Submissão: 05/10/2019 Aprovação: 28/11/2019
Publicação: 18/12/2019
Dossiê
Filosofias da memória
A escrita da história e a ação como “obra aberta” ante as “perspectivas cruzadas”
History's writing and the action as "open
work" in the face of the "crossed perspectives"
Sanqueilo
de Lima Santos
Professor de Filosofia no Departamento de Filosofia e
Ciências Humanas (DFCH) na Universidade Federal de Santa Cruz.
Mariana Marcelino
Alvares
Graduanda do curso de Filosofia da Universidade Federal de Santa Cruz,
bolsista de iniciação científica FAPESB.
Resumo:
O presente artigo discute
sobre o caráter aberto que Ricœur, em sua obra A memória, a história, o esquecimento (2001), mantém para a questão
da validade da historiografia enquanto saber científico. O fato de Ricœur não
objetivar um consenso que valide a historiografia, no sentido epistemológico,
pode desanimar um leitor historiador. No entanto, o dissensus que se reflete na falta de um método paradigmático, de um
significado unívoco e de uma categoria fundamental da investigação
historiográfica, em Ricœur, não condena a historiografia à impossibilidade. Ao
invés disso, o presente texto tem o objetivo de justificar o caráter “aberto”
da historiografia, exposto por Ricœur na obra aqui citada, apresentando a
necessidade das “perspectivas cruzadas” para a relação da historiografia com o
debate público. Essa discussão desemboca nas implicações éticas e políticas do
discurso historiográfico.
Palavras-chave: Historiografia; Memória; Dissensus
Abstract:
The present article discusses the open character that Ricœur, in his book Memory, History, Forgetting (2001),
keeps to the question of the validity of history as scientific knowledge. The
fact that Ricœur does not aim for a consensus that validates historiography, in
the epistemological sense, may discourage a historian reader. However, the dissensus that is reflected in the lack
of a paradigmatic method, univocal meaning and a fundamental category of
historiographical inquiry, in Ricœur, does not condemn historiography to
impossibility. Instead, the present text aims to justify the “open” character
of historiography, exposed by Ricœur in the work cited here, presenting the
need of “crossed perspectives” for the relationship of historiography with the
public debate. This discussion leads to the ethical and political implications
of historiographic discourse.
Keywords:
Historiography; Memory; Dissensus
Introdução
Había aprendido sin
esfuerzo el inglés, el francés, el
portugués, el latín.
Sospecho, sin embargo, que no era
muy capaz de pensar.
Pensar es olvidar diferencias, es
generalizar,
abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no
había detalles, casi
inmediatos. (Jorge Luis Borges)
Se Paul Ricœur, nas últimas páginas de A história, a memória, o esquecimento
(2001), deixa o leitor sem instrumentos definidos ou sequer esboçados para os
procedimentos historiográficos; se, tampouco chega a um termo último de
validação para a historiografia, garantidor da especificidade e consistência
metodológica em teoria da história; contudo, ainda assim, não almeja a retirar
do discurso do historiador todo e qualquer sentido e validez. A crítica ao
estruturalismo da escola dos Annales,
a recusa de um modelo de ciência da história que, às custas da narratividade,
pretende ser totalmente objetiva não implica simplesmente uma confusão com a
narrativa ficcional. De fato, trata-se de uma obra filosófica, intencionalmente
destinada a contribuir para a reflexão de problemas filosóficos. É o que se
constata na ontologia do ser histórico, na epistemologia da história, na
fenomenologia da memória e nas questões éticas que emergem das relações da
história com o mundo político e com a atividade jurídica. Mas é perfeitamente
compreensível que o historiador deva ter um interesse próprio quanto ao que a
obra de Ricœur tem a contribuir para a reflexão
sobre o trabalho historiográfico. Essa ausência de uma “palavra final” a
respeito do método, do significado, de uma categoria fundamental da
investigação e do conhecimento histórico, palavra final que poderia satisfazer
às expectativas de um leitor historiador, caracteriza o que aqui será chamado
de “abertura”, não só da obra ricœuriana, mas inclusive daquilo que Ricœur
caracteriza para próprio discurso historiográfico e, mais amplamente, da sua recepção
no terreno da “condição histórica”.
Tal caráter “aberto” – para usar uma expressão de
Umberto Eco[1] – de muitas obras ricœurianas pode frustrar não
apenas o leitor especializado na historiografia, mas, em geral, qualquer leitor
mais familiarizado com problemas e discussões epistemológicas. No entanto, há
uma justificação para tal abertura, a qual remete ao enraizamento e à
destinação da história com relação ao mundo da cultura. No âmbito geral da
cultura, a história não deve se furtar ao diálogo com a filosofia, a política e
a ética. O que vem à tona, quando a perspectiva reflexiva se ajusta às conexões
estruturais do mundo da cultura, no seio da qual se localiza e se move a
história, são as razões, as necessidades dessa renúncia a teses conclusivas e da
preservação de uma abertura crítica. O sentido de tal abertura se sobressai,
principalmente, no tema do “dissensus
cívico”[2] na sua “função educativa”[3] e, nessa medida, “gerador de democracia”[4], frequentemente referido por Ricœur na obra. O saber
histórico precisa colocar-se à prova,
interrogando e respondendo outras perspectivas do dissensus cívico, ou seja, a operação historiadora e a escrita da
história deve colocar em prática uma abertura da fala, num terreno nada
familiar, que não é o de sua investigação, i.e.,
o do juiz e o do cidadão, daquilo que Silva designa como “consideração da
alteridade”[5].
No presente artigo, se intentará trazer ao primeiro
plano as razões que justificam o seu caráter “aberto”, percorrendo as seguintes
questões: (1) Qual o saldo da fenomenologia e da hermenêutica para a
compreensão do campo histórico, de suas possibilidades teóricas, que se pode
depreender da obra? Esse ganho se refletirá na distinção das modalidades da
memória e do esquecimento, que vão desde a memória feliz, até o esquecimento
total e o que é impossível esquecer. Essas distinções permitirão perguntar (2)
pelo grau de responsabilidade, ou seja, pela implicação ética da história,
quando aquilo que ela apresenta como conhecimento válido do passado resulta de
uma opção metodológica que pode deixar de fora a voz dos mortos anônimos. Ao se
responsabilizar pelos mortos anônimos silenciados, contudo, como o historiador
não se confundiria com o juiz e com o cidadão? Ricœur não pode responder a essa
questão, pelo menos não de forma unívoca, porquanto isso o obrigaria a eleger
um método, um objeto e um critério de validade para a história; em vez disso, o
filósofo preserva a “abertura” epistemológica, com a qual é compatível um dissensus vivo, educativo e fecundo para
a democracia. Com isso, passamos à questão: (3) Qual o sentido dessa
“abertura”, no campo dentro do qual a história se delimita com relação ao
extra-histórico, e que é sua condição? Defendendo
que essa abertura se impõe pela própria temporalidade, pela incoatividade
sempre renovada das ações humanas, a justificação principal da manutenção da
“abertura” desembocará na problemática ontológica do mundo da vida, do caráter
inacabado das próprias ações humanas.
Recolocação do
campo da história com base nos resultados da fenomenologia da memória e da
hermenêutica histórica
O estatuto epistemológico da história, sua
legitimidade como ciência, cobra necessariamente o cumprimento da “fase”
escriturária[6]. A história só adquire objetividade e só pode
reivindicar validez quando adquire corpo e materialidade ao modo da
historiografia[7]. Mas, para aqueles que eram alvo da crítica
ricœuriana, a escrita da história, no entanto, para atender a um requisito
interno de coerência e objetividade, deveria impor, a si mesma, uma restrição
de premissas: essas últimas deveriam provir dos documentos, arquivos ou
testemunhos e da aplicação dos instrumentos de análise, muitas vezes, excluindo
o modo narrativo de fazer história. Tal restrição implica, por certo, um óbice
para a fenomenologia hermenêutica. Em consequência, a menos que abdique dos
recursos dessa última, a historiografia estaria ilegitimamente se apropriando
dos conceitos da ética e da política, ínsitos na condição histórica.
Assim, para compreender a inserção de Ricœur nesse
debate, é preciso remontar às novas possibilidades da historiografia,
levantadas graças ao direcionamento peculiar resultante da fenomenologia da
memória, da ontologia do ser-histórico e da hermenêutica fenomenológica. Esse
direcionamento de possibilidades se reflete, sobremodo, na gama de variedade
com respeito às noções de memória e esquecimento e na propriedade da
representância de ostentar uma circularidade que extrapola o histórico e
envolve o mundo da cultura como um todo. Essa gama vai da memória feliz (marcada pelo reconhecimento)
ao esquecimento completo; do esquecimento
traumático (característico da memória
ferida) ao impossível de esquecer
(que é complementado pela obrigação de
lembrar).
Certamente aqui não serão esmiuçadas[8], nem seria proveitoso, todas as expressões nuançadas
do tema, mas aquelas distinções e gradações estruturantes, em torno das quais
se faz a partilha dos saberes fenomenológico, epistemológico e
ontológico-hermenêutico e ético-político. A seguir, estão as principais
oposições:
- A primeira distinção, dentre as mais básicas, se dá
entre lembrança como μνήμη e como αναμνήσεις. A primeira designa a lembrança em seu aspecto
passivo (πάθος, afecção), relacionado ao “quê?” da lembrança. A
segunda diz respeito à lembrança como evocação, busca, recordação, relembrança,
denotando o aspecto ativo; liga-se ao “como?” do ato de lembrar, ao seu modus operandi (πράξης).
- Quanto à imagem, referindo-se aos usos filosóficos
na Grécia antiga, surge a distinção entre a imagem icástica, de cópia (εικόνα), associada ao tipo (τύπους), como marca impressa, a imagem de imitação (μίμηση) e a simples marca de escrita (γραφή). Em proximidade com a noção de “forma” (μορφή), que atravessa todas a distinções, também são
mencionados o ídolo (είδωλο) e a ideia (είδος). Elas estão ligadas
tanto à memória e à percepção (retratos, pinturas, esculturas), quanto à
imaginação. De fato, a oscilação entre memória e imaginação não vai deixar de
incidir, nem mesmo sobre as discussões mais especializadas acerca da
historiografia[9].
- Ligada à αναμνήσεις, definida como práxis da memória, aparece a distinção
entre “memória infeliz” e “memória feliz”. A primeira é aquela que, após um
esforço de lembrança, esbarra no limite de um “esquecimento por apagamento”,
enquanto a última se manifestaria no “milagre da memória”, que caracteriza o
momento do reconhecimento, os quais
trariam provas de uma “memória de reserva”. Com respeito à história, essa
distinção é decisiva para o problema da identidade e do reconhecimento de um
povo, cuja memória coletiva pode estar marcada por “feridas na memória
coletiva”, de um lado, ou pelo “não querer saber”, do outro, no caso do passado
de vencidos e vencedores em guerras.
- Memória individual e coletiva.
- A memória artificial, das ars memoriae, vai desde a mnemotécnica, empregada na retórica e na
recitação, passando pela memorização das artes cênicas e da música, até a
memória que imagina (ligada aos excessos da memória). Em contraste, há a
memória natural, a qual pode se vê impedida, em contextos traumáticos, como os
que são estudados pela psicanálise; pode se dá como memória manipulada, como na
ideologia que opera na justificação da autoridade; e, até mesmo, pode se
cristalizar na memória obrigada, aquela que resulta do exercício normativo do poder
político, em seu aspecto coercitivo[10].
- Unem-se, a isso, as “figuras do esquecimento”.
Ricœur alude a uma ars oblivionis (a possessão, a
inversão de papéis e a inauguração e a iniciação), como contraponto à ars memoriae. No tocante ao confronto
historiador/juiz/cidadão, enumera-se o esquecimento
feliz (milagre do perdão),
associado ao esquecimento de reserva,
que é tema do perdão difícil, e ao esquecimento da dívida, cujo limite é a inesquecidiça memória. A inesquecidiça
memória resiste subterraneamente ao esquecimento proposital da história oficial
e ao “não querer saber”. São
discutidos, ainda, o esquecimento de apagamento,[11] o esquecimento ligado aos abusos da memória e o abuso
do esquecimento comandado (anistia).
Acresce-se a isso o ato de “escrever para apagar”.
Com referência a essa gama das noções de memória e
esquecimento, a fenomenologia é conectada com a multiplicidade de escala do
método dos Annales, descrita na micro
e macro história, na história de longa e curta duração e a crônica. Além disso,
é possível também depreender desses fenômenos originários também a variação
pela qual a história se particulariza enquanto monumental, heróica, ideológica,
narrativa, seletiva ou simplesmente falsa. Ao mesmo tempo, tais noções de
memória, imaginação e narração, ao se articularem com a de historiografia,
fornecem o instrumento da suspeita e da crítica. Essas diferenciações
incidentes sobre o tema da memória, portanto, não apenas conduzem a
diferenciações no tocante ao sentido da história, mas também a coloca em
relação lógica com outras “objetivações do espírito”, com outras camadas do Geist, que permitem mediar os
empréstimos de sentido e de problemas atinentes à ética, à política e à
filosofia.
Assim, para Ricœur, se a
história nunca se desprende da memória e essa é indissociável da imagem, o
problema da sua pretensão veritativa jamais pode desconsiderar a conexão do
passado com a imagem. Com efeito, além da tese forte de que a história é do
passado (para o filósofo, não é possível levar a termo qualquer história do
presente)[12] e de que, em última análise, o sentido da história
não perde o caráter narrativo e, por isso, permanece, sem qualquer primazia,
ligada ao sentido da memória como fenômeno matricial de visada do ausente
passado[13], além dessas teses polêmicas, Ricœur não surpreende
menos ao afirmar que “a representação historiadora é de fato uma imagem presente de uma coisa ausente;
mas a própria coisa ausente desdobra-se em desaparição e existência no passado”[14].
Por isso mesmo, a historiografia está sujeita a ser
interrogada por práticas de saber extra-históricas, como a política, o direito
e a fenomenologia hermenêutica. Na medida em que, da perspectiva
fenomenológico-hermenêutica, o referente último da historiografia não é
definido unicamente a partir do critério de circunscrição metodológica, o
percurso pela ontologia da condição história resta incontornável. Somente tal
ontologia pode fazer justiça ao referente da história, em toda sua extensão. Na
dimensão ontológica, que ocupa o próximo tópico, a ligação entre a
especificidade da história e a abertura do dissensus
ganha uma distinção e uma justificação mais consistente, através do fio
condutor da relação entre a operação historiadora, na fase escriturária, e a dívida, tema heideggeriano, que lança sobre
o fazer histórico um questionamento extracientífico, i.e., filosófico: uma pergunta sobre a responsabilidade[15] ética e política com relação aos mortos anônimos
“esquecidos” pela história[16].
A dívida na fase
escriturária: responsabilidade imputável à história
A reflexão sobre o ausente, no discurso
historiográfico, tem lugar, na obra A
memória, a história, o esquecimento, quando Ricœur se propõe a pensar o
tratamento da morte próprio à historiografia. Influenciado pelo pensamento
heideggeriano sobre o ser-para-a-morte, Ricœur contrapõe o tratamento da morte
na filosofia, tal como foi levada a termo no pensamento de Heidegger, àquele
que é dado pela historiografia. O ponto que se destaca, nessa contraposição, é
o tema do estar ausente, que se faz,
que pode ou que deve se fazer
presente no discurso historiográfico.
De fato, a historiografia, ao lidar com a morte, lida
com o ausente. Reside nesse ausente, porém, uma duplicidade de sentido, que
representa uma dificuldade ética e política para o trabalho historiográfico. A
dificuldade diz respeito à ambiguidade do ausente se referir, tanto aos que são
lembrados pela história, uma vez que a mesma lida com os acontecimentos dos
mortos, dos que não existem mais no presente, quanto à ausência daqueles estiveram
no acontecimento passado na condição dos vencidos e que, por isso, são
esquecidos pelo próprio discurso da história. Assim, é preciso compreender a
problematização, de Ricœur, sobre o ausente e suas implicações éticas e
políticas. Em última instância, a reflexão aqui se move junto ao problema de
saber como e porque há, no discurso historiográfico, uma responsabilidade, no
sentido de dever de dívida, sobre a história dos vencidos.
Ao tratar dos anônimos na história e, com isso, da
necessidade de falar acerca da história dos vencidos, Ricœur coloca o leitor
diante da crítica feita por Walter Benjamin, no século XX, ao historicismo. Na
esteira do pensamento de Benjamin, Ricœur tem em vista, desse modo, a ação do
discurso historiográfico de silenciar os vencidos. Em termos benjaminianos, o
discurso da história tradicional seria a comemoração das “façanhas” dos
vencedores.
Contra essa postura, que silencia a história dos
vencidos, Benjamin, à luz do que chama de história a “contrapelo”, diz algo
sobre a necessidade da historiografia de dar voz àqueles que foram silenciados
pela história. Segundo Arriada[17], para Benjamin, a tradição da historiografia, até
então, estaria sedimentada na história dos vencedores, que, em outros termos,
seria a história das classes dominantes. Ainda segundo o filósofo, o
historicismo cultural se refere à
narração das vitórias e glórias da classe dominante de cada momento histórico.
Nesse sentido, as histórias constantes dos discursos historiográficos, à sua
época, não seriam mais que versões dos vencedores, os quais se fazem os
“senhores do passado”. O que se comemora e se homenageia, pelos adeptos do
historicismo cultural, são as vitórias desses mesmos senhores.
O que Benjamin pretende com a história a “contrapelo”,
porém, é deslocar a escrita historiográfica dos vencedores para o lado dos
vencidos. Nesse sentido, ante à tradição do historicismo que dá voz, apenas,
aos vencedores, o movimento proposto por Benjamin é o de dar voz aos anônimos
na historiografia. Essa mesma crítica e pretensão é recepcionada por Ricœur, em
A história, a memória, o esquecimento,
ao tratar do ausente que se faz presente no discurso historiográfico. Apesar de
não se demorar na discussão sobre os anônimos, Ricœur, ao trazer à tona o
elemento ausente no discurso historiográfico, indica uma responsabilidade ética
e política do historiador, quando esse se propõe a escrever sobre os entes de
outrora. Essa responsabilidade não se refere apenas ao imperativo científico de
a historiografia ter de cumprir pretensão de narrar ou explicar os fatos tais
como aconteceram, mas diz respeito também à possível omissão que consiste em
tornar ausentes, no discurso, pessoas que fizeram parte da história. O silêncio
daqueles que perderam as batalhas e as guerras ou que foram subjugados pelos
vencedores tem uma ação performativa[18] no presente. O discurso historiográfico, nesse
sentido, possui uma responsabilidade ética e política, que se evidencia quando
Ricœur recoloca o conceito de dívida, presente na obra Ser e Tempo (1927) de Heidegger, no centro da discussão sobre o
ausente na historiografia.
O ausente, que se torna presente no discurso
historiográfico, tanto no sentido da ausência daqueles que morreram e se fazem
presentes, quanto na ausência dos vencidos que se tornaram anônimos, é pensado,
por Ricœur, como foi dito, à luz do conceito de dívida heideggeriano. No entanto, Ricœur utiliza o conceito de
dívida de maneira específica, de modo a se afastar do pensamento ontológico de
Heidegger. Em Ricœur, o conceito de dívida é trazido à discussão com respeito à
marca do ausente se fazendo presente no discurso historiográfico. De fato, o
ausente, que se torna presente no discurso historiográfico, se sustenta no fato
de a historiografia dirigir seu olhar para um momento anterior, no qual as
pessoas representadas, anteriormente em vida, não estão mais presentes senão no
discurso: o discurso historiográfico se organiza em um presente que falta.
Para Ricœur, o conceito de dívida interpelaria o historiador a fazer jus aos ausentes, dos
quais a história escrita sequer faria menção: trata-se do caso especial dos
anônimos, esquecidos e silenciados. Nesse sentido, o estar em dívida, no sentido de carregar uma herança e ter de
assumi-la se alia, em Ricœur, à pretensão da história de narrar os
acontecimentos como efetivamente tenham ocorrido.
Aqui, especificamente, é preciso aclarar a relação
entre o conceito de estar em dívida e
o ausente na historiografia. O discurso historiográfico representa pessoas de
outrora que, portanto, estão ausentes. Seu ato performativo é fazer com que o onticamente ausente
adquira uma presença escriturária. Mas também, ao mesmo tempo, com esse gesto,
corre o risco de redobrar a ausência daqueles que, já tendo morrido, e apesar
de fazer parte dos acontecimentos de grande ou pequena escala, permanecem
ausentes também no discurso, como anônimos, como os não designados ou como “os
que não contam” para o significado e para a explicação do acontecimento. Esses
duplamente ausentes (no tempo presente e na escritura presente) não se fazem
presentes sequer performativamente no discurso. Desse modo, não é suficiente
que o discurso da historiografia apenas torne presente os ausentes de outrora.
Diz respeito à historiografia, também, a responsabilidade de reinscrever em seu
discurso os anônimos, os quais performativamente foram silenciados.
No âmbito do discurso historiográfico, porém, a dívida se compreende junto ao tema da
herança e se instaura como a fundação de toda narrativa sobre o passado.
Segundo Ricœur, “se se pode dizer que certas coisas provêm do passado, é porque
o Dasein traz consigo os rastros de
sua proveniência sob a forma da dívida e da herança”[19].
A utilização do conceito de dívida, por Ricœur, teria
o objetivo de problematizar a pretensão veritativa da historiografia, ou seja,
a de representar os fatos com inconteste fidelidade ao passado, como se o
passado pudesse se comportar como meros objetos axiologicamente indiferentes às
opções de método e de análise. Em contraposição a isso, a responsabilidade da
operação historiadora residiria no fato do ausente significar a ausências dos
mortos, mas principalmente na recuperação da versão e do testemunho daqueles
que foram vencidos ou subjugados. Sobre isso, diz Ricœur:
Entretanto,
podemos, desde agora, progredir bastante nessa direção, graças a uma ampliação
e a um aprofundamento da noção de dívida muito além da noção de culpabilidade,
como propõe Heidegger: à idéia de dívida pertence o caráter de ‘carga’, de
‘peso’, de fardo; onde se reencontra o tema da herança e da transmissão,
despojado da idéia de falta moral. Certamente, a idéia de dívida não é um
simples corolário da idéia de rastro: o rastro exige ser seguido; é uma mera
remissão ao passado do passado; ele significa, não obriga. Enquanto obriga, a
dívida tampouco se esgota na idéia de fardo: ela religa o ser afetado pelo
passado ao poder-ser voltado para o futuro[20].
Como diz Ricœur, a dívida se difere do conceito do rastro da historiografia, pois diferente
do rastro, que torna presente e significa, por algum símbolo ou monumento, por
exemplo, uma pegada, uma pintura, um instrumento, a partir dos quais é possível
seguir determinadas direções para se acercar do passado; a dívida não significa, mas obriga. Em Heidegger, a dívida obriga, pois afeta o ser-aí para
o passado e, com isso, o projeta para o futuro. Já o estar em dívida, na
acepção ricœuriana, diz respeito
à herança que o ser-aí possui de seu passado. Se a operação historiadora, na
fase escriturária, pode ser uma resposta à dívida, então ela não pode se
contentar apenas com a versão dos “senhores do passado”; mas, antes de tudo,
cabe à mesma se obrigar com relação
às versões que, por silenciamento performativo, foram omitidas. A dívida,
então, faz com que a perspectiva histórica se abra para o futuro por meio de
uma obrigação própria, de um dever a ser cumprido, a saber, o de corrigir a
dupla ausência dos vencidos: urge designá-los, para resgatá-los do anonimato,
e, para resgatá-los do silêncio, deixar suas vozes soarem na escritura. Na
compreensão de Ricœur, a dívida, dessa forma, coloca, na historiografia, a
responsabilidade de representar os fatos como aconteceram, incluindo a história
dos vencidos.
Em torno da mesma
problemática, também é indispensável as consequências que Ricœur extrai
do texto de Nietzsche Sobre a
utilidade e os inconvenientes da história para a vida (1974). Em seu
tratamento, Ricœur dá ênfase aos
perigos do historicismo para a memória e a vida. De maneira breve, Ricœur
apresenta os três tipos principais de historiografia, discutidos por Nietzsche:
a história monumental, a história “tradicionalista” e a história “crítica”. Em cada tipo, com
efeito, existe um limite que define o estágio de nocividade. Na história
monumental, a qual se ocupa em louvar e admirar as figuras do passado, sua ação
nociva decorre do fato de, na admiração às figuras passadas, se reduzir o
presente a uma imitação do passado. Na história “tradicionalista”, a qual se
ocupa em conservar a tradição do passado, a nocividade diz respeito ao ato de
recusar os acontecimentos “novos”, ou seja, os acontecimentos do presente. Na
história “crítica”, a qual, segundo Ricœur, seria a mais justa para Nietzsche, os acontecimentos
do passado são explicados e julgados de acordo com o presente, no entanto,
quando esse tipo de historiografia se transforma em um narcísico olhar do
passado pelo presente, ele se torna nocivo. A dívida, para com os duplamente
ausentes da história, em todo caso, parece ser ignorada nos três casos
abordados por Nietzsche, que, no entanto, tampouco fala de dever de dívida,
mas, antes preconiza o uso salutar da faculdade esquecimento.
Desse modo, como nos mostra
Gagnebin[21], há uma persistência do
presente nos três tipos de história descritos, que reflete uma importância do
mesmo para Nietzsche, mas que se observa, também, em Ricœur. Para Nietzsche, o presente é o lugar da ação e
das escolhas do intérprete da historiografia, e desse modo a historiografia não
poderia operar de maneira ingenuamente objetiva, prescindindo do presente no
discurso historiográfico. Para Ricœur, porém, o presente, enquanto palco em que
os acontecimentos do passado vêm à tona no discurso e a partir dos quais as
pessoas significam o presente, implica em uma responsabilidade da
historiografia em reaver os acontecimentos passados tais como tenham sido, de
tal maneira que os anônimos tenham voz no discurso historiográfico.
Reivindicação de
validez do saber histórico e abertura do dissensus
Em face da dívida, Ricœur desafia a historiografia e o
historicismo de seu tempo, instando o trabalho do historiador a enfrentar
problemas que lhes concernem, levantados, contudo, por outras instâncias da
vida cultural. Como diz Reis, a respeito da postura intelectual de Ricœur: “O
tema da “dívida” é recorrente em seu pensamento, que não suporta a ingratidão,
a amnésia, a traição, a infidelidade, o esquecimento da palavra dada. Ele quer
“escutar a vida” e se engajou no mundo, na cidade, abrindo-se a muitas e
heterogêneas influências”[22]. A história, assim, não pode se furtar aos desafios
do debate público, não pode deixar de ingressar, sem qualquer privilégio
profissional, no dissensus acerca do passado
e do reconhecimento, vivido na memória coletiva.
O dissensus,
característico da cena pública, do debate político, do mundo da vida, é uma
noção de Mark J. Osiel, que Ricœur toma de empréstimo para conceber o uso da
fala nas democracias, de preferência ao ideal habermasiano do consenso. O dissensus é frequentemente evocado, no
pensamento ricœuriano, para caracterizar a situação de destino da obra, na qual
ingressa o discurso historiográfico, quando a obra do historiador adquire a
autonomia do texto[23]. Mas, igualmente insistente, é a reivindicação de
validade do conhecimento histórico, quando, ao se articular como representância
(représentence) na fase escriturária,
carece, para tanto, de lançar mão de recursos compreensivos narrativos
combinados com modelos explicativos[24]. É essa combinação de explicação e compreensão que
Ricœur designa de “arco hermenêutico”[25]. Entretanto, como se pode decidir, sem o consenso
sequer momentâneo da comunidade dos historiadores, sobre a validade de uma
explicação (e interpretação) histórica, se o objeto do qual ela extrai seus
resultados após a investigação contém, ele próprio, um princípio de contínua e
perpétua fratura do consensus, no
fato e no direito do dissensus? Como
conviver com o dissensus[26] de suas proposições, sem perder o caráter de
investigação certificada e digna de assentimento, capaz de responder à dúvida e
à suspeita crítica[27]?
Na terceira parte da obra, intitulada A condição histórica, Ricœur, através da
conexão com a problemática ontológica heideggeriana, abre o caminho para o
problema ético, mais crítico em relação autossuficiência metodológica da
história. Pela crítica, a unidade da verdade histórica se cinde entre a memória
individual e coletiva, pelo fato de a historiografia instaurar um
distanciamento graças à escrita. O constitutivo da historiografia não é o
próprio dado histórico, não é o próprio documento ou testemunho, mas é uma
organização lógica, por certo, mas também interpretativa, dos “pertinentes”
vestígios do passado. A interpretação de todo o material capaz de se referir ao
passado adquire forma em um discurso que, no mais das vezes, apela para o
assentimento do leitor, muitas vezes para a sua interpretação, e que objetiva
tornar, para esse, o acontecimento algo inteligível, de acordo com medidas e
critérios próprios[28]. Mas, enquanto obra escrita, a historiografia, por
sua vez, está inscrita em uma tradição cultural e linguística que lhes fornece
os meios de inteligibilidade e de significatividade. Deve-se levar
em consideração que:
(…) la serie abierta
de los interpretantes que se incorporan a la relación de un signo con un objeto
pone de manifiesto una relación triangular, objeto-signo-interpretante, que
puede servir de modelo para otro triángulo que se constituye en el nivel del
texto. El objeto es el texto mismo; el signo es la semántica profunda destacada
por el cadena de interpretaciones producidas por la comunidad interpretante e
incorporadas a la dinámica del texto, como el trabajo del sentido sobre sí
mismo[29].
A autonomização do texto, instituído como obra,
significa o distanciamento[30] de interpretação e reflexão que permite o retorno
reposicionado e mais crítico ao mundo, continuamente em obra de identidade,
continuamente interpelado pela reivindicação de reconhecimento. Conforme o filósofo,
a interpretação não está no mesmo patamar das demais fases da historiografia,
como uma a mais. Ela se faz como “reflexão segunda”, sobre todas as fases, ao
mesmo tempo em que, apesar de seu escopo universal, descarta a pretensão de uma
“reflexão total” do conhecimento histórico[31]. Sem a reflexão segunda, o retorno criticamente
reposicionado ao mundo da ação não poderia decorrer tão somente do
distanciamento do texto.
Esse distanciamento pode ter o efeito de clausura. O
espaço de contingência e de falas heterogêneas, com respeito ao qual o
enclausuramento da escritura se torna refratário[32], espaço cuja não integração cobra incessantemente o
seu preenchimento, não está imune ao efeito de esquecimento, inclusive o de
apagamento. Por exemplo, também a inesquecidiça memória atua no embate agudo,
às vezes insuperável, entre os que demandam uma justiça (com respeito à verdade
histórica documentada) e os que visam à anistia (que supõe, não raro, a
ausência de registro dos crimes). A reflexão segunda, de alcance hermenêutico
vale como um antídoto ao esquecimento abusivo, especialmente o manipulado[33] e o comandado[34]; mas também, para o abuso de memória, por razões
simétricas e análogas.
O esquecimento, no contexto de crimes de Estado, de
genocídios, na medida em que é produzido pelas instituições, sob a alegação de
sustentar um estado de paz, envolve a possibilidade clara de se tornar abuso de
esquecimento. Nenhuma razão é menos suficiente que essa para admitir o direito
de se falar de dívida histórica. A abrangência e o sentido ético-político da
noção dívida histórica, tendo em conta a parcialidade do discurso
historiográfico, faz com que essa forma de saber deva prestar contas de seu
discurso, não apenas inter pares, mas
na cena pública. Nesses casos, o esquecimento, chamado de anistia de forma
eufemística, se ergue sobre uma crise subterrânea na memória coletiva que
acomete até mesmo a possibilidade de simbolização. O exemplo do holocausto[35] coloca em cena algo que é, na visão de Ricœur,
impossível ser integrado à ordem do sentido, é um “acontecimento” (ou seria
indescritível, um “anti-acontecimento”?) em cuja singularidade a possibilidade
de narrar, explicar, compreender esbarra em seus limites[36]. São tais limites que tornam inevitáveis os temas
bejaminianos, que Ricœur aborda nas últimas páginas da obra aqui abordada, e
que colocam a abertura nas proximidades com a ruptura e com a aventura do novo
início.
A abertura da qual se fala aqui, guiada pelo tema da
dívida ínsito no discurso histórico é do tipo heurístico, que coloca como
destinatário seu o espaço do dissensus,
e com isso, se torna abertura do tipo ético-política. Apenas essa abertura pode
franquear o retorno crítico da obra escrita de seu distanciamento para seu
ingresso no mundo do leitor (comunidade de historiadores, juiz e cidadão).
Enquanto crítico, o devir da obra, acessível à discussão pública, pode não
valer como antídoto infalível, mas se ergue como contraponto inesquecidiço ao
efeito de esquecimento envolto nas conotações dos significantes nada casuais da
“solução final da questão judaica” (Endlösung
der Judenfrage). Ao adjetivo “final”, o dissensus,
em sua propensão para a abertura e em sua consideração pelas perspectivas
cruzadas, lança a interrogação, “para quem?”. Com isso, a hermenêutica das ideologias
em conflito[37] reinicia o que se pretendia finalizado e o torna
significativo no campo da ação, ou seja, no campo da política. Como demonstra
em outro lugar, a abertura permitida pelo distanciamento e reaproximação da
obra escrita, para Ricœur, vai pari passu
com a abertura que marca a ação humana. A ação é, ela própria, assim entendida
como obra aberta [38]. Em um escrito sobre a “cesura” na história, Gagnebin
faz um comentário relativo ao pensamento bejaniniano que, em se tratando de um
problema análogo, o da história, ação e linguagem, bem poderia ser
proveitosamente evocado aqui, se por “cesura” se entender algo não muito
diferente de “abertura”:
Se a dissolução,
a disseminação, a dispersão modernas são figuras históricas, no sentido de uma
gênese temporal bem definida e passível de definição, também são históricas,
portanto, no sentido de uma ligação essencial entre perecer e linguagem (...),
entre perecer e ação política[39].
O ritmo da ação política segue seus passos na mesma
“batuta” que marca o ritmo do dissensus.
Considerações
finais
É o momento hermenêutico, portanto, aquele da mediação
da experiência temporal, da memória coletiva e do tempo histórico, que pede, da
forma mais inadiável, para percorrer as distâncias das zonas multiterritoriais
da abertura. A abertura hermenêutica viabiliza, assim, não recuar perante as
“zonas cinzentas” do espaço público. A entrada nesse campo de narrativas
antagônicas implica em assentir nos limites dados a uma hermenêutica que não
elude a sua condição imanente à própria história. Em outra obra, ao discorrer
sobre a passagem para a hermenêutica da consciência histórica, Ricœur assim
baliza a sua reflexão, opondo “mediação total” e “mediação aberta”:
Hegel à parte,
podemos ainda pretender pensar a
história e o tempo da história? A resposta seria negativa se a ideia de uma
“mediação total” esgotasse o campo do pensar.
Permanece uma outra via, a da mediação
aberta, inacabada, imperfeita, a
saber, uma trama de perspectivas cruzadas entre a expectativa do futuro, a
recepção do passado, a vivência do presente, sem Aufhebung numa totalidade em que a razão da história e sua
efetividade coincidam[40].
A afirmação da abertura não visa a converter o
historiador profissional em hermeneuta ou fenomenólogo, mas a legitimar a
disposição segundo a qual a operação historiadora contribui de forma bem mais
fecunda para o debate e para a crítica, quando transita além de seu universo de
discurso e interroga e responde a outras vozes, confronta de visões
heterogêneas. O rigor, aí em jogo, é o da não omissão da pluralidade, que
demanda o que Silva, estilisticamente, chama de “mil olhos”[41].
A assunção dessa abertura, no entanto, não se confunde
simplesmente com qualquer apologia da “aventura” intelectual, mas decorre,
antes, de uma consideração sobre a ética da responsabilidade, na qual o direito
à voz é o primeiro critério para aquilo que, nas primeiras linhas de A memória, a história, o esquecimento,
depois de definir a preocupação pessoal e profissional, acrescenta uma
terceira, chamada de “política de justa memória”:
Preocupação
pública: perturba-me o inquietante espetáculo que apresentam o excesso de
memória aqui, o excesso de esquecimento acolá, sem falar da influência das
comemorações e dos erros de memória – e de esquecimento. A ideia de uma
política da justa memória é, sob esse aspecto, um de meus temas cívicos
confessos[42].
Algo como uma “política
justa da memória” certamente diz respeito a uma voz que interpela o historiador
como alguém que está, ele próprio, envolvido no seu objeto de investigação,
como alguém cuja operação de conhecimento não está livre da condição histórica;
condição essa que o converte em alguém que não está em uma posição única ou
privilegiada com respeito à “verdade” histórica e que precisa se colocar numa ἀγορά ao lado de
e frente a outros discursos. O outro
precisa ter o direito de falar, ou mesmo, em alguns casos, de se recusar a
falar, para que a reivindicação de justiça não seja mera impostura. Não apenas
o cidadão e o juiz, mas inclusive o historiador, ao falar, está posicionado a
partir de uma perspectiva ideológica. O “conflito das ideologias” é,
geralmente, o state of affairs
inicial que motiva a escolha entre o debate e o agravamento do conflito. Em um
comentário à proposta habermasiana de transpor os recursos da psicanálise para
a crítica da ideologia, cujos pormenores podem ser dispensados aqui, o filósofo
afirma a respeito do debate público:
A crítica da
ideologia faz parte de um processo de luta e não de reconhecimento. A ideia de
uma comunicação livre permanece irrealizada, uma ideia reguladora, uma “ilusão”
no sentido em que Freud distingue esse termo de uma ideia delirante[43].
O motivo principal é que semelhante ideia, a de uma
comunicação não atingida por qualquer tipo explícito ou implícito de coerção,
destinada a nortear a ação de uma comunidade por meio do consenso, pressupõe um
ato ideal de linguagem, que
pretenderia, antes de tudo, viabilizar a eficácia de uma utopia. Não que Ricœur
recuse à utopia o valor que lhe é inerente. Mas, enquanto elaboração do
imaginário, as utopias são incongruentes com o presente histórico e precisam,
antes de tudo, mitigar seu índice idealizante para ser um instrumento de acesso
às possibilidades presentes. Trata-se, em verdade, de uma imagem norteadora, em
vez de ser uma técnica unívoca.
A imaginação
utópica é a de um ato ideal de linguagem, de uma situação ideal de comunicação:
a ideia de uma comunicação sem fronteiras e sem coações (...). O elemento
utópico talvez seja a ideia de uma humanidade para a qual nos orientamos e que,
incessantemente, tentamos atualizar[44].
Segundo Reis, apesar de, na segunda metade do século
XX, ter entrado em voga as filosofias desconstrutivistas, Ricœur ainda propunha
a imaginação criadora na operação hermenêutica porque:
A sua
hermenêutica crítica confia na “imaginação criadora”, no projeto de verdade, na
capacidade de agir e refletir do sujeito. Para ele, após o trágico século XX,
foi necessário suspeitar da visão humanista do homem como senhor da natureza e
da história, mas a suspeita desconstrucionista tem limites[45].
É importante lembrar que Ricœur opõe a função de
distorção da ideologia à sua função de constituição
e de integração, o que coloca, além da crítica, a necessidade da tarefa da interpretação
das ideologias. A identidade e o reconhecimento se dariam à revelia de e junto à
hermenêutica das ideologias em conflito. Os polos opostos de luta e
reconhecimento, de dissensus e
interpretação tendem a se desdobrar, em zigue-zague, em um horizonte sem fim.
Tal situação, com um lado visivelmente paradoxal, se vista pela contraposição
de autonomia do texto e crise pelo dissensus,
vista por outro lado[46], não recebe outro qualificativo senão o de abertura,
o de inatualidades esquematizadas historicamente, cujo vir-a-ser e cuja
passagem ao ato, depende essencialmente dos rumos de uma dialética de tensões
não totalizantes. Curiosamente, é justo na função de constituição que pode ser
recuperado o momento de abertura.
Os símbolos que
regulam a nossa identidade não provem somente de nosso presente e de nosso
passado, mas também de nossas expectativas em relação ao futuro. Abrir-se aos
imprevistos, aos novos encontros, faz parte de nossa identidade[47].
Na década de oitenta, o filósofo depositava sua
confiança principalmente numa fenomenologia genética, ao modo husserliano de
uma gênese das significações. Mas, a fenomenologia é regressiva, investigadora
de pressuposições já realizadas e já sedimentadas; sua efetuação não é
propriamente “destrutiva” ou “construtiva”, sua utilidade é a de, no máximo,
corrigir as distorções, as inversões que pervertem o sentido originário. Mas, a
constituição por fazer, sobretudo a que resta
por fazer em face do intolerável, não encontra ensejo e oportunidade senão no dissensus, cuja latitude hermenêutica é
a única com envergadura suficiente para tematizar o antagonismo extremo[48]. “Que a cidade continue a ser ‘a cidade dividida’, é
um saber que se inscreve na sabedoria prática e em seu exercício político, para
o qual concorre o uso roborativo do dissensus,
eco da inesquecidiça memória da discórdia” [49]. O trabalho hermenêutico pode inclusive operar no
sentido inverso e suplementar da operação historiadora, no sentido de que
habitar ou dar passos na história nem sempre vai de par com a memória, mas, com
é o caso do perdão difícil, de par com esquecimento: “...se é possível falar em
memória feliz, existe algo como um esquecimento feliz?” [50]
A busca paciente
da solução de compromisso [do perdão] seria a moeda de troco, mas também a
acolhida do dissensus na ética da
discussão. Deve-se chegar a dizer “esquecer a dívida”, essa figura da perda?
Sim, provavelmente, na medida em que a dívida confina na falta e enclausura na
repetição. Não, enquanto ela significa reconhecimento de herança[51].
O esquecimento da dívida não é necessariamente
“feliz”, mas apenas na medida em que a dívida é clausura na repetição. O
esquecimento feliz não significa rejeitar toda dívida para com o passado, ele
admite o reconhecimento de herança. Para Gagnebin (e, por implicação, para
Benjamin) a dívida de enclausuramento e repetição também precisa sofrer um
efeito da abertura resultante do esquecimento, pois “Nossa história também nos
escapa e nos desenraiza, mas é somente graças a essa fuga que podem cessar a
insistente repetência do previsível e a sedução triste do totalitarismo, e que
algo outro pode advir[52].
Na dívida da falta e da repetição, o endividado é
culpado de uma negatividade infinita, impossível de saldar. Na dívida de
herança, o endividado se reconhece numa obra de transmissão da qual é um elo.
Entre salvar a herança e expiar a culpa, talvez não haja meio termo, mas a
escolha está longe de ser fácil.
Em uma passagem em que discute o tema benjaminiano do
“feliz esquecimento” e, na sequência, o do “perdão”, Gagnebin se depara com o
paradoxo (pelo menos da perspectiva humana) do mal radical. A autora menciona a
constatação de Hannah Arendt de que só se pode, humanamente, perdoar o que se pode castigar e vice-versa. Com
efeito, trata-se de uma lógica à qual, absolutamente, se adapta o que Kant
chama de “mal radical”, tema retomado por Arendt e por Ricœur. Gagnebin
comenta: “É característico, acrescenta [Arendt], que o que os homens não podem
realmente punir, o que a tradição filosófica desde Kant chama de ‘mal radical’,
eles tampouco conseguem perdoar”.[53] Para Ricœur, por sua vez, o impasse permeia as
dimensões do pensar, do agir e do sentir, porque, e aqui ele retoma as palavras
de Kant:
(...) a razão de
ser deste mal radical [enraizado no livre-arbítrio] é "insondável" (unerforschbar): "não existe para
nós razão compreensível para saber de onde o mal moral pode primeiramente nos
vir." Como Karl Jaspers, admiro esta última declaração: como Agostinho, e
talvez como o pensamento mítico, compreende-se o fundo demoníaco da liberdade
humana... [54]
Vê-se assim que a revisão do conceito de ciência
histórica e daquilo que pode ser qualificado de histórico, além dos métodos
objetivantes, não é puramente imotivado, mas algo internamente solicitado pelo
próprio recenseamento da noção de memória.
A interpenetração dos fenômenos da memória com o da
imaginação e da memória individual com o da coletiva, por sua vez, faz essa
mútua determinação de memória e história ir mais longe, a ponto de se ver a
história, no sentido da escrita da história, imbricada indissociavelmente do
universo imagético. Ante essa delicada “complexidade”, que coloca em questão
antes de tudo a pretensão veritativa da história, e que não se baliza
adequadamente se passar ao largo da discussão ontológica, a temporalidade da
condição história leva a colocar a questão da responsabilidade do discurso
historiográfico quanto ao seu destinatário.
Na dimensão da condição histórica, presente e futuro
histórico já não podem ser desconsiderados (não no sentido de fazer uma história
do presente), o que envolve o discurso do juiz e do cidadão com referência aos
mesmos acontecimentos “explicados” pela história. O dissensus atinge sua expressão mais crítica, pode-se dizer
dramática, mas também, a que contém o maior potencial dialético, nesse embate
quanto aos acontecimentos inenarráveis, ou “anti-acontecimento” ou ainda
“acontecimento invertido”[55], aqueles que não possuem termo de comparação[56].
Neles, a abertura não significa repousar na
indeterminação, mas a iniciativa de lembrar-se do presente quando a história
traz uma experiência limite de sentido; iniciativa, portanto, no horizonte de
reconfiguração histórica, iniciativa de interrogar renovadamente a verdade
histórica em meio à experiência ao mesmo tempo dividida e alimentada
pelas “perspectivas cruzadas”.
O mal radical instaura o paradoxo de que decorre da
própria liberdade humana, capaz de agir de forma inumana. Trata-se do mesmo
contexto que leva Ricœur a utilizar a expressão “perdão difícil”. Frente a
semelhante paradoxo, insolúvel a partir da liberdade e da racionalidade, ou se
apela para a linguagem da teologia negativa, ou se sustenta a abertura. Aqui
vem a calhar o tema a atenção vigilante, também benjaminiano, quando Gagnebin
coloca-o como alternativa à perspectiva teológica:
Resta esta
paciência ativa e tenaz que Benjamin também chama de “atenção” e que percebe
nas falhas da linguagem e da história como o indício de uma felicidade
possível, esta felicidade que visa a ordem do político, em sua profanidade e materialidade
radicais[57].
Não é outra, senão essa “paciência ativa e tenaz”,
essa “atenção” às descontinuidades e incongruências ideológicas,
epistemológicas e semânticas que deve ser a contraparte necessária da abertura
do dissensus. A esse último há que se
responder com a máxima concentração do λόγος. E o que tal atitude de atenção incansável e paciente
para com o enigmático, o paradoxal, expressa, com o interesse sem reservas com
respeito àquilo que suscita laboriosas séries de interrogações, é justamente
aquilo que, desde há muito, se chama filosofia.
Referências
ARRIADA, Eduardo. “Uma
história dos sem nomes”: a visão de história em Walter Benjamin. História da Educação, Pelotas, n. 14,
set./2013, pp. 195-209.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva,
2007.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo:
Editora 34, 2006.
REIS, José Carlos. História da "Consciência
Histórica" Ocidental Contemporânea - Hegel, Nietzsche, Ricoeur. Belo Horizonte – MG: Autêntica
Editora. 2013.
RICŒUR, Paul & CASTORIADIS, Cornelius. Diálogo sobre a história e o imaginário
social. Lisboa: Edições 70, 2016.
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crítica e a convicção. Lisboa: Edições 70, 1997.
RICŒUR, Paul. A
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RICŒUR, Paul.
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hermenéutica II. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.
RICŒUR, Paul. O
mal – um desafio à Filosofia e à Teologia. Campinas
– SP: Papirus, 1988.
RICŒUR, Paul. Tempo e narrativa.
Campinas – SP: Papirus, 1994.
SILVA, Jaisson Oliveira da. Paul Ricoeur: a ética
no cruzamento entre a prática historiadora e a condição história. 2015.
Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2015.
WHITE, Hayden. Guilty of history? The longue
durée of Paul Ricœur. History and Theory 46 (May 2007), 233-251. Disponível
em: https://www.historyandtheory.org/archives/archives10.html Acesso em: 29/11/2019.
[1] Por “obra
aberta” Umberto Eco entende um “modelo teórico”, uma hipótese auxiliar da
análise, sem a força de uma “categoria crítica”, que não serviria para
classificar as obras em supostas classes de “aberta” ou “fechada”. Embora Eco
tenha em mente as obras de caráter artístico, quer dizer, poético e literário,
é possível usar essa noção para, mutatis
mutandis, falar da abertura de obras filosóficas e históricas, inclusive
porque a escrita da história se aproxima, sob certos aspectos, para Ricœur, do
modo de construção da narrativa de ficção. Adotando o lado da recepção, Eco
entende “por ‘obra’ um objeto dotado de propriedades estruturais definidas, que
permitam, mas coordenem o revezamento das interpretações, o deslocar-se das
perspectivas” (ECO, Obra aberta, p.
23)
[2] RICŒUR, A memória, a história, o esquecimento,
p. 310.
[3] RICŒUR, A memória, a história, o esquecimento,
p. 337.
[4] RICŒUR, A memória, a história, o esquecimento,
p. 347.
[5] Cf. SILVA,
Jaisson Oliveira da. Paul Ricœur: a ética no cruzamento entre a prática
historiadora e a condição história, pp. 236 e 270.
[6] As “fases” da
operação historiadora não denotam uma sucessão temporal estrita, mas são como
que “consequência” uma da outra, ocorrendo às vezes circularidade. São três, a
documental ou de testemunho, a explicativa e compreensiva e a escriturária, ou,
a da representação historiadora.
[7] Ricœur se
confrontava, na época em que escreveu a trilogia Tempo e Narrativa e a História,
a Memória, o Esquecimento, com a escola estruturalista. Na atualidade, os
historiadores já não se pautam majoritariamente nesse modelo, nem se impõem
limites tais como os que serão tematizados, aqui.
[8] Por exemplo, a
certa altura de A condição histórica,
entre tipos e subtipos, são elencadas cerca de quatorze noções de memória,
fornecidas pelas ciências cognitivas, psicologia do comportamento, etologia e
pela psicologia social (RICŒUR, Paul. A
memória, a história, o esquecimento, p. 433). Na discussão sobre os lugares
da memória, no sentido material, simbólico ou funcional, ou ainda como memória
fundadora, memória-Estado, memória-nacional, memória-cidadã e memória-patrimônio
(RICŒUR, Paul. A memória, a história, o
esquecimento, p. 317).
[9] No tocante à
história, essa duplicidade de valência é notada principalmente na discussão sobre
os prestígios da imagem e sobre os efeitos de repetição e veneração na história
monumental.
[10] Cf. SILVA,
Jaisson Oliveira da. Paul Ricœur: a ética no cruzamento entre a prática
historiadora e a condição história, p. 220.
[11] RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento,
p. 510.
[12] “Não há história
do presente no sentido estritamente narrativo do termo. Isso só poderia ser uma
antecipação do que os historiadores futuros poderiam escrever sobre nós”
(RICŒUR, Paul. Tempo e narrativa I,
211).
[13] “Ora, as
perplexidades mais tenazes, concernentes ao tratamento ‘factício’ do tempo pelo
historiador, dizem respeito à articulação do saber histórico sobre o trabalho
da memória no presente da história. Gostaria de mostrar que, na atitude por
princípio retrospectiva comum à memória e à história, a prioridade entre essas
duas perspectivas do passado é indecidível” (RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento, p. 396).
[14] RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento, p.
294, grifo nosso.
[15] White comenta,
para Ricœur, depois da morte de Deus e do fim da metafísica na nossa
modernidade, resta a nossa responsabilidade histórica. (WHITE, Hayden. Guilty of history? The
longue durée of Paul Ricœur, p. 234).
[16] Reis, em seu
livro História da “consciência histórica”
ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur (2006), aborda a questão
da dívida, em história, numa perspectiva mundial, enfatizando a dívida
histórica da Europa, no contexto geopolítico mundial. Para ele, basicamente, “A
curiosidade do historiador por uma época já é uma avaliação sobre o que é
verdadeiro na vida. A historiografia tem uma relação de dívida com os homens do
passado. Quando o historiador é confrontado ao horror, a vítimas, a sua dívida
se transforma em dever de não esquecer e de narrar”
(REIS, José Carlos. História da "Consciência Histórica" Ocidental
Contemporânea - Hegel, Nietzsche, Ricoeur, pp. 324-325). Com relação à
alcance mundial do problema da dívida, o mesmo estudioso ainda afirma: “Mas, a
memória mundial é um fardo intransportável: Shoah, genocídios, escravatura,
bombas atômicas, bombardeios, crimes hediondos, crueldades de todo tipo. A
memória mundial é a das vítimas não somente dos heróis europeus e ocidentais”
(REIS, José Carlos. História da "Consciência Histórica" Ocidental
Contemporânea - Hegel, Nietzsche, Ricoeur, p. 344).
[17] ARRIADA, E. “Uma história dos sem nomes”: a visão de
história em Walter Benjamin. História da
Educação, p. 202.
[18] Ricœur se
apropria, mutatis mutandis, da noção de Austin, de ato de fala. O ato
performativo aqui em questão seria alcançado por meio das questões: Quem fala na história? (o vencedor?) Quem não está autorizado a pronunciar a
história? O vencido? Sobre o que e para quem o discurso histórico fala?
[19] RICŒUR, P. A
memória, a história, o esquecimento, p. 388-389
[20] RICŒUR, A memória, a história, o esquecimento, p. 392
[21] GAGNEBIN, J. Lembras esquecer escrever, p. 187.
[22] REIS, José
Carlos. História da "Consciência Histórica" Ocidental
Contemporânea - Hegel, Nietzsche, Ricoeur, pp. 236-237.
[23] “Gracias a
la escritura, el discurso adquiere una triple autonomía semántica: respecto de
la intención del hablante, de la recepción del público primitivo, y de las
circunstancias económicas, sociales y culturales de su producción” (RICŒUR, Paul. Del texto a la
acción: Ensayos de hermenéutica II, p. 33).
[24] “Entiendo por
comprensión la capacidad de continuar en uno mismo la labor de estructuración
del testo, y por explicación la operación de segundo grado incorporada en esta
comprensión ya que consiste en la actualización de los códigos subyacentes en
esta labor de estructuración que el lector acompaña” (RICŒUR, Paul. Del texto a la acción: Ensayos de
hermenéutica II, p. 35). E ainda “En el plano
epistemológico, en primer lugar, diré que no hay dos métodos, el explicativo y
el comprensivo. Estrictamente hablando, sólo la explicación es algo
metodológico. La comprensión es más bien el momento no metodológico que, en las
ciencias de la interpretación, se combina con el momento metodológico de la
explicación” (RICŒUR, Paul. Del texto a la acción: Ensayos de hermenéutica II, p. 167).
[25] RICŒUR,
Paul. Del texto a la acción: Ensayos
de hermenéutica II, p. 144.
[26] O dissensus entre “paradigmas” da
investigação histórica e produção historiográfica é mais restrito que o do
debate público, mas possui o mesmo sentido básico, uma vez que, entre outras
coisas, é a concomitante incidência da voz do cidadão e do juiz na voz do historiador
que desencadeia as divergências na “comunidade” dos historiadores.
[27] Aqui, se propõe
que a intenção imaginativa e os fenômenos de imagens, entrelaçados à linguagem,
à escrita e à memória coletiva é o recurso capaz de circular livremente na
dialética dissensual, no contexto de inacabamento intrínseco das ações humanas
coletivas. Mas, sem querer provocar um curto-circuito psicológico ou teológico,
considerando as opções existenciais e o contexto do filósofo, esse dissensus deve se mostrar produtivo, na
medida em que é animado por um espírito afeito ao diálogo. Segundo Reis (que
não necessariamente concorda com a posição ricœuriana): “Em Ricoeur, a
estrutura essencial da existência é a comunicação, o diálogo, que constituiria
uma “epistemologia do amor”, só o amor é um conhecimento real”. (REIS, José
Carlos. História da "Consciência Histórica" Ocidental
Contemporânea - Hegel, Nietzsche, Ricoeur, p. 239).
[28] “La
historia comienza cuando se deja de comprender inmediatamente y se emprende la
reconstrucción del encadenamiento de los antecedentes según articulaciones
diferentes de las de los motivos y de las razones alegados por lo actores de la
historia” (RICŒUR, Paul. Del texto a la
acción: Ensayos de hermenéutica II, p. 164).
[29] RICŒUR,
Paul. Del texto a la acción: Ensayos
de hermenéutica II, p. 146.
[30] Ao fazer a
oposição entre a fala e a escritura, os três traços da autonomia semântica são
colocados em termos mais precisos; do seguinte modo (i) “la escritura convierte
al texto en algo autónomo con respecto a la intención del autor” (ii) “el mundo del texto puede hacer estallar el mundo del autor” e (iii) “el texto debe poder descontextualizarse para que se
lo pueda recontextualizar en una nueva situación: es lo que hace precisamente
el acto de leer” (RICŒUR, Paul. Del
texto a la acción: Ensayos de hermenéutica II, p. 104 e 105).
[31] RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento,
p. 347.
[32] RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento,
p. 290.
[33] “As estratégias
do esquecimento enxertam-se diretamente nesse trabalho de configuração: pode-se
sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando
diferentemente os protagonistas da ação assim como os contornos dela” (RICŒUR,
Paul. A memória, a história, o
esquecimento, p. 455)
[34] “Os abusos da
memória colocados sob o signo da memória obrigada, comandada, têm seu paralelo
e seu completo nos abusos do esquecimento? Sim, sob formas institucionais de
esquecimento cuja fronteira com a amnésia é fácil ultrapassar: trata-se
principalmente da anistia...” (RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento, p. 459).
[35] Na obra de Ricœur,
o aporte da análise desses “inenarráveis” se dá em autores que tematizaram o
holocausto, a exemplo de Hannah Arendt e Walter Benjamin. Mas, sem dúvida, há
exemplos análogos como a dizimação de povos autóctones e a escravidão moderna
e, mais recentemente, as crises dos valores humanísticos e do sentido de
soberania geradas pela desigualdade entre Estados e pela tensão geopolítica
decorrente.
[36] RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento,
p. 471.
[37] RICŒUR,
Paul. Del texto a la acción: Ensayos
de hermenéutica II, p. 186.
[38] RICŒUR,
Paul. Del texto a la
acción: Ensayos de hermenéutica II, p. 181.
[39] GAGNEBIN, Jeanne
Marie. História e narração em Walter
Benjamin, p. 95.
[40] RICŒUR, Paul. Tempo e narrativa (III), p. 359.
[41] Cf. SILVA,
Jaisson Oliveira da. Paul Ricœur: a ética no cruzamento entre a prática
historiadora e a condição história, p. 270.
[42] RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento,
p. 17.
[43] RICŒUR, Paul. A ideologia e a utopia, p. 293.
[44] RICŒUR, Paul, A ideologia e a utopia, p. 297.
[45] REIS, José
Carlos. História da "Consciência Histórica" Ocidental
Contemporânea - Hegel, Nietzsche, Ricoeur, 274.
[46] A perspectiva a
partir da qual não poderia emergir tal paradoxo é a que leva em conta a
temporalidade histórica e modo de ser do histórico, a saber, a perspectiva
ontológica, na qual o presente trabalho não se debruça, mas pressupõe nos
termos da “dívida”, minimamente abordados acima.
[47] RICŒUR, Paul, A ideologia e a utopia, p. 363.
[48] White interpreta
que a escuta do discurso do cidadão coloca a história na tarefa de se revisar,
enquanto investigação que, stricto sensu, não é científica e que está “subject
to revision in the light of new evidence or different perspectives in the case
of the historian” (WHITE, Hayden. Guilty
of history? The longue durée of Paul Ricœur, p. 248). Na realidade,
porém, Ricœur concede primazia ao cidadão, que como “homem da decisão”, se
pronuncia, quando a objetividade da ciência histórica esbarra em seus limites,
(RICŒUR, Paul. A memória, a história, o
esquecimento, p. 349)
[49] RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento,
p. 508.
[50] RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento,
p. 508.
[51] RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento,
p. 509.
[52] GAGNEBIN, Jeanne
Marie. História e narração em Walter Benjamin,
p. 95.
[53] GAGNEBIN, Jeanne
Marie. História e narração em Walter
Benjamin, p. 112.
[54] RICŒUR, Paul. O
mal – um desafio à Filosofia e à Teologia, p. 38.
[55] RICŒUR, Paul. A
crítica e a convicção, p. 154.
[56] RICŒUR, Paul. A
crítica e a convicção, p. 156.
[57] GAGNEBIN, Jeanne
Marie. História e narração em Walter
Benjamin, p. 113.