Submissão: 23/09/2019 Aprovação: 29/11/2019
Publicação: 18/12/2019
Fluxo
contínuo
Animalidade
e apostasia da vontade: Nietzsche vê Schopenhauer*
Animality and apostasy of the will: Nietzsche looking at Schopenhauer
Saulo Krieger
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São
Paulo, com estágio bolsa-sanduíche CAPES na Université de Reims
Champagne-Ardennes
Resumo: O objetivo deste artigo é fazer ver
de que modo o caráter de Janus – do mito de Janus – da filosofia de
Schopenhauer pautou a relação que com ela entabulou a filosofia de Nietzsche –,
aspecto este um tanto relegado pela pesquisa Nietzsche, talvez justamente por
se tomar a relação entre ambos como exaurida em binômios do tipo “adesão e
ruptura”, “encantamento e distanciamento crítico", “pessimismo e afirmação
da vida”. Assim sendo, num primeiro momento preliminar procederemos a analisar
a face dual da filosofia de Schopenhauer, cujo olhar se volta simultaneamente
ao passado e ao futuro. Num segundo momento preliminar visitaremos a ousadia de
Schopenhauer ao converter as ambições malogradas da filosofia (na figura da
“coisa em si”) no princípio inconsciente da vontade. A partir daí passaremos à
compreensão de Schopenhauer por Nietzsche ao modo de um filósofo que, vitimado
por sua segunda natureza, alemã, esquiva-se de protagonizar a filosofia
trágica, que chegou a tangenciar, em função do esquadrinhamento metafísico de
sua arrojada descoberta – o inconsciente na espécie humana.
Palavras-chave: Metafísica;
Inconsciente; Vivência; Trágico
Abstract: The purpose of this article is to clarify how
the Janus face of Schopenhauer´s philosophy guided the relation between
Nietzsche and the author of The World as
Will and Representation. This aspect has been neglected by the Nietzsche
research, perhaps judging this relation as a topic exhausted in pairings such
as “adherence and rupture”, “enchantment and estrangement”, “pessimism and life
affirmation”. That said, at a first preliminary moment we will analyze the dual
face of Schopenhauer`s philosophy, with his gaze simultaneously towards past
and future. At a second preliminary moment, we will approach Schopenhauer´s
daring attitude of converting philosopher´s failed ambitions (thinking, of
course, on the thing-in-itself) on the unconscious principle of the will. From
them on, we are going to tackle Nietzsche´s grasp of Schopenhauer as a
philosopher who, vulnerable to his second nature, a German nature, avoid
featuring the very tragic philosophy that he reaches to touch, in the favor of
a metaphysical treatment of his audacious discovery – the unconscious in human
species.
Keywords:
Metaphysics;
Unconscious; Personal experience; Tragic
Entre a metafísica e o
inconsciente: Schopenhauer e suas duas faces de Janus
Nietzsche foi um atento
observador do que os outros filósofos ocultavam, de como ocultavam e do modo
como o elemento ocultado havia impelido a filosofia até ali. Isso, o que
surpreende, independentemente de os ter lido de maneira direta ou por algum
manual de história da filosofia, como o de Kuno Fischer. Foi assim que já os
gregos “ocultavam seu afeto agonal, decorando-se como ‘os mais felizes’ por
meio da virtude” (26 [285], verão – outono de 1884)[1]. Foi assim que Sócrates
ocultou seu pessimismo esgrimindo os círculos aristocráticos de Atenas (cf. 26
[285], verão – outono de 1884). Foi assim que Leibniz, Kant, Hegel e
Schopenhauer hipocritamente ocultaram sua segunda natureza, a alemã (cf. 26
[285], verão – outono de 1884). Nesse sentido, num fragmento redigido em algum
momento entre os anos de 1885 e 1886[2], o autor do Zaratustra observa a existência de
pensamentos de fundo por trás de posições filosóficas. E assim, e Nietzsche aí
tem em mente sobretudo Kant, Hegel e Schopenhauer, por trás de posições
assumidas, no âmbito de uma vontade de verdade, de uma historicização ou de um
pessimismo, que para Nietzsche constituiriam um filosofar de segunda ordem,
haveria outra vontade, de fundo, a vontade de, afinal e em primeiro lugar,
viver (“ich will erst leben”, cf. 2 [161], outono de 1885 – outono de 1886). A
filosofia que se pautou diretamente por essa vontade de fundo, trazendo-a à
tona e protagonizando um “filosofar de primeira ordem”, seria assim a de
Nietzsche. Pois é entre um e outro filosofar, de segunda e de primeira ordem,
que assoma o objeto do qual vamos tratar aqui, a figura híbrida e intrigante de
Schopenhauer. Acreditamos que ainda há algo ou mesmo muito a se dizer em se
tratando da relação de Nietzsche com um Schopenhauer que ele teria visto como
um ponto de inflexão. Como aquele que, tendo deparado com sua própria animalidade,
correu a refugiar-se na metafísica.
Ao conceber fins
inconscientes (cf. 7 [211], primavera-verão 1883) ao tempo mesmo em que dá
vazão a suas pretensões sistemáticas e metafísicas, Schopenhauer de fato vem a
ser um ambíguo ponto de inflexão. Christopher Janaway, citando Adorno, aponta
Schopenhauer como “ancestral rabugento da filosofia existencial e herdeiro
perverso dos grandes especuladores”[3]. E da filosofia de
Schopenhauer, Sebastian Gardner ressalta a “posição como de Janus na história
do pensamento. Ela se põe na junção de duas correntes originalmente unidas do
Iluminismo, e justamente no momento de sua separação final: entre o humanismo
racionalista e o naturalismo científico”[4]. Ao humanismo
racionalista Schopenhauer seria fiel em razão de sua metafísica; ao
naturalismo, pelo fato de essa metafísica ser da experiência. Mas mesmo para
nossos propósitos aqui, Schopenhauer se assoma como ambíguo ponto de inflexão.
Nesse sentido, adotando a feliz alegoria proposta por Gardner, uma das faces do
Janus-Schopenhauer estaria voltada para um filosofar que, sim, reconhece a ação
inconsciente no pensamento. Reconhece que a filosofia já não mais poderia
simplesmente contorná-lo como se ele não estivesse ali, a atuar. Reconhece
também que a “essência” do homem não lhe é exclusiva, e muito pelo contrário.
Reconhece, ainda, que o inteiro âmbito outrora reconhecido como “das paixões”,
que supostamente poderia ser dominado pelo âmbito da razão[5], na verdade remeteria a
algo de muito mais amplo e mais profundo, e que ele denominará “vontade”. Em
relação ao império de tal vontade, o intelecto, com suas representações e seus
conceitos, é um reino à parte, e sobretudo é mero instrumento. Por essa mesma
face de Janus, Schopenhauer antecipou Freud de maneira notável, já intensamente
pesquisada, além de reconhecida, como o foi ao menos em parte, pelo próprio
Freud[6]. Acresça-se ainda que
por certo sem essa mesma face de Janus a filosofia de Schopenhauer não teria
sido tão sedutora a Nietzsche, sendo provável que não fosse ela a patrocinar a
passagem da filologia para a filosofia.
Fazendo jus ao mito de
Janus, por outro lado, por outra de suas faces Schopenhauer tem olhos fixos no
passado, a ele se identifica e deseja preservá-lo. É a face pela qual o
filósofo de Frankfurt se mantém um filósofo sistemático. E é também um filósofo
que propõe uma concepção integralmente metafísica de mundo, a despeito da
crítica kantiana, que reduzira drasticamente as pretensões e o escopo da
metafísica. Essa outra face de Janus atua como um contrapeso ao que em
Schopenhauer há de arrojo e de inovação. Afinal de contas, como já referimos,
sua concepção de vontade pode e deve ser entendida como uma formulação do
inconsciente, já que a vontade atua em nós sem que disso tenhamos controle ou
consciência. Não obstante, a essa concepção Schopenhauer confere todo um
tratamento metafísico. Pretende pautá-la por delimitações precisas em relação
ao que ela não é, ou seja, por uma oposição estanque ao que é do domínio da
representação, da cognição, das relações causais. Justamente por isso, não
permite que objeto aparentemente tão afinado aos apetites, e por isso mesmo
incontrolável e deletério, venha a impregnar a sua filosofia. Se divide o mundo
em vontade e representação, não é à vontade que vai se perfilar ou a ela se
fundir. Não é à vontade que se reconhece e a ela se identifica. Muito menos a
vivencia. E ao lhe atribuir caráter sobranceiro, de dispositivo de decifração
de mundo, esse viés metafísico mantém-na a distância, impede que ela se
aproxime do cerne em que ela habita e pulsa – seja no animal, no homem, no
próprio Schopenhauer. Impede ainda que sua filosofia efetivamente “se
naturalize”, “se animalize” (cf. 9 [178], outono de 1888), como impede que sua
própria generosidade, o sacrifício de si mesmo à filosofia (cf. M/A § 459) seja
a protagonização de um filosofar.
Subversão da coisa-em-si em princípio inconsciente
Schopenhauer entabula o
hibridismo de sua filosofia à medida que, no menos vivencial dos temas do menos
vivencial dos filósofos, ele encontra o seu ponto de inflexão – e referimo-nos
aqui a Kant e à coisa-em-si. Ele o faz apontar bem na direção oposta à do
enquadramento kantiano. Se acima referimos que filósofos pós-kantianos
atentaram mais à coisa-em-si do que o próprio Kant, e se os idealistas, para
lhe darem conta ou para negá-la, procederam a um longo percurso, Schopenhauer
propõe para ela um acesso, desvelando-a de maneira física, experimental e
brusca. Algo inédito na história da filosofia, põe-se o corpo
como via de acesso à metafísica. Quanto a esse aspecto, Schopenhauer se opõe
radicalmente a Kant, que só conseguia antever uma metafísica a priori, de todo apartada da
experiência. Schopenhauer conceberá uma metafísica como empírica, a posteriori, a sua base empírica lhe
sendo proporcionada pelo corpo, que se dá a um só tempo como representação
(pela via exterior) mas também como vontade (pela via interior). O próprio
Schopenhauer assinala a sua recorrência ao corpo como “o percurso mais original
e mais importante de minha filosofia, a saber, a passagem, declarada impossível
por Kant, do fenômeno à coisa em si” (W II, 239). Assim, se a experiência metafísica
até então sempre fora associada a um voo ao abstrato, ao imaterial e inefável,
o modo como Schopenhauer vai trazê-la para seu extremo oposto será concebendo-a
como “uma via subterrânea, uma ligação secreta que, por uma espécie de traição,
nos introduzirá na fortaleza contra a qual vêm ecoar todos os ataques que lhe
são dirigidos de fora” (W II, 245).
Com a referida “ligação subterrânea”, secreta,
Schopenhauer como que implode dicotomias em vigor na filosofia desde Platão e
seus mundo das ideias e mundo sensível, a que se sucederam espírito e corpo, res cogitans e res extensa, fenômeno e coisa-em-si. Pois o autor de O mundo como vontade e representação
toma de assalto a coisa-em-si, reconhecendo-a pelo que há de mais íntimo no
corpo, no movimento do corpo, pela ação da natureza no homem, afirmando que tal
determinação já estaria em germe na própria filosofia de Kant: “Kant não foi
até o fim com seu pensamento: eu apenas levei a bom termo o seu trabalho. [...]
O que Kant fala tão-só do fenômeno humano, eu o transmiti a todos os fenômenos
em geral, que se diferenciam do humano apenas em grau” (W I, 623, trad.
ligeiramente modificada)[7]. E especulativamente procura garantir, “eu, de fato,
assumo, embora não o possa demonstrar, que Kant, todas as vezes em que falava
da coisa-em-si, na profundeza mais escura de seu espírito sempre pensava, já,
de forma indistinta, na vontade” (W I, 628, trad. ligeiramente modificada). E
se como que implode uma dicotomia que acabava de se desdobrar, no filósofo de
Königsberg, como fenômeno e coisa-em-si, é porque reconhece uma instância em
que a experiência de um e de outra se faz possível:
o corpo é dado de
duas maneiras completamente diferentes: uma vez como representação na intuição
do entendimento, como objeto entre objetos e submetido às leis destes; outra
vez de maneira completamente outra, a saber, como aquilo conhecido
imediatamente por cada um e indicado pelo termo VONTADE (W I, 157).
O princípio da “vontade”, tem menos que ver com a
vontade segundo a filosofia de até então e o senso comum (que obviamente
comportam a representação de fins), e mais está relacionado a um impulso que
nos impeliria, em nossas representações e nas próprias ações intencionais, sem
que dele nos fizéssemos conscientes. Desse modo, a própria atitude de isolar do
intencional, do motivacional, um princípio que estaria além de todo o
representacional e de todo o fenomênico já não poderia, ao menos não sem
brechas, ter pretensões a um todo sistemático. Isso porque a atitude em questão
faz-se, assim, reconhecidamente movida por algo que está fora dela e não se
deixa registrar, pois é alheia a toda a forma de representação. Por mais que
Schopenhauer privilegie o acesso direto, imediato e experimental à vontade,
como em seu exemplo do movimento do braço, esse “conhecimento de origem” não
esgota a pletora de questões referentes à nossa relação com a vontade. Tal
relação, se não for vista do ponto de vista unificador e simplificador da
metafísica, que é o de Schopenhauer, revela-se toda ela mediação e
representação.
Crítica de
Nietzsche à ideia de vontade em Schopenhauer
É bem nesse sentido que se dá a crítica de Nietzsche
ao papel atribuído à vontade na filosofia de seu educador. O ponto de partida
para o próprio Nietzsche pensar a vontade é, evidentemente, schopenhaueriano[8]. O que já não é tão evidente vem a ser em que medida
a sua concepção de vontade e, logo, de vontade de potência se manterá sob o
escopo de Schopenhauer[9]. Filiações à parte, as quais têm o condão de
relativizar, mas não de invalidar o teor das críticas de Nietzsche ao filósofo
de Frankfurt, o caso é que ele negará à vontade o fator proeminência – e o
concederá ao sentimento de potência –, como negará à vontade – que
circularmente será “quebrada”, tornando-se vontade de sua própria potência –
qualquer conotação metafísica. O autor do Zaratustra,
por certo que levando em conta a processualidade, variação e mobilidade
implicadas pelo darwinismo, observa que uma consequência espantosa de todo o
enquadramento darwiniano – pois Darwin não é meramente uma teoria a mais –
estaria em pôr em questão todas as qualidades que tomamos por eternas. A
metafísica desde sempre se valeu de um ou outro princípio, qualidade eterna,
para com ele, devidamente posicionado num plano ressalvado das intempéries
fenomênicas, ajustar-se a todos os fenômenos, a objetivar um mundo desordenado e aparentemente arredio. Ocorre que
a vontade de Schopenhauer, que se pretende um tal princípio, para Nietzsche
“não se objetiva adequadamente” (19 [132], verão de 1872 – início de 1873)[10]. De fato, a vontade ali é menos um apetite a reger as
ações e representações sob a sua égide, e mais um princípio da natureza que não
comporta representação nem cognição. E se não se objetiva adequadamente, também
outra ressonância metafísica lhe é negada por Nietzsche: ele afirma que “a
vontade não é fato último” (23 [12], final de 1876 – verão de 1877), e isto,
contextualize-se, numa época em que ele ainda busca o que será o seu “fato
último” e a relação deste com as viscerais noções de prazer e desprazer[11]. Entrando nos escritos da maturidade, quando prestes
a apresentar a hipótese de vontade de potência em Para além de bem em mal (1886), o filósofo mais uma vez toma
distância da vontade segundo seu mestre e lhe nega um terceiro elemento de
proeminência: “a vontade não é fato imediato, como quer Schopenhauer!” (23
[327], verão – outono de 1884). Porém antes disso, no período chamado
“iluminista” de Nietzsche, ele chega a uma compreensão que não o abandonará: “o
grande erro fundamental de Schopenhauer está em não ter visto que o apetite (a
“vontade”) é apenas um modo de conhecer
e nada mais” (47 [5], setembro – novembro de 1879).
As críticas de Nietzsche à vontade em Schopenhauer
servirão para delinear o seu fato
último – a hipótese de vontade de potência – e para depuradamente conceber sua
noção de impulsos. Se se pode dizer que a inspiração filosófica de Nietzsche
reside em grande parte no princípio de ação inconsciente de Schopenhauer, para
tal fez-se necessário problematizar seu intento, mantendo distância da face
metafísica de Janus. Ele entabula profícua relação com Schopenhauer não apenas
pelas limitações metafísicas do filósofo de Frankfurt, mas também, de modo mais
amplo, pelo que já o próprio Schopenhauer pressente de limitado, de sem-saída
no caminho da metafísica. A metafísica prometia o mundo – que ele teria valor,
que poderia ser apaziguado e dominado, e o poderia justamente pelo que a
filosofia tinha por de maior valor: seus princípios racionais. A metafísica
pressupunha Deus, a imortalidade da alma e o mundo, julgou poder prová-lo por
seus próprios meios, e com Kant se viu não ser possível demonstrar as
respectivas existências. A metafísica julgou possível prover ou resgatar a
liberdade do homem, porém essa pretensão igualmente caiu por terra com as
antinomias kantianas. E mesmo o sujeito, que em dado momento se assomara como
garante de toda a construção filosófica, de toda a visão de mundo, juntamente
com a noção de alma foi suplantado por sua própria corrente de pensamentos, tornando-se
quase uma miragem, oferecendo-se à dissolução. Ocorre que a bem essas
instâncias o homem empenhara sua capacidade de desejar, do que resulta, segundo
Nietzsche,
esse estar
cansado da existência, essa vontade de não mais querer, a destruição da vontade
própria, do bem de si mesmo [Eigenwohl],
da abnegação (como expressão dessa vontade invertida) – a isso e a nada além
Schopenhauer queria saber louvar com a mais elevada honraria (2 [197], outono
de 1885 – outono de 1886).
Pouco antes, nessa mesma passagem, com relação a
Schopenhauer ele se refere à condição de “estar farto”, atrelada à descoberta
de o mundo não ter o valor que se acreditava que tivesse, assim como em outro
momento fala numa “repugnância” e num “estar farto” por trás de filósofos como Kant e Schopenhauer. Por certo que essa
“repugnância” se intensificou sobremaneira na passagem de Kant a Schopenhauer,
a ponto de este último se fazer, se continuador daquele, como o foi, um
continuador autodeclaradamente audacioso.
Ora, com “audacioso”, “original”, por outro lado “fiel” ao próprio Kant, se
convincente ou não em seus argumentos no tocante a derivar a vontade da
coisa-em-si[12], quanto a esse ponto pretendemos nos ater
precisamente ao movimento que ele assim realiza: o inatingível sendo trazido ao
que nos é mais íntimo e imediato, o relegado – a coisa-em-si, de certa forma
relegada pelo próprio Kant – vindo a ser colocado no centro da filosofia, o
mais alto voo da razão, que se esperaria para se chegar à coisa-em-si, sendo
deparado num subterrâneo corpóreo: convincente ou não, Schopenhauer por certo
foi desconcertante e tangenciou o trágico: se entendermos a coisa-em-si
kantiana como o que não posso conhecer
– já que ela está lá sem que se a possa
conhecer –, e se para Schopenhauer
a coisa-em-si se identifica à vontade, então poderíamos dizer que o que não posso conhecer é a vontade.
Essa vontade é justamente a força da natureza que impele todas coisas, como
impele a conhecer, por mais que se subtraia à cognição. Mas, justamente, se
Schopenhauer fosse menos ou nada metafísico, se admitisse uma transitividade
direta do seu conceito de vontade, se admitisse uma vontade de e se aplicasse essa transitividade ao conhecer, como vontade de conhecer, teríamos que o que não posso conhecer é a (a própria)
vontade de conhecer ou: por mais
que eu conheça, não posso conhecer a
vontade que me impele. Ressalte-se que neste arrazoado não introduzimos em
Schopenhauer elementos que ali não estão, salvo o que chamamos de
“transitividade direta” da vontade – vontade que nele seria mais “intransitiva”
ou “intransitiva direta”. O que fizemos foi aproximar um tanto as distâncias,
procuramos deixar claros os termos da relação e tornar visível o elemento que
se fez impossibilitado em se tratando de coisa-em-si – vontade: o conhecer.
Chegamos assim a um desacordo, a uma dissonância basilar entre vontade e o
mundo; se sobre tal dissonância se funda a filosofia de Schopenhauer, tem-se aí
a configuração de uma filosofia eminentemente trágica, que assim não se resolveria
nem com edifícios metafísicos, nem com a razão, demandando-se um estrato mais
profundo que o do próprio conhecer. Mas há que se conceder que o próprio
Schopenhauer não explicitou as mediações tal como o fizemos, e não o fez porque
o próprio esquema metafísico o deteve, com a rígida separação entre vontade e
representação a impedir de antemão a transitividade da vontade – a vontade de. Assim sendo, no limite
Schopenhauer tangenciou o trágico, mas por não protagonizar sua filosofia nem a
vontade que ela tematiza[13], optou por ser espectador. Com isso, o próprio
mergulho na condição trágica se fez preterido pela perspectiva niilista: em vez
da dissonância acima delineada, a concordância pela negação: nem o conhecimento
nem nada tem valor.
Schopenhauer e sua
“segunda natureza”, alemã
Da vontade não transitiva, ou seja, de uma questão de
conteúdo da filosofia de Schopenhauer, para a questão da transitividade com sua
própria filosofia: por mais que Schopenhauer tenha dedicado a sua vida à
filosofia (M/A, § 459), ele não a vivenciou. Por mais que fosse de sua
singularidade, de sua constituição se dedicar, mesmo se sacrificar – por uma
causa, por um ofício, pela filosofia –, tudo se passa como
se tal fosse impedido,
interditado por uma segunda natureza, que não incide apenas em Schopenhauer,
mas também em Leibniz, em Kant em Hegel (cf. 26 [285], verão-outono de 1884):
eles compartilham da natureza alemã, do tipo alemão, e este produz uma
interferência comum, responsável por sua hipocrisia – hipocrisia oriunda da
interceptação e sequestro, por tal “segunda natureza”, da vivência que suas
singularidades de outro modo expressariam; hipocrisia oriunda da solução de
compromisso pautada por um tipo compartilhado, que os faz denegar de sua
própria profundidade. Isso significa que aqui deparamos novamente com a ideia
de tipo.
A teoria dos tipos em Nietzsche é própria de uma
filosofia que recusa a unidade, o esquema atomista e seus resquícios, em nome
de uma pluralidade radical, e de correspondências múltiplas, não unívocas, nem
excludentes. É domínio de uma filosofia que, ao analisar a filosofia de até
então, desvela nos filósofos intenções insuspeitadas por eles próprios. Desvela
a ação defensiva disfarçada de estritamente racional. Desvela a inclinação
fantasiada de neutralidade racional. Também a gregariedade oculta, travestida
de rigor impoluto e praticado às claras. Desvela dedicação e sacrifício que não
se traduzem em vivência. Desvela, enfim, uma filosofia sem singularidade
filosofante. E nisso revela-nos também parentescos de natureza e de motivação
até então insuspeitadas, como o do “baixo caprichoso” em Rousseau e
Schopenhauer (cf. M/A § 459, 538), como o da totalidade dos filósofos unidos
pela hipocrisia (cf. 26 [285], verão-outono de 1884, 9 [178], outono de 1887),
e o das almas “desapaixonadas” de Kant e Schopenhauer. O que se poderia chamar
de uma “alemanidade” cobrou de Kant uma filosofia sem vivência, na qual a mente
ativa e laboriosa se ocupa em compensar uma alma ausente (cf. M/A § 481). Se
não podia fazê-lo em Schopenhauer, para quem já o contato com sua natureza
animal, pulsional, impeliu-o a vagar pelo que Nietzsche chama de “selvageria”
(cf. M/A 481), como o impeliu a desvelar os impulsos que ele artificialmente
unificou, isolou, observou à distância e chamou de “vontade”, se o tipo alemão
não pôde obliterar de todo a vivência em Schopenhauer, esse mesmo tipo o fez se
posicionar justamente nos antípodas do que aparenta ser a chave-mestra para a
sua filosofia: em Schopenhauer, a vontade não está em parte alguma.
O “não vivenciar” por Schopenhauer é obviamente
abrangente, expressa uma “não vivência” em geral, e é desse âmbito mais geral
que vem se refletir em sua filosofia. Isso se constata não apenas em sua teoria
da vontade, mas também em sua ética, tal como filosoficamente formulada. A
impressão que à primeira vista dela se pode ter parece apontar no sentido
contrário. Uma ética fundada num sentimento, na compaixão (Mitleid), como é a sua, poderia sugerir que, além de a compaixão
cumprir uma função que viesse a compensar o fato de representação e cognição
não terem direito à cidadania no reino da vontade, também a pessoa de
Schopenhauer seria profundamente compassiva, a ponto de converter racionalmente
essa “vivência”, pela qual, ao que parece, não
se pensa em si, mas no outro, para o seu filosofar. Porém Nietzsche não vê
assim a invocação da compaixão em sua filosofia. No aforismo 133 de Aurora, procede à distinção entre os
homens sem compaixão e os compassivos. Por oposição aos sem compaixão, o compassivo,
caso de Schopenhauer, teria a “excitável imaginação do medo”, a “fina
capacidade de pressentir o perigo”, e sua vaidade o faz “se ofender
rapidamente”; não está acostumado a “tolerar a dor”; e porque não sofreu, acha
injusto que outros sofram; sua “brandura de coração”, as “lágrimas fáceis”, que
faz questão de não ocultar, para Nietzsche não remetem a uma vivência de fundo,
autêntica, mas a vivência propriamente dita lhe seria na verdade “a fria
bravura, a indiferença estoica” (M/A § 133). Isso por certo não quer dizer que
o critério nietzschiano para o vivencial exclua sentimentos, mas exclui, isto
sim, sentimentos e posturas que denunciem uma atitude esquiva aos estímulos da
realidade processual circundante: a “imaginação excitável”, o “pressentimento
do perigo”, a vaidade, o melindre, o não sofrer por ter se esquivado ou por não
ter chegado a sentir, já que superprotegido, e, nesse sentido, o não contato
com o mundo pelo revestimento fácil de uma atitude macilenta. Entenda-se, pois,
que uma hipersensibilidade – como a que levou Schopenhauer à sua ideia de
compaixão – não é o “contato com a coisa”, com o mundo circundante, mas sim o
contrário: uma forma de proteção em relação a ele. E por assim contornar o que
não é sentido, o que não é vivenciado, Schopenhauer simplificou reativa e
artificialmente processos complexos, tal como fez com a vontade, e num caso
como no outro siderou-se na precipitação grosseira da palavra. Com isso,
forjou-se uma unidade onde ela jamais se deu; a crença em tal unidade e em tal
palavra só é possível àquele que não atenta aos modos fortemente inconscientes
pelos quais pensamos e deixamos de pensar em nós (cf. M/A, § 133).
Adesão metafísica e
não vivência em Schopenhauer
Deixando-nos assim guiar pelas observações de
Nietzsche, observe-se que já há algum tempo estamos operando simultânea e
deliberadamente em dois registros: o da exposição, por Schopenhauer, de sua
própria filosofia, e o da vivência, ou não, por ele próprio, de seu filosofar.
Esse duplo registro se dá por estarmos tratando de Schopenhauer objeto de
crítica por Nietzsche, por um lado, e, por outro, pelo fato de o viés de
crítica se dar pelo eixo da vivência (Erlebnis).
Por uma questão de recorte, esse eixo, eleito uma vez que fecundo dispositivo
de conexão entre os dois filósofos, vai obnubilar outros eixos no entanto
possíveis, como também, num registro mais amplo, deixa de parte a evidente e
maiúscula contribuição do filósofo de Frankfurt para a filosofia de Nietzsche.
A crítica de Nietzsche a Schopenhauer, seja dito e ressaltado, não deve ser
confundida com uma arrematada desqualificação, pelo primeiro, da obra de seu
educador. Deve ser vista, isto sim, como um ricocheteio após um movimento de
forte atração, mesmo de chamado à filosofia. O ricochetear, nesse caso, seria a
detecção, pelo autor do Zaratustra,
de uma oscilação e ambiguidade de Schopenhauer ante seu próprio arrojo, ante a
sua própria descoberta, e isto no contexto – se se quiser pensar num contexto
mais amplo – de uma interpretação e de uma crítica da cultura europeia. A
cultura europeia, bem entendido, uma vez que dominada pelo racionalismo
socrático-platônico, que depois se tornara cartesiano e iluminista, e uma vez
que assolada pela moral ascética cristã, fizera-se infensa ao contato com a sua
própria instintualidade, com sua própria experiência, e isto equivale a dizer,
com suas próprias vivências. Se em seu bojo se intentara proporcionar ao homem
“o máximo de prazer e o mínimo de desprazer possíveis” (FW/GC, § 12),
deixava-se esse mesmo homem sem estofo para fazer frente às consequências do
desencanto pela estrita racionalização do mundo (pessimismo, niilismo). Esse
estofo, se por óbvio não é de caráter transcendente ou metafísico, é,
justamente, vivencial. A oscilação e ambiguidade de Schopenhauer vão se dar em
relação à sua descoberta, mas também, de modo mais amplo, em relação ao quadro
vivencial que tal descoberta – a vontade como aspecto essencial e inconsciente
de tudo o que existe – parecerá demandar.
Se a filosofia do século XVIII não reconhecera a
diferença entre vida e existência, nesse próprio e mesmo século XVIII, como
efeito do advento de um modo de vida burguês, no vácuo de uma constante secularização
e da Revolução Francesa, num movimento de reação ao desvelamento de mundo da Aufklärung, todo um campo de
experiências ou de vivências privadas passa a cada vez mais se fazer fonte de
inspiração e expressividade para os poetas[14]. Para os poetas do Sturm und Drang, a “vida vivida” se tornava o cerne de uma verdade
cunhada individualmente, com a vida sendo ali compreendida como vivência, como
destino pessoal, como um caminho de vida estritamente individual[15]. Ao modo como a noção de vivência em dado momento passa a se evidenciar pode bem se atentar
considerando-se o modo como o termo aparece e se transfigura, passando do
designar da ação ao da atenção e da reflexão: Erlebnis, vivência, advém de uma substantivação do verbo erleben, vivenciar; daí se ter a sua
substantivação em Erleben (o
substantivo em língua alemã se diferencia pela inicial maiúscula) e então em Erlebnis, ambos a denotar vivência com base num distanciamento
crítico relativamente a uma ação (erleben)
– e o distanciamento é suscitado por condições sociais, econômicas e culturais,
às quais a expressividade poética se fez sensível antes do debate filosófico.
Ocorre que em 1827 o termo aparecerá já pela pena de um filósofo, quando em uma
carta Hegel lhe faz menção em referência a um acontecimento pessoal: “toda a
minha vivência [meine ganze Erlebnis]”[16]. A partir daí, lentamente o termo granjeará a
dimensão filosófica que não obtivera no século XVIII, e que cumulará com a
atenção que lhe confere Wilhelm Dilthey, no uso biográfico que dele faz ao
tratar de Schleiermacher, como dos grandes poetas alemães[17]. Pois entre a menção de Hegel e o tratamento que lhe
dará Dilthey se tem a reflexão de Nietzsche e o modo como a questão da vivência
se fará crucial ao seu próprio filosofar, e isto inclui a maneira como vê tanto
os alemães em geral quanto os filósofos alemães que o antecederam, em especial
Kant e Schopenhauer.
Tendo sido engendrada, a exemplo de tantos termos,
como uma reflexão a partir de uma ação, a noção de Erlebnis assinala a atenção de uma subjetividade ao que lhe
acontece, ou seja, não se trata apenas de viver ou passar por algo, mas de
atentar ao que se vive, ao que se experimenta. Isso redundará necessariamente
em autorreflexividade? A ver. Pelo modo como é haurida dos românticos, a vivência
(Erlebnis) compreende três traços
principais[18]: pelo primeiro, ela apresenta o caráter de ligação imediata com a vida; o segundo lhe é a
intensidade, e uma intensidade sentida a ponto de transformar a existência, de
convertê-la em significabilidade; o terceiro traço é o da impossibilidade de se
determinar racionalmente o conteúdo do que se vivencia, de modo que a vivência,
assim, será sempre pensada de um ponto de vista estético[19]. Esses três traços, mas sobretudo o terceiro,
fazem-se marcas da literatura alemã, do Sturm und Drang ao romantismo. O que se
passa desde o Sturm und Drang é precisamente – e já o dissemos acima, quanto à
atenção às vivências privadas – uma reação à frieza do racionalismo da Aufklärung, ao predomínio pretensamente
inconteste da abstração do entendimento. E em sentido contrário ao da Aufklärung, a evidenciação da vivência é
a tradução – seja poética, literária ou filosófica – de um anseio por uma
ligação com o infinito, com a Totalidade. Evidentemente que se tem aí um
movimento compensatório ao desvelamento de fatos naturais isolados e brutos
provido pela ciência iluminista, uma reação ao desencantamento do mundo,
travejado em insípidas relações causais.
Dado esse quadro histórico, é com a carga semântica
assim sugerida que o autor do Zaratustra
recebeu a noção de vivência (Erlebnis).
Na pesquisa Nietzsche já se fez ver que, até a altura da Quarta consideração extemporânea, dedicada a Richard Wagner, o
filósofo se vale do termo bem no sentido que herdara da tradição romântica e panteísta
alemã, com a Erlebnis pensada
estritamente segundo os três traços acima assinalados[20]. À altura do ciclo do Humano, demasiado humano (1878-1880) sucede um congelamento dos
ideais românticos e metafísicos[21], como das crenças e pretensões que lhe vêm atreladas.
Quanto aos destinos da questão da vivência, o momento é de transição: o
instintivo ainda é visto como submetido ao intelecto, o inconsciente ao
consciente, o pulsional sendo objeto de um tratamento atomizado. Essa
hierarquia teria de ser – e será – subvertida. E de fato, com a gradual
compreensão das interações pulsionais levada a efeito a partir dali e ao longo
da década de 1880, a questão da vivência, se se mantém a assumir relevos, é
transposta: de equacionada a um Eu sobranceiro e consciente, a ansiar pelo Todo
e pelo infinito, a vivência passa a ser remetida à vida orgânica, a uma miríade
radicalmente plural de sensações, de percepções; essa miríade em última
instância remeterá aos impulsos, e isto quer dizer que as vivências serão uma
questão pulsional. Desse modo, os traços de imediaticidade, intensidade, acesso
pela via estética, que vimos ser aspectos próprios das vivências, incidirão
numa lacuna incomensurável – e incomensurável porque as vivências se dão no
âmbito pulsional, que entre outras coisas é o do não verbalizável[22]. Já não se tratará de um processo conduzido pela
consciência, pois Nietzsche então a reconhece como “último e derradeiro
desenvolvimento do orgânico” (FW/GC § 11) e “tiranizada” pelos instintos (cf.
FW/GC § 11). A associação das vivências a um âmbito orgânico, do desconhecido e
inabarcável[23], de uma inconsciência, perdurará ao longo de seu
percurso filosófico. Igualmente perdurará o imperativo de a filosofia se valer
dessas vivências, por mais que remetam ao insondável, por mais que se prestem
mais a um fazer artístico do que a um discurso direto[24]. Também igualmente, a adesão ou não às próprias
vivências se manterá um critério para a análise da obra de filósofos alemães
como Kant e Schopenhauer. O teor romântico da Erlebnis herdada por Nietzsche manter-se-á de maneira difusa, e
congelado sob o filtro da vida orgânica e pulsional que virá a assumir. Esse
teor, em seus traços de ligação imediata com a vida, intensidade e
impossibilidade de determinação racional, Nietzsche o terá por ausente na
filosofia de Schopenhauer, tanto em sua concepção metafísica da vontade quanto
em seu alinhamento à representação – em detrimento da própria vontade.
A esse respeito, justamente, se o mundo lhe é vontade
e representação, mantivemo-nos aqui todo o tempo na questão de o filósofo de
Frankfurt não se alinhar à vontade, e até agora não contemplamos o modo como,
sem mais, alinhou-se à representação. Ocorre que estaria justamente aí o vício
de raiz a de antemão impedir que a filosofia de Schopenhauer pudesse ser por
ele vivenciada. Com isso já apontamos para a direção da metafísica, e isto
significa que o visceral, que é a vontade em Schopenhauer, não poderia “se
converter em vivencial” justamente porque o vivencial é fluido, singular e antecede
qualquer conceptualização. E se a antecede, não se deixa reter pelo
esquadrinhamento metafísico. Mas justamente aí se pode levar o questionamento
ainda mais longe. Por que a vontade, esboço de desvelamento da animalidade no
homem, primeira tentativa de naturalizá-lo, antecipação do inconsciente segundo
Freud, não foi capaz de solapar por dentro a própria abordagem metafísica de
Schopenhauer? Como não foi capaz de fazer implodir a arquitetônica de seu
sistema? Esse questionamento tem ainda uma contraface: por que motivo emergiu a
vontade, por um lance de ousadia e originalidade de Schopenhauer num “ambiente
filosófico” – o do próprio Schopenhauer – que se mostraria tão hostil à sua
manifestação?
Em primeiro lugar, o sistema metafísico por si só
faria enquadrar seu objeto, mesmo objeto tão renitente e desafeito quanto a
vontade: para tanto, bastaria lançar mão da habilidade metafísica de
transformar a vontade em “mera palavra vazia” (14 [121], primavera de 1888),
passível de designar alguma outra coisa, e valer-se da habilidade conceitual de
se aproveitar de uma “lacuna da língua” (VM/OS § 5) ou, enfim, bastaria manter
a vontade como conceito genérico, como de fato o fez, por isso mesmo passível
de ser predicado com algo que o faça negar: “vontade de não mais querer” (2
[197], outono de 1885 – outono de 1886). Mas com isso seria ainda de se
perguntar se a abordagem metafísica chegaria a ponto de “quebrar” a vontade
própria, fazendo com que se convertesse na expressão de um querer invertido
(cf. 2 [197], outono de 1885 – outono de 1886). Daí a questão sobre o caráter
“de não vontade” da vontade em Schopenhauer, problema que se revelou tão caro a
Nietzsche, demandar que se vá além do enquadramento metafísico a que tal
instância foi submetida. A referida questão nos leva a perscrutar
especificidades, a considerar não apenas a sua ideia de vontade, mas a própria
metafísica de Schopenhauer a encerrar em si o híbrido e o contraditório.
Ora, assim como o intrinsicamente contraditório
confere o teor da concepção schopenhaueriana de vontade, que para Nietzsche
vimos ser uma “vontade de não mais querer” (2 [197], outono de 1885 – outono de
1886), também em sua metafísica há um teor aparentemente contraditório. Tudo se
passa como se o filósofo de Frankfurt fosse movido por um estranho, quase
paradoxal misto de voluntarismo e passividade – e também a esse respeito ele
protagonizaria um híbrido inédito em filosofia. No caso da herança kantiana, é
em grande parte por voluntarismo que ele acessa o inacessível, encontrando-o no
âmago de um movimento corpóreo. E o que Schopenhauer desvela na coisa-em-si é a
natureza a atuar no ser humano, à revelia dele, indiferente a ele, negando-lhe
qualquer teleologia ou providencialidade, antecipando Darwin, o próprio
Nietzsche, Freud, o existencialismo. Ocorre que em sua própria filosofia essa
mesma vontade alija o homem de si mesmo e da possibilidade de construção de um
destino – de seu próprio destino: o homem se vê apassivado ante o impulso que,
se concebido sob outras circunstâncias, faria dele um ser sumamente ativo.
Restam-lhe atividades embotadas, como estar emaranhado à representação, à razão
e à sua própria individuação. Ou então, resta-lhe provisoriamente contornar
essa vontade, esquivar-se dela momentaneamente, mediante, ainda uma vez, a
passividade da contemplação estética – e nesta, diga-se, a atividade da criação
artística não se faz incluída nem prevista. E para se compreender esse
dispositivo de atitude esquiva, cumpre trazer à baila outra filosofia que,
quase tanto quanto a de Kant, permeia o sistema schopenhaueriano, sendo também
ela assenhoreada pela dinâmica interna de Schopenhauer: estamos falando de
Platão, mais precisamente de sua teoria das ideias, e muito precisamente do
acesso às tais ideias pelo que entendemos ser a “passividade voluntariosa” de
Schopenhauer.
Voluntariosa foi a atitude de Schopenhauer ao se
pretender “continuador audacioso” de Kant, antevendo no interdito deste “uma
via interna aberta para nós rumo à real e interna essência das coisas (selbst-eigenen und inneren Wesen der Dinge)”
(W I, 245). Ao tratar desse aspecto,
mencionamos que o autor de O mundo como vontade e representação fica entre
a originalidade e o não convencimento. Ao valer-se da teoria das ideias de
Platão, de sua atitude podemos dizer algo de quase o mesmo teor, se
substituirmos “originalidade” por “excentricidade”; e ao aproximar Kant e
Platão, a coisa-em-si e as ideias, a atitude de Schopenhauer tem algo mesmo de
excêntrico e original:
Se para nós a
Vontade é a COISA-EM-SI e as IDEIAS a sua objetidade imediata num grau
determinado, encontramos, todavia, a coisa-em-si de Kant e a Ideia de Platão –
único οντωςυον –, estes dois
grandes e obscuros paradoxos dos dois maiores filósofos do
Ocidente, de fato não como idênticas, mas como intimamente aparentadas e diferentes apenas em uma única determinação. Os dois paradoxos, que, apesar da sua afinidade
interna e parentesco, soam tão diversamente em virtude das individualidades
extraordinariamente diferentes de seus autores, são o melhor comentário um do
outro, na medida em que se assemelham a dois caminhos completamente diferentes
que conduzem a UM mesmo fim (W I, 236-237).
O “mesmo fim”, bem entendido, é a libertação da
vontade e das determinações desta no âmbito da representação, da causalidade e
da individuação. E sobre o referido parentesco, Schopenhauer ainda reforçará:
Se alguma vez se
tivesse realmente compreendido e apreendido a doutrina de Kant e, desde o seu
tempo, a de Platão; se se tivesse refletido de maneira séria e fiel sobre o
conteúdo e o sentido íntimo das doutrinas dos dois grandes mestres, em vez de
se ater artificialmente às expressões de um, ou à paródia estilística de outro,
não teria havido demora para descobrir o quanto os dois sábios concordam e como
a significação pura, o alvo de ambas as doutrinas, é exatamente o mesmo (W I,
240).
O que Schopenhauer chama aí de “significação pura”, e
alhures, até com mais frequência, de uma “objetificação” (da vontade) a se dar
por “puro conhecimento”, e o que ele também qualifica como apreensão direta e
imediata é bem o que está além de um tipo de conhecimento que ele propõe ser
passível de transcender. Também aí se tem o que estamos a chamar de
voluntarismo de Schopenhauer. Não se mostrasse ele voluntarista, teria se
contentado com um tipo de conhecimento que se interroga apenas sobre liames
causais, que versa sobre as relações dos objetos particulares, sobre as
relações estabelecidas pelo princípio de razão suficiente, e isto significa,
sobre relações que se dão sob a égide das formas do tempo, do espaço e da
causalidade. Ocorre que para Schopenhauer é possível passar dessa
circunstancialidade das coisas ao conhecimento das Ideias. De suas Ideias, se
consideradas do ponto de vista que imediatamente o precedeu, o kantiano, o mais
próximo que se teria seriam as ideias transcendentais – Deus, alma e mundo –,
que para Kant, muito ao contrário do que se tem em Schopenhauer, ultrapassam a
possibilidade de experiência, razão pela qual não podem ser conhecidas. E se
assim o filósofo de Frankfurt se mostra voluntarista em comparação com a
resguardada posição kantiana, Schopenhauer também o será comparativamente a
Platão, com relação ao qual, ao invocar as tais Ideias, acredita e insiste na
fidelidade de sua compreensão à concepção original das Ideias pelo autor d’A república, como quando afirma,
“concordaremos com Platão, quando atribui um ser verdadeiro apenas às Ideias,
enquanto às coisas no espaço e no tempo, a este mundo real para o indivíduo,
reconhece apenas uma existência aparente e onírica” (W I, 250). E não obstante
falar em “concordância” com Platão, de pronto imputa às Ideias algo de móvel,
maleável e dadivoso que de modo algum está no filósofo grego. Para
Schopenhauer, em sua condição de objetivação da vontade, a Ideia vai até os fenômenos: “Veremos como uma
única e mesma Ideia se manifesta em grande número de fenômenos e oferece a sua
essência aos indivíduos que conhecem, apenas gradualmente, um lado de cada vez”
(W I, 250). Em resumo, se em Platão os objetos particulares participam da ideia, em Schopenhauer a
ideia se desdobra e se espraia “nas
figuras do princípio de razão [suficiente] em variados e múltiplos fenômenos”
(W I, 250).
Assim, desdobramento, espraiamento... Uma Ideia que
vai aos fenômenos e ali se dá a perceber. Para apreendê-la, por certo que não
seria o caso de uma ascese dialética, não obstante Schopenhauer jurar
fidelidade a Platão. Seria então o caso aqui de se perguntar sobre a cognição
pela qual se a perceberia e sobre o sujeito apto para tal. Nesse momento, a
voluntariedade de Schopenhauer, que se manifesta justamente por ele julgar
possível esse conhecimento, mais uma vez conjuga-se a uma passividade, por
negar a tal conhecimento qualquer operação de esforço cognitivo. Ora, vimos que
toda e qualquer cognição foi de pronto excluída do domínio da vontade. O que se
tem ali é o caráter direto e imediato de um “conhecimento puro”, que tem o
caráter de uma “contemplação” (Kontemplation,
Anschauung), de uma “objetificação” (Objektivation), termo técnico de que o
filósofo se vale para caracterizar a relação entre vontade e ação, que não deve
passar pela representação nem, consequentemente, por relações causais (W I,
218-219). A relação que substitui o esforço da cognição tampouco passa pela
individuação e pela subjetivação. Ao conhecer as Ideias, o sujeito se furta à
servidão da vontade e de suas determinações, e uma condição para tal
encontra-se na abolição de expedientes pelos quais a vontade se desdobra na
instância da representação, que lhe é subordinada: esses expedientes são a
razão, que para Schopenhauer é a faculdade dos conceitos e o exame das
representações abstratas; o entendimento, que, pautado pelo princípio de razão
suficiente, é a faculdade mesma da representação; atrelado a ambos, por fim, o
canal da individualidade. Desses três expedientes liberta-se o sujeito quando
se alça da representação abstrata e secundária à representação que a esta
confere conteúdo e significação, qual seja, a representação intuitiva. Tem-se
suprimida a subjetivação à medida que, ao chegar à contemplação estética
mediante a representação intuitiva, o sujeito ele próprio se desfaz,
fundindo-se ao objeto.
Schopenhauer em
relação com o seu tempo
Se a vontade em Schopenhauer se fazia domada pelo
próprio tratamento metafísico, a sua tematização, acompanhada da incompreensão
de seu caráter e de seu significado, Nietzsche a referia como “sinal dos
tempos” (cf. 25 [183], primavera de 1884)[25]. Segundo Nietzsche, ao tematizar a vontade
Schopenhauer estaria a agir como todos os filósofos que “agem como se tivessem
descoberto ou alcançado suas opiniões próprias pelo desenvolvimento autônomo de
uma dialética fria, pura, divinamente imperturbável [...]: quando no fundo é
uma tese adotada de antemão” (JGB/BM § 5). E se “no fundo” a tese é adotada “de
antemão”, isto significa que o é de modo inconsciente.
Nesse sentido, à época de Schopenhauer havia um
disseminado preconceito que ele assimilou sem refletir: o preconceito contra a
vontade, contra uma vontade forte (cf. 25 [183], primavera de 1884). O sinal
dos tempos que o teria conduzido à sua intuição, que de forma original ele
posicionou no lugar da coisa-em-si, foi uma reação contra a época napoleônica
(cf. 25 [183], primavera de 1884). Napoleão era modelo humano de existência
verdadeira, de identidade forte (cf. MM/HH I § 164), um modelo estoico de
resistência e autonomia (cf. 2 [42], primavera de 1880), modelo também de
penetração e tenacidade (cf. 8 [118], inverno de 1880-1881), de devoção a si, à
sua vontade, a seus interesses (cf. 7 [275], final de 1880). Pois a época em
que Schopenhauer concebe a sua ideia de vontade é já um momento de reação a
esse contexto, um momento em que “já não se acredita na ‘força de vontade’” (25
[183], primavera de 1884), ou seja, um momento de vontade esmorecida. E o autor
de O mundo... não teria se mostrado
imune à irreflexão dos filósofos que os faz reféns da relação de inversão a
contrapor força e proximidade de um determinado quadro, por um lado, e a
possibilidade de sua compreensão e tematização, assim prejudicada ou
impossibilitada, por outro. Essa contraposição, que também pode ser entendida
no sentido inverso, de algo que se torna visível e tematizável justamente
porque arrefecido, Nietzsche a traz à luz em Para além de bem e mal: recorrendo à alegoria, observa a relação
direta entre deter as mais amplas perspectivas e manter-se afastado (cf. JGB/BM
§ 129), ou seja, entre distanciamento e capacidade de visualização; essa
contraposição é sugerida também nas referências à relação entre revelação e
declínio (cf. JGB/BM § 130), como pode ser depreendida da relação entre falar e
ocultar (cf. JGB/BM § 169); e numa alegoria ainda mais direta e clara, tem-se o
escrever e pintar somente o que já murchou, perdeu o aroma, ou que está a ponto
de fazê-lo (JGB/BM § 296), e este, enfim, é bem o caso da vontade à época de
Schopenhauer. À força de contraposições como essas Schopenhauer sucumbe de
maneira irrefletida, em vez de haurir a potência que elas poderiam liberar:
nele a vontade surgiu como um aparente oposto, que se deu a tematizar justamente
por se estar muito à distância dele, como o que se dá a revelar por ter perdido
aroma e viço; afinal, tida como torturante e indiferente, a vontade fora
considerada boa havia não muito tempo, no aristocrático século XVII (cf. 9
[178], outono de 1887). Assim, a tematização da vontade teria sido tal qual o
referido ódio travestido de amor, seria mais sua afetação do que sua presença –
afeta-se uma afinidade com ela, como o amante afeta no outro o amor que sente
por si mesmo –; dela se fala, por fim, para se ocultar o quanto dela se carece.
Schopenhauer, em que pese se fazer joguete
inconsciente dessas oposições e por elas pautar sua filosofia, em algum nível
de sua constituição captava e sabia que num certo âmbito, mais profundo em
relação ao que se mostra, não seria disparatado falar nessas relações, tampouco
elas, se se mostrassem em seu jogo de compensações, iriam se revelar opostas.
Pelo contrário, poriam à mostra seu acobertado compromisso, seu entremeio, seu
recíproco fomento. Esse âmbito é o da instintualidade, o da animalidade, dos
apetites, e assim como Rousseau se apercebeu do domínio do sentimento, prestes
a aflorar pela Europa, no que se antecipou a ele e à sensibilidade romântica,
também Schopenhauer, muito à sua maneira, antecipou-se ao desvelamento dos
instintos e à animalidade do homem. Nietzsche, ao ladear os séculos XVII, XVIII
e XIX, arrola sobre o XIX: “animalismo Schopenhauer, domínio dos apetites,
testemunho da soberania da animalidade” (9 [178], outono de 1887)[26]. Ora, essa associação, bem como a aproximação da
animalidade em relação a um domínio que até então lhe era avesso, de modo algum
é intempestiva, muito menos casual. Associação e aproximação podem e devem ser
compreendidas mediante os feitos da própria racionalidade a contar da revolução
científica dos séculos XVI e XVII: com Galileu, o mundo se revela muito maior
do que se pensava que fosse e, o que é mais importante, sem a cesura
fundamental entre as esferas sublunar, onde havia ordenamento, mas também
contingência, e supralunar, esfera de entes individualmente eternos, de
necessidade e harmonia. Com isso se evidenciava que o mundo dos seres humanos
não seria inferior ou menos perfeito que o supralunar. Ao mesmo tempo, com
Copérnico se revelava que a Terra não estava no centro do Sistema Solar. O
travejamento do inteiro Universo por leis segundo Newton logo viria a pôr em
risco a possibilidade da liberdade humana, a relevância de sua moralidade e,
com isso, de sua condição tal como até então se a conhecia. Ato contínuo, Kant
tratou de abrir uma clareira para que vicejasse a questão da liberdade, da
moralidade, porém isso à custa de limitar o poder da razão no tocante ao acesso
às coisas mesmas. Paralelamente, o modelo e os progressos da física newtoniana
foram imitados por outros campos do saber, como o da biologia, da fisiologia,
da citologia. A respeito dessas disciplinas, justamente, as lentes empregadas
para a visualização do infinitamente grande, nos séculos XVI e XVII, passaram a
sê-lo também para o infinitamente pequeno, nos XVIII e XIX. No bojo das
ciências da vida, elas logo viriam a desvelar uma perspectiva na qual as
diferenças entre o homem e outros animais, e mesmo em relação aos seres
orgânicos em geral, não seria tão grande, mas sim seria de grau e dependeria de
um fator pelo qual ainda se tateava[27].
Entretanto, a posição de Schopenhauer em meio a esse
processo não se deu sem a contribuição, afinal... do próprio Schopenhauer.
Temos visto que a leitura de Nietzsche sobre certas “escolhas” dos filósofos
desce a um estrato mais profundo que o da letra expressa, e nesse estrato ele
encontra um filósofo em comunalidades insuspeitadas, em meio a tipologias que
sequestram virtuais singularidades, sendo tipologias que afloram num
determinado povo, em determinada época, e entram em recesso para reaparecer sob
circunstâncias semelhantes, como traços atávicos. É fato que o mais das vezes
um filósofo pode sucumbir à inclinação de seu tempo, e que Nietzsche faz
exortações para uma atuação em sentido contrário (cf. 19 [12], verão de 1872 –
início de 1873). Um filósofo pode irrefletidamente aderir ao ambiente otimista
da primeira metade do século XIX, como pode sucumbir ao pessimismo reinante na
segunda metade. Como pode ficar preso ao embate entre um e outro, este que o
autor do Zaratustra tem por
superficial. Quanto aos dois ambientes, Schopenhauer conviveu em ambos,
entabulando uma relação peculiar com cada um deles, cada qual a seu momento.
Mesmo em meio ao otimismo hegeliano da primeira metade do século, quando os
homens órfãos de Deus sem mais inseriam sombras divinas em seu próprio
filosofar, compensando a derrocada teológica com seu absoluto, com a teleologia
da história, a isso Schopenhauer respondeu como homem nobre, de postura
autônoma, dono de uma peculiar medida de valor (cf. FW/GC § 3, onde, porém, não
há referência específica a Schopenhauer). Respondeu com o que Nietzsche observa
ser “sua limpeza em questões da Igreja e do Deus cristão” (FW/GC § 99), com
“seu duro senso dos fatos, sua honesta vontade de clareza e razão [...] ou [com]
o vigor de sua consciência intelectual, que toda a vida suportou a contradição
entre ser e querer” (FW/GC § 99). Com isso ele se contrapôs às inclinações de
seu tempo. E em relação à segunda metade do século, com seu mal-estar quanto à
condição humana, Schopenhauer foi antecipador. Se na primeira metade a Europa ainda conseguiu preferir a
identificação entre razão e mundo, de Hegel, e a crença positiva no curso da
história, o fracasso das revoluções de 1848 fez o europeu finalmente se dar
conta da impotência de sua própria condição. O colapso da crença em Deus não
seria compensado pela versão “Primavera dos Povos” de realização das
possibilidades do agir humano. Com a desesperança e o pessimismo reinantes, não
por acaso a publicação dos Parerga e
parelipomena, em 1851, ao contrário do que fora a da primeira edição de O mundo como vontade e representação, em
1818, fez-se rápida disseminação e estrondoso sucesso: a Europa reconhecia a
sua impotência e passava a se reconhecer em Schopenhauer, onde, segundo vimos
aqui, o impulso vital esmaecido visibilizou-se e se deu a tematizar.
Animalidade em
filosofia
Para Nietzsche, mais nítida e mais cruamente do que
Rousseau, Schopenhauer “viu” a sua própria animalidade. Esteve em aberto
contato com seu lado animal e selvagem, que se dava, porém, como lado selvagem
resultante de seu aprisionamento pelas convenções e normas sociais – como as
que regem relações que foram tão problemáticas para Schopenhauer, e entenda-se,
entre homem e mulher e as acadêmicas[28]. Schopenhauer até mesmo trouxe essa animalidade à
filosofia. Porém, sem dispor de meios científicos para acessar as profundezas
animais que em si já vislumbrava[29] – as ciências da vida conheceriam um avanço
formidável no período que separa Schopenhauer e Nietzsche – e sem chancelas
morais para fazê-lo de fato em sua filosofia, Schopenhauer embotou e aprisionou
a animalidade no homem do modo como aqui procuramos trazer à luz. A hesitação
de Schopenhauer, Nietzsche a atribui à defensividade de sua “segunda natureza”
(26 [285], verão-outono de 1884) – a alemã – em relação ao emergir da primeira
– a natureza animal. Pela tal “segunda natureza”, em Schopenhauer fez-se
possível uma identificação inquestionada à representação em detrimento da
vontade; como se, ao que observará Nietzsche, certas representações fossem
possíveis sem a relação com um querer, e como se a vontade não fosse um impulso
a conter em si “a representação da existência de um objeto de satisfação” (9
[1], verão de 1875). Tivesse atentado a isso, Schopenhauer talvez se
questionasse sobre se não caberia um questionamento a apontar para alguma
identificação justamente com aquela vontade, com aquela “primeira natureza”.
Pela desatenção a seus próprios processos inconscientes, foi possível a
Schopenhauer deixar de vivenciar por sentir antecipadamente e, de modo
paradoxal, em demasia. Foi-lhe possível esquivar-se, fazer a vontade se voltar
contra si[30], e fazer de si próprio um espectador. Um torturado
espectador do mundo e de sua filosofia.
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ZAMBONINI, F. Schopenhauer
e lascienza moderna discorso per la solene
inaugurazione dell’anno accademico dela Reale Università di Sassari. Sassari: Tip. Dita G. Dess,
1911.
* O presente
trabalho foi realizado com o apoio da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior), entidade do Estado brasileiro voltada à pesquisa e
ao desenvolvimento científico.
[1] As citações das
obras de Nietzsche e referências a elas, porque aqui estruturantes e
abundantes, serão apresentadas no corpo do texto, e segundo o seguinte padrão:
para seus fragmentos póstumos, numeração e período aproximado de sua escrita
(p.e., “26 [285], verão – outono de
1884”. Para o caso das obras, serão sempre referidas pela sigla convencionada
do original em alemão e do português, sucedida no número do aforismo. Assim,
para O nascimento da tragédia, GT/NT
(p.e., GT/NT Prefácio § 3); para Miscelânea
de opiniões e sentenças diversas, VM/OS (p.e., VM/OS § 5); para Aurora,
M/A; para A gaia ciência, FW/GC; para Para além de bem e mal, JGB/BM; para Ecce homo,
EH/EH. Quando o texto de Nietzsche for apenas referido, e não expressamente
citado, a citação verá antecedida de “cf.”. As traduções dos textos de
comentadores reproduzidas nas notas de rodapé são livres e de nossa autoria.
[2] “Eu estava mais a atentar para o fato de que jamais surgiu um ceticismo
ou um dogmatismo em teoria do conhecimento sem pensamentos de fundo, – [eu
estava a atentar] para o fato de que eles têm um valor de segunda ordem,
enquanto bem se pode questionar sobre o que,
no fundo, estaria a forçar essa
posição: [passei a atentar] mesmo para a vontade de certeza, sobre se esta não
seria a vontade de ‘em primeiro lugar, quero viver’” (2 [161], outono de 1885 –
outono de 1886).
[3] Cf. JANAWAY,
Introduction. In: JANAWAY, C. The
Cambridge Companion to Schopenhauer, p. 1
[4] Cf. GARDNER, Schopenhauer, Will and the Unconscious,
p. 404.
[5] Há que se fazer menção ao crucial interregno representado pela
filosofia kantiana, já que Kant tratou em pé de igualdade os âmbitos da razão e
da paixão, concedendo a cada qual uma de suas Críticas.
[6] São diversas as menções de reconhecimento a Schopenhauer por Freud,
sobretudo em obras e escritos da maturidade – a exemplo do que se tem nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(1905), em A história do movimento
psicanalítico (1914) e “Uma dificuldade no
caminho para a psicanálise” (1917),
quando esmoreciam as preocupações cientificizantes do fundador da psicanálise,
dando lugar ao cabedal literário e filosófico que sempre a permeou. Sobre a
relação de Freud com Schopenhauer, cf., entre outras contribuições, as
seguintes obras seminais acerca desse tema: ASSOUN, Freud – La Philosophie et les Philosophes, p. 177-218, e GÖDDE, Traditionslinien des “Unbewußten” – Schopenhauer
– Nietzsche – Freud, p. 384
[7] Façamos constar
que as passagens de o Mundo como vontade
e representação referentes ao segundo tomo (Zweiter Band), foram
consultadas no original e assim são citadas, em edição de 1913, conforme as
duas notas imediatamente acima. As passagens referentes ao primeiro tomo foram
consultadas e são citadas segundo a tradução brasileira.
[8] Deve-se fazer
constar a amplitude do fascínio que Schopenhauer exerceu sobre o autor d´O nascimento da tragédia, mesmo o
chamado à filosofia que seu O mundo como
vontade e representação teria representado ao jovem Nietzsche. Naturalmente
que isso diz respeito também – ou mesmo sobretudo – à questão da vontade. É o
próprio jovem filósofo que relata esse poder de atração em seu “Retrospectiva
sobre meus dois anos em Leipzig“” (Rückblick
auf meine zwei Leipziger Jahre), do outono de 1867. Ele conta ali como, em
1865, num alfarrábio em Leipzig, de repente se defrontou com um exemplar de O mundo como vontade e representação:
“tomei-o nas mãos, como objeto que me era completamente estranho e o folheei.
Não sei qual demônio me soprou nos ouvidos: ‘Leve este livro para casa’. De
todo modo, foi algo que contrariou meu hábito de não ir com muita pressa na
compra de livros. Em casa, com o tesouro adquirido, lancei-me no sofá e comecei
a deixar aquele gênio energicamente sombrio atuar sobre mim. Ali se tinha cada
linha, cada renúncia, cada negação, cada resignação a gritar, ali eu olhava num
espelho no qual eu contemplava o mundo, a vida e a própria alma em
desconcertante grandiosidade. […] A necessidade de autoconhecimento, mesmo de
um autodesfazimento me arrebatava com violência; testemunhas daquela
reviravolta ainda me são as inquietas e melancólicas folhas de diário daquele
período, com suas inúteis autoacusações e olhares desesperados à purificação e
à transformação de toda a humanidade” (NIETZSCHE, Rückblick auf
meine zwei Leipziger Jahre. In: Werke.
Kritische Gesamtausgabe, p. 513, em
livre tradução).
[9] Para uma
abordagem que vê a concepção de vontade de potência por Nietzsche, sobretudo em
seu aspecto cosmológico (o outro aspecto seria o psicológico), como
essencialmente um legado schopenhaueriano – abordagem que é, ademais, crítica à
crítica de Nietzsche a Schopenhauer –, cf. SOLL, Schopenhauer as Nietzsche´s ‘Great Teacher’ and ‘Antipode’, p.
177-184, em especial p. 177, 179.
[10] Acerca
do que pode ser entendido como uma triangulação
Schopenhauer – Nietzsche – vontade, Ivan Soll afirma: “It is this Schopenhauerian notion of the will [the
will is the true being of everything in the world] as the primary function of
the mind that underlies Nietzsche´s psychological theory of the will to power
as the deep motivation of all human behavior. But in this as in other matters,
Nietzsche takes an idea from Schopenhauer and adapts it to his own purposes”
(“É essa noção schopenhaueriana da vontade [a vontade como ser verdadeiro de
todas as coisas no mundo] como função primária da mente que subjaz à teoria
psicológica de Nietzsche da vontade de potência como motivação profunda de todo
comportamento humano. Mas nesta como em outras questões, Nietzsche toma uma
ideia de Schopenhauer e a adapta a suas próprias finalidades”) (Idem, p. 179).
[11] Mais
precisamente, Nietzsche ali antevê o que seria “fato último” justamente na
direção da adequação de uma vontade –
mas uma vontade real, plural, individualizada não como princípio metafísico –
nos organismos, que se daria por prazer e desprazer, e sim mais precisamente
como busca do prazer, fuga ao desprazer (cf. 23 [12], final de 1876 – verão de
1877).
[12] Sobre os dois
argumentos que provam a viabilidade da passagem da coisa-em-si à vontade, um em
cada tomo de O mundo como vontade e
representação, cf. JACQUETTE, D. Schopenhauer’s
Proof that Thing-in-Self is Will, p. 65-108.
[13] Tal é a temática
do aforismo 459 de Aurora, onde se
lê: “Rousseau e Schopenhauer – ambos foram orgulhosos o bastante para inscrever
em sua existência esta divisa: vita
impendere vero [consagrar a vida à verdade]. E ambos, também – como devem
ter padecido em seu orgulho, por não conseguirem verum impendere vitæ [consagrar a verdade à vida]! – verum [verdade], como cada um deles
entendeu – por suas vidas terem corrido junto a seu conhecimento, como um baixo
caprichoso, que não quer corresponder à melodia!”.
[14] Cf. SCHENZ,
Erlebnis und Bildung. Die Bedeutung des
Erlebens und des Erlebnisses in Unterrichts- und Erziehungsprozessen, p. 16.
[15] Ibidem.
[16] Cf.
VIESENTEINER, O conceito de vivência
(Erlebnis) em Nietzsche. Gênese, significado e recepção, p. 142.
[17] A referência
aqui é à sua obra Das Erlebnis und die
Dichtung: Lessing, Goethe, Novalis, Hölderlin (A vivência e a poesia: Lessing,
Goethe, Novalis, Hölderlin), publicada em 1906.
[18] Cf.
VIESENTEINER, op. cit., p. 142-143.
[19] E o Nietzsche
que se encontra desde sempre impregnado da recepção dessa noção de vivência
conceberá – e vivenciará – o artístico a mediar conhecimento e vivência, tanto
que em um fragmento póstumo ele afirmará, com relação à experiência estética:
“a tarefa do filósofo é combater todos os elementos temporais de modo
consciente – e para tanto deverá se amparar na tarefa inconsciente da arte” (19 [12], verão de 1872 – início de 1873).
Nessa mesma direção, no ensaio de autocrítica a O nascimento da tragédia ele observará ser o caso de “ver a ciência
com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida...” (GT/NT, Prefácio § 2).
[20] Cf.
VIESENTEINER, op. cit., p. 147.
[21] No capítulo
sobre o Humano, demasiado humano em
seu Ecce homo, Nietzsche afirmará:
“Um erro após o outro [erros referentes à cerrada herança de Richard Wagner e
Schopenhauer, às pretensões românticas e metafísicas] é calmamente colocado no
gelo, o ideal não é refutado – ele congela...” (EH/EH “Humano, demasiado
humano” § 1).
[22] “O que são, então,
nossas vivências? São muito mais aquilo que nelas inserimos do que o que nelas
se acha! Ou deveríamos até dizer que nelas não se acha nada? Que vivenciar [erleben] é inventar?” (M/A § 119; tradução ligeiramente modificada).
[23] “Por mais longe
que alguém leve seu autoconhecimento, nada pode ser mais incompleto do que sua
imagem da totalidade dos impulsos que constituem seu ser. [...] que também
nossos juízos e valorações morais são apenas imagens e fantasias sobre um
processo fisiológico de nós desconhecido, uma espécie de linguagem adquirida
para designar certos estímulos nervosos?” (M/A § 119).
[24] Para referências
pontuais sobre a relação de Nietzsche com a arte, cf. nota 19 supra. Para um
tratamento do modo como o autor do Zaratustra
se vale do fazer artístico para incorporar a tarefa inconsciente da arte em sua
filosofia e, com isso, vivenciar o seu filosofar, cf. KRIEGER, S. O cerne oculto do projeto nietzschiano: logos
versus pathos no ato de filosofar
(seções II.IV a II.XII, cap. II, “Da consciência da metáfora à inconsciência do
conceito”). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Escola de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp) em abril de 2019.
[25] “Quero uma vez
mostrar como a má compreensão da vontade por Schopenhauer é um ‘sinal dos tempos’ – é a reação contra
os tempos napoleônicos, já não se acreditam em heróis, isto é, na força da
vontade” (25 [183], primavera de 1884).
[26] Em outra (e única) ocorrência a associar Schopenhauer
à animalidade, mais precisamente a uma constituição selvagem, o autor de Aurora faz referência a aspectos
biográficos – que em Nietzsche, como sabemos, jamais se resumem ao meramente
biográfico: “uma certa veemente feiura da natureza [de Schopenhauer], em ódio,
cobiça, desconfiança, vaidade, é de constituição um tanto mais selvagem e tinha
tempo e vagar para esta selvageria” (M/A § 481).
[27] Sobre a formação
do pensamento biológico num momento imediatamente anterior a Schopenhauer, ou
seja, em Kant, cf. em toda a sua extensão, MARQUES, U. R. A. (org.) Kant e a biologia. São Paulo:
Barcarolla, 2012.
[28] A outra (e
única) ocorrência a associar Schopenhauer à animalidade (além do fragmento 9
[178], do outono de 1887), mais precisamente a uma “constituição selvagem”,
versa justamente sobre aspectos biográficos – que em Nietzsche, como sabemos,
jamais se resumem ao meramente biográfico: “uma certa veemente feiura da
natureza, em ódio, cobiça, desconfiança, vaidade, é de constituição um tanto mais
selvagem e tinha tempo e vagar para esta selvageria” (M/A § 481).
[29] As restrições
aqui referidas dizem respeito tão-somente ao estágio das diversas ciências em
seu tempo, momento em que estavam “se desprendendo” da filosofia naturalis, uma vez que o interesse de Schopenhauer pelos
vários campos do saber, que logo se tornariam ciências, era quase tão intenso e
devidamente exercido quanto será mais tarde, com as ciências de seu tempo, o de
Nietzsche. A esse respeito, cf. ZAMBONINI, F. Schopenhauer e lascienza moderna discorso
per la solene inaugurazione dell’anno accademico dela Reale Università di
Sassari. Sassari: Tip. Dita G. Dess, 1911. SEGALA, M.
Philosophie de la Nature et
science chez Schopenhauer. In: Schopenhauer – Nouvelles Lectures. Les Études
Philosophiques, p. 389-408 e BOZICKOVIC, V. Schopenhauer on Scientific Knowledge. In: VANDENABEELE, B. A Companion to Schopenhauer, p. 11-24.
[30] “No pano de
fundo da última filosofia a aparecer, a schopenhaueriana, tem-se, quase que
como problema em si, esse pavoroso ponto de interrogação da crise e do
despertar religiosos. Como é possível essa negação da vontade? Como é possível o sagrado? – Essa parece
realmente ter sido a pergunta que Schopenhauer se fez e pela qual se tornou
filósofo” (JGB/BM § 47).