Submissão: 10/09/2019 Aprovação: 10/09/2019
Publicação: 30/09/2019
Interfaces da Filosofia Africana
Filosofar desde os arquipélagos: filosofia afrodiaspórica
como disputa de imaginários
Philosophy from the archipelagos:
afro-diaspora philosophy as a dispute of imaginaries
Luís Carlos Ferreira dos Santos
Doutor em Difusão do
Conhecimento (UFBA); Mestre em Educação (UFBA); Graduado em Filosofia (UFBA); Membro
do Grupo de Pesquisa Rede Africanidades.
Eduardo David de Oliveira
Professor da FACED/UFBA.
Líder do Grupo de Pesquisa Rede Africanidades, Sócio-fundador
do IPAD-Insituto de pesquisa da afrodescendência
e sócio-fundador do IFIL - Insituto
de Filosofia da Libertação e atualmente coordenador da Linha de Pesquisa
Conhecimento e Cultura do Doutorado Multi-institucional,
Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento.
Resumo: O presente trabalho busca disputar
imaginários a partir da compreensão de dois conceitos, arquipélagos e filopoética, em diálogo com o pensamento do ensaísta,
filósofo e poeta Édouard Glissant. Ele é um pensador
do arquipélago e, por isso, do todo-mundo. O pensamento da relação é a resposta
oferecida por ele como caminho de superação e crítica à dominação monocolonialista. A obra de Glissant
envolve tanto uma estética quanto uma política e mobiliza tanto uma filosofia
quanto uma poesia. O diálogo da filosofia e a poesia se dá no intuito do
primeiro criar conceitos e o segundo fecundá-lo de imaginação (filopoética).
Palavra-chave: Filopoética;
Arquipélago; Imaginário; Filosofia afrodiaspórica
Summary: The present work
seeks to dispute imaginaries based on the understanding of two concepts,
archipelagos and filopoetics, in dialogue with the
thought of the essayist, philosopher and poet Édouard Glissant.
He is a thinker of the archipelago and, therefore, of the whole world. The
thought of the relationship is the answer offered by him as a way of overcoming
and criticizing monocolonialist domination. Glissant's work involves both aesthetics and politics and
mobilizes both a philosophy and a poetry. The dialogue of philosophy and poetry
takes place in the intention of the first to create concepts and the second to
fecundate it of imagination (filopoetic).
Key-word: Filopoetic; Archipelago; Imaginary; Afro-Diaspora Philosophy
Introdução
ORÍ
Estar
à deriva
Na
linguagem.
Estar
só
Em
órbita.
Traído
à vista
do
mar: pela origem
a
ponto
de trair
se
tornar
um
verbo
totem.
Esculpido
no
mar
à
revelia
de
ti.[1]
Este artigo busca compreender
a filopoética e o arquipélago presentes no pensamento
de Édouard Glissant, no intuito de defender a filosofia desde o arquipélago como
disputa de imaginários.
Édouard
Glissant nasceu em vinte e um de setembro de 1928, na
Martinica, e faleceu em três de fevereiro de 2011, em Paris. A provocação
realizada pelo pensador dos arquipélagos explode o potencial de imaginação do
seu leitor. A produção do martinicano percorre o exílio e a errância, porque
explode o mesmo, entendido como transparência.
O artigo pretende trazer para o diálogo
o ensaio poético de Glissant O pensamento do tremor [2], Poética da Relação[3] e
o ensaio filosófico Philosophie de la Relation: poésie en étendue[4]. A
discussão da filopoética toma como referência Manuel Norvat em Le Chant du Divers. Introduction à la philopoétique d’Édouard Glissant[5]. O
conceito de filopoética não é cunhado por Glissant, no entanto, percorre seu pensamento.
Édouard Glissant
é um pensador do arquipélago e, por isso, do todo-mundo. A violência do
presente e o choque do passado (monocolonialismo), movimentaram as produções deste
intelectual contemporâneo. O pensamento da relação é a resposta oferecida por Glissant como caminho de superação e crítica à dominação monocolonialista. A perspectiva de crítica à violência monocolonialista é agenciada por meio da relação tanto da
estética quanto da política e mobiliza a filosofia e a poesia.
A estética, a política e a ética, em Glissant, estão na direção da ruptura da identidade raiz, a
qual congela e violenta o diverso. O diálogo se dá na criação de conceitos,
fecundando-o de imaginação (filopoética). A criação
de conceito é um passo necessário no filosofar, mas fecundá-lo de imaginação é
um salto crítico e criativo nos arquipélagos.
A provocação realizada por Glissant estabelece a necessidade de outras paisagens na
lógica de filosofar. A filosofia africana que é múltipla e diversa em sua
abordagem e no seu conteúdo é um leitmotiv para este modo de produzir e
disputar mundos. O movimento unitário e totalitário de defender uma filosofia
universal, sem contexto, tem uma produção de sentido o qual legitima um
imaginário conservador e produtor de necropoder[6]. Ao
partir desde uma filosofia em arquipélagos se tem como princípio o diverso do
mundo, mas reconectado com as suas paisagens, é uma produção filosófica em
relação, na disputa pelo imaginário do mundo.
A guerra dos imaginários é um desejo
obstinado por se reinventar em um país dominado pelo racismo. “Devo me lembrar,
a todo instante, que o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção na
existência”.[7]
Filosofar em
Arquipélagos[8]
O arquipélago é o que possibilita a
multiplicidade, consequentemente, a possiblidade da relação com o “Todo-mundo”.
Para adentrar no entendimento da filopoética é
importante o entendimento do arquipélago, pois este marca
a perspectiva do diverso em sua disputa pela criação dos imaginários.
O arquipélago diferencia-se do conceito de
continente e de ilha, não tem a perspectiva de sínteses impostas como o
continente e tampouco uma ilha isolada, mas um conjunto de ilhas. O arquipélago
evidencia um dos pontos importantes da sua construção poética, filosófica e do
seu engajamento político: o espaço. O arquipélago neste aspecto não tem a
característica do relativismo exacerbado, como a ilha isolada, nem do
totalitarismo, como das sínteses impostas dos continentes. O arquipélago
mobiliza-se pelos contrastes.
Umas das características das ilhas
foram ser marcadas pelo pensamento do continente. A grande extensão dessas
ilhas permitiu as retiradas da luta, os reagrupamentos maciços, tendo como
consequência a emergência de um espírito nacional, o aparecimento de um
campesinato decisivo. A segunda característica do arquipélago caribenho: depois
do massacre generalizados dos seus povos autóctones, os países que o constituem
foram alvo de outras colonizações.
Os arquipélagos são definidos como
estes postos de vigia. Segundo Glissant:
E, se de pé, cada um em uma dessas
ilhas, cada um no seu país, olhamos para o horizonte, vemos não um outro país
apenas, mas o Caribe inteiro, que modifica o nosso olhar e lhe ensina a nada
subestimar desse mundo. [9]
Os arquipélagos, a relação entre eles,
permitem a visão do todo-mundo. Este é a totalidade realizada dos dados
conhecidos e desconhecidos do universo. O todo-mundo é constituído dos
arquipélagos, que por sua vez é formado por paisagens. As paisagens são como
categorias do sendo, conduz para além de si-mesmo e
faz conhecer o que está em nós. As paisagens vivem e morrem em nós e conosco. É
possível você frequentar uma paisagem antes de ter ido a ela.
A discussão do pensamento arquipélago
tem sua contraposição estabelecida pelo pensamento continente, que possui
apenas uma paisagem como imagem. A distinção entre o continente e o arquipélago
se dá na seguinte equação: “O pensamento continental, que desvela em diásporas
os esplendores do Uno. Pensamento arquipelágico, onde
se concentra a infinita variação da diversidade. Mas a aliança entre eles está
ainda por vir”[10].
O pensamento de continente fundamentou
a violência monocolonial e a perpetuação da violência
contemporânea, entretanto, o pensamento de arquipélago estabelece a discussão
acerca da identidade no pensamento de Glissant. A
identidade deixa de ser mera permanência, mas é variável. O pensamento de
identidade enquanto raiz (pensamento continente), forjada no mistério sagrado
da raiz, busca o refúgio generalizante do universal enquanto valor. A identidade
compreendida enquanto sistema de relação (pensamento arquipélago), como “dar-se
com”, entende-se como, inversamente, uma forma de violência que contesta o
universal generalizante e que tanto mais requer a severa exigência das
especificidades.
A outra
possibilidade é a identidade-relação (pensamento arquipélago). Ela não está
ligada a uma criação do mundo, mas a vivência contraditória e consciente dos
contatos entre culturas. A identidade constitui-se na trama caótica da relação,
e se afasta da violência oculta da filiação e da lógica da legitimidade. Não
concebe a terra como um território, de onde se projete para outros territórios,
mas um lugar onde as pessoas se dão em vez de se compreenderem. A
identidade-relação exulta no pensamento da errância e da totalidade.
A identidade-raiz (pensamento
continente) desenraizou o sagrado com o massacre das comunidades tradicionais.
A partir dessa experiência a terra das Antilhas não podia tornar-se território,
mas sim terra rizomada, errante. Segundo Glissant:
Enquanto absoluto enraizado, a terra da
Martinica não pertence nem aos descendentes dos africanos deportados, nem aos békés, nem aos hindus, nem aos mulatos. Mas aquilo que era
consequência da expansão europeia (o extermínio dos pré-colombianos, a
importação de população novas) é precisamente aquilo que funda uma nova relação
com a terra: não o absoluto sacralizado de uma posse ontológica, mas a
cumplicidade relacional.[11]
Glissant é um
autor que percorre as circunstâncias do mundo. E um dos conceitos apresentados
que sustenta o movimento do arquipélago é a crioulização,
o qual foge da noção de filiação e se aproxima da cumplicidade relacional. A crioulização é imprevisível, de acordo com Desportes, pois
ela dialoga com o princípio da incerteza de Heisenberg e com a errância
negro-africana, a fim de produzir o entendimento e a imagem da crioulização: “Si Glissant se montre aussi attentif
à la relation d’incertitude de Heinsenberg, dont il se sert
pour assurer le caractere d’imprévisibilité de
la créolisation”[12]. É
importante para o entendimento do pensamento do arquipélago a imagem da crioulização.
Os arquipélagos são imprevisíveis,
heterogêneos, diversos. Os arquipélagos são lugares que se encontram por meio
de múltiplas territorialidades, se interconectam sem a necessidade de códigos.
São compostos de imaginários que atravessaram os oceanos. E esta multiplicidade
de imaginários corresponde ao tremor imprevisível do todo-o-mundo.
O pensamento do arquipélago é engajado
na diversidade originária, na crítica a genealogia e na multiplicidade comum. Glissant deslocou a perspectiva conceitual da ontologia da
identidade. A ontologia da relação agora é a política do futuro, no pensamento
de Glissant. E o arquipélago é fundamental para este
entendimento, uma vez que ele não é simplesmente o espaço, pois primeiro é
imaginário. Nesse sentido, a filosofia do arquipélago está inscrita na
estética. O que mobiliza o pensamento no entendimento do arquipélago também é a
paisagem.
As paisagens, no pensamento de Glissant, caracterizam a geopoética,
isto é, uma poética do lugar, a cultura como localização que singulariza o
lugar e possibilita o diálogo com o todo-mundo. No arquipélago está presente a
discussão do território e do espaço.
O espaço da Martinica, assim como o
brasileiro, é constituído de territórios. E, neste sentido, a produção
literária, desde o arquipélago, consiste em inventar um povo que falta. A
invenção difere da criação “na medida em que ela acrescenta ao criado uma
intenção manifesta, um verdadeiro prolongamento de natureza, de certa forma um
futuro incluído no presente”[13]. O povo
inventado é sempre um devir povo. E esta invenção é o que falta à
totalidade-mundo. O arquipélago é uma das possiblidades de diálogo com o
Todo-o-mundo por ser um espaço constituído de narrativas, histórias e culturas.
O arquipélago instaura a relação.
A relação não é sinônima de diluição e
de ausência de agenciamentos. A filopoética da
relação é o acontecimento do Todo-mundo. Este é o lugar da relação entre as
zonas de vizinhanças, esta é um estado permanente e indiferenciado. A
vizinhança é o lugar indefectível, ou incontornável e aberto. O Todo-o-mundo é
“essa abertura, de lugar em lugar, todos igualmente legitimados, e cada um
deles em vida e conexão com todos os outros, e nenhum deles redutível ao que
quer que seja, é o que informa o Todo-o-Mundo”[14].
O Todo-o-Mundo é o lugar de uma
realidade em processo, a crioulização. Há um
processamento das contrações de espaços e as precipitações de tempo e, por
isso, os resultados são inesperados. Na discussão acerca do inesperado, Glissant encontra o diálogo com a filosofia, a arte e a
literatura. Ele dialoga com Gilles Deleuze, sobre essa relação, pois não há
mais urgência em delimitar estruturas onde nos é dado explorar processos.
A exploração dos processos, no que
tange as abordagens do ser e do sendo, ou em detectar o real, significa aceitar
um inaceitável, e isso é pensar, aprender a pensar o imprevisível. As opiniões
de Deleuze e Guattari, por mais que sejam marginalizadas, constroem o corpo
fluente de novas poéticas. Glissant questiona o que
seria essa totalidade, o processo é ininterrupto. A intuição da multiplicidade,
em Deleuze e Guattari, passa por indivíduos e especificidades. Nesse entido, “O rizoma é uma rede, uma alquimia também”[15].
Filopoética[16]
O
encontro entre a filosofia e a poética, a qual denominamos de filopoética, é o lugar da renovação do imaginário. É a
possiblidade do nascimento de outros imaginários, é a “recusa em morrer”[17].
A
filopoética, na sua relação paradoxal, tem a
característica de se aproximar do todo, mas no mesmo instante se afasta das
visões globais. É o diverso que lança a vertigem das multiplicidades, mas com a
imagem do horizonte.
A
filopoética busca reconstruir a memória. É uma
poética histórica de disputa do imaginário. A memória e o esquecimento fazem
parte do mesmo imaginário, por isso, a filopoética é
um modo de imaginar e de acessar o imaginário do pensamento-mundo.
O
imaginário dos povos caracterizados pela violência da colonização, a qual
perpetua nos dias atuais pelo signo da necropolítica,
é alimentado por alienações concretas. Na leitura de Jaime Amparo:
De acordo
com Mbembe, a articulação entre velhas e novas formas
de dominação está fazendo surgir uma nova forma de governamentalidade
cuja característica principal é a sujeição da vida ao poder máximo da morte.
Neste contexto de necropoder, alguns territórios
ambientam a “topografia da crueldade” e algumas populações figuram como os
marcados incondicionalmente como passíveis de serem mortos. Neste novo
paradigma, a distribuição calculada da morte é o que configura a (necro)política moderna[18].
A
necropolítica é uma expressão do imaginário. As
instituições se mobilizam em relação com os imaginários. Neste aspecto, a filopoética é uma postura de crítica ao imaginário racista.
A importância de se produzir um pensamento afastado da perspectiva do
imaginário da violência do racismo tem uma intenção ética.
O racismo é uma ferramenta de muita
importância no regime necropolítico, na medida em que
cria uma relação sem desejo. Na órbita do discurso da política de morte tem o
terror e o horror como leitmotiv: o terror tem como objetivo construir o
colapso na sociedade de direito, descontruindo as fontes das comunidades
democráticas. Entretanto, o combate ao terror, às práticas anti-terrorista,
constrói nas sociedades o estado de exceção, eles “conseguem combater inimigos
sobre os quais a violência do Estado deveria poder desabar, sem qualquer
restrição”[19].
A
crítica a violência do racismo se dá por meio do conteúdo e da forma. A
concepção plural dos gêneros, tais como, poesia, ensaio e romance enfatiza a
característica do diverso na forma a qual Glissant
mobiliza seu pensamento. A crítica ao pensamento colonial tem que ser além do
conteúdo, deve ser feita também a partir da forma. Segundo Norvat:
C’est que Glissant fait irruption dans la modernité
littéraire. L’inclassable de as philopoétique (une posture dite
“postcoloniale”) lui fait considérer les mentions “roman” ou “poésie” sur les couvertures
de ses livres comme pures conventions éditoriales qu’il n’a de cesse de
renverser de l’intérieur; ce qui ne signifie pas pur autant qu’il soit
complètement em dehors des problématiques ou états d’âme des écrivains de son
temps: ceux du nouveau roman, de Butor, de Ponge, voire du “sistème” Sollers,
par exemple[20].
A
crítica à violência epistêmica[21]
se dá de maneira efetiva através da forma, não apenas do conteúdo. O obstinado
desejo da filosofia, dita universal, sem contexto e sem corpo, se dá em produzir
uma filosofia que tenha como sentido um sonho enganador, o universal, sem
paisagem, como isca. Deste modo, construindo um único imaginário, na lógica da
aniquilação da alteridade.
A
filopoética não é compreendida como uma essência, mas
como uma atividade. O ser humano é caracterizado em sua história universal,
enquanto na poesia é o lugar do ser humano concreto e individual. A relação
entre os paradoxos, não na tentativa de resolvê-los, mas de relacioná-los:
unidade e multiplicidade, estrutura e singularidade, universal e contexto. A
filósofa Maria Zambrano problematiza a relação da
filosofia com a poesia:
La poesia perseguia, entre tanto, la multiplicidade
deñada, la menospreciada heterogeneidade. El poeta
enamorado de las coisas se apega a ellas, a cada uma de ellas y las sigue a través del labirinto del tempo,
del cambio, ain poder renunciar a nada: ni a uma criatura ni aun instante e esa criatura, ni a uma partícula de la atmosfera que la envuelve, ni a um matiz de la atmosfera que la envuelve, ni a um matiz de la sombra que arroja, ni del perfume que
expande, ni del fantasma que ya em ausência suscita.
? Es que acaso al poeta no e importa la unidad? ? Es que se queda apegado vagabundamente-
inmoralmente a la multiplicidade aparente, por
desgana y pereza, por falta de ímpetu ascético para perseguir es amada del
filósofo: la unidad?[22]
A
filosofia e a poesia trazem o conflito da heterogeneidade com a unidade. A
filosofia tem o desejo obstinado da unidade, esta é a característica da dita
violência filosófica. Enquanto o filósofo busca o uno, o poeta deseja a
heterogeneidade. O poeta busca cada coisa em sua restrição. O poeta não tem
como característica o obstinado desejo da questão conceitual do pensamento, mas
a coisa inventada, sonhada, o que existe e o que não existe. A unidade presente na poesia é elástica. Ainda em
diálogo com Zambrano, “Por eso la unidad a que el
poeta aspira está tan lejos de la unidad hacia la que se lanza el filósofo. El
filósofo quiere lo uno, sin más, por encima de todo”[23].
O
filósofo não abre mão da verdade, enquanto o poeta não crer na verdade, não
nessa verdade da filosofia moderna ocidental, a qual estabelece a dicotomia da
verdade e do engano, das coisas que são e as que não são. A verdade do poeta
não é fundamentada no todo. O poeta tem sua verdade, mas não a verdade que cria
a exclusão e persiste na dominação.
A
filosofia consistiria na disputa pela verdade e pela unidade[24].
Sendo assim, a filosofia teria a unidade, a verdade e a ética. A ética pelo
fato de ser esse encontro com o todo, a unidade, o universal. Todavia, o poeta
não teria método nem ética. Pelo fato da poesia está acolhida pela
multiplicidade e heterogeneidade.
Pode-se inferir que pensar na tensão da
filopoética é
estar imerso no imprevisível e no diverso utópico dos povos por vir. A filopoética
é a utopia. Ela traz o entendimento de um conhecimento forjado pelas suas
paisagens, pelo tremor e trepidação do mundo. Segundo Norvat[25],
a filopoética de Glissant é
a tradução do seu perspectivismo, este é “um relativisme
qui met em perspective toute pensée, tout sustème de pensée par rapport aux autres
doctrines concorrentes”[26].
Pode-se
inferir que pensar na tensão da filopoética é ser
imerso no imprevisível e no diverso utópico dos povos por vir. Na noção filopoética
não se estabelece uma tensão entre a filosofia e a poesia.
La poétique de la relation est toujours ainsi une
philosophie, et inversement: eles se préservent mutuellement des fausses
finalités. Alors nous découvrons émerveillés que la langue des philosphies est
d’abord celle du poème.[27]
O
meio de expressão da filosofia é primeiro o do poema. A filopoética
navega entre a visibilidade e o obscuro. A filosofia é uma poética. A poética
acessa a verdade por meio do barulhamento e
trepidação do mundo.
A
filosofia é uma poética, porque é com a poética que se é possível acessar a
diversidade infinita, a qual pode-se imaginar como unidade. A filopoética é o canto do diverso nos arquipélagos, a recusa
aos sistemas pretensamente universais, que se apresentam sem contextos. Por
isso, este pensamento segue na contramão da visão totalizante. Neste aspecto, o
diverso é uma constante nesta perspectiva. O diverso em constante relação. O
diverso não é o mesmo que estéril, ele significa uma relação transversal e não
tem a transcendência universalista.
O
diverso, a mundialidade, é uma categoria muito
presente no entendimento da filopoética. No
pensamento de Glissant, se relaciona a ciência e o
sonho, a ficção e a utopia, o imaginário e o real. É a característica de um
pensamento crioulo. A crioulização acolhe o paradoxo,
não busca uma síntese entre o imaginário e o real ou a ciência e o sonho. Os
elementos diversos são colocados em relação. Esta é a quantidade infinita
de todas as particularidades do mundo. Neste sentido, a relação pode ser
entendida como uma forma de universal que, no entanto, não busca a monotonia do
mundo, que seria a mundialização, caracterizado como antidiverso.
É um universal diverso, a mundialidade. No entanto, o combate a mundialização
não se dá pela troca da palavra, mundialidade, mas
pelo imaginário.
A
mundialidade pode ser vista com a imaginação,
entretanto, essa nova região do mundo,
o todo-mundo, sempre escapa e se afasta. Mas um dos modos de conceber a
totalidade-mundo é pelo imaginário, pois ele cria a realidade dos arquipélagos
e das paisagens. E esta criatividade não busca verdade do todo, pois “rien n’est vrait tout
est vivant”[28].
O que é vivo mobiliza o ato poético e o ato político. A beleza que falta à vida
convida o filósofo a uma viagem solitária (solidão existencial) e uma
mobilização solidária do mundo (solidariedade poética).
A
crítica e superação da violência, não se dará apenas produzindo conceito ou
mudando os conteúdos. Criar conceitos, isso é necessário e urgente, todavia,
além de criar conceitos, criar mundos, há de fecundá-los com a imaginação.
Desta maneira, não se pensa apenas o mundo, mas se vive, experimenta ele e
sente suas fragilidades.
A
filosofia afro-diaspórica, na perspectiva do arquipélago e da filopoética, se caracteriza pelas alianças entre os
diversos saberes. A filosofia não operaria como filiação, mas em relação com a
literatura, educação, história, arte, geografia. Um outro aspecto é uma
filosofia com o pensamento contextualizado. E a paisagem que totaliza a imagem
dos arquipélagos diaspórico é o racismo. Filosofar desde os arquipélagos é um
convite para uma luta contra as violências.
Conclusão
A
relação entre a filosofia e a poesia provocam novas figuras do imaginário.
Entretanto, essas figuras imaginárias são construídas a partir da imagem
(paisagem) e do conceito. A paisagem (imagem) é papel da poesia, enquanto o
conceito da filosofia. Todavia, o mundo não se encontra por inteiro no conceito
ou na imagem (paisagem). É necessário esse encontro paradoxal do universal com
o particular para a instauração da inovação, do mesmo e do diverso, da
inventividade, da beleza, da raiva e da busca pela floresta imaginária de
resistência.
É
importante não perder o destaque de que a poesia é a fonte de engajamento
político do filósofo Glissant. A poesia é revolta e
raiva. A poética é ao mesmo tempo a filosofia. O logos e o pathos estão relacionados, não estão dicotomizados. Entre a filosofia e poesia está a intenção
ética deste trabalho, é o lugar da deriva, no nascedouro do inominável,
inclassificável, da vertigem, da solidão, do desvio e da insurreição do
imaginário.
O imaginário do racismo é uma fonte de
muita importância para a atuação da violência. A perspectiva de raça sempre foi
muito viva no pensamento ocidental. E o racismo retira os grupos humanos
subjugados da partilha comum da humanidade, do Todo-o-mundo. A raça sempre
atuou como uma imagem de muita força na filosofia política ocidental,
precisamente no exercício do imaginário de desumanização e tiranização
das populações fora do espaço ocidentalizado. Portanto, o imaginário forjado
desde a filopoética segue no caminho de produção de
imaginários de resistência da política de morte.
A guerra é em torno da disputa de
paisagens. É uma guerra de imaginários. Para isso, busca o diálogo com os
arquipélagos, as paisagens, os contextos e imagens de cada lugar com pretensões
de relacionar-se com o todo-mundo.
Filosofar
desde os arquipélagos impõem como exercício descolonial
“estar à deriva na linguagem”, como afirmou o poeta Edmilson Pereira[29],
por isso filopoética. A superação da violência se
dará pela crítica dos conteúdos, mas pela reinvenção das formas. Os
arquipélagos afrodescendentes podem ser interpretados como “índice de culturas
em movimento”[30].
E
a partir desses índices se mobilizam uma cultura de vida contra a política de
morte. A disputa pelo imaginário é um movimento importante para a manutenção da
vida dos afrodescendentes.
O
discurso sobre a origem, a pureza e a mistura todos são articuladores das
experiências afrodescendente no Brasil. No entanto, como disse o poeta
Edimilson Almeida Pereira, “Traído à vista do mar: pela origem. E o movimento
de inversão se torna algo necessário e suficiente para continuar vivo, a ponto
de trair se tornar um verbo totem”[31].
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ZAMBRANO, Maria. Filosofia y poesia. Mexico:
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[1]
PEREIRA, E, p.11.
[2] GLISSANT, O pensamento do tremor. La cohée du Lamentin, 2014.
[3] GLISSANT, Poética da Relação, 2011.
[4] GLISSANT, Philosophie de la Relation: poésie en étendue, 2009.
[5] NORVAT, Le Chant du Divers. Introduction à la philopoétique
d’Édouard Glissant, 2015.
[6] MBEMBE, Necropolítica, 2018.
[7]
FANON, Pele
Negra, Máscara Brancas,
p.189.
[8] O conceito de
arquipélago é cunhado nas obras de Édouard Glissant na contraposição ao
conceito de continente. O arquipélago estabelece o diverso enquanto o
continente determina a unidade redutora.
[9]
GLISSANT, O
pensamento do tremor. La cohée du Lamentin, p. 89.
[10]
Ibidem, p.
219.
[11]
GLISSANT, Poética
da Relação, p.
142.
[12] DESPORTES, La paraphilosophie D’Édouard Glissant, p. 19.
[13] GLISSANT, O pensamento do tremor. La cohée du Lamentin, p. 135.
[14]
Ibidem, p.
136.
[15] Ibidem, p. 139.
[16] A discussão da
filopoética no trabalho de Glissant está em diálogo com Manuel Norvat. Ver NORVAT, Le Chant du Divers. Introduction à la
philopoétique d’Édouard Glissant,
2015.
[17] Referência ao livro de
Achille Mbemb. Ver MBEMBE, África
Insubmissa. Cristianismo, Poder e Estado na sociedade pós-colonial, 2013.
[18] AMPARO, Necropolítica racial: a produção espacial da morte na cidade de São Paulo, p. 6.
[19] MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 58.
[20] NORVAT, Manuel, Le Chant du Divers. Introduction à la
philopoétique d’Édouard Glissant, p. 158.
[21] Alusão ao livro de
Santiago Castro-Gómez. Ver CASTRO-GÓMEZ, Critica de la razón latino Americana,
2011.
[22] ZAMBRANO, Filosofia y poesia, p. 19.
[23] Ibidem, p. 24.
[24] Ibidem.
[25] NORVAT, Manuel, Le Chant du Divers. Introduction à la philopoétique
d’Édouard Glissant, 2015.
[26] Ibidem, p. 13.
[27] GLISSANT, Philosophie
de la Relation: poésie en étendue, p. 87.
[28] GLISSANT, Philosophie de la Relation: poésie en étendue, p. 106.
[29] PEREIRA, E, p. 11.
[30] Ibidem, p. 77.
[31] Ibidem, p. 11.