Submissão: 10/09/2019 Aprovação:
10/09/2019 Publicação: 30/09/2019
Interfaces da Filosofia Africana
Problemas de linguagem na filosofia africana
Language problems in African
philosophy
Rogério Saucedo Corrêa
Professor do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
rogerio.fsc@gmail.com
Resumo: A comunidade filosófica africana
possui um interessante, profícuo e importante debate sobre a linguagem. Por um
lado, há os filósofos essencialistas cuja tese principal é o uso das línguas
nativas para o ensino e prática filosófica. Por outro lado, há os filósofos não
essencialistas que não se opõem ao uso de línguas estrangeiras para o ensino e
prática filosófica. Neste artigo apresento os principais pontos deste debate a
partir do quadro desenhado por Fayemi e argumento que
da tese ideológico-política dos essencialistas não se segue a tese metafísica
da impossibilidade de se expressar determinados aspectos da realidade.
Palavras-chave: Linguagem; Filosofia africana;
Essencialistas; Não essencialistas
Abstract: The African philosophical community has
an interesting, fruitful and important debate on language. On the one hand,
there are the essentialist philosophers whose main thesis is the use of native languages
for teaching and philosophical practice. On the other hand, there are
non-essentialist philosophers who do not oppose the use of foreign languages
for teaching and philosophical practice. In this article, I
present the main points of this debate from the frame projected by Fayemi and
argue that the political-ideological thesis of the essentialists does not imply
the metaphysical thesis of impossibility to express certain aspects of reality.
Keywords: Language;
African philosophy; Essentialist; Non-essentialist
Introdução
Em
The problem of language in contemporary African philosophy: some comments[1],
Fayemi oferece um panorama da discussão filosófica
africana contemporânea sobre a linguagem. Fundamentalmente, o debate foi
suscitado pela obra Philosophy and African Culture[2],
de Wiredu. Nesta ele sustenta que os filósofos
africanos devem adotar as línguas nativas para ensinarem aos estudantes temas e
questões filosóficas, pois elas são mais apropriadas do que as línguas
estrangeiras para se desenvolver esta tarefa. Esta posição faz parte da sua
proposta de filosofia da decolonização.
A
questão posta por Wiredu desencadeou um debate entre
os filósofos africanos, o qual é constituído de duas concepções gerais. Por um
lado, os conservadores, e, por outro lado, os progressistas. Os primeiros
sustentam que o uso das línguas nativas no filosofar é fundamental, pois evita
distorções e falsas representações dos sistemas africanos de conhecimento e
reflexões filosóficas. Nessa linha, além de Wiredu,
estão os filósofos Hallene e Sodipo[3],
waThiong’o[4],
Ogunmodede[5],
Gyekye[6],
Bewaji[7],
Uroh[8]
e Afolayan[9].
Os segundos, é claro, são contra a posição conservadora. Portanto, eles não
veem problemas em se usar línguas estrangeiras para fazer filosofia africana.
Neste grupo encontram-se filósofos como Bello[10],
Makinde[11],
Tangwa[12]
e Azenabor[13].
A
questão sobre o uso ou não das línguas nativas é importante não apenas para os
filósofos africanos, mas para quaisquer filósofos, inclusive os brasileiros,
que tenham interesse na filosofia africana. No caso de filósofos negros
brasileiros ela é duplamente importante. Suponha que assumo a posição
conservadora. Nesse caso, duas consequências podem se seguir. Em primeiro
lugar, eu deveria investigar qual a minha ascendência africana para aprender a
língua e poder filosofar nesta língua. Na impossibilidade disso, restar-me-ia
escolher arbitrariamente alguma língua africana e aprendê-la. Em segundo lugar,
caso não consiga efetuar nenhuma das duas condições anteriores, eu estaria
impossibilitado de discutir qualquer problema filosófico compartilhado entre
filósofos africanos, pois falo uma língua estrangeira. Pior do que falar uma
língua estrangeira, falo uma língua que os filósofos conservadores consideram
colonizadora[14].
Evidentemente que uma consequência dessas não é desejável para qualquer um que
tenha interesse nas questões e problemas da filosofia africana. No entanto, se
os filósofos conservadores estão corretos, as portas para quem não fala uma
língua africana, se não estão fechadas, estão semifechadas.
No
que segue, reconstruo o panorama apresentado por Fayemi,
mas não apenas isso. Apresento uma outra maneira de classificar os dois grupos
de filósofos que não como conservadores e progressistas, pois penso que esta
classificação não captura um pressuposto filosófico fundamental nesta discussão
toda. Dada esta caracterização, formulo um argumento contrário à perspectiva
conservadora, o qual não assume o pressuposto que está na base da posição
conservadora, a saber, uma concepção essencialista da linguagem.
Essencialistas, não essencialistas e consequências
Um
primeiro aspecto importante dessa discussão é a classificação de Fayemi. Segundo esta, o debate contemporâneo dá-se entre
conservadores e progressistas. É verdade que ele reconhece outra classificação
proposta por Keita[15]
de acordo com a qual se tem fenomenólogos e
pragmáticos. Ele não oferece, no entanto, nenhum argumento, explicação ou
justificativa quer seja para não adotar a categorização de Keita
quer seja para aceitarmos a sua própria classificação. Desse modo, penso que
sua proposta tem apenas fins didáticos para lhe permitir discutir seu ponto. De
fato, é isso que ele dá a entender quando afirma que sua classificação “é
apenas para a conveniência de uma categorização coletiva”[16].
Creio, porém, que categorizar os filósofos como conservadores e progressistas
pode induzir a uma leitura menos caridosa. Nesse sentido, os filósofos
conservadores seriam menos capazes de reconhecerem as potencialidades da
linguagem ou das línguas, ao passo que os progressistas não. O ponto, portanto,
é que a leitura pressupõe um juízo de valor sobre os dois grupos. Por essa
razão, adoto o termo essencialista para os conservadores e não essencialistas
para os progressistas, pois eles são neutros do ponto de vista de juízos de
valores e capturam de modo mais adequado um pressuposto filosófico básico desta
discussão.
A
característica básica da posição dos essencialistas é que existam certos
aspectos da realidade que não podem ser expressos ou capturados pelas línguas
estrangeiras. Nesse sentido, determinado aspecto da realidade ganense ou
nigeriana não pode ser expresso adequadamente no inglês, francês ou alemão. O
interessante é que, se isto está correto, nem mesmo o português é adequado para
dizer ou capturar este aspecto da realidade, pois ele também é uma língua não
nativa. Um exemplo desse tipo de impossibilidade é discutido por Wiredu em Truth and an African
Language[17].
Os filósofos não essencialistas discordam desse tipo de abordagem. Uma resposta
possível seria dizer que se a língua não é capaz de expressar ou capturar
determinado aspecto da realidade, então é necessário aprimorar as ferramentas
linguísticas necessárias para tal. Observe que isso é diferente de dizer que é
necessário aprimorar a tradução de uma fórmula para a língua Akanda, por exemplo, pois o sentido da via de tradução não
é este, mas sim o contrário. É a formalização que deve expressar de modo
adequado aquilo que é dito na linguagem ordinária e não o contrário. É verdade
que os filósofos precursores da filosofia analítica da linguagem viam a lógica
como uma ferramenta de correção da linguagem ordinária. Isso, no entanto, não é
uma condição necessária seja para fazer lógica seja para fazer filosofia. Para
Russell e Frege era, pois eles viam a linguagem ordinária como um entrave para
o desenvolvimento do projeto logicista, uma vez que
eles consideravam a existência de ambiguidades um entrave para o uso de uma
linguagem rigorosa que reduzisse a matemática à lógica. Isso, porém, era um
pressuposto dos logicistas. Vejamos, agora, mais
pontos do quadro traçado por Fayemi.
O
quadro desenhado por Fayemi começa com uma
triangulação entre linguagem, pensamento e realidade[18],
pois ele pensa que a filosofia é um estudo da realidade, sua natureza e seus
constituintes[19]. Tal tarefa
só pode ser levada a cabo por meio do pensamento e da linguagem. A realidade é
a totalidade de todas as coisas, estruturas, eventos e fenômenos que atualmente
existem, sejam elas observáveis ou não, compreensíveis ou não[20].
O pensamento é a capacidade humana para autoconsciência e conhecimento[21].
Por fim, a linguagem é um fenômeno sócio-cultural
usado na comunicação[22].
Após estas breves caracterizações, Fayemi discute a
tríade linguagem-pensamento-realidade no pensamento de Kant, Wittgenstein, Vigotski e Whorf. Tudo isso para mostrar duas coisas. Em
primeiro lugar, o fato de que todos estes pensadores concordam que pensamento e
linguagem não são idênticos[23].
Nesse sentido, eles são considerados como sustentando uma posição extrema. Em
segundo lugar, pode-se pensar que, embora a linguagem não determine necessária
e completamente o pensamento, ela afeta os padrões de pensamento das pessoas de
uma ou outra maneira. Ela faz isso seja promovendo o significado de alguns
contrastes conceituais seja enfatizando outros. Aqui, o ponto visado por Fayemi é fundamental e fica mais claro a partir do
argumento que ele oferece. Nesse sentido, dado que pensamentos são flexíveis,
não completamente dependentes e simplificados por terminologias linguísticas,
segue-se que diferenças na linguagem não significam necessariamente diferenças
nos padrões de pensamento. Além disso, dado que a linguagem é generativa e
dinâmica, ela não apenas descreve a realidade, mas ela cria a realidade. Como
temos diferentes linguagens, então diferentes linguagens criam diferentes
realidades. Este argumento contém duas teses. A primeira tese chamo de gap entre linguagem e pensamento. A
segunda chamo de tese da criação da realidade. Estas teses são fundamentais
para compreendermos o problema da linguagem na filosofia africana, pois, se
aceito a tese forte, então a posição dos essencialistas possui um núcleo duro,
mas, se aceito a tese moderada, então a posição dos não essencialistas é mais
flexível. Vejamos, portanto, o que dizem os essencialistas.
Como
o principal essencialista é Wiredu, a análise não
apenas começa como é centrada nas suas posições. O objetivo principal dele é
propor a filosofia da decolonização, a qual é
compartilhada pelos demais essencialistas. Aqui, penso que a posição de Wiredu possui duas dimensões que, de certa forma, estão
entrelaçadas. Por um lado, ela possui uma dimensão política. Por outro lado,
uma dimensão metafísica. A dimensão política configura-se nos atos de
resistência ao processo de colonização sofrido pelos povos africanos. A
dimensão metafísica diz respeito à perda dos elementos que identificam e
individualizam as culturas africanas em função da colonização. Desse modo, o
colonialismo caracteriza-se como uma brutal imposição político-cultural por
meio de um instrumento fundamental. A imposição de uma educação europeia.
A
imposição de uma educação europeia implica na imposição de categorias
estrangeiras de pensamento em detrimento dos sistemas africanos de pensamento,
com duas consequências importantes. Em primeiro lugar, a produção de distorções
das visões africanas de mundo. Isto é a consubstancialização
da dimensão metafísica que mencionei acima. Em segundo lugar, a instalação de
instabilidades na sociedade africana. Esta, por sua vez, é a consubstancialização da dimensão política. Posto desta
forma parece que este processo é ou foi uníssono e totalmente vitorioso. Na
verdade, porém, o processo de colonização dos povos africanos não foi algo tão
vitorioso assim. Não esqueçamos, inclusive, que boa parte desse processo não se
deu por meio de uma aculturação, mas por meio de violência física. De qualquer
modo, não creio que a aculturação seja tão eficaz como transparece essa
discussão. Aqui, é interessante lembrar o que Appiah
diz sobre a África anglófona e francófona cujas populações desenvolveram
mecanismos de resistência cultural que lhes permitiram manter suas culturas
nativas salvas da colonização[24].
É verdade que corremos um risco de generalizações, pois o foco da discussão é a
prática filosófica e a adoção ou não de línguas nativas nestas. No entanto, ela
oscila rapidamente e inadvertidamente para dimensões de resistência cultural de
um povo, uma vez que a língua de cada povo tem a ver com a sua própria
identidade. Deve-se frisar, portanto, que se trata de avaliar a contribuição
que a filosofia feita em língua nativa pode ou não proporcionar para a decolonização.
A
filosofia da decolonização ou decolonização
conceitual é uma reação e resistência à colonização. Para tanto, sua peça
principal é o uso das línguas nativas africanas a fim de fazer filosofia. A
adoção de línguas nativas africanas é fundamental, pois “o modo como sua
linguagem funciona pode predispor você a várias maneiras de falar e, de fato, a
várias maneiras de raciocinar”[25].
Não é difícil visualizar a consequência disso para a filosofia. Se sou educado
filosoficamente em língua estrangeira, então aprendo a filosofar em uma língua
que não é a minha. Logo, raciocino com um esquema conceitual que não é o da
minha cultura, pois a linguagem não é neutra. Portanto, a decolonização
requer dissociar o pensamento filosófico africano das estruturas conceituais
impregnadas e transmitidas por meio das línguas estrangeiras. O ápice dessa
concepção essencialista é que “... se não usamos línguas africanas na educação,
especialmente no pensamento e discurso filosófico, nossa emancipação da
dominação colonial permanece incompleta”[26].
O próximo passo é ver o que os não essencialistas dizem.
Como
o principal não essencialista mencionado por Fayemi é
Bello, restringirei minha apresentação às suas
ideias. Estas se concentram em Philosophy and an African
language[27].
Bello tem duas teses centrais[28].
Em primeiro lugar, a recusa de que considerações linguísticas sejam decisivas
em disputas filosóficas, uma vez que elas servem apenas para fornecerem dados
adicionais. Em segundo lugar, a sugestão de que é necessário cautela por parte
dos filósofos essencialistas, pois eles super-enfatizam
a importância das suas línguas nativas.
Bello desenvolve seu texto com base na
análise de algumas concepções de Wiredu. Nesse
sentido, ele reconhece, em débito com o mesmo, ser perfeitamente aceitável que
os filósofos africanos dediquem mais atenção e cuidado as suas línguas nativas,
uma vez que isso pode gerar não apenas clareza, mas também adicionar dimensões
teóricas à filosofia africana. Esse é o caso, em particular, das reflexões de Wiredu em Philosophy and an African
Culture[29].
O problema, porém, é que Wiredu mudou de posição em
textos posteriores. A mudança, é claro, tem consequências. Tanto em The concept of truth in the
Akan language[30]
quanto em The Akan concept
of mind[31],
Wiredu abandonou sua posição inicial e adotou uma
menos tolerante com as línguas não nativas. Com relação aos conceitos de
verdade e fato, por exemplo, ele sustenta que não existe uma palavra
equivalente na língua Akan para o sentido cognitivo dos termos “verdade” e
“fato”[32].
Estas noções, porém, podem ser capturadas adequadamente pela frase akaniana “nea eta saa” (what is so[33]).
Portanto, seja lá o que for dito com o termo “fato” ou com o termo “verdade”,
pode ser dito usando a frase “nea eta saa”. É claro que todas
estas teses de Wiredu foram criticadas por outros
filósofos africanos. O ponto para Bello, no entanto,
não é este, mas sim mostrar as consequências que se seguem delas[34].
A
primeira consequência é a obscuridade na formulação da teoria da verdade como
correspondência em língua Akan, pois, quando a frase “‘p’ é verdadeira” significa “‘p’
corresponde ao fato” é vertida para a língua Akan, o resultado é “‘p’ te
saa” significa “‘p’ te saa”.
Isso é assim, dado que os sentidos dos termos “verdade” e “fato” são capturados
pela frase “te saa”.
A versão inglesa desta frase resulta em “‘p’
isso”[35]
significa “‘p’ isso”, que,
evidentemente, é uma redundância. A segunda consequência é que existem
problemas que podem ser formulados em inglês, mas não podem ser formulados na
língua Akan. Por exemplo, a questão “Como proposições verdadeiras relacionam-se
com os fatos?” é formulada na língua Akan assim “Como são as coisas que são
relacionadas com as coisas que são?”, que, é claro, não faz nenhum sentido.
Para reforçar este ponto Wiredu oferece mais um caso
exemplar.
Considere
as proposições (a) se p, então q; (b) se apenas p, então q; (c) p se e somente se q; (d) p equivale a q; e (e) ‘p se e somente se q’
equivale a ‘q se e somente se p’. O problema com essas noções lógicas
é que apenas os casos (a), (b) e (d) podem ser expressos na língua Akan, mas os
demais casos não, uma vez que a língua Akan não tem recursos linguísticos para
tal. Se isso é correto, então há noções lógicas que não podem ser expressas na
língua Akan. Isso, portanto, reforça a tese de Wiredu
segundo a qual existem certos problemas filosóficos que não são universais.
Para
Bello, há três pontos fundamentais a serem destacados
a partir da análise das posições de Wiredu[36].
Em primeiro lugar, nenhuma linguagem natural é intrinsecamente inferior ou
superior a outra. Uma língua pode ser mais desenvolvida que outra língua em
algum aspecto específico. No entanto, Bello crê que
com uma dose significativa de empenho qualquer língua pode se equiparar a
outra. Em segundo lugar, não existe nada de errado em rotular problemas
filosóficos como universais, fundamentais ou pseudoproblemas. O problema é se
estas classificações podem ser derivadas do fato de que alguns problemas não
podem ser expressos numa língua nativa ou sem redundância, como é o caso do
problema da verdade. Em terceiro lugar, insights
filosóficos podem ser obtidos a partir de fatos linguísticos e a língua de
alguém pode ser um index para suas crenças, pressuposições e cultura. No
entanto, avalia Bello, devemos ser cautelosos aos
usarmos fatos puramente linguísticos para nocautearmos crenças ou doutrinas
filosóficas. Pense, por exemplo, no caso das frases “Que sua alma repouse em
paz”, “Ele perdeu a mente” e “Ele tem uma mente aguçada”[37].
Elas podem dar a entender que quem as profere crê que a alma/mente existe e age
independentemente do corpo. Isso, por si só, não implica em um dualismo
mente/corpo. Por fim, não é impossível que duas pessoas que falam a mesma
língua tenham visões diferentes sobre um mesmo tópico filosófico. Há inúmeros
exemplos que se enquadram aqui, mas o de Bello é particularmente
interessante. Ele lembra, com respeito ao problema da verdade, que Wiredu tende para uma teoria coerentista
e pragmática da verdade, uma vez que ele crê que o problema não pode ser
expresso em língua Akan. Bedu-Addo[38],
no entanto, discorda de Wiredu e mantém que é
possível formular uma versão da teoria da verdade como correspondência em
língua Akan.
Para
finalizar é interessante apresentar a posição de Bello
sobre toda essa discussão. Quanto à possibilidade de se expressar ou não a
teoria da verdade como correspondência na língua Akan, ele afirma que se isso
não for possível, pior para a língua Akan, pois a inexpressabilidade
não diz nada sobre a teoria. Na realidade, isso diz mais sobre as limitações da
língua Akan. Nesse sentido, deve-se observar que a incapacidade da língua Akan
expressar a teoria da verdade como correspondência indica que é necessário um
maior refinamento ou desenvolvimento dos seus recursos técnicos e linguísticos
para que ela possa expressar determinados problemas técnicos localizados.
Embora
assuma um lado no debate contemporâneo sobre a linguagem na filosofia africana,
Fayemi é um pouco mais moderado que Bello em suas conclusões, pois ele pensa que a divisão
entre essencialistas e não essencialistas não é necessária. Pode-se argumentar
contra um essencialista, por exemplo, que do fato de se falar e escrever em
outra língua que não a sua língua nativa não se segue necessariamente que
alguém assuma as ideias e posições colonialistas[39].
De modo análogo, pode-se argumentar contra um não essencialista que é ingênuo
supor que do fato de se escrever ou falar em uma língua não nativa segue-se que
se escapa das ideias e concepções colonialistas[40].
De qualquer maneira, Fayemi esboça uma agenda para os
filósofos africanos[41].
Ao fazê-lo, ele menciona um ponto que considero importante.
A
agenda inclui questões que devem ser formuladas, pensadas e respondidas pelos
filósofos africanos. Nesse sentido, por que os filósofos africanos continuam
fazendo filosofia africana em línguas estrangeiras? Existem esforços sendo
realizados para se criar um glossário em línguas africanas ou traduções da
filosofia ocidental para as línguas africanas? Dado o grande número de línguas
africanas, qual deve ser escolhida para se fazer filosofia africana? Estas questões
são importantes; no entanto, mais fundamental, até mesmo mais do que a proposta
dos essencialistas, é que se deve entender e superar os desafios de se fazer
filosofia africana contemporânea em línguas não nativas[42].
Para tanto, primeiro deve-se perceber a carência de tradição escrita nas
línguas africanas. Segundo que as línguas não nativas, em especial as
europeias, usadas para fazer filosofia africana são as línguas do poder. Desse
modo, se os filósofos africanos compartilham nessas línguas, então eles fazem
isso porque estão acostumados a usar estas línguas. Além disso, há uma razão
econômica para o uso de línguas não estrangeiras. O uso de línguas nativas
implica em uma maior audiência e isso tem implicações práticas, uma vez que um
público maior é atingido. Estas razões são muito mais básicas do que promover a
comunicação intercultural e a discussão entre os filósofos africanos de
diferentes línguas nativas[43].
Considerações finais
Neste
artigo reconstruí os principais aspectos do quadro traçado por Fayemi do debate contemporâneo da filosofia africana sobre
a linguagem. Nesse sentido, por um lado, há os filósofos essencialistas, que
propõem o uso das línguas africanas nativas para a prática e ensino da
filosofia. Esta posição tem um aspecto político-ideológico e outro metafísico.
Por outro lado, há os não essencialistas, que não consideram um problema o uso
de línguas estrangeiras para o ensino e prática filosófica.
Nessa
discussão creio que há uma distinção importante a ser feita. Ela foi mencionada
acima quando falei sobre a agenda proposta por Fayemi.
Do meu ponto de vista, ele está correto ao afirmar que as línguas não nativas
são as línguas do poder e quanto a isso ele comunga do ideal essencialista. Mas
disso não se segue que não se possam usar línguas estrangeiras para fazer
filosofia africana. O ponto aqui é delicado. Por isso, necessito fazer uma
distinção básica, ou melhor, retomar a distinção entre o nível
político-ideológico e o nível metafísico.
Do
ponto de vista das ações e procedimentos que uma determinada nação, país ou
grupo nacional deve ou não adotar, é plenamente legítimo que os povos africanos
implementem o uso das suas respectivas línguas não só para o ensino de
filosofia, mas para qualquer atividade. Isso, devo frisar, é uma questão de
autonomia político-ideológica[44].
No entanto, ela tem relação com uma questão de natureza metafísica. Não se
trata da questão metafísica que a tese essencialista supõe, mas de outra. Se
falar uma língua diz respeito à afirmação da identidade de um povo e, de fato,
é assim, pois não se diz dos alemães que a língua deles é o francês assim como
a língua dos italianos não é o coreano, então falar e usar as línguas nativas
africanas é afirmar a identidade de cada um desses povos. No entanto, a tese da
afirmação da identidade não se confunde com a tese da existência de aspectos da
realidade que não possam ser expressos por outras línguas que aquelas faladas
por determinado grupo, como pretende Wiredu. Nesse
ponto, meu argumento ecoa o de Bello. Se uma língua,
seja lá qual for ela, não tem recursos linguísticos para expressar determinado
aspecto da realidade, então isso diz mais da língua e da necessidade de ela
desenvolver recursos técnicos para tal do que qualquer outra coisa. Trata-se,
portanto, de uma tarefa de refinamento técnico que deve ser levada caso a caso.
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[1] FAYEMI, The
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[2] WIREDU, Philosophy
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[3] HALLEN; SODIPO,
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[4] WA THIONG’O, Decolonizing
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[9] AFOLAYAN, The
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[11] MAKINDE, African
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[12] TANGWA, Colonial
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[13] AZENABOR, Understanding
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[14] FAYEMI, The
problem of language in contemporary African philosophy: some comments, p. 01.
[15] KEITA, L, Africa
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[16] FAYEMI, The
problem of language in contemporary African philosophy: some comments, p.
01.
[17] WIREDU, Truth
and an African Language, p. 35-50. Mais abaixo, retomo os exemplos de Wiredu.
[18]
Diga-se de passagem, este é um tema clássico da filosofia ocidental. Basta
lembrar do Tractatus Logico-Philosophicus. Ver WITTGENSTEIN, Tractatus Logico-Philosophicus, 1993.
[19] FAYEMI, The
problem of language in contemporary African philosophy: some comments, p.
02.
[20] Ibidem.
[21] Ibidem.
[22] Ibidem.
[23]
Nesse ponto discordo de Fayemi com relação ao Tractatus Logico-Philosophicus,
mas não discutirei isso aqui, pois foge do meu objetivo principal.
[24]
APPIAH, Na casa de meu pai: a África na filosofia da
cultura, p. 26.
[25] WIREDU apud FAYEMI, The problem of language in contemporary
African philosophy: some comments, p. 04.
[26] Ibidem, p. 06.
[27] BELLO, Philosophy
and an African language, 1987.
[28] Ibidem,
p. 05.
[29] WIREDU, Philosophy
and African Culture, 1980.
[30] WIREDU, The
concept of truth in Akan language, 1985.
[31] WIREDU, The
Akan concept of mind, 1983.
[32] WIREDU apud
BELLO, Philosophy and an African language,
p. 05.
[33] O que é isso.
[34] BELLO, Philosophy
and an African language, p. 05.
[35] p é assim.
[36] BELLO, Philosophy
and an African language, p. 06.
[37] Respectivamente “May his soul rest in peace”, “He is out of his mind”
e “He has a sharp mind”. A tradução mais adequada de “He is out of his
mind” para o português seria “Ele perdeu a cabeça”. No entanto, ela perde o
ponto que Bello quer enfatizar.
[38] BEDU-ADDO, J. T, On
the Concept of Truth in Akan, 1985.
[39] FAYEMI, The
problem of language in contemporary African philosophy: some comments, p.
09.
[40] Ibidem.
[41] Ibidem.
[42] Ibidem.
[43] Ibidem.
[44]
Para uma análise acurada destas questões, indico o artigo de Pinto. PINTO, J.
P. Ideologias linguísticas e a
instituição de hierarquias sociais, 2018.