Submissão: 10/09/2019 Aprovação:
10/09/2019 Publicação: 30/09/2019
Resenhas
“É possível pensar o samba por meio
da filosofia?”
Resenha da obra de SILVA, Wallace Lopes (Org.). Sambo, logo penso: afroperspectivas
filosóficas para pensar o samba. 1°ed. Rio de Janeiro: Hexis/Fundação
Biblioteca Nacional, 2015.
Nilton José Sales Sávio
Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de São
Carlos, bolsista CNPq.
nilton-savio@hotmail.com
E se pensássemos o samba por meio da
filosofia? Uma análise possível? Bom, talvez estranharíamos um pouco, na medida
em que parece não ser algo da alçada do pensamento filosófico como o
conhecemos. Ora, provavelmente nunca diríamos algo desse gênero, se no lugar do
samba estivesse a música erudita, por quê? Existiria um limite do que podemos
ou não pensar filosoficamente? Alguns até argumentarão que seria possível,
pouco provável, mas possível, estudar o samba, desde que fosse por meio da
estética. E se quiséssemos mais? Ir mais longe? Pensar a ética pelo/no samba?
Com certeza, isso não seria possível se ficássemos restritos a formação que a
academia nos proporciona, aos sistemas que nos apresentam. Devemos nos
questionar sobre esses sistemas: por que o grupo de autores não poderia ser
expandido? Por que os temas não são ampliados? Por que temos dificuldade em
encontrar uma filosofia legitimamente brasileira?
A obra organizada por Silva é
precisamente uma resposta a esse modo de se fazer filosofia, que propõe
considerar inclusive a forma como são construídos os sistemas, como as regras
são dadas e de onde elas vêm. Ao longo dos seus onze capítulos, compostos por
artigos de diversos autores, a filosofia afroperspectivista
é apresentada, de forma dinâmica, séria e muito original, mesmo incômoda. Um
projeto de alta magnitude como este é incômodo, não tem saída, por quê? Porque
propõe repensar a forma como fazemos filosofia, indo até as origens: a
filosofia é mesmo grega? A história é recomposta, o universal torna-se pluriverso, “o reconhecimento de várias possibilidades, de
muitas perspectivas”[1],
não somente europeus, soma-se africanos, indígenas e povos ameríndios.
Por consequência, olhar o mundo por
meio do afroperspectivismo, nos permite falar do
samba, porque reivindica que todo o jogo seja revisto: o europeu dominava as
regras, o árbitro, o campo e toda a torcida estava ao seu favor. Desse modo,
continuaríamos blasfemando se cogitássemos uma filosofia brasileira, se
olhássemos nossas particularidades e quiséssemos refletir sobre elas, não
haveria espaço: o Brasil também é negro e indígena. Quando esquecemos isso
nunca seremos originais, o jogo naquele universo
é deles, entramos em campo derrotados, sem direito a questionarmos as
instâncias superiores. Não obstante, e se buscássemos encontrar quem somos? Não
com a intenção de que eles nos aprovassem – o que não mudaria o quadro, seria o
mesmo jogo, as mesmas regras. Segundo esta compreensão, aparentemente
acredita-se que a filosofia tradicional é excluída, pelo contrário, o pluriverso não a despreza, ele busca evidenciar a
multiplicidade de perspectivas, de atores, de lugares de fala, isso inclui o
pensamento europeu. Como demonstração é interessante observar as referências
dos capítulos da obra: Nietzsche, Deleuze, Guattari, Lacan, dentre outros. A
diferença é que nessa roda também são
convidados: Molefi Asanti, Théophile Obenga, Mogobe Ramose, Maulana Karenga, dentre muitos
outros. A partir desse panorama, seria enganoso crer que é procurada a
supremacia desta filosofia, o mesmo quadro, apenas com regras novas, outro
árbitro, campo e torcida. Não existe a intenção de centralização cultural, o
próprio uso de uma bibliografia que inclui autores tradicionais serve como
início da defesa.
Fatalmente, em torno dessa construção
indenitária realizada pelo afroperspectivismo, as
suspeitas são enormes, dado a dimensão dos preconceitos, as acusações serão
variadas: falta de rigor e critérios, racismo às avessas, pseudofilosofia etc.
Seria improfícuo responder a essas acusações, quando partem, na maioria das
vezes, de um senso comum transvestido de ciência, critica-se antes de estudar,
é um criticismo a priori. Por outro
lado, muito proveitoso seria a dedicação à leitura da obra, pois o “rigor e critério”
passam pela análise do contraditório, algo bem esquecido pelos “críticos a priori”: se embasam em informações
gerais, no “ouvir falar”, sem sequer darem ao trabalho da leitura, do
conhecimento da proposta, de seu estudo. O próprio receio – ou a acusação –
acima referido, do estabelecimento de uma supremacia afroperspectivista,
seria facilmente distanciado com a simples leitura.
Um dos primeiros aspectos que saltam
aos olhos analisando a obra, consiste no enraizamento dos temas às vidas dos
pesquisadores e pesquisadoras, sem que isso seja fator preponderante para
suposta falta de “rigor e critério”. Todos e todas têm suas experiências com o
samba, seja porque são frequentadores assíduos dos espaços onde ele é feito,
seja ainda por uma vinculação afetiva. Ao contrário de ser um problema,
indubitavelmente é uma virtude do trabalho.
Os onze capítulos da obra, em nossa
concepção, podem ser divididos em dois grupos: I) fundamentos afroperspectivistas e do samba (capítulos de 1 a 4): nessa
primeira parte os assuntos são mais extensos, abordam aspectos mais pluriversais da temática, procuram falar de origens,
expondo ainda os fundamentos conceituais de toda a obra, a afroperspectividade;
II) Rostos e vozes do samba (capítulos de 5 a 11): esta parte é mais restrita,
na medida em que trata, em cada capítulo, de um/uma grande sambista, no qual
procura-se aplicar, em análises muito originais, os conceitos e fundamentos
expostos na primeira parte.
O primeiro capítulo intitulado Praças negras: territórios, rizomas e multiplicidade
nas margens da Pequena África de Tia Ciata (Wallace Lopes Silva e Renato Noguera) considera
o enraizamento do samba no sentido espacial (Pequena África e outras
localidades), bem como seus limites originários, a saber, as relações entre o
espaço, as pessoas e o samba; Sambando
para não sambar, afroperspectivas filosóficas sobre musicidade do samba e
a origem da filosofia é de Renato
Noguera é um verdadeiro manifesto da afroperspectividade, expondo suas origens, suas
múltiplas possibilidades e princípios fundadores; em Arqueologia do samba enquanto arqueologia do poder, Filipi Gradim,
com referencial nietzschiano, pensa a distinção entre começo e princípio em
face do advento do samba, com o escopo de entender “de onde vem o samba? Ou melhor: o que é o samba desde que o samba é o
que é?”[2],
posteriormente analisa variáveis que compunham as manifestações na casa de Tia Ciata; no último capítulo da primeira parte, Roda de Samba “Mandala”
que (en)canta o samba: um território de anunciação,
Sylvia Helena de Carvalho Arcuri propõe que olhemos
as rodas de samba em seu potencial espacial, simbólico e criativo, não somente
no que diz respeito à arte, contudo, no plano geral da cultura, e além, no
próprio pensamento: filosofar na roda de samba, com ela e sobre ela.
A segunda parte do livro é um convite
para que possamos vivenciar o samba, conhecer sua poesia e seus poetas, ou
ainda, seus filósofos: Noel Rosa, Wilson Batista, Dona Ivone Lara, Bezerra da
Silva, Leci Brandão, Jovelina, Zeca Padodinho e Almir Guineto. O trabalho realizado pelos
autores, não é simples análise das letras, é isto e muito mais. Os sambistas
são mostrados por seu discurso, poética e pensamento, sem que tenhamos somente
uma análise estética, em muitos momentos emerge a ética e a própria metafísica.
Noel Rosa e Wilson Batista: Intensidade e
cartografia na embriaguez de um andar vadio e delirante de Felipe Ribeiro
Siqueira e Wallace Lopes, nos apresenta a ressignificação da figura do malandro
e do próprio conceito de vagabundo; Marcelo de Mello Rangel no capítulo Dona Ivone reencanta
o tempo no sonho, no amor e no samba, analisa o conceito de tempo na
poética de Dona Ivone Lara, no qual permite o estabelecimento de um espaço
ético que fornece ferramentas para enfrentarmos os problemas concretos da
existência; Felipe Ribeiro Siqueira em Bezerra
da Silva, a máquina de guerra do samba, critica o lugar subalterno da
imaginação em relação à razão, abrindo caminho para pensar a obra de Bezerra da
Silva, com determinante presença da política; A força de Leci Brandão de Marcelo José Derzi Moraes aduz a força da criação da sambista, que passa
por um pensamento estético-político, sendo intérprete dos marginalizados e
minorias; Eduardo Barbosa no seu trabalho intitulado Jovelina: pérola do espírito partideiro, realiza singela e
cuidadosa homenagem à Jovelina Perola Negra; Felipe Ribeiro Cerqueira no
capítulo Zeca Pagodinho e o tempo rubato, com muitos relações conceituais com o capítulo
sobre Bezerra da Silva – também de sua autoria –, desenvolve o problema do
tempo, segundo a poética de Zeca Pagodinho; Almir
Guineto: o moralismo do samba diante dos impasses do gozo, trata do
moralismo interpretado por Almir Guineto, a partir de uma análise lacaniana
realizada pelo autor Guilherme Celestino.
O
cuidadoso leitor e crítico poderá ter percebido que ao longo do texto, não é
realizada críticas diretas nem ao afroperspectivismo,
tampouco aos trabalhos contidos na obra, seria simples omissão de nossa parte?
Não, ao contrário, decidimos que não
as apresentaríamos, com a finalidade de que elas não tivessem mais atenção do
que o convite ao estudo da obra. Afinal, para aqueles que dão de ombros para os
temas aqui abordados, que estão confortáveis na forma como a filosofia é feita
em geral, qualquer crítica serviria de pretexto para que ignorassem a obra, ou
mesmo, argumentassem ardilosamente quanto a suposta desnecessidade de seu
estudo. Nosso principal objetivo consistiu em divulgar o trabalho, fruto de
inumeráveis esforços, que apresenta um caminho original para que pensemos
velhos temas da filosofia tradicional. A obra também pode ser vista como
excelente material para a formação de professores, visto que propõe um caminho para abordagens da disciplina
na sala de aula, em ambientes no qual a “filosofia universal” pouco atinge ou
não ressoa, principalmente em realidades socioeconômicas de vulnerabilidade e
de risco. Os temas que esta filosofia desenvolve estão próximos dos jovens,
falam diretamente do que eles vivenciam cotidianamente. Isso não nos levaria a
uma proposta exclusivista de estudo da filosofia – amplamente praticada desde
sempre nesses espaços, com ampla conveniência dos formadores, sem nenhum incômodo
geral -, porém, abriria espaço mesmo para os próprios pensadores tradicionais,
sem querer que o afroperspectivismo se torna apenas
uma “isca”, que acabe por levar novamente aos universais.