada pelo fato de eu ter representado
perceptualmente a festa de aniversário. Como Rm parece satisfazer
todas essas condições—isto é, eu tenho a disposição a acreditar que a festa
ocorreu, eu representei perceptualmente a festa, e Rm tende a ser
causada pela minha representação perceptual—o fato de um dos detalhes do
conteúdo de Cm não ser acurado não desqualifica Rm como
uma ocorrência genuína de memória.
O
mesmo tipo de consideração se aplica a casos em que há adição de conteúdo.
Suponhamos que, em outra situação, formo uma representação mnêmica Rma
com o seguinte conteúdo:
Cma
= <meus pais estavam presentes; joguei futebol com meus amigos; era um dia
ensolarado; a festa ocorreu em uma chácara; comi bolo de chocolate; havia
uma árvore atrás do gol>
Neste
caso, o conteúdo inicial de Cp é preservado, mas há adição de
conteúdo ou informação, isto é, represento que <havia uma árvore atrás do
gol>. Como Rm acima, Rma também será uma ocorrência de
memória para o funcionalista, visto que Rma parece satisfazer todas
as condições exigidas pela teoria—isto é, eu tenho a disposição a acreditar que
a festa ocorreu, eu representei perceptualmente a festa, e Rma tende
a ser causada pela minha representação perceptual—embora Cma tenha
mais conteúdo ou informação do que Cp.
3.2.
Problemas para a teoria funcionalista
A teoria funcionalista enfrenta dois
problemas centrais. O primeiro diz que ela é muito restrita em sua análise do
lembrar. O segundo diz que ela é incapaz de explicar a particularidade da
memória.
3.2.1.
Problema 1: a teoria é muito restrita
O primeiro problema colocado à teoria
funcionalista diz que ela é muito restrita em sua tentativa de caracterizar a
memória, excluindo casos óbvios que seriam classificados como ocorrências
genuínas de lembrança. Dois exemplos do dia a dia são relevantes aqui. O
primeiro se refere a situações em que formamos uma representação mnêmica de um
evento, mas não formamos a disposição a acreditar que aquele evento aconteceu.
Suponhamos que, ao formar uma representação mnêmica da minha festa de
aniversário, não tenho certeza se aquela representação corresponde de fato a um
evento que ocorreu. Frente a essa dúvida, decido então perguntar aos meus pais
se eu tive uma festa de aniversário que ocorreu em uma chácara, em que joguei
bola com meus amigos, etc., ao que eles respondem positivamente. Nesse caso,
não tenho a disposição a acreditar, no momento em que formo a representação
mnêmica, que o evento em questão ocorreu e que eu o experienciei, mas não
deixamos de chamar tal representação de memória. Isso fica evidente no modo em
que descrevemos tais casos: não dizemos, por exemplo, que antes de conversar
com meus pais, eu estava imaginando o evento e só após conversar com eles que
passei a lembrá-lo; ao contrário, dizemos que eu estava lembrando antes da
conversa, mas que não estava certo de que estava lembrando. Mais ainda, mesmo
que assumamos que, após conversar com meus pais, eu tenha formado a disposição
para acreditar que o evento em questão ocorreu e que eu o experienciei, não é a
representação mnêmica do evento que causa essa disposição, mas sim o testemunho
dos meus pais, o que, do ponto de vista da teoria funcionalista, não seria
suficiente para dizer que a representação mnêmica é uma memória.
O segundo exemplo se refere a situações em
que formamos uma representação mnêmica de um evento, mas formamos uma
disposição para não acreditar que aquele evento aconteceu. Suponhamos
que, ao formar uma representação mnêmica da minha festa de aniversário, adquiro
a disposição para acreditar que aquele evento não ocorreu, e, portanto,
que não o experienciei. Suponhamos então que eu mencione ter tido essa
representação aos meus pais, ao que eles me respondem dizendo que estou
enganado, pois eu tive, de fato, uma festa de aniversário que ocorreu em uma
chácara, em que joguei bola com meus amigos, etc. Nesse caso, tenho a
disposição a não acreditar, no momento em que formo a representação
mnêmica, que o evento em questão ocorreu e que eu o experienciei, mas não
deixamos de chamar tal representação de memória. Isso fica evidente no modo em
que descrevemos tais casos: não dizemos, por exemplo, que antes de conversar
com meus pais, eu estava imaginando o evento e só após conversar com eles que
passei a lembrá-lo; ao contrário, dizemos que eu estava lembrando o evento, mas
que por algum motivo, confundi-me e formei a crença de que não o estava
lembrando. Mais ainda, mesmo que assumamos que, após conversar com meus pais,
eu tenha formado a disposição para acreditar que o evento em questão ocorreu e
que eu o experienciei, não é a representação mnêmica do evento que causa essa
disposição, mas sim o testemunho dos meus pais, o que, do ponto de vista da
teoria funcionalista, não seria suficiente para dizer que a representação
mnêmica é uma memória.
3.2.2.
Problema 2: a particularidade da memória
O segundo problema enfrentado pela teoria
funcionalista tem a ver com a particularidade da memória. Como discutimos
acima, a particularidade da memória se refere ao fato de que memórias
episódicas são sobre, ou se referem a, eventos particulares. A
particularidade da memória surge como um problema para o funcionalista pelo
mesmo motivo pelo qual ela se coloca como um problema para o simulacionista,
isto é, porque a análise funcionalista não exige que exista uma conexão causal
entre representação mnêmica e representação perceptual para que haja memória.
Para vermos por que este é caso, retomemos brevemente a análise funcionalista.
De acordo com essa análise, para lembrarmos um evento E episodicamente
é preciso que, primeiro, tenhamos uma representação mnêmica Rm de E,
segundo, que Rm cause em nós uma disposição a acreditar que E
ocorreu e que nós tenhamos representado perceptualmente E, e terceiro, Rm
tende a ser causada pelo fato de termos representado perceptualmente E.
Em particular, embora a terceira condição faça menção explicita a uma relação
causal, o tipo de relação em questão parece ser bastante distinta daquela
discutida pela teoria causal e a qual nos permite explicar a particularidade da
memória. Em outras palavras, o funcionalista diz somente que a representação
mnêmica deve ter a tendência de ser causada pela representação
perceptual do evento, mas não que ela deve ser causada, em todas as
situações, pela representação perceptual. Para tornar esse ponto mais claro,
podemos retomar o exemplo da dor. Para o funcionalista, uma dor tende a ser
causada por danos no corpo, mas não é necessário que toda dor seja causada por
danos no corpo—um exemplo clássico são as dores em membros fantasmas[44].
Do mesmo modo, no caso da memória, é possível que haja uma representação
mnêmica que não seja causada pela representação perceptual, mas que ainda assim
seja classificada como memória. Na ausência dessa relação causal, no entanto, a
questão que se coloca é o que nos permite dizer que a representação mnêmica é
sobre o evento particular experienciado no passado, e não é óbvio que tipo de
resposta, se há uma de fato, o funcionalista pode nos dar a essa questão.
Conclusão
Neste
artigo, apresentamos e caracterizamos três teorias recentes sobre o lembrar: a
teoria causal, a teoria simulacionista, e a teoria funcionalista. O principal
ponto de desacordo entre a teoria causal, por um lado, e a teoria
simulacionista e a teoria funcionalista, por outro lado, tem a ver com a
questão de se conexões causais são ou não necessárias para dizermos que um
sujeito lembra genuinamente um evento qualquer. Como vimos, para a teoria
causal, tal conexão causal é necessária, enquanto que para a teoria
simulacionista e para a teoria funcionalista, nem todos os casos de lembrança
genuína exigem a existência de uma conexão causal com a experiência passada.
Não é inteiramente óbvio, no entanto, que tipos de limitações e que tipos de
vantagens a opção por endossar ou negar a exigência da existência de conexões
causais em nossas teorias sobre o lembrar traz para o debate. Essa é, na
verdade, uma das questões centrais, e como tal, uma das mais controversas, em
debates recentes sobre filosofia da memória. Dado, entretanto, o panorama que
traçamos ao longo do artigo, podemos destacar algumas questões que merecem ser
exploradas com mais detalhes em pesquisas futuras.
Vimos,
ao longo da nossa discussão, que se o objetivo de uma teoria sobre o lembrar é
o de estabelecer uma distinção fundamental entre o lembrar e outros processos
cognitivos, em particular a imaginação e o reaprendizado, o apelo para a
existência de conexões causais parece ser inevitável. No entanto, essa
exigência parece estar em conflito com o caráter construtivo da memória. Assim,
uma primeira questão que se coloca para pesquisas futuras é se:
(Questão
1)
É possível termos uma teoria que, por um lado, afirma que memória, imaginação,
e reaprendizado são processos cognitivos que se distinguem fundamentalmente em
função de somente a memória exigir conexões causais, mas que, por outro lado,
seja capaz de incorporar de modo robusto o caráter construtivo da memória?
Em
caso de resposta positiva, o grande desafio que se coloca é o de
articular uma teoria que consiga conciliar essas duas ideias. Além disso, ainda
que tal teoria seja possível, um argumento mais robusto que estabeleça que a
existência de conexões causais é suficiente para distinguir entre o
lembrar e outros processos cognitivos é necessário. Como o exemplo do pintor
nos mostra (ver Seção 3.1.1), há casos em que, ainda que haja uma conexão causal
com uma representação passada, estamos inclinados a descrevê-los como casos de
imaginação. Para resolver o problema, o funcionalista sugere que incluamos um
critério que exige a presença da crença, por parte do sujeito, de que
ele lembra o evento em questão. O problema com essa sugestão, no entanto, é que
exigir a presença de crença no momento do lembrar parece ser muito restritivo,
colocando assim a questão de se outro critério deve ser adicionado em seu
lugar. Desse modo, ainda que uma teoria ofereça uma resposta conciliatória ao
questionamento inicial, ela terá que lidar com outros dois questionamentos
centrais, isto é,
(Questão
2)
É a exigência de conexões causais para o lembrar suficiente para distinguir
entre memória e outros processos cognitivos, principalmente a imaginação?
(Questão
3)
Em caso negativo, o que mais é preciso para estabelecer essa distinção? É a
presença da crença, como diz o funcionalista? Ou é preciso apelar para outros
elementos? Se sim, quais são esses elementos?
Caso
optemos, em contrapartida, por uma resposta negativa à Questão 1,
podemos seguir dois caminhos distintos. O primeiro se assemelha ao caminho
traçado pela teoria causal, o qual consiste em dizer que a questão fundamental
que deve ser respondida por uma teoria do lembrar é a de distinguir, em um
nível mais fundamental, entre o lembrar e outros processos cognitivos, e que
tal distinção é dada de modo satisfatório apelando à exigência de conexões
causais para o lembrar. O grande desafio enfrentado por filósofos simpáticos a
essa estratégia é, no entanto, o de explicar como conciliar essa abordagem com
aquilo que as ciências empíricas nos dizem sobre a natureza da memória, em
particular, sobre o seu caráter construtivo.
O
segundo caminho se assemelha ao traçado pela teoria simulacionista e, em parte,
pela teoria funcionalista, que consiste em dizer que um dos objetivos
fundamentais de uma teoria sobre o lembrar é o de fornecer uma análise do
lembrar que é compatível com seu caráter construtivo. O grande desafio que se
coloca para essas abordagens é, no entanto, o de lidar com o problema da
particularidade da memória, isto é, como explicar como nossas memórias são sobre,
ou se referem a, eventos do passado. Assim, uma quarta questão que se
coloca para futuras teorias sobre o lembrar é a questão de:
(Questão
4)
Se abandonarmos a exigência por conexões causais, como podemos explicar a
particularidade da memória?
Essa
questão, em particular, não tem recebido devida atenção em debates recentes,
não sendo claro, portanto, quais são as opções disponíveis aqui.
Para
concluir, gostaríamos de enfatizar que, independentemente da abordagem que
adotemos nesse debate, ainda existem importantes questões que precisam ser
respondidas para podermos decidir qual teoria sobre o lembrar é a mais
promissora. Esperamos, desse modo, que a discussão apresentada aqui sobre a
teoria causal, sobre a teoria simulacionista, e sobre a teoria funcionalista,
assim como os questionamentos destacados ao longo do artigo, sirvam como pontos
de partida para pesquisas futuras em filosofia da memória e, em particular,
pesquisas sobre teorias sobre o lembrar.
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* Esse
trabalho foi financiado pela Agência Nacional Francesa de Pesquisa, no quadro
do programa "Investissements d’avenir” (ANR-15-IDEX-02).
[1] Para
uma revisão mais completa da literatura acerca da teoria causal e
desenvolvimentos subsequentes, ver MICHAELIAN, K.; ROBINS, S. K. Beyond the
causal theory? Fifty years after Martin and Deutscher.
[2] Ver HUME, D. A Treatise of Human Nature; RUSSELL, B. The Analysis of Mind; HOLLAND, R. The
empiricist theory of memory; ver também BYRNE, A. Recollection,
perception, imagination para uma abordagem similar na literatura recente.
[3] Ver MALCOLM, N. Knowledge
and Certainty; BERNECKER, S. Memory:
A Philosophical Study; JAMES,
S. Epistemic and non-Epistemic Theories of Remembering;
FRISE, M. Epistemology of Memory
[4] Ver TULVING,
E. Episodic and semantic memory; TULVING, E. Elements of Episodic
Memory.
[5] KLEIN,
S. B. What memory is.
[6] Ver TULVING, E. Episodic memory and autonoesis: Uniquely human?; KLEIN,
S. B. What memory is.
[7] Ver TULVING,
E. Episodic and semantic memory; BERNECKER,
S. Memory: A Philosophical Study.
[8] MARTIN,
C. B.; DEUTSCHER, M. Remembering.
[9] É importante
notar que o termo “representação mnêmica” é utilizado de forma ampla aqui, de
modo a designar não somente ocorrências genuínas de memória, como quando
represento um evento passado como tendo sido experienciado, e é o caso que
experienciei tal evento, mas também ocorrências aparentes de memória,
como quando represento um evento passado como tendo sido experienciado, mas não
é o caso que experienciei tal evento.
[10] Para
simplificar, utilizaremos pronomes em
primeira pessoa do singular para discutirmos os exemplos apresentados no texto.
[11] Exemplo retirado
de MICHAELIAN, K.; ROBINS, S. K. Beyond the causal
theory? Fifty years after Martin and Deutscher, pp. 14-5.
[12] MARTIN,
C. B.; DEUTSCHER, M. Remembering, p. 166.
[13] Notamos aqui que
uma questão importante em filosofia da memória é a questão da natureza
da causação mnêmica. Enquanto (MARTIN, C. B.;
DEUTSCHER, M. Remembering) parecem adotar uma ideia mecanicista
da causação, alguns autores, como (BERNECKER, S. Memory:
A Philosophical Study), discutem a possibilidade de uma
interpretação contrafactual dessa noção. Não discutiremos essas alternativas
aqui, visto que o debate acerca delas ainda é bastante incipiente, mas
enfatizamos que os problemas discutidos aqui são baseados na noção de causação
discutida por (MARTIN, C. B.; DEUTSCHER, M. Remembering).
[14] Ver MICHAELIAN,
K. Generative memory.
[15]
Ver SCHACTER, D. L.; ADDIS, D. R.; BUCKNER, R. L. Remembering the past to
imagine the future: the prospective brain; SCHACTER, D. L.; ADDIS, D. R.;
HASSABIS, D.; et al. The future of memory: remembering, imagining, and the
brain; ADDIS, D. R. Are episodic memories special? On the sameness of
remembered and imagined event simulation; ver Seção 2 para mais detalhes. Embora
uma definição precisa da noção de “reconstrução” seja difícil de ser
apresentada no contexto dessa discussão (ver MICHAELIAN, K. Generative
memory), é importante notar que “reconstrução” não implica a ideia
de que a memória é um processo de “livre” geração e associação de conteúdos, de
modo a torná-la não confiável ou “ilusória”. No contexto da filosofia da
memória, a ideia de construção (ou reconstrução) sugere que, dado o
funcionamento dos mecanismos responsáveis por produzir nossas memórias, é de se
esperar que, (1) mesmo quando os conteúdos das nossas representações mnêmicas
são qualitativamente idênticos aos conteúdos das nossas representações
perceptuais, não é necessariamente o caso que os primeiros sejam numericamente
idênticos aos segundos; e que, (2) em alguns casos, parte do conteúdo das
nossas representações mnêmicas podem ser qualitativamente distintos dos
conteúdos das nossas representações perceptuais.
[16] (MARTIN, C. B.; DEUTSCHER, M. Remembering) não são muito claros sobre a importância
da acurácia para a memória. Eles dizem que a representação mnêmica deve ser
“acurada dentro de certos limites” (MARTIN, C. B.; DEUTSCHER, M. Remembering,
p. 166, tradução nossa), mas eles não dizem muito sobre quais são esses
limites. Existem dois modos de se interpretar essa afirmação. O primeiro
consiste em entendê-la como dizendo que nem todos os detalhes contidos na
representação perceptual precisam estar contidos na representação mnêmica—isto
é, que pode haver perda de conteúdo. A segunda interpretação consiste em
entender a afirmação como dizendo que pode haver mais conteúdo na
representação mnêmica do que na representação perceptual—isto é, que pode haver
geração de conteúdo. Se a primeira interpretação estiver correta, o
problema discutido aqui não se coloca à teoria causal. No entanto, como o texto
de (MARTIN, C. B.; DEUTSCHER, M. Remembering) não é claro em relação a como entender a
afirmação sobre acurácia, adotamos a interpretação usual empregada por outros
autores (e.g., BERNECKER, S. Memory: A
Philosophical Study; MICHAELIAN, K.;
ROBINS, S. K. Beyond the causal theory? Fifty years after Martin and
Deutscher), de acordo com a qual a
teoria causal de (MARTIN, C. B.; DEUTSCHER, M. Remembering) não permite a geração de conteúdo.
[17] Um problema
relacionado é se a teoria causal permite que haja perda de conteúdo
entre uma representação perceptual e uma representação mnêmica. Suponhamos que,
no passado, eu tenha tido uma representação perceptual de um evento com o
conteúdo <bebi cerveja>, mas, no presente, formo uma representação
mnêmica desse evento com o conteúdo <bebi uma bebida alcoólica>. Nesse
caso, a representação mnêmica possui menos conteúdo do que a representação
perceptual, colocando a questão de se a primeira deve ser classificada como
memória ou não. Intuitivamente, a resposta parece ser positiva, mas não é muito
claro se a teoria causal, tal como formulada por (MARTIN,
C. B.; DEUTSCHER, M. Remembering), nos permite fazer tal
afirmação. Com essa preocupação em mente, alguns teóricos causais, como (BERNECKER, S. Memory: A Philosophical
Study) e (CHENG, S.; WERNING, M. What is episodic memory if it is a natural
kind?), argumentam que as transformações que ocorrem em algumas das situações
em que há perda de conteúdo são “autênticas” (ver BERNECKER, S. Autoconhecimento
e os limites da autenticidade), de modo que não é preciso haver uma relação de
identidade entre o conteúdo de uma representação mnêmica e o conteúdo de uma
representação perceptual para que a primeira seja classificada como memória.
Não trataremos desse problema aqui, uma vez que nossa discussão tem como foco a
teoria causal clássica desenvolvida por (MARTIN, C.
B.; DEUTSCHER, M. Remembering). No entanto, para uma discussão
mais detalhada sobre a teoria causal e sobre perda de conteúdo, ver MICHAELIAN, K.; ROBINS, S. K. Beyond the causal theory?
Fifty years after Martin and Deutscher,
seção 3.
[18] Mais
recentemente, alguns filósofos propuseram que a teoria causal pode ser
conciliada com o aspecto construtivo da memória, dando origem ao que podemos
chamar de teorias causais construtivas (ROBINS,
S. K. Representing the past: Memory traces and the causal theory of memory;
ROBINS, S. K. Misremembering. Philosophical Psychology; ROBINS, S. K. Confabulation
and constructive memory) A ideia central por
trás dessas teorias é que a teoria causal não é incompatível com a ideia de que
diferentes traços mnêmicos contribuem para a formação de uma representação
mnêmica de um evento, desde que pelo menos um desses traços esteja causalmente
conectado à representação perceptual do evento representado mnemicamente. Não
discutiremos essas versões da teoria causal, mas, como veremos em nossa
discussão sobre a teoria simulacionista (ver Seção 2.1.1), o problema colocado
pelos simulacionistas às teorias causais construtivas é que, uma vez que
estejamos dispostos a aceitar que mais de um traço mnêmico pode contribuir para
a formação de uma representação mnêmica de um evento E, parece ser difícil
evitar a conclusão de que, em alguns casos, haverão representações mnêmicas do
evento E que devem ser classificadas como memória mas que nenhum dos traços que
as compõem estejam causalmente conectados à representação perceptual original
de E.
[19] MICHAELIAN,
K. Mental Time Travel: Episodic Memory and Our Knowledge of the Personal
Past.
[20] MICHAELIAN,
K. Mental Time Travel: Episodic Memory and Our Knowledge of the Personal
Past, p. 107.
[21] BARTLETT,
F. C. Remembering: A Study in Experimental and Social
Psychology.
[22] INTRAUB,
H.; BENDER, R. S.; MANGELS, J. A. Looking at pictures but remembering scenes.
[23] NIGRO, G.; NEISSER, U. Point of view in personal memories; RICE, H. J.; RUBIN, D. C. I can see it both
ways: First-and third-person visual perspectives at retrieval; RICE, H. J. Seeing
where we’re at: a review of visual perspective and memory retrieval; MCCARROLL, C. Remembering from the Outside: Personal Memory and the
Perspectival Mind.
[24] DEESE, J. Influence of Inter-Item Associative Strength upon Immediate
Free Recall; ROEDIGER, H.; MCDERMOTT, K. Creating false memories: Remembering
words not presented in lists.
[25] Para uma
discussão mais completa, ver SCHACTER,
D. L.; ADDIS, D. R.; BUCKNER, R. L. Remembering the past to imagine the
future: the prospective brain; SCHACTER, D. L.; ADDIS, D. R.; HASSABIS, D.;
et al. The future of memory: remembering, imagining, and the brain;
ADDIS, D. R. Are episodic memories special? On the sameness of remembered
and imagined event simulation.
[26] DE
BRIGARD, F. Is memory for remembering? Recollection as a form of episodic
hypothetical thinking.
[27] Embora
descrevamos o conteúdo Cp no tempo passado aqui—e.g., “meus pais estavam
presentes”; “joguei futebol com meus amigos”, etc.—é importante notar
que o conteúdo da experiência perceptual não ocorre, de fato, no tempo passado.
Ao contrário, o modo mais fiel de descrever tal conteúdo seria no tempo
presente, isto é, Cp = <meus
pais estão presentes; jogo futebol com meus amigos; é um
dia ensolarado; a festa ocorre em uma chácara; como bolo de
chocolate>. Como, no entanto, a discussão seguinte não focará no aspecto
temporal das representações perceptuais e das representações mnêmicas, mas sim
nos elementos que as compõem, optamos pela descrição de Cp no tempo
passado para facilitar a exposição.
[28] Ver PERRIN,
D.; MICHAELIAN, K. Memory as mental time travel; SANT’ANNA, A. The
hybrid contents of memory.
[29] Ver ADDIS,
D. R.; WONG, A. T.; SCHACTER, D. L. Remembering the past and imagining the
future: common and distinct neural substrates during event construction and
elaboration; SCHACTER,
D. L.; ADDIS, D. R.; BUCKNER, R. L. Remembering the past to imagine the
future: the prospective brain; SCHACTER, D. L.; ADDIS, D. R.; HASSABIS, D.; et
al. The future of memory: remembering, imagining, and the
brain.
[30] PERRIN,
D.; MICHAELIAN, K. Memory as mental time travel; ADDIS, D. R. Are episodic memories
special? On the sameness of remembered and imagined event simulation.
[31] Ver SUDDENDORF, T.; CORBALLIS, M. C. Mental
time travel and the evolution of the human mind; SUDDENDORF, T.; CORBALLIS,
M. C. The evolution of foresight: What is mental time travel, and is it
unique to humans?
[32] MILLIKAN,
R. G. Language, Thought, and Other Biological Categories
[33] SANT’ANNA,
A. Mental time travel and the philosophy of memory; MICHAELIAN, K.;
PERRIN, D.; SANT’ANNA, A. Continuities and discontinuities between
imagination and memory: The view from philosophy.
[34] DEBUS,
D. ‘Mental time travel’: Remembering the past, imagining the future, and the
particularity of events.
[35] KNEALE,
M. Our Knowledge of the Past and of the Future.
[36] PERRIN,
D. Asymmetries in subjective time.
[37] RUSSELL,
B. The Analysis of Mind.
[38] Para mais
detalhes sobre a questão da continuidade entre memória e imaginação, ver (SANT’ANNA, A. Mental time travel and the philosophy of memory;
MICHAELIAN, K.; PERRIN, D.; SANT’ANNA, A. Continuities and discontinuities
between imagination and memory: The view from philosophy.). Para
uma discussão mais detalhada sobre como a teoria simulacionista pode responder
a alguns desses problemas, ver (MICHAELIAN, K. Against discontinuism:
Mental time travel and our knowledge of past and future events.)
[39] SANT’ANNA, A. The hybrid contents
of memory; PERRIN, D. A Case for Procedural Causality; PERRIN, D. Le
contenu du souvenir épisodique: une singularité non fondée sur l’accointance.
[40] TULVING,
E. Episodic and semantic memory.
[41] FERNÁNDEZ, J. The
Functional Character of Memory; FERNÁNDEZ, J. Memory: A Self-Referential
Account.
[42] PUTNAM, H. Minds and
Machines; PUTNAM, H. The Nature of Mental States.
[43]
Alguns teóricos causais, como (DEBUS, D. Accounting for epistemic relevance:
A new problem for the causal theory of memory), argumentam que a teoria
causal precisa ser suplementada de modo a incorporar uma condição epistêmica,
de acordo com a qual, para dizermos que um sujeito qualquer lembra um evento, é
necessário que ele forme a crença de que lembra aquele evento.
[44] RAMACHANDRAN,
V. S.; HIRSTEIN, W. The perception of phantom limbs. The D. O. Hebb lecture.