Submissão: 10/09/2019 Aprovação:
10/09/2019 Publicação: 30/09/2019
Interfaces da Filosofia
Africana
A necropolítica
na eminência do devir-negro do mundo
The necropolitics in the eminence of the world's becoming-black
Renato Noguera
Doutor
em Filosofia, professor associado da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ), titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil).
Rogério Luis
Seixas
Doutor em Filosofia pela UFRJ, Pesquisador do Grupo
AFROSIN/UFRRJ.
Brunior Francisco Alves
Graduado
em Relações Internacionais e Mestre em Filosofia pela UFRRJ.
Resumo: A globalização atual trouxe uma infinidade
de novos recursos tecnológicos e possibilidades para a realização de uma novo e
tão esperado sonho de humanidade livre de todas as mazelas. Porém, como podemos
notar, o mundo contemporâneo tem se mostrado, ao invés disso, uma máquina
perversa de distribuição global das desigualdades, principalmente raciais anti-negros. Será por meio das críticas, conceitos e
reflexões de Mbembe, Foucault e Agamben
que buscaremos caracterizar esse mundo racistamente
estruturado, desde a biopolítica,
passando pela ideia de soberania e
instituição da necropolítica, até as atuais possibilidades de um devir-negro do mundo.
Palavras-chave: Necropolítica;
Biopolítica; Devir-negro do mundo; Soberania
Abstract: Today’s globalization has brought a myriad of new
technological resources and possibilities for the realization of a new and
long-awaited dream of humanity free from all ills. However, as we can see, the
contemporary world has shown itself instead to be a perverse machine of global
distribution of inequalities, especially racial anti-blacks. It is through the
critiques, concepts and reflections of Mbembe,
Foucault and Agamben that we seek to characterize this racistly
structured world, from biopolitics through
the idea of sovereignty and the
institution of necropoly, to the present possibilities of a becoming-black of the world.
Key words: Necropolitics;
Biopolitics; Becoming-black of the world; Sovereignty
Introdução:
a natureza da democracia e da globalização
A ideia moderna da democracia, tal como o
próprio liberalismo, é, portanto, inseparável do projeto de globalização
comercial, do qual a plantação e a colônia são o epicentro. Ora, sabemos que
tanto a plantação como a colônia foram originariamente dispositivos raciais num
cálculo geral sustentado pela relação de troca baseada na propriedade e no lucro[1].
No mundo contemporâneo, a ideia de democracia está
estritamente ligada ao projeto de globalização. Será somente por meio da
assimilação de sistemas democráticos por parte dos Estados que todas as
dimensões sociais trazidas pela globalização, sejam elas positivas ou
negativas, poderão atingir seu nível máximo de disseminação mundial. A questão
emblemática é quanto a constatação das características racistas que tal modelo
apresenta. Baseada nas relações de trocas organizadas dentro da lógica da
propriedade e do lucro. A globalização atualiza os meios de produção e,
principalmente, os dispositivos raciais herdados do regime escravocrata de
plantações e colônias.
Achille Mbembe
é o autor da citação acima que se encontra na recente obra Crítica da razão negra[2].
Em poucas palavras, o autor já evidencia sua crítica em relação à globalização,
à democracia e suas características racistas. Alimentados por um falso discurso
de liberdade, Mbembe, critica a sociedade em que
vivemos por pregar a democracia, mas que é, na realidade, essencialmente
escravagista.
Mbembe anuncia a eminência de um
fenômeno social, o qual chama de “devir-negro do mundo”, entendido, em poucas
palavras, como a generalização das condições escravistas a todas as demais raças,
outrora exclusivas para negros. O conceito de “devir negro do mundo” e as
críticas raciais de Achille Mbembe
nos servirão como paradigma e, somadas à Michel Foucault, Giorgio Agamben, Franz Fanon, Hannah
Arendt, Friedrich Hegel, Thomas Hobbes e Abdias do Nascimento, como referência
nas reflexões a respeito do mundo de hoje organizado a partir da biopolítica,
da ideia de soberania, do biopoder transmutado em necropoder,
do direito de morte na “necropolítica” e do próprio
“devir-negro do mundo”.
Aspectos
da biopolítica
Achille Mbembe
é, sem dúvida, um dos maiores expoentes da filosofia contemporânea. A sua
crítica à racionalidade política, com destaque ao que passou a denominar de
“razão negra”, não pode ser entendida separadamente de um vasto debate acerca
dos procedimentos e princípios filosóficos que asseguram um modelo dominante
dessa mesma racionalidade política. Mbembe não deixa
de estar em diálogo com pensadores como Thomas Hobbes, George Hegel, Sigmund
Freud, Michel Foucault, Franz Fanon, Giorgio Agamben, dentre outros. Um dos desafios mbembeanos
é analisar a biopolítica, apresentando seus limites e os mecanismos da
racionalidade política. Afinal, a racionalidade política do Ocidente e, em
certa medida do mundo globalizado, está acompanhada por conhecimentos técnicos
e científicos que, paradoxalmente têm realizado as mais diversas formas de
crimes e genocídios em massa e escalas diferentes, não obstante às livres de
reflexão e contestações críticas. Nesse contexto, as estratégias de uma
racionalidade biopolítica foram embasadas em diversas formas de discursos e
saberes, percorrendo os mais variados campos de intervenção social, tais como o
jurídico e o setor de saúde. Essa racionalidade funciona como forma de
controle, de exclusão e eliminação.
Hegel, por sua vez, assumiu um ponto cego, ou ainda, uma
falha no projeto “perfeito” da realização do Espírito Absoluto na vida política
do Ocidente. Para o filósofo alemão[3], a racionalidade política
deve “abandonar os pobres ao seu destino e entregá-los à mendicidade pública”.
Enquanto Mbembe vem, reinterpreta e ressalta que, no
contexto neoliberal, tal abandono tem uma lógica racista anti-negra
– assunto que voltaremos adiante. Para o momento, uma incursão na filosofia
foucaultiana talvez seja um ponto de partida razoável para entendermos o
projeto biopolítico da modernidade e, adiante,
vislumbrar outras contribuições.
Michel Foucault, em “É
preciso defender a sociedade”[4],
aponta uma transformação jurídico-política importante que se inicia nos séculos
XVII e XVIII, intensificando-se e se estabelecendo de forma definitiva no
século XIX. Acontecimento
político que marca uma profunda mudança nos mecanismos de poder, qual seja,
junto ao antigo direito do monarca de causar a morte e deixar viver, ocorre na
modernidade a inversão deste direito, passando-se a fazer viver e deixar
morrer. Segundo Foucault[5], “o direito de morte tenderá a se deslocar
ou pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se
ordenar em função dos seus reclamos”. Note-se como que a noção de gestão da
vida aparece nessa inversão do poder soberano, dado que agora, o exercício de
poder se situa ao nível da vida e não mais relacionado, primordialmente, à
morte. Conforme o próprio Foucault[6], “pode-se dizer que esta nova tecnologia de
poder, é cada vez menos de o direito de dar a morte e cada vez mais o direito
de intervir para fazer viver. Desta forma, velho direito de causar a morte ou
deixar viver, foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver a
morte”.
O biopoder surge como suas
novas técnicas que nem por isso excluem, de modo nenhum, a disciplina. Essa
apenas passa a ser exercida em outro nível e escala diferentes, apresentando
instrumentos e saberes totalmente diferentes das práticas da anatomopolítica disciplinar. Enquanto a disciplina se
aplica sobre o homem-corpo, o biopoder possui, por sua vez, o homem-espécie
como objeto de suas práticas – dirige-se ao homem enquanto ser vivo, o qual
precisa ser gestado como uma biopolítica da espécie humana. Esses dois polos se
entrelaçam para constituir a biopolítica da população.
Por sua vez, pode se
entender o surgimento da biopolítica “como a maneira de se tentar lidar, a
partir do século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática
governamental pelos fenômenos próprios a um conjunto de viventes constituídos
em população”[7]. Este novo elemento denominado como
população, passa a ser visto como problema político. Obtém-se, portanto, como
instrumentos de conhecimento, os processos de natalidade, mortalidade e
longevidade. O mapeamento de toda uma dinâmica de vida e morte do homem.
Evidentemente, incluem-se as inerências que as doenças impõem, diminuindo a
força de produção e causando despesas. Sintomaticamente surge outro aspecto de
intervenção da biopolítica: se, por um lado, a doença revela uma baixa na
produção e despesas com tratamento, por outro, a velhice revela que o indivíduo
não mais constitui capacidade de produção. Nesse instante, aqueles saberes
acerca de natalidade, mortalidade e longevidade, transformam-se em instrumentos
de gestão. É importante salientar que, ao se levar em consideração o fator
biológico humano, eleva-se a necessidade de conhecê-lo melhor. Quanto mais conhecido,
melhor para modificá-lo, transformá-lo, manejá-lo.
Destacamos aqui outro ponto central para a nossa
reflexão: a normalização biopolítica exercita-se visualizando, classificando e
decidindo o que é normal ou não. Ou ainda se poderia até mesmo avaliar sobre o
que vale a pena fazer viver ou deixar morrer. Segundo Giorgio Agamben, através da biopolítica pode-se determinar o que é
normalmente humano e o que não é, o que pode contribuir para o fortalecimento
da espécie ou afetar de modo nocivo. Este autor destaca que, na política
ocidental, as decisões impostas no princípio de qualquer exercício de governamentalidade política estão sempre direcionadas sobre
a vida. Sendo assim, afirma Agamben que “o conflito
político decisivo, que governa todo outro conflito é, na nossa cultura, aquele
entre a animalidade e a humanidade do homem. A política ocidental é, portanto, co-originariamente biopolítica”[8]. Esse autor também aponta
que na dinâmica biopolítica descrita por Foucault, no exercício de poder viver
e deixar morrer, se pode inserir outra formulação que descreva mais
acertadamente a biopolítica exercida pelo racismo estatal no século XX: não
mais fazer morrer nem fazer viver, mas sim “fazer sobreviver”. E é nessa
condição de sobreviver que a espécie humana se animaliza e passa a apresentar
uma condição de vida despolitizada e desprovida de direitos básicos. Essa é uma
percepção de Agamben e que ele denominará nuta vida.
Numa remissão aos gregos e dialogando com Foucault e com
a filósofa alemã Hannah Arendt, Agamben postula que a
biopolítica se converte numa tanatopolítica. É a
partir dessa ideia que o filósofo italiano situa dois registros para pensar a
vida: zoé e bíos. Agamben
lança mão do contexto cultural da Grécia antiga, onde zoé remete à vida natural, o simples viver indiferenciado comum a
todos viventes: animais, animais humanos e divindades. Por sua vez, o caso de bíos estamos
diante de uma leitura que remete aos escritos de Platão e Aristóteles
interpelados por Arendt. Na Grécia antiga, a vida qualificada era bíos. Agamben ressalta um fenômeno decisivo: “o ingresso da zoé na esfera da polis, a politização a vida nua como
tal constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformação
radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico”[9]. Diferente de Foucault,
para Agamben a biopolítica é a marca fundamental de
toda política praticada no Ocidente e não poderia, de forma nenhuma, estar
restrita às transformações políticas europeias dos séculos XVIII e XIX. Por
este motivo, ocorre a inclusão dos conceitos de “vida nua (zoé)”
e o de homo sacer (matabilidade
e insacrificabilidade).
Apesar de uma sumária apresentação que situa alguns
aspectos distintos entre Foucault e Agamben em
relação às concepções de biopolítica, é importante destacar que ambos não
dispensam atenção ao fenômeno da escravização negra e do genocídio dos povos
originários da América. Enquanto Foucault trata do racismo no contexto do
biopoder, Agamben não deixa de trazer luzes sobre uma
“raça matável”. Porém, há de se observar que nenhum
dos dois trabalha as tecnologias políticas nas relações entre Europa e outros
continentes. Caberá ao filósofo camaronês, Achille Mbembe, trazer, por meio da “razão negra”, tal reflexão
crítica intercontinental para a discussão da biopolítica. Por “razão negra” se
deve entender: uma série de discursos e práticas articuladamente engendrados
para fazer valer algo que a racionalidade política moderna não poderia incluir
na cidadania ou na vida qualificada. Como acrescenta o próprio Mbembe:
Por
este termo ambíguo e polêmico, designamos várias coisas ao mesmo tempo: imagens
do saber; um modelo de exploração e depredação; um paradigma da submissão e das
modalidades da sua superação, e, por fim, um complexo psiconírico.
Esta espécie de enorme jaula, na verdade uma complexa rede de desdobramentos,
de incertezas e de equívocos, tem a raça como enquadramento.[10]
A questão da soberania
O filósofo inglês Thomas Hobbes consagrou a fórmula
moderna ao afirmar que o poder soberano é resultado de um contrato estabelecido
entre todos integrantes de uma sociedade. Em suma, trata-se de um acordo
coletivo que transfere o poder igualitário de todas as pessoas para entidade
centralizada que se torna politicamente autorizada a decidir em nome de todos.
Por sua vez, ao entender que a questão da soberania
sempre esteve muito atrelada à dimensão do direito, Michel Foucault propõe um
deslocamento e recoloca o problema fora do terreno jurídico. Nesse Sentido,
Foucault afirma que “Por longo tempo um dos privilégios característicos do
poder soberano foi o direito de vida e de morte”[11].Foi preciso deslocar a
soberania do contexto da teoria clássica. A partir dessa mudança, Foucault
ressalta o caráter difuso do poder:
O
poder não existe. Quero dizer o seguinte: a ideia de que existe, em um
determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me
parece baseada em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um
número considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações,
mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado,
mais ou menos coordenado. Portanto, o problema não é de construir uma teoria do
coordenado. Portanto, o problema não é de construir uma teoria do poder.[12]
Com isso, Foucault contribui para uma perspectiva mais
ampla do poder, deixando de lado a hipótese repressiva, ou ainda, diminuindo o
seu alcance. Esse aspecto do poder favorecer a compreensão da biopolítica e do
biopoder – como veremos adiante. e, em certa medida, contribuir para as
considerações de Agamben que ressaltam um paradoxo
radical em relação ao poder soberano. O debate da perspectiva agambeniana surge para confrontar o paradoxo do poder
soberano, de modo que o filósofo italiano traz o Estado de exceção como uma
dimensão da soberania.
Com
referência ao Estado de exceção, Mbembe destaca, no
capítulo do ensaio Necropolítica
intitulado “Política, o trabalho da morte e o devir sujeito”, o seu uso em
discussões envolvendo as experiências dos regimes totalitários e os campos de
extermínio. Observe-se que o pensador camaronês propõe que “a Modernidade
sempre esteve nas origens de diferentes e diversificados conceitos de soberania
e, por conseguinte, embasando-se na prática da biopolítica”[13] não se limitando ao acontecimento do
extermínio judeu e dos governos totalitários.
Quando Mbembe estuda os regimes
pós-coloniais africanos, de saída, já aponta para uma relação direta entre
soberania e propriedade. Em termos simples seria o desmonte da coisa pública em
função da coisa privada para que a gestão dos meios que garantem aquilo que –
nos termos de Foucault em “Em defesa da sociedade” – fazem o corte entre o que
deve viver e morrer estejam ligadas a interesses econômicos e não de bem-estar
geral.
Achille Mbembe apresenta a
ideia de que o sentido de soberania ganha sua expressão máxima no poder e na
capacidade do soberano decidir quem deve morrer e quem pode viver - Questão que
trataremos mais adiante.
Em vez de considerar a razão a verdade do
sujeito, podemos olhar para outras categorias fundadoras menos abstratas e mais
palpáveis, tais como a vida e a morte”[14]. Ao esclarecer sobre um
dos seus principais objetivos, Mbembe afirma que sua
preocupação não se direciona as formas de soberania, cujo projeto central é a
luta pela autonomia dos indivíduos, mas sim “a instrumentalização generalizada
da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”[15].
Sem dúvida, além
de manter um diálogo estreito com Foucault e, em certa medida, com Agamben, não é exagero situar Achille
Mbembe como um discípulo de Frantz Fanon. O filósofo camaronês é interlocutor do debate
filosófico de descolonização, das incursões críticas que reinterpretam o
pensamento hegeliano e a psicanálise dentro de uma perspectiva de combate ao
racismo. É a partir dessa perspectiva mbembeana, que
Noguera relaciona a crítica de Mbembe em relação à
derrocada da Europa com os mesmos pensamentos descentralizadores herdados de Fanon:
Em Os
condenados da terra, Fanon ensina que a centralidade
europeia em nome de um projeto de emancipação da humanidade trai a si mesma. A
Europa propôs a “libertação do mundo”, mas condenou a si e a todos, à medida
que se enredou num fundamentalismo perigoso e narcísico que só reconhece um
modelo civilizatório. O Mbembe segue na trilha fanoniana, a Europa está em declínio e não pode mais
arvorar-se como centro de gravidade do mundo. O seu projeto de integração.
fracassou quando o quesito é a realização da promessa iluminista, sua aparente
dignidade foi perdida numa trilha de promessas não cumpridas.[16]
A necropolítica
Antes
de adentramos no conceito de “necropolítica” de Mbembe, faz-se necessária uma caracterização do conceito
foucaultiano de “biopoder”. Segundo Foucault, o exercício do biopoder,
“elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, garantiu a inserção
controlada dos corpos no aparelho de produção, ajustando também a população aos
processos econômicos”[17]. Depreende-se do autor que, o biopoder, como
instância organizacional, rege, dentre diversos outros instrumentos, a
biopolítica. É bem verdade que Mbembe, de certo modo,
em suas críticas até parte do conceito de biopoder foucaultiano, mas com o
objetivo de desafiá-lo ao máximo, “explorando sua relação com a noção de
soberania (imperium)
e o Estado de exceção”[18].
Aparentemente,
Mbembe concorda com a suficiência do conceito de
biopoder foucaultiano para explicar os fenômenos que implicam nesse poder
soberano sobre a vida. Contudo, observa-se ser mesmo aparente esta
concordância, visto que o autor destaca diferentes questões que põem em dúvida
a pertinência dessa concepção de biopoder. Dentre todas essas questões, destacamos
uma como sendo especialmente vital: Essa noção de biopoder é suficiente para
contabilizar as formas contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da
resistência ou da luta contra o terror, faz do inimigo seu objetivo primeiro e
absoluto? Em outros termos, questionamos se a noção formulada por Foucault,
pode permitir a compreensão das maneiras contemporâneas em que a política,
através da guerra, faz do assassinato do inimigo, o “objetivo primeiro e
absoluto”[19]. Assim, Mbembe
apresenta outra proposta em seu ensaio: a guerra como forma de atingir a
soberania, enquanto um modo de exercer o direto de matar. Partindo desta
indagação, o autor formula outra importante questão para a condição política
contemporânea: como a vida, a morte e o corpo humano estão inseridos na ordem
do poder?
Formulando o conceito de necropoder,
que concebe uma política de produção de morte, Achille
Mbembe discorda e se propõe a superar o conceito de “necropolítica” de Michel Foucault que, por sua vez, se
referenciava mais diretamente ao aumento deliberado do risco de morte. Sempre
provocador, o autor africano propõe “uma leitura da política, da soberania e do
sujeito, diferente da modernidade. Em vez de considerar a razão a verdade do
sujeito, podemos olhar para outras categorias fundadoras menos abstratas e mais
palpáveis, tais como a vida e a morte”[20].
Mas o que significa necropoder?
Pode-se descrevê-lo em síntese enquanto o conjunto de tecnologias políticas que
atuam para estabelecer a gestão e controle das populações e do indivíduo.Com o necropoder, tem-se uma política de gestão da morte,
denominada de necropolítica e podendo ser descrita
enquanto a submissão da vida ao poder da morte, apresentando-se contrariamente
também à biopolítica foucaultiana que, por sua vez, se concentra em fazer viver
e deixar morrer. Qualifica-se assim a necropolítica
enquanto uma “política da morte”, ilustrando que “a noção de biopoder é
insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao
poder da morte”[21].
Assevere-se que, de acordo com a concepção foucaultiano,
a biopolítica se assemelha a um trabalho de vida, porque o que está em jogo é
constantemente produzir a vida, sejam tanto os indivíduos dóceis politicamente
e úteis produtivamente, quanto ou as populações sadias que garantam uma governamentalidade eficiente, visando assim um esquecimento
da morte. Todavia, em desacordo com esta concepção foucaultiana, Mbembe defende que no contexto político mais contemporâneo,
caracterizado pelo Estado de exceção constituindo-se como regra, a biopolítica
se converte em necropolítica, isto é, no trabalho de
morte. Como afirma o autor:
Propus
a noção de necropolítica e necropoder
para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo,
armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da
criação de “mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas
quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o
status de mortos-vivos.[22]
Dessa forma, em termos de política contemporânea,
aventa-se a passagem da biopolítica para uma necropolítica,
não mais como uma política voltada para a produção da vida, mas cujo objetivo
principal é a aniquilação em larga escala, que define a soberania como o poder
de determinar quem pode viver e quem deve ser morto. Aqui a tendência para o
“trabalho morto” na produção de valor encontra o “trabalho de morte” da
política. O controle sobre as condições de vida e morte são atos soberanos.
Pode-se constatar que a concepção de necropolítica,
ultrapassa a percepção de biopoder foucaultiana, visto que se estabelece as
circunstâncias práticas do direito soberano de matar, da permissão para viver e
na exposição à morte. Acrescente-se que o exercício do necropoder
expressa um pouco da herança da soberania política Schmittiana,
ou seja, encarna a prerrogativa do soberano em declarar a exceção dos direitos
e garantias dos sujeitos, reconhecidos como inimigos, podendo inclusive
torná-los matáveis em nome da segurança do corpo social. Um fator importante
tratado por Mbembe que “examina essas trajetórias
pelas quais o Estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base
normativa do direito de matar. Em tais instâncias, o poder continuamente se
refere e apela à exceção, à emergência e uma noção ficcional do inimigo”[23]. Inimigo tratado enquanto
um outro que se torna uma ameaça a ser eliminada, segundo um tipo de norma ou
regra que o torna passível de ser morto.
A gestão biopolítica se
inscreve na história do liberalismo político. Citando o pensador: A prática de
governar do poder soberano é agora, recoberta pela “capacidade de administração
dos corpos e pela gestão calculista da vida”[24].
O exercício do biopoder, “elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo,
garantiu a inserção controlada dos corpos no aparelho de produção, ajustando
também a população aos processos econômicos”[25].
Hegel é destacado por Mbembe
como o pensador que define a vida do espírito como aquela que não teme a morte, mas a pressupõe
e vive com ela. A política é descrita como “a morte que vive uma vida humana”[26]. Em Hegel, o autor observa assim uma relação
“entre absoluto e soberania: o arriscar a totalidade de uma vida”[27]. Destaca-se uma relação dialética hegeliana
entre a morte e o devir sujeito. A partir desta relação, Mbembe
ressalta o que denomina como bipartidarismo de negatividade, constituído por
dois fatores: a negação da natureza pelo humano e a transformação desta por
meio do trabalho e da luta. Essa negação é observada em Hegel como a
transformação de mundo, onde o ser humano cria um mundo, mas expõe-se a sua
própria negatividade. Identifica-se em Hegel o reconhecimento da morte humana
como voluntária, sendo assim lançado no movimento da história, sustentando o
trabalho da morte. Nesse sentido, “Há uma ligação direta entre morte, soberania
e sujeito”[28].
Bataille é utilizado para confrontar Hegel, no sentido que para aquele pensador,
a morte e a soberania representam uma troca e superabundância, ou em outros
termos, “um excesso e a vida é o domínio da soberania, se constituindo assim a
morte como dispêndio irreversível e radical, sem apresentar qualquer tipo de
negatividade. A morte é encarada como o princípio da antieconomia”[29]. A percepção de Bataille
sobre soberania e morte que mais parece interessar a Mbembe
é sua característica de violação de proibições, reabrindo a questão referente
aos limites da política e recusando que essa só possa ser desenvolvida pela
dialética da razão. A política desorienta e transgredi a noção de limite. Citando
o pensador:
Ao tratar a soberania como a violação de
proibições, Bataille reabre a questão dos limites da
política, nesse caso, não é o avanço de um movimento dialético da razão. A
política só pode ser traçada como uma transgressão em espiral, como aquela
diferença que desorienta a própria ideia de limite[30].
Mas qual é o sentido de
liberalismo aqui já mencionado? Segundo o pensador francês, Michel Foucault,
esse necessita ser interpretado como uma prática refletida de governo como uma
“maneira de fazer” orientada para objetivos e se regulando por uma reflexão
contínua – não como uma teoria econômica ou jurídica, mas sim um “princípio
regulador político-administrativo que parte da premissa que sempre se governa
demais”[31].Objetiva-se, deste modo, reformar,
racionalizar e limitar os abusos do se governar demais. Por este motivo, de
acordo com o autor, “o liberalismo deve ser analisado, como princípio e método
de racionalização do exercício de governo – racionalização que obedece, e aí
está sua especificidade, à regra interna da economia máxima”[32]. Observamos como a presença da biopolítica
se faz notar, quando ao se analisar as peculiaridades desta racionalidade
liberal de governo, desenvolve-se e aprofunda-se de fato a problematização de
um exercício de poder sobre a vida, evidenciando-se a formação de uma política
gestora sobre as condições mais viáveis e positivas de se agenciar a vida do
corpo-população, a partir exatamente da questão da governamentalidade
e do liberalismo, passando é claro para o neoliberalismo e suas formas de
gestão atuais.
Evidencia-se que a
racionalidade política da arte de governar neoliberal, se exerce no sentido da
generalização da forma política do mercado para todo o corpo social; de modo
que a economia de mercado funcionará como princípio de inteligibilidade das
relações sociais e condutas individuais. Com o neoliberalismo, a economia será
uma análise da programação estratégica das atividades e dos comportamentos dos
indivíduos. Desse modo, como se produzir e se acumular o capital humano? Qual
sua composição? São questões que envolvem esta racionalidade governamental,
indicando-se o papel do mercado como que exercendo um tribunal econômico
permanente das metas da economia política. A prática de governar do poder
soberano é agora, recoberta pela “capacidade de administração dos corpos e pela
gestão calculista da vida”.[33]
Traçando a relação entre biopolítica e neoliberalismo,
pode-se afirmar que a noção da ação política da morte, ou a necropolítica,
se configura enquanto a forma política mais adequada ao neoliberalismo atual,
no sentido de que atende a um dos seus objetivos principais, que Mbembe captou com grande perspicácia: “a destruição
material dos corpos e populações humanas julgados como descartáveis e
supérfluos”[34].
Em seu ensaio Crítica da Razão Negra,
o autor descreve esses corpos supérfluos e descartáveis, que são assim
classificados, quando as suas capacidades de trabalho diminuem ou cessam, ou
ainda, ao não se constituírem mais como necessários ao modo de reprodução
próprio ao neoliberalismo. O autor afirma que tal situação representa a
inexistência de trabalhadores propriamente ditos. Significa dizer que no quadro
neoliberal,
(...)
só existem nômades do trabalho, sendo estes relegados a uma humanidade
supérflua, entregues ao abandono e sem qualquer utilidade para o funcionamento
do capital, tornando-se dispensáveis e até mesmo, convertendo-se em vidas
matáveis, exatamente por se tornarem inúteis[35].
Verifica-se assim a condição de “vida nua”, desprovida de
qualquer valor para a produção e consumo, “assinalando o ponto em que a
biopolítica converte-se necessariamente em tanatopolítica”[36] ou, como destaca Mbembe, “a necropolítica enquanto
política da morte”. Nessa situação, se a necropolítica
se coaduna com a condição do Estado de exceção, como aponta o autor camaronês,
pode-se distribuir de forma excludente e desigual recursos políticos e econômicos,
exercendo-se um exercício de veto por parte do soberano, sobre as condições de
vida dos que são classificados como descartáveis e, consequentemente,
estabelece-se um poder de decisão de exposição à morte dos grupos considerados
impuros ou marginalizados.
Nesse contexto surge o racismo de Estado, que possui como
base a decisão sobre quem deve viver e quem deve morrer. Gerenciam-se modos de
eliminação dos indesejáveis, dos inúteis, os descartáveis, para o bom
funcionamento da sociedade-empresa. Práticas de eliminação que passam pela
exclusão de determinados grupos ou indivíduos de seus ditos direitos, por
exemplo, à assistência social e serviços de saúde, por serem considerados não
gestáveis. Ou como destaca o próprio Foucault, “O fato de expor pessoas à
morte, de multiplicar para elas o risco de morte, ou, pura e simplesmente, a
morte política, a expulsão, a exclusão, etc.”[37]. O racismo é a condição
para a prática do direito de morte numa configuração biopolítica e neoliberal
do poder. O extermínio e os massacres são justificados segundo a lógica do
biopoder, predominante na racionalidade política atual. Pode-se descrever aqui
um mecanismo para promoção da vida, visando o fortalecimento da espécie,
explicando a até mesmo o exercício da violência biopolítica que causa a morte
dos inferiores e indesejáveis. Como cita o autor, “Quanto mais numerosos forem
os que morrem entre nós, mais pura será a raça a que pertencemos”.[38]
Ao relacionar a noção de biopoder foucaultiana aos
conceitos de Estado de exceção e Estado de emergência Mbembe
destaca que o “biopoder parece funcionar mediante a divisão entre pessoas que
devem morrer e as que devem viver.”[39].O autor observa o
exercício desse poder controlando o campo biológico, afirmando-se a subdivisão
da população gerida biopoliticamente, em grupos e
subgrupos, mas efetuando-se marcadamente, uma divisão biológica intensa entre
estes. Essa condição revela o real sentido de “racismo” presente na reflexão de
Foucault[40].
Mbembe assevera que a noção de biopoder foucultinana, expressa um caráter necessariamente racista,
uma vez que o racismo se estabelece enquanto condição prévia essencial para
conferir ao Estado o poder de matar. Assim sendo, o autor africano, ao tratar
do conceito política de morte, concorda com Foucault que a erradicação de
subgrupos de uma população biopoliticamente
gerenciada, configura-se como uma forma justificável de preocupação com a
pureza racial ou a saúde racial de uma determinada sociedade.
Para Mbembe, não seria novidade
que a raça, assim como o racismo, possua um lugar de destaque na racionalidade
do exercício do biopoder, pois afinal, “a raça foi a sombra sempre presente no
pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se
trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros ou a dominação a ser
exercida sobre eles”[41]. Mbembe
acrescenta que em termos foucaultianos “o racismo é acima de tudo uma
tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder”[42]. Sua função seria a de
regular a distribuição da morte e possibilitar as funções biopolíticas de matar
por parte do Estado. Há um exercício de fazer matar sob uma perspectiva que
decide justamente em que momento uma vida deixa de ser política e
economicamente relevante e, consequentemente, pode ser eliminada do tecido social.
Exerce-se o “trabalho de morte” da política sobre os indivíduos que começam a
sobrar diante da estrutura neoliberal atual, tornando-se pouco rentáveis, não
são mais requisitados a despenderem sua força de trabalho no interior de um
processo produtivo amplo.
Quando nos reportamos a uma sociedade como a brasileira,
marcada pela questão vergonhosamente histórica da escravidão e, por
consequência, as diversas formas de racismo, dizer que observamos muitos sinais
das práticas de uma violência depuradora da necropolítica
contra os corpos negros não se configura como um exagero. Como observa Abdias
do Nascimento em seu livro O genocídio do
povo negro, “a tentativa de branqueamento da raça foi uma estratégia de
genocídio contra a população negra que era maioria”.[43]
Abdias alerta que durante os tempos de escravidão, “esta
política de embranquecer a população estruturava-se de forma a limitar de
qualquer modo o crescimento da população negra”[44]. Não se pode negar que
tal estratégia de embranquecer a população visando eliminar a “ameaça da raça
negra”, inferior e nociva, para a saúde do corpo social, muito se aproxima de
uma técnica biopolítica de depuração eugênica. A política de branqueamento
conjugava a seleção de imigrantes europeus, assim como o estímulo a miscigenação
sucessivas em que o sangue branco, por ser considerado naturalmente superior, e
sobreporia ao sangue negro, considerado impuro e inferior.
Os corpos negros são ainda relegados em nossa sociedade a
uma condição subalterna, marginal, colonizada e à exclusão geográfica das
comunidades, locais onde, como observa Noguera, “a morte de alguns é rotina
comum, um luto que não se torna público e noticiado. Faz parte da política”[45]. Permanecendo assim a
prática do genocídio do povo negro, apontado por Abdias do Nascimento. Fazendo
referência a Mbembe quando desenvolve sua análise
sobre a relação entre morte e vida, instaurando-se a partir do sistema de plantation, esse genocídio apresenta a
forma peculiar de terror que se apresenta como a “concatenação entre biopoder,
o Estado de exceção e o Estado de sítio. A raça é, mais uma vez, crucial para
esse encadeamento”[46], como afirma Noguera:
Talvez
seja oportuno repensarmos filosoficamente as condições de possibilidade da
emergência da necropolítica, se quisermos
problematizar possibilidades de resistências. O maior inconveniente? As
práticas necropolíticas têm repetidamente dito que o
luto não é um direito de todos. Mas, um privilégio dos bons.[47]
O devir-negro do mundo
O ponto interessante sobre a tese de um devir-negro no
mundo nos parece ser justamente essa população que está vulnerável sob esse
poder de coação, de extermínio. A diferença marcante entre o modo como Mbembe demarcará essa raça não participa diretamente da
fantasia da raça criada pela modernidade ocidental. Tão pouco encontra ares de
imprecisão na sua definição. É mister lembrar que, para Mbembe,
a raça, bem como o Negro nunca foram definidos de uma só maneira imutável ao
longo do tempo. E ele argumenta no sentido desse devir-negro não ser baseado na
fantasia ocidental chamada raça.
Pela
primeira vez na história da humanidade, o nome negro deixa de remeter
unicamente para a condição atribuída aos genes de origem africana durante o
primeiro capitalismo (predações de toda a espécie, desapossamento da
autodeterminação e, sobretudo, das duas matrizes do possível que são o futuro e
o tempo). A este novo caráter descartável e solúvel, à sua institucionalização
enquanto padrão de vida e à sua generalização ao mundo inteiro, chamamos devir
negro do mundo[48].
Retomando a primeira parte do ensaio Crítica da razão negra, denominado como devir-negro, Mbembe disserta sobre o
neoliberalismo caracterizando-o como “a época ao longo da qual o tempo (curto)
se presta a ser convertido em força reprodutiva da forma-dinheiro. Tendo o
capital atingido o seu ponto de fuga máximo, desencadeou-se um movimento de
escalada”[49].
O autor ressalta ainda que essa forma atual de capitalismo desencadeia um
acontecimento essencial: a fusão entre capitalismo e animismo, resultando em
algumas consequências determinantes para a futura compreensão da raça e do
racismo. Desde logo, os riscos sistemáticos aos quais os negros escravizados
foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, “se não a
norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas, ou dito de
outra forma, passíveis de serem excluídas e descartadas”[50]. Por meio do “devir-negro
do mundo”, Mbembe destaca o caráter de
“universalização da condição negra como simultânea ao surgimento de práticas
imperiais inéditas, ainda tributárias tanto das lógicas escravagistas de
captura e predação, como das lógicas coloniais de ocupação e exploração, incluindo
as guerras civis ou raciais de épocas passadas”[51].
É preciso compreender que, na análise do camaronês, o
negro é uma invenção elaborada em uma plataforma racista e que se manterá
funcionando enquanto não o retirarmos dela. A afirmação de que o nome negro
deixa de remeter àquele lugar comum do qual sempre partíamos nossas análises
raciais causa estranhamento e suscita um empenho para a compreensão desse novo
lugar, sem cairmos no reducionismo simplista de que as teias das dívidas que o
neoliberalismo vem construindo através da história da colonização dos povos
negros e da escravização, da baixa monetarização da sua força de trabalho e do saqueamento estrutural de suas riquezas materiais e
culturais.
Apesar de “Sobre o Governo Privado Indireto”[52] ser um texto anterior à Crítica da razão negra, acreditamos que
a análise de Mbembe do campo democrático, pela
perspectiva que concebe raça como um dos fatores de estratificação social, é
fundamental por nos permitir avaliar a condição de inserção do corpo negro dentro
da política moderna, da globalização e de um eminente devir-negro do mundo.
Conclusões parciais
O filósofo camaronês Achille Mbembe faz uma análise política que, mesmo em um diálogo
com Foucault e Agamben por conta da releitura da
biopolítica, suas análises se aproximam mais do filósofo martinicano Frantz Fanon. Tanto Mbembe como Fanon, diferentemente de Foucault e Agamben,
colocam o racismo antinegro no centro de suas
análises.
Se Foucault indicou uma
ligação direta do biopoder com capitalismo. Vale dizer que Mbembe
articula necropoder e neoliberalismo. As condições
históricas ganham outros contornos. Afinal, para Foucault o caráter racista do
Estado biopolítico tinha como exemplo o nazismo.
Seria este, para o pensador francês, o exemplo máximo. Era o caso de uma
sociedade universalmente disciplinar que repartiu o antigo poder soberano de
matar. Além do braço armado do Estado nazista, o exército alemão; um cidadão
comum podia denunciar uma família judia escondida e exercer o poder de morte,
ainda que indiretamente.
Agamben traz contribuições interessantes, à medida
que denuncia que a democracia é incapaz de resistir ao Estado de exceção que
vai decretar mortes. Afinal, “decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado
com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra”[53]. Ora, o espaço da vida nua que estava à
margem, agora está dentro do ordenamento jurídico-político. Agamben
também observa o nazismo e situa a eutanásia como um dispositivo que serviu
como serviço de saúde do corpo biológico nacional.
Mbembe, por sua vez, postula que o poder soberano
não se ocupa mais da vida; mas, somente da morte. Enquanto o campo de
concentração nazista é tido por Foucault e Agamben
como espaço paradigmático do biopoder, Mbembe, para
uma leitura mundial das relações de poder, denuncia o Atlântico Negro (o fluxo
de deslocamento forçado de milhões de pessoas africanas para a América e Europa
do século XV até XIX), o genocídio dos povos originários da América e a
escravização negra como marcos máximo do biopoder. O próprio desenvolvimento do
capitalismo não pode ser destacado desses eventos. Foi a hiper-exploração
da África e da América pela Europa que tornou possível um estágio de acumulação
do capital nunca visto e o estabelecimento da Europa como centro
econômico-financeiro do mundo até o fim da 2ª Guerra.
Mbembe chama atenção para a retomada do modelo
exploratório da escravização negra. Aqui encontramos uma novidade, talvez isso
faça de Mbembe um dos pensadores mais interessantes
da atualidade. Nas reflexões sobre o “devir-negro do mundo”, encontramos a
afirmação de o liberalismo e a escravização como coextensivos,
ainda que o trabalho assalariado e direitos trabalhistas tenham certo espaço
dentro do regime. O neoliberalismo é a radicalização desse projeto à medida que
significa um projeto de eliminação das garantias totais. É a proposta de
transformar o trabalhador do contexto neoliberal naquela mesma pessoa negra
escravizada durante séculos nas plantações da América.
A necropolítica
faz parte do projeto neoliberal, à medida que elimina os “excedentes”. Porque a
prisão foi uma alternativa; mas, diante de sua insuficiência. Um Estado não
pode prender quase todo mundo e obrigar a trabalhar em regime escravo, essa
saída foi usada pelo sistema estadunidense. Homens negros, na maioria dos
casos, mas, também prendem as mulheres negras, passaram a ser presos por
qualquer motivo após o fim da legalidade da escravidão. O documentário “13th” –
que em português pode ser traduzido como 13ª (Décima terceira) –foi dirigido
por Ava Duvernay (que também foi diretora do premiado
“Selma”). O filme apresenta argumentos consistentes com documentação, imagens e
relatos de diversos setores da sociedade que explicam os porquês da população
negra dos Estados Unidos da América (EUA), mesmo representando apenas 13% do
total de cidadãos, ser 40% dos usuários do sistema carcerário estadunidense.
Essa desproporção tem relação direta com uma política de Estado, um tipo de
“biopoder neoliberal”. O filme mostra o ex-presidente Bill Clinton empenhado em
expandir os meios de encarcerar. Não foi à toa que a população carcerária dos
EUA saltou de políticas de 357 mil pessoas em 1970 para 2,3 milhões em 2014 (DuVernay, 20). A 13ª Emenda, assinada em 08 de Abril de 1864, proibiu a escravização e servidão
involuntária. Mas, incluiu um adendo: “salvo
como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”[54]
Dado que boa parte
da população mundial é pobre demais para a imposição e cobrança de dívidas e,
ao mesmo tempo, muito numerosa para o confinamento presidiário, o controle
social precisa de outros meios. Em tempos de “devir-negro do mundo”, a necropolítica anti-negros se
apresenta como o novo meio de eliminação.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua.
Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2004.
FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Pedro Elói Duarte.
Lisboa: Edições 70, 2010.
FOUCAULT, M. É preciso defender a sociedade.
Curso do Collége de France (1975-1976).
Tradução de Carlos Correia M. de Oliveira. Lisboa: Livros, Brasil, 2006.
FOUCAULT, M. Resumo dos Cursos do Collége de France (1970-1982).
Tradução de Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
HEGEL, G. Friedrich. Princípios de Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder,
soberania, estado de exceção, política da morte. Rio de Janeiro: n-1
edições, 2018.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa:
Antígona, 2014.
NASCIMENTO,
A. O genocídio do negro brasileiro. Processo de um Racismo Mascarado.
Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.
NOGUERA, Renato. Dos condenados da terra à necropolítica: diálogos filosóficos entre Frantz Fanon e Achille Mbembe. Revista Latino Americana do Colégio
Internacional de Filosofia, n. 3, 2016.
[1] MBEMBE, Crítica
da Razão Negra, p. 142.
[2] Ibidem.
[3] HEGEL, Princípios de
filosofia do direito, p. 209.
[4]
FOUCAULT, É preciso Defender e
Sociedade, 2006.
[5]
Ibidem, p. 256.
[6] Ibidem, p. 264.
[7]
Ibidem p. 261.
[8] AGAMBEN, Homo Sacer: O
poder soberano e a vida nua, p. 126-127.
[9] Ibidem, p. 12.
[10]
MBEMBE, Crítica da Razão Negra, 25.
[11]
FOUCAULT, É Preciso Defender a Sociedade, p. 257.
[12] Ibidem, p. 248.
[13]
MBEMBE, A. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte,
p. 8.
[14]
Ibidem, p.11.
[15] Ibidem, p.10-11.
[16] NOGUERA, Dos condenados da terra à necropolítica: diálogos filosóficos entre Frantz
Fanon e Achille Mbembe, p. 63-64.
[17] FOUCAULT, M. Nascimento
da Biopolítica, p. 152.
[18]
MBEMBE, Necropolítica. Biopoder,
soberania, estado de exceção, política da morte, p. 7.
[19]
Ibidem, p. 6.
[20]
Ibidem, p. 11.
[21]
Ibidem, p. 71.
[22] Ibidem.
[23]
Ibidem, p. 17.
[24]
FOUCAULT, Nascimento da
Biopolítica, p. 150.
[25]
Ibidem, p. 152.
[26]
MBEMBE, Necropolítica. Biopoder,
soberania, estado de exceção, política da morte, p. 12.
[27]
Ibidem, p. 13.
[28]
Ibidem.
[29]
Ibidem, p. 14.
[30] Ibidem, p. 16
[31]
FOUCAULT, Nascimento da Biopolítica, p. 45-46.
[32]
FOUCAULT, Resumo
dos Cursos do Collége de France (1970-1982),
p. 90.
[33] FOUCAULT, Nascimento da Biopolítica, p. 150.
[34]
MBEMBE, Crítica da Razão Negra,
p. 17.
[35] Ibidem.
[36]
AGAMBEN, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 138.
[37] FOUCAULT, É Preciso Defender a Sociedade, p. 273.
[38] Ibidem, p. 274.
[39]
MBEMBE, Necropolítica. Biopoder,
soberania, estado de exceção, política da morte, p. 17.
[40]
Ibidem.
[41]
Ibidem, p. 18.
[42]
Ibidem, p.18-19.
[43] NASCIMENTO, O
genocídio do negro brasileiro. Processo de um Racismo Mascarado, p.
93.
[44]
Ibidem, p. 96.
[45]
NOGUERA, Dos condenados da terra à necropolítica: diálogos filosóficos entre Frantz Fanon e Achille Mbembe, p.
72.
[46]
MBEMBE, Necropolítica. Biopoder,
soberania, estado de exceção, política da morte, p. 31.
[47]
NOGUERA, Dos condenados da terra à necropolítica: diálogos filosóficos entre Frantz Fanon e Achille Mbembe, p.
72.
[48] MBEMBE, Crítica
da Razão Negra, p. 18.
[49]
Ibidem, p. 15.
[50]
Ibidem, p. 14.
[51]
Ibidem, p. 15.
[52]
MBEMBE, Necropolítica seguido de Sobre el gobierno privado indirecto,
2011.
[53]
AGAMBEN, Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua, p. 16.