DOI

Submissão: 10/09/2019 Aprovação: 10/09/2019 Publicação: 30/09/2019

by-nc-sa

 

 

Interfaces da Filosofia Africana

 

Ynari e a política da palabre na brincadeira das palavras

 

Ynari: the politics of the palabre in the joking of words

 

Luís Thiago Freire Dantas

Doutor e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)

fdthiago@gmail.com

 

Resumo: Este artigo propõe uma conversa entre a filosofia africana e a literatura infantil. Se África nos discursos coloniais foi associada à infância, então fazer uma investigação que se fundamenta em uma criança africana propõe repensar aquilo que legitimamos como filosofia. A conversa acontecerá entre a personagem Ynari, do livro Ynari – a menina de cinco tranças, de Ondjaki, e o conceito de Palabre, elaborado pelo filósofo Jean Godefroy Bidima. Assim, o artigo parte da palavra como eixo principal da investigação, pois ela aparece tanto para Ondjaki quanto para Bidima como uma forma de interação com o mundo, seja na criação, seja na destruição. Por fim, questionar o ideal de “neutralidade de conhecimento” que pretende estabelecer um cânone, relegando a multiplicidade de saberes em prol de uma unidade epistêmica.

Palavras-Chave: Filosofia Africana; Literatura Infantil; Brincadeira de Palavras; Palabre

 

Abstract: This article proposes a conversation between African philosophy and children's literature. If Africa in colonial discourses was associated with childhood, then do an investigation that is based on an African child proposes rethink what we legitimize as philosophy. The conversation will happen between the character Ynari of book Ynari – the girl of five braids of Ondjaki, and the concept of Palabre, drawn up by philosopher Jean Godefroy Bidima. Thus, the article part of the Word as the main axis of the investigation, because it appears to both Ondjaki as for Bidima as a form of interaction with the world, whether in creation, whether in the destruction. Finally, question the ideal of “neutrality of knowledge” that intends to establish a Canon, relegating the multiplicity of knowledges for epistemic unit.

Keywords: African Philosophy; Childhood Literature; Joke of words; Palabre

 

A Debora Oyayomi, pela brincadeira com as palavras.

 

Eu tenho um nome só, quer dizer, uma só palavra: chamo-me Ynari

 

Nunca devemos excluir as crianças dos rituais.

 A presença das crianças gera os

 rituais mais simples e vibrantes.

Quando estão presentes,

o que quer que faça de errado torna-se certo.

Sobonfu Somé

 

A produção de conhecimento privilegiada pelo Ocidente possui em grande parte um apreço pela própria história, principalmente quando são narrativas que enfatizam as suas origens: “A palavra philosophia diz-nos que a filosofia é algo que pela primeira vez e antes de tudo vinca a existência do mundo grego. Não só isto – a philosophia determina também a linha mestra de nossa história ocidental-europeia”[1]. Por outro lado, se as narrativas questionam o status quo de um determinado conhecimento, então o Ocidente tende a invisibilizar ou atribuir adjetivos que denotam uma pequenez: “[os gregos] foram os primeiros a tentar cultivar os conhecimentos racionais. [...]. A tão louvada sabedoria egípcia, que, em comparação com a filosofia grega, não passou de um jogo de crianças”[2]. As atribuições de tais adjetivos são correspondentes ao modo como o Ocidente compreende a criança, pois a trata como sendo aquela “sem voz” e incapaz de mediar autonomamente às próprias razões e emoções no mundo.

Essa incapacidade é similar à maneira como a filosofia ocidental atribuiu uma identidade a toda e qualquer filosofia, já que, conforme argumenta Gislene Aparecida dos Santos, “desde os primórdios da filosofia, estabelece-se que somente se pode conhecer aquilo que se coloca na esfera da identidade, partindo de si mesmo como parâmetro”[3]. Um si mesmo que justifica os obstáculos aos conhecimentos assinalados como específicos por não tratar da universalidade humana, já que tematizam questões étnico-raciais, de gênero, de sexualidade e de faixa etária, acrescentando que tais especificidades promovem, de acordo com a filosofia ocidental, aspectos não-científicos (como intuição, sensualidade, espiritualidade, rituais) para o campo filosófico. E isso seria, portanto, um desagravo à identidade filosófica, já que ela “não considera [ou menospreza] as possibilidades de existência de um conhecimento elaborado em função da conjunção entre sujeito e objeto, entre razão, desejo e afetividade”[4].

Contudo, essa identificação revela muito mais a tentativa ocidental de hierarquizar conhecimentos e entender que alguns possuem maior utilidade para o desenvolvimento humano em relação a outros, do que a existência concreta de uma separação de conhecimentos. Com essa hierarquização, o Ocidente não se adequou às formas como a alteridade poderia apresentar-se no campo filosófico. Por exemplo, há uma falta de trato sobre a potencialidade infantil por sempre associa-la à figura do adulto para expressar as suas próprias exigências. Por consequência, fez com que a criança fosse subalternizada[5] e a infância passasse a figurar como símbolo da etapa de incapacidade de abrir uma conversa equânime com a denominada etapa adulta. Isso transposto para o âmbito continental, principalmente no período colonial das grandes navegações, caracterizou ao continente africano como sendo o estágio infantil enquanto o europeu como o do amadurecimento intelectual da humanidade. Nesse setido, “A África propriamente dita [...] não tem interesse histórico, pois os homens vivem ali na barbárie e selvageria sem mostrar nenhum ingrediente civilizacional. [...]. É o país criança envolto pela negrura da noite”[6].

Para fazer um contraponto a tais problemáticas, a proposta para esse artigo é fazer uma conversa entre a literatura e a filosofia, porém com aprofundamento na questão infantil e africana. Com isso privilegiaremos os autores: Jean Godefroy Bidima[7] e Ondjaki[8]. Essa conversa será intermediada por Ynari, personagem do livro Ynari: a menina de cinco tranças, de tal maneira que a escrita desse artigo será a partir das provocações suscitadas pela perspectiva dessa personagem que compreenderemos como uma intervenção política através da palavra. Seguindo essa linha, argumentamos que se Bidima cria uma análise social africana através do conceito de palabre, por outro lado Ondjaki na voz de Ynari estabelece uma brincadeira de palavras. Por essa maneira, a conversa literária filosófica resulta no que denominamos de instituição política das brincadeiras das palavras.

Antes de adentrar na análise é importante situar a leitora ou o leitor de quem é Ynari, pois a sua apresentação é posta pelo encontro com o Homem Pequenino. Esse encontro já enfatiza a peculiaridade dessa personagem, pois a aproximação do outro não lhe provoca desconforto e ao perguntarem pelo seu nome, responde: “Eu tenho um nome só, quer dizer, uma só palavra: chamo-me Ynari[9]. Essa particularidade é ressaltada por uma característica que a acompanha: as cinco tranças no cabelo. Essa caracterização é destacada da seguinte maneira: “Ninguém me faz estas tranças, porque elas não se desfazem... A minha avó diz que eu já nasci com as tranças e que um dia vou saber por quê. Eu gosto muito de brincar com as minhas tranças”[10].

Essa fala expõe a particularidade de ser quem ela é, inicialmente por causa do processo de autoconhecimento que não é algo interior a si mesmo, mas está exposto ao mundo através das tranças. Em seguida, a certificação desse conhecimento provém das palavras da avó, um símbolo de como o passado atua no presente e molda o futuro. E, por fim, a brincadeira é uma maneira como influencia o sentimento de compreensão de si e transforma-se em um caminho para produzir conhecimento no mundo. Diante dessas situações, a relação da literatura com a filosofia por meio da infância constitui em uma maneira de mostrar o espaço público como meio da permuta e da brincadeira de palavras como uma reconciliação do adulto com a alteridade infantil.

 

Depende daquilo que entendemos por ‘pequeno’. Não acha?

 

Bidima, ao discorrer sobre o conceito de palabre, acentua para o fato de esse conceito destacar a política como ação da palavra, inclusive por se tratar da “formação de um discurso, de códigos e de redes que constituem o lugar onde a coexistência humana se concretiza”[11] através de meios indescritíveis. E as comunidades africanas tradicionais, apesar de serem uma das fontes de mediação da política através das palavras, atualmente devido ao processo de ocidentalização as elites africanas recorrem a um legalismo superficial, enquanto que os países ocidentais e empresas japonesas fazem uso da palabre para expor as dificuldades e apresentar outras orientações. Por isso que o autor pensa acerca de como a lei circula no espaço público e, por esse modo, descreve a fonte primordial da palabre como sendo uma narrativa “dada” ou “endereçada” a alguém. Essa narrativa acontece em cada nível da sociedade civil africana de forma que as palavras fornecem sentido acerca das diferentes ocasiões.

Assim, Bidima argumenta que o espaço público da palabre marca a mudança de sua extensão no espaço: “um lugar comum é assim construído no cerne de um espaço significante, convertido em uma arena onde o mesmo e o outro, o aqui e o além, confronta uns aos outros através e pelo significado dos seres humanos”[12]. Essa disputa pelo significado de ser humano movimenta a própria palabre: “a significação primeiro aparece através do espaço [...] que expressa a relação entre os sujeitos, a lei e o que é proibido ou entre cultura e natureza”[13].

Partindo dessa definição de palabre, a narrativa de Ynari compõe certas características que se aproxima da análise Bidima, visto que apresenta outras problemáticas ao espaço público. Inicialmente as palavras acontecem pela interação com o Homem Pequenino, que proporciona uma conversa sobre a utilização da palavra “pequeno”: “Sempre pensei que uma coisa menor fosse uma coisa pequena”[14]. Aqui, a correspondência entre menor e pequeno é reavaliada em seu valor e utilidade, principalmente pela continuação do diálogo que traz a palavra “coração”:

– [...] O coração é pequeno para ti?

– É... e não é! Cabe tanta coisa lá dentro, o amor, os nossos amigos, a nossa família...

– Vês? – disse o homem menor que ela. – Às vezes uma coisa pequenina pode ser tão grande[15].

Essa variação do uso da palavra certifica o espaço de fala que é predominantemente estratégico, pois “expressa certa neutralidade, mas também certa contradição, na medida em que pertence nem a um lado nem a outro e permite que cada um se envolva com o outro”[16]. Essa permissão faz com que a compreensão do adjetivo “menor” seja relacionada, no Ocidente, àquilo dado como insuficiente, incapaz de falar e o “maior” seria aquele com a capacidade de resolver as questões do mundo: “Esclarecimento é a saída do homem de sua menor-idade, da qual ele próprio é culpado. A menor-idade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”[17]. Essa distinção é reorientada por Ondjaki na construção do “ajudante” Homem Pequenino na própria identificação do personagem, pois como conceber, se seguirmos pelas categorias ocidentais, um homem que é pequeno em relação a uma criança? Ainda mais se compararmos com a definição de Giorgio Agamben acerca das figuras dos “ajudantes” que aparecem, por exemplo, nos romances de Kafka: “parecem incapazes de proporcionar ajuda. Não entendem de nada, não têm ‘aparelhos’, só conseguem aprontar bobagens e infantilidades, são ‘molestas’ e, às vezes, até ‘descaradas’ e ‘luxuriosas’”[18].

Agamben continua argumentando que essa figura aparece em outras narrativas literárias sempre como se tivesse faltando algo, pois não se visualiza nada além de sua finalidade. E, diante disso, o autor descreve da seguinte maneira a literatura infantil: “Talvez seja porque a criança é um ser incompleto que a literatura para a infância está plena de ajudantes, seres paralelos e aproximativos, pequenos demais ou grandes demais”[19]. Dessa maneira é pela incompletude infantil que são necessárias figuras que deem o suporte para as histórias por mais que o narrador venha-os esquecer no final da história. Assim, como seria se Agamben lesse Ynari e percebesse que o Homem Pequenino é o ajudante que a acompanha até o final da história? Com o destino dependendo justamente do entrelaçamento entre Ynari e o Homem Pequenino? E tudo isso por meio das brincadeiras que ambos compartilham na utilização das palavras em vista do encantamento com o mundo, ou seja, “uma experiência de ancestralidade que nos mobiliza para a conquista, manutenção e ampliação da liberdade de todos e de cada um”[20]. Com essa perspectiva, palavras como “medo” e “admiração” adequam-se aos sentimentos que a personagem produz no contato com o outro, seja um grande antílope, seja as estrelas no céu.

Obviamente que essas objeções não se direcionam restritamente à Agamben, e sim para uma tradição que privilegiou as narrativas que enfatizaram somente o contato com o semelhante. Quando, por outro lado, retomando Bidima, as maneiras como a palabre manifesta-se nas marcas sociais tipo fala, gestos e rituais, ilustram o contato com o outro, que expressa uma total dessemelhança, já que há relacionamento na palabre entre uma prática do passado com uma do futuro que “igualmente privilegia destinos, evidências e histórias”[21]. Além disso, essa relação compõe o envolvimento dos sujeitos, das comunidades e das práticas que singularizam corpos históricos: “por esse termo, nós queremos trazer as noções de acontecimento, de transformação, de crises, e de tensão para o interior da concepção de tempo que não é linear”[22]. A construção desses corpos quando lemos Ynari situa-se no próprio relacionamento com o homem pequenino, pois sempre “estavam os dois conversando sobre as palavras, a importância que as palavras tinham na vida de cada um, como as usavam, quando as usavam, com quem as usavam e que significados tinham para o coração de cada um deles”[23].

Com isso, a estreita ligação com a alteridade é que constrói a história, mesmo se o outro venha impedir as nossas expressões, principalmente quando se refere àqueles com quem interagimos no espaço público. Mesmo com tais empecilhos, Ynari afirma a potência da palavra como algo a não ser menosprezada pelo fato de existirem aquelas que ultrapassam o mero significado ou a transmissão de um sentimento de alegria ou tristeza. Na verdade, comumente não se percebe “o que as palavras podiam fazer entre duas pessoas”[24]. Diante dessa condição Ynari nos interpela: “Sempre gostei muito das palavras, mesmo daquelas que ainda não conheço, sabes? Existem palavras que estão no nosso coração e que ainda não estiveram na nossa boca. Nunca sentiste isso?”[25].

Tais perguntas colocadas pela personagem se contrapõem a uma tradição filosófica que entende a origem das palavras como sendo uma expressão da alma [26]. Para Ynari as palavras têm suas expressões através do coração[27]. Dessa maneira a cisão corpo-alma, na perspectiva de Ynari, não é estabelecida e não corrobora a universalidade de uma alma anterior ao tempo e ao espaço, ao invés enfatiza a pluriversalidade[28] através do corpo. Aprofundando nessa perspectiva revela-se a maneira como relacionamos a palavra à coisa, pois há uma dependência de como nosso sentimento sobre o mundo interpreta certas ocorrências. Com isso, retomando Bidima sobre a dificuldade de instituir atualmente a palabre no pensamento político africano, pois esse pensamento estrutura simbolicamente os sistemas individuais e políticos pela utilização formal da Lei, por exemplo, através do patriarcado. Essa dificuldade deve-se ao fato de que a palabre, submetida à Lei, condiciona uma preeminência ideológica patriarcal que, por efeito, tem como consequência o não reconhecimento do espaço público feminino: “Isto levanta dois problemas: por um lado, o caráter muito masculino dos júris em um palabre e, por outro, o das mulheres no acesso à propriedade da terra na África tradicional”[29]. Assim, nós podemos inferir que a palabre dominada pela força masculina é regida por uma legalidade que não abre espaço para o diálogo e, por outro lado, a concepção democrática regida pela produção das palavras é característica da força feminima.

Isso torna evidente na narrativa de Ynari quando a conversa com o Homem Pequenino é interrompida pelos sons de tiros advindos da guerra entre dois grupos de homens. Nesse encontro há uma transmissão da raiva: “aqueles homens não gostavam uns dos outros, e usavam as armas e as balas e as vidas uns dos outros para mostrar a sua raiva”[30]. Mas, apesar dessa amostra de raiva ter provocado medo em Ynari, isso a impulsionou para os eventos cruciais de autodescoberta. Seja por presenciar o Homem Pequenino transformando as armas em barro que revelou a presença da magia em cada um de nós, seja na visita à aldeia do Homem Pequenino que conheceu o Velho Muito Velho e a Velha Muito Velha denotando a complementaridade de ambos para a brincadeira com as palavras. Um complemento não somente de inventar e de destruir as palavras, mas por presentear com a palavra “permuta”.

 

“Agora vão todos dormir...”

 

A visita à aldeia do Homem Pequenino ampliou o significado de alteridade para Ynari, já que era toda uma comunidade “menor” em relação a ela e, ao mesmo tempo, repleta de interpretações sobre o mundo. Inicialmente pela ausência de um “soba”, um chefe do povoado, depois pela apresentação das figuras do Velho Muito Velho e da Velha Muito Velha que anunciaram a presença da magia descoberta na própria pessoa: “Nós conhecemos a sombra da tua magia, mas só tu podes saber onde está a própria magia”[31].

Essa fala “nós conhecemos a sombra da tua magia” simboliza como o “si mesmo” é revelado parcialmente quando interagimos com o outro. Principalmente pela “sombra” em tradições africanas corresponder àquilo que sempre acompanha o vivente e o identifica como tal[32]. Isso possui o significado de que a alteridade acompanha todas as nossas ações e a interferência no mundo acontece pelo corpo vivente. Similarmente acontece com Ynari: ela precisa passar pelo ritual com o Velho Que Inventa As Palavras e com a Velha Que Destrói As Palavras para, ao fim, ela dizer as palavras necessárias ao ritual. Esse ritual tem como base a “permuta” que através de si podemos compreender a nossa própria existência. O interessante é que essa compreensão acontece por um caminho que para as epistemologias ocidentais geralmente é uma fonte engano: o sonho. Por exemplo, se para Descartes[33] nos sonhos não há uma clareza e distinções seguras, pois “pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões”, por outro lado para Ynari “os sonhos ajudam-me a viver. Acho que eles também vão me ajudar a descobrir a minha magia”[34].

O “argumento do sonho” de Ynari inicia-se quando ela se deitou e finalmente dormiu. O sonho apareceu com uma gama de palavras novas e dentro dele adveio mais um encontro: o Velho Muito Velho que dá significado as palavras. Então Ynari perguntou ao velho qual o significado de “permuta” e ele respondeu que seria uma troca justa onde alguém dá e recebe algo, mesmo não sendo o mesmo tamanho, a mesma cor, o mesmo sabor, a partir disso “Ynari entendeu que numa permuta é bom que duas pessoas, ou dois povos, fiquem contentes com o resultado dessa troca”[35]. Com a aquisição desse conhecimento, Ynari nos mostra que o ritual para a descoberta de si passa pela conversa com os velhos muito velhos, ou seja, há uma ancestralidade que conversa conosco e através dela descobrimos a nossa atuação no presente. Com isso a descoberta de “si mesma” decorre para Ynari em uma prática, já que ao acordar e ir à beira do rio para encontrar com o Homem Pequenino, ela exclama: “Eu acho que já descobri a minha magia!”[36] e acrescenta: “Podes vir comigo a cinco aldeias? [...] Quero que vejas o que eu vou fazer e que depois vás à tua aldeia dar recado meu à velha muito velha que destrói as palavras”[37]. Com essa forma de descobrir a si mesmo, a “certeza fundamental” não diz respeito a uma investigação que abstrai o mundo, mas somente expressa sentido quando há interferência no mundo.

Essa situação Bidima expõe como fundamental para a palabre, pois ela não possui como objetivo uma compensação ou uma sanção, antes tende restaurar o relacionamento humano. A restauração consiste na paz, mesmo que a verdade seja sacrificada para a harmonia social: “a palabre responde à pergunta sobre a ação no coração da comunidade e, especialmente, permite que se espere pela paz”[38]. Por isso, Bidima considera que dentre as três questões kantianas – o que posso saber? O que devo fazer? O que me é lícito esperar? – a palabre responde às duas últimas por estarem no âmbito prático e, inclusive, permitem a reconciliação. Essa permissão parte de três momentos importantes: o juramento, a honra e o acompanhamento. Eles acontecem mutuamente, já que o juramento expressa um sentimento existencial para garantir a paz através do perdão sobre o transgressor que procura evitar a humilhação e, mantendo a honra, o transgressor é reinserido no relacionamento com o outro que o acompanha: “Não implica flexibilizar uma consciência culpada em seu interior para restaurar uma relação com uma transcendência abstrata através do remorso, e sim uma abertura para os outros, que exterioriza e restabelece um vínculo com a imanência”[39]. Principalmente pelo fato do perdão não situar apenas no campo visível, mas dialoga com o invisível: “Frequentemente, ninguém atribui culpa a ninguém, mas atribui o conflito a um mau espírito. Todos sabem que esta é uma maneira de falar para evitar ferir a parte acusada”[40].

Desse modo entre a permuta e a reconciliação há uma afinidade: a paz. A permuta ocorre na ida às cinco aldeias, pois revela à Ynari que a guerra é provocada pela ausência de um dos cinco sentidos. Por isso em cada aldeia ela faz o ritual da permuta que entrega uma das palavras: ver, falar, ouvir, cheirar ou sabor, e em troca recebe a paz. O importante de destacar nesse ritual é que a presença da palavra passa a existir na comunidade após o sonho, de tal maneira que Ynari finaliza com a fala: “Agora vão todos dormir...”[41] e outro destaque também é que ela, a criança, conduz o ritual entre os adultos por ser quem percebe que a guerra só tem existência quando deixamos de alguma maneira de sentir o outro.

Essa percepção da necessidade de sentir o outro se refere ao modo da reconciliação existir na comunidade. Conforme explicação de Bidima, cada ser humano carrega uma multiplicidade de significados e, por isso, a alteridade do outro escapa das determinações frias da Lei: “De agora em diante, o outro se torna não uma simples presença, mas um futuro, um evento na vinda e a conexão com o outro, uma conexão com o futuro”[42]. Não gratuitamente uma das últimas palavras utilizadas entre Ynari e o Homem Pequenino é “despedida”, já que através dela o outro se correlaciona a uma conexão com o futuro e explica a situação de que só podemos nos despedir daquilo que encontramos. Nesse encontro solicita-se o “olhar para o outro” que ultrapassa as normatizações impessoais que regulam a nossa condição social. Uma regulação que a palabre antecede à constituição do sujeito jurídico e organiza formas para interpretar diversos modelos políticos. Assim a palavra, para Bidima, fornece a capacidade de fala ao sujeito e questiona a delegação de pessoas para falarem em seu lugar, “ser um sujeito de direito é vislumbrar que o discurso destina-se para si mesmo: discurso que separa, discurso que acompanha, discurso que reconcilia”[43]; já para Ynari as palavras envolvem uma troca, certificada pela “amizade” que é expressada no contato que o coração produz:

– Eu acho que o meu coração inventa palavras... No dia em que te vi, logo logo o meu coração inventou para nós a palavra ‘amizade’.

– Eu sei, Ynari, eu também senti o mesmo.

– Sério?

– Sim – disse o homem pequeno. – Agora já sabes...

– Já sei o quê? – perguntou Ynari, a menina sem tranças,

– Assim como há um velho muito velho que inventa as palavras, também nosso coração, quando precisa, sabe inventar palavras[44].

“E, como dizem os mais velhos, foi assim que aconteceu”

 

Na conversa literária filosófica presente neste artigo, surgiram várias questões e convites para repensar o modo como protagonizamos a alteridade nas nossas pesquisas. Em se tratando da infância, tema central deste artigo, não se trata de uma temática insuficiente para incentivar a construção de perguntas filosóficas, antes impele o nosso olhar para o como privilegiamos certas investigações em detrimento de outras. Outra alteridade foi a filosofia africana, pois para as epistemologias colonizadas há uma desconfiança se as investigações críticas africanas sobre a realidade sejam mesmo filosofia. Em grande medida, a filosofia africana e a infância compartilham tais dificuldades por causa da ideia de universalidade que possui em si a contradição de ressaltar “o um, para a exclusão total do outro lado. Este parece ser o sentido dominante do universal”[45]. E essa construção do universal acaba por conceber o conhecimento como uma objetividade sem corpo e sem localização geográfica. Em outras palavras, criou-se um mito: “Todo conhecimento é epistemologicamente localizado no lado dominante ou subordinado das relações de poder [...] A neutralidade e a objetividade descorporada e deslocalizada da ego-política do conhecimento é um mito ocidental”[46].

Santiago Castro-Gomez[47] argumenta que essa tentativa de construir o conhecimento sem “corpo e localização” originou uma hybris, uma desmesura, por tentar se posicionar no ponto zero. Esse posicionamento define-se em como elaborar uma perspectiva que não tome parte entre os diversos pontos de vistas. Esse (falso) posicionamento não se faz presente em Ynari que não se furta em colocar a própria perspectiva entre os eventos. Por isso presenciamos a palabre atuando nessa narrativa por circular e orientar uma série de discursos e de redes a partir da coexistência de diferentes sujeitos.

Outro ponto desse debate é o significado de ficção, já que Ynari como sendo uma personagem de uma narrativa literária infantil convida ao leitor e à leitora perceber o mundo não como atrelado ao absolutismo da verdade, e sim mostra como na maioria das vezes um evento esconde, em seu interior, uma tensão entre a verdade e o falso. Essa tensão forma a própria ficção e influência até mesmo o próprio significado de ser humano, ou seja, constrói uma “antropologia especulativa”[48]. Isso é possível pelas intenções e pela posição singular de Ondjaki na exposição da protagonista Ynari como um ser animado, corporal, vivo e, por efeito, pensante. E a protagonista movimenta-se através de três elementos: o encontro, a coração e a velhice.

O encontro simboliza a descoberta do outro como constituinte do si mesmo, de maneira que transforma o ser em uma relação entre caminhos e compartilhamentos de mundo: “No que me diz respeito são aqueles que aprendi desde o primeiro instante em que te encontrei. Talvez do nosso diálogo possa emergir um Ensino capaz de nos reconciliar a ambos no interior daquela indivisibilidade humana, onde nada que seja humano nos é estranho[49]. O coração manifesta a própria cultura africana em suas formas de encantamento através da emanação de forças que anima o existente: “onde o mesmo não é universal, ou abstrato, mas subordinado aos movimentos dos animais, das pessoas, da natureza ‘constituído de partes heterogêneas e descontínuas’”[50]. A velhice funda o conhecimento por atribuir sentido às palavras que contém histórias que antecedem e consolida toda perspectiva de vida: “comunicação de um Cosmos que já inclui passado e futuro. Nesse processo, a palavra pronunciada é muito importante, porque pressupõe hálito – logo, vida e história do emissor”[51]. E com a reunião desses três elementos, a Palabre manifesta a sua presença que “consiste em agir criticamente para identificar os momentos nos quais a repetição nos impede de criar e, assim, libertar o pensamento dos lugares comuns, abrindo espaços libertadores”[52]. E essa abertura de espaço é pedagógica, ou seja, “é sempre uma troca intersubjetiva; aliando-as a processos solidários e colaborativos e que busquem tratar de modo acolhedor todos os saberes que nos circundam, uma vez que de algum modo estaríamos conectadas/os com todos eles”[53].

Portanto, essa conexão que emerge dessa abertura de espaços ressalta o protagonismo infantil na conversa entre a filosofia e a literatura e readequar o entendimento sobre o cânone. Além do que se a “neutralidade do conhecimento” tenta negar a multiplicidade em prol da unidade, por outro lado, basear uma pesquisa desde a infância tem o efeito da organização do comum a partir da variedade de conhecimentos. Tomando essa posição em suas variações, a principal consequência é compreender a humanidade enquanto um movimento contínuo de transformações que circula as particularidades como cultura, localidade, gênero, raça e faixa etária para a cada instante interrogar: como ser humano? Aplicando tais considerações, a filosofia africana e a literatura infantil concretizam-se através de uma proposição pluriversal que convida uma transgressão às fronteiras das atividades acadêmicas.

 

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[1] HEIDEGGER, O que é isto – a filosofia?, p. 17.

[2] KANT, Lógica, p. 44.

[3] SANTOS, Filosofia e diversidade, p. 19.

[4] Ibidem.

[5] Subalternidade no sentido explorado por Gayatri Spivak, isto é, quando é construída uma crença de impossibilidade de falar no estrato social dominante requerendo a presença de alguém para “falar por/pelo” subalterno. Ver SPIVAK, Foreword: Upon Reading the Companion to Postcolonial Studies, 2000.

[6] Hegel, Lecciones sobre la Filosofía de la Historia Universal, p. 279.

[7] BIDIMA, Law and the Public Sphere in Africa, 2014.

[8] ONDJAKI, Ynari: a menina de cinco tranças, 2010.

[9] Ibidem, p. 7.

[10] Ibidem, p. 9.

[11] BIDIMA, Law and the Public Sphere in Africa, p. 34

[12] Ibidem, p. 17.

[13] Ibidem, p. 17.

[14] ONDJAKI, op.cit., p. 8.

[15] Ibidem.

[16] BIDIMA, op. cit., p. 18.

[17] KANT, O que é esclarecimento?, p. 100. ( grifos do autor).

[18]  AGAMBEN, Profanações, p. 28. (grifos nossos).

[19] Ibidem, (grifos nossos).

[20] OLIVEIRA, Epistemologia da ancestralidade, p. 44.

[21] BIDIMA, op. cit., p. xxii.

[22] Ibidem.

[23] ONDJAKI, op. cit., p. 13.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem.

[26] ARISTÓTELES, Da interpretação, 2013.

[27] A importância do coração para medir a potência das palavras pode ser relacionada com a cultura do Egito antigo, onde as palavras quando exprimem a “verdade” do coração também exprimem a retidão da pessoa. Renato Noguera explica que “na cultura egípcia, o pensamento é um atributo do coração, por isso a língua, isto é, as palavras lhe devem fidelidade. Ora, pensamos com o coração e as palavras que dele saem são como pinturas. Aqui temos diversos elementos que merecem vagar. Primeiro, dizer que pensar é uma atividade do coração traz uma compreensão de que pensar reúne lógica, emoções e o caráter da pessoa”. Ver NOGUERA, Filosofia africana na antiguidade: tecendo mundos entre ancestralidade e futuridade, p. 199.

[28] Mogobe Ramose argumenta sobre a pluriversidade como forma de construir filosofias que são protagonizadas por diversas vozes: africanas, asiáticas, ameríndias, feministas, infantis. Contrariando a universalidade que expõe uma alternativa à produção filosófica e apesar de pensar uma filosofia sem sexo, sem cor, sem localização, sem faixa etária não se enxerga como mais um modo particular da atividade filosófica. Ver RAMOSE, Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana, 2011.

[29] Bidima, op. cit., p. 18.

[30] ONDJAKI, op. cit., p. 16.

[31] Ibidem, p. 24.

[32] Cheikh Anta Diop em suas pesquisas sobre a correspondência da civilização egípcia antiga (Kemet) com as outras civilizações africanas. Um dos aspectos similares é a compreensão do Khaibit (sombra) como princípio animador que conecta o Sahu (corpo espiritual) com o Ib, o coração que anima o corpo físico. Ver DIOP, Nation Negre et Culture: de l’antiqué nègre égyptienne aux problèmes culturels de l’Afrique Noire d’aujpurd’hui, 1973.

[33] Descartes, meditações, p. 31.

[34] ONDJAKI, op. cit., p. 24.

[35] Ibidem, p. 27.

[36] Ibidem, p. 29.

[37] Ibidem.

[38] BIDIMA, op. cit., p. 21.

[39] Ibidem, p. 22, (grifos do autor).

[40] Ibidem.

[41] ONDJAKI, op. cit., p. 30.

[42] BIDIMA, op. cit., p. 35.

[43] Ibidem, p. 29.

[44] ONDJAKI, op. cit., p. 43.

[45] RAMOSE, Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana, p. 10.

[46] GROSFOGUEL, La descolonización de la economía política y los estudios postcoloniales: Transmodernidad, pensamiento fronterizo y colonialidad global, p. 22.

[47] CASTRO-GOMEZ, Decolonizar la universidad: La hybris del punto cero y el diálogo de saberes, 2007.

[48] SAER, O conceito de ficção, p. 4.

[49] CARNEIRO, A construção do outro como não-ser como fundamento do ser, p. 20.

[50] MACHADO, Ancestralidade e Encantamento como inspirações formativas: filosofia africana mediando a história e cultura africana e afro-brasileira, p. 19.

[51] SODRÉ, O terreiro e a cidade, p. 104.

[52] FLOR DE NASCIMENTO, Tecendo mundos entre uma educação antirracista e filosofias afro-diaspóricas da educação, p. 207-208.

[53] Ibidem, p. 209.