Submissão: 10/09/2019 Aprovação:
10/09/2019 Publicação: 30/09/2019
Interfaces da Filosofia Africana
Políticas do Amor e Sociedades do Amanhã
Politics of Love and
Societies of Tomorrow
Vinícius Rodrigues Costa da Silva
Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ)
viniciuxcostasilva@gmail.com
Wanderson Flor do Nascimento
Professor de
Filosofia e Bioética da Universidade de Brasília (UnB)
wandersonn@gmail.com
Resumo: Partindo do cenário atual das
sociedades de inimizade, tal como teorizado por Achille
Mbembe, este texto segue os argumentos de bell hooks para pensar em uma
política do amor que possa aparecer como um antídoto para os males causados
pelas sociedades da inimizade que se sustentam em uma imagem da alteridade
experimentada desde a figura do inimigo a ser combatido, mortificado, morto. Ao
valorizar o amor como uma prática - e não somente como sentimento - que envolva
o cuidado, a responsabilidade, afeto, reconhecimento, confiança, respeito,
comunicação franca, sustentamos a necessidade da construção de outro modelo de
sociedade guiado pela prática do amor, as sociedades do amanhã, que apresente
para a experiência das pessoas negras, rotineiramente violada pelo racismo,
outro jeito de estar no mundo, considerando o espírito, entendido por Sobonfu Somé como dimensão da
existência que necessita do caráter coletivo das relações, como pilar
incontornável.
Palavras-chave: Políticas do amor; Sociedade da
inimizade; Necropolítica; Espírito; Sociedades do
amanhã
Abstract: Starting from
the current context of societies of enmity, as theorized by Achille Mbembe, this paper follows the arguments of bell hooks to
think about a policy of love that may appear as a response to the ills caused
by societies of enmity that sustain themselves in an image of alterity
experienced from the figure of the enemy to be fought, mortified, dead. By
valuing love as a practice - not just a feeling - that involves care,
responsibility, affection, recognition, trust, respect, open communication, we
sustain the need to build another model of society guided by the practice of
love, the societies of tomorrow, that presents to the experience of black
people, daily violated by racism, another way of being in the world,
considering the spirit, understood by Sobonfu Somé as a dimension of existence that needs the collective
type of relationships, as an unavoidable pillar.
Keywords: Politics of
love; Society of enmity; Necropolitics; Spirit;
Societies of tomorrow
De onde partimos e o que queremos
O presente texto é fruto de indagações feitas por dois
pesquisadores negros que buscam, de alguma forma, entender o contexto que nos
forma, buscando subsídios em comunidades negras de pensamento. Estas indagações
estão preocupadas com os modos pelos quais as pessoas têm vivido e se
relacionado, sobretudo no que tange aos impactos de dinâmicas do poder em suas
vidas. Por conta disso, trata-se de um artigo de filosofia política. As
reflexões que guiam este trabalho são fortemente influenciadas por diversas
crises que o Brasil está passando, sobretudo, “a crise do amor”, como diria bell hooks[1];
crise esta que tem como uma de suas consequências, “a solidificação de uma
sociedade de inimizade”, como aponta Achille Mbembe.[2]
Nesse sentido, ao longo do artigo, buscaremos argumentar a partir desses dois
intelectuais.
As pessoas precisam de amor. E, no contexto das dores e dos
impactos do racismo na vida das pessoas que herdaram histórias coloniais,
frisemos que, para as pessoas negras, essa necessidade é imperante. Ser amadas,
dar amor e construir relações de amor. E entendemos o amor como uma experiência
que possibilite outros modos de viver menos mortificadores, que possa construir
e nutrir laços afetivos entre nós, seguindo a proposta da obra Salvation: black people and love,
desde a qual fazemos das palavras de bell hooks, nossas; o princípio basilar deste artigo.
E embora saibamos que a necessidade do amor é um fenômeno
que impacte as vivências humanas como um todo, nosso foco aqui é lidar com as
consequências do racismo anti-negro. Por isso, neste
trabalho, abordamos o significado do amor na experiência negra, demandando a
criação de uma ética e política do amor. Portanto, o presente trabalho,
inicialmente, nos leva ao coração da questão: o amor; ou melhor, a falta dele.
Nossos marcos de reflexão são prioritariamente produzidos
por pessoas intelectuais negras, partindo do suposto que há uma disputa no
terreno da intelectualidade que, quando marcado pelo lugar racial, amplia
horizontes de análise, percepções marcadas por partilhas do lugar de
existência, pela busca de uma luta pelo poder – inclusive de pensar –, não para
afirmá-lo individualmente, mas para devolver para a comunidade os resultados da
reflexão, para democratizá-los. Assim, nossos marcos estão balizados,
principalmente, nas filosofias africanas e afro-diaspóricas.
Para iniciar tais reflexões, voltamos-nos
ao pensamento de outra autora, a fim de delinear o tipo de amor sobre o qual
falaremos, ressoando a própria hooks que já nos
apresenta uma de suas definições sobre o amor: uma mistura entre “cuidado,
afeto, reconhecimento, respeito, comprometimento e confiança, bem como
comunicação aberta e honesta.”[3]
Ou seja, o amor é muito mais do que um mero sentimento, como alardeado, e nem
pode ser reduzido ao erotismo, embora não seja este um tipo dispensável de
amor. Nesse sentido, nossa outra autora, Maya Angelou
afirma, e aqui neste trabalho reiteramos sua concepção, que:
O amor cura. Cura e liberta. Eu uso a
palavra amor não como
sentimentalismo, mas como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que
mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir
disciplinadamente por nossas veias.[4]
Atualmente, não nos faltam discursos sobre o amor, mas, como
aponta hooks, há uma falência das práticas do amor,
sobretudo, na vida de pessoas negras. Em outras palavras, há diversos discursos
que clamam por amor hoje, mas não há uma práxis
do amor. Não há, hoje, uma política do amor.
Acreditamos que falar de amor hoje é nadar contra a corrente, é desafiar
o status quo[5] que nos prega uma visão
completamente essencialista do amor, isto é, o amor como apenas sentimento,
além da alta disseminação de discursos ocidentais individualistas que tendem a
nos afastar de uma ética e uma política do amor.
Sendo assim, apresentamos ao longo do presente artigo um
exercício de compreensão e reflexão acerca do que bell
hooks entende como “políticas do amor,”[6]
daquilo que Achille Mbembe
conceitua como “políticas da inimizade” e do pensamento de Sobonfu
Somé,[7]
acerca da importância do espírito neste processo, com isso, ao nos apropriarmos
do pensamento de Somé, almejamos “pensar o mundo por
outras lentes e geografias da razão.”[8]
Nesse sentido, pensar nossa sociedade enquanto estruturada
sem uma política do amor enquanto toda e qualquer orientação moral, é pensar
numa sociedade de inimizade, um projeto falho de sociedade; falho para àqueles
que pleiteiam a ética e a política do amor, que pleiteiam, portanto, a
construção das sociedades do amanhã. No entanto, há pessoas que se beneficiam
do desamor (anti-amor), sobretudo, em sociedades
contemporâneas e capitalistas. Pessoas para as quais a guerra se tornou a ordem
do dia.
Para hooks, o amor tem um poder
transformador, que é o fundamento de toda mudança social significativa, sendo
assim, sem o amor, nossas vidas não possuem significado algum, afinal, o amor é
“o coração da questão. ”[9]
Admitimos aqui que, assim como Octavia Butler[10]
o fez, dizendo que “escrevera sobre poder, porque era algo que pouco possuía,
nesse sentido, escrevemos sobre amor pois precisamos dele”. Dessa forma,
dividiremos este ensaio em alguns pontos para sistematizarmos o tema que aqui
será exposto.
Na primeira parte deste ensaio, apresentamos a ética e a
política do amor, tal como hooks, a partir do
pensamento de outros intelectuais, como Cornel West e
Martin Luther King Jr., a formulou; como uma potência revolucionária e
significativa no cerne das mudanças sociais e, a partir disso, na segunda parte
do presente texto, trataremos de apresentar a tese de Achille
Mbembe acerca das sociedades de inimizade e como isso
se relaciona com a falência de uma práxis
amorosa e garante sua consolidação através do poder necropolítico.
Nesse sentido, argumentaremos sobre como o colonialismo exerce grande
influência no processo de solidificação dessas sociedades.
Por fim, apresentaremos as reflexões de Sobonfu
Somé acerca da importância do espírito e da
comunidade, a fim de descentrar a visão Ocidental que paira sob nossas
compreensões existenciais e epistemológicas, tal como em nossas compreensões
afetivas também.
“Ao escolher amar, começamos a nos mover contra a dominação,
contra a opressão,”[11]
e para isso, força faz-se necessária, e o amor é a nossa própria força – não
apenas a conditio sine
qua non, mas a conditio per quam alcançaremos a efetiva
mudança social, que é o que defendemos ao pleitear a aplicabilidade da política
do amor em nossa sociedade.
Como o presente artigo abordará diversas questões políticas,
vale salientar o que entendemos por política.
Para Hannah Arendt, o significado de política extrapola a sua compreensão
partidária-institucional, e diz respeito à quando as pessoas se relacionam com
o intuito de criar algo novo em relação ao modo de viverem juntas, “a política
se baseia no fato da pluralidade humana,”[12]
isto é, só há política porque há seres humanos diversos em suas percepções da
realidade, em suas condições de compreensão, nascimento, cultura, origens,
contextos, educação, valores, projetos de futuro e sensibilidade. É porque os
seres humanos são diferentes e tem ideias diversas sobre como os destinos do
mundo devem se desenvolver que a política é necessária.
Mas para além da pluralidade, para que haja política, é
necessário que estas pessoas diversas sejam capazes de agir no espaço público
em concerto, disputando diretrizes para o bem comum, estabelecendo acordos e
negociações, buscando a compreensão recíproca para agirem juntas. Sendo assim,
a “política diz respeito à coexistência e associação de [pessoas] diferentes.”[13]
A pluralidade é a condição humana para a ação política. “A política surge entre
[as pessoas]”[14] e não
na interioridade individual, ela surge na disposição do estar junto.
Nesse sentido, de acordo com Hannah Arendt, a negação da
pluralidade humana é a negação da atividade política que por sua vez é a
negação das políticas do amor. Neste artigo, nossa hipótese evidencia a negação
da política – que é, também, negação da vida das outras pessoas que pensam e
são diferentes de quem somos – como um fator para a constituição das sociedades
de inimizade.
Por uma política do amor
Em 1963, o reverendo Martin Luther King Jr., se posicionou
perante cerca de 250 mil pessoas e proferiu o seu mais famoso discurso, I Have a Dream,
no qual falou sobre seu sonho de ver uma sociedade sem distinção racial, sem
racismo. Embora Luther King não deixasse isto explícito nesse discurso, o sonho
do reverendo só tornar-se-ia realidade se tal objetivo estivesse fundamentado
numa política do amor. Os objetivos de King sempre estiveram fundamentados sob
uma ética e uma política do amor, mas a cultura dominante não. Em 1967, King
salienta que:
Quando falo de amor, não estou falando
de uma resposta sentimental e fraca. Estou falando da força que todas as
grandes religiões viram como o supremo princípio unificador da vida. O amor é
de alguma forma a chave que abre a porta que leva à realidade suprema.[15]
Nesse sentido, quando o reverendo King assume e destaca a
centralidade do amor em seus discursos e experiência de vida, ele se posiciona
contra a cultura dominante, a qual está alicerçada em bases ocidentais excludentes
e anti-amor. Assim, hooks aponta que:
Luther King acreditava que o amor é,
“em última análise, a única resposta” para os problemas enfrentados por esta
nação e por todo o planeta. [...]. É realmente surpreendente que Luther King
tivesse a coragem de falar, tanto quanto ele fez, sobre o poder transformador
do amor, em uma cultura na qual esse discurso é muitas vezes visto como
meramente sentimental.[16]
No entanto, embora King ressaltasse a extrema importância de
amar nossos inimigos, ele não falava sobre o amor próprio e a autoestima. Neste
artigo, defendemos que antes de pleitearmos a aplicabilidade de uma política do
amor, de práticas amorosas, devemos nos amar. Segundo hooks:
[...] grande parte do foco de King no
amor como princípio fundamental que deve guiar a luta pela liberdade foi
direcionado para defender sua crença na não violência. Enquanto ele advertia os
negros repetidamente para reconhecerem a importância de amar nossos inimigos,
de não odiar as pessoas brancas, ele não deu tanta atenção à questão do
amor-próprio e do amor comunal entre os negros.[17]
Dessa forma, por mais que, para nós, os discursos de Luther
King nem sempre deixassem isso nítido, eles (assim como King) baseavam-se
naquilo que há de mais importante entre nós e para nós: o amor. E hooks enxergava em King, e em suas práticas, a centralidade
explícita do amor.
Neste artigo, estamos interessados em explicitar o caráter
político do amor enquanto uma saída para a crise que, segundo nossa autora, faz
que com que nós, como povo, percamos o nosso coração. “Nossa crise coletiva é
uma crise tanto emocional quanto material. Não pode ser solucionada
simplesmente com dinheiro.”[18]
A partir disso, uma política do amor baseia-se em permitir
que o amor guie nossas visões de mundo ao disputarmos o bem comum à todas as
pessoas que vivem numa comunidade. A política do amor e a ética do amor são
categorias que andam lado a lado uma vez que se complementam na medida em que
servem de instrumentos para o convívio social, no sentido de se importar com a
vida do próximo. Em última análise, a ausência do amor como política
desencadeia a falta de esperança generalizada. No entanto, aponta hooks:
O amor permanece para os negros um
caminho crucial para a cura. Em retrospecto, é claro que, se não criarmos uma
base de amor sobre a qual construirmos nossas lutas pela liberdade e
autodeterminação, as forças do mal, da ganância e da corrupção minam e acabam
destruindo todos os nossos esforços. Não é tarde demais para os negros
retornarem ao amor, para perguntar de novo as questões metafísicas comumente
levantadas por artistas e pensadores negros durante o auge das lutas pela
liberdade, questões sobre a relação entre desumanização e nossa capacidade de
amar, questões sobre racismo internalizado e auto-ódio.[19]
As ideias postas em jogo na percepção que hooks nos traz sobre o amor depreende sua dimensão ética,
na medida em que oferece elementos para que os valores que utilizamos para
guiar nossas relações com os outros e conosco mesmos seja balizado pela
dimensão de uma decisão, de um ato de amar – e de se deixar ser amado. Na
dimensão política, permite que as feridas abertas – e que precisam ser curadas
– pelo racismo deixado pela história colonial, e cotidianamente reforçadas em
dinâmicas de poder, possam ser enfrentadas em uma dimensão coletiva, que
permita um fortalecimento mútuo na construção de sociedades mais justas e menos
opressivas.
Quando essa meta (ter o amor enquanto política) não é
alcançada, a falta de uma práxis do
amor desencadeia o que Achille Mbembe
chama de sociedades de inimizade.
A sociedade de inimizade e a política
de morte
O processo de construção e consolidação das sociedades de
inimizade remonta ao colonialismo, ou seja, essas sociedades são, por
definição, herdeiras das dinâmicas de poder colonial. Segundo Achille Mbembe, a finalidade do
colonialismo “era inscrever os colonizados no espaço da modernidade.”[20]
Inscrever determinados corpos no espaço da modernidade significa, forçosamente,
objetificá-los e tratá-los com violência, afinal,
esses corpos não eram vistos enquanto pertencentes a humanos, já que
precisariam ser inscritos num espaço dolorosamente colonial. A criação do
conceito de “raça” foi o que possibilitou essa inscrição.
É também no colonialismo que das dificuldades coletivas de
saber o que é amar começam, como enfatiza bell hooks:
Nossas dificuldades coletivas com a
arte e o ato de amar começaram a partir do contexto escravocrata. Isso não
deveria nos surpreender, já que nossos ancestrais testemunharam seus filhos
sendo vendidos; seus amantes, companheiros, amigos apanhando sem razão. Pessoas que
viveram em extrema pobreza e foram obrigadas a se separar de suas famílias e
comunidades, não poderiam ter saído desse contexto entendendo essa coisa que a
gente chama de amor. Elas sabiam, por experiência própria, que na condição de
escravas seria difícil experimentar ou manter uma relação de amor.[21]
O que acontece é que nos resta uma herança colonial que nos
impede de amar, pois esta promove uma imagem da alteridade que se instala na
forma do inimigo, pois produz “uma gama de sofrimentos que não desencadeavam
como resposta nem uma tomada de responsabilidade, nem solicitude, nem simpatia
e nem sequer piedade.”[22]
Desde o século XIX, os Estados modernos garantem sua efetiva
ação através da política de morte, aquilo que Mbembe
nomeia de necropolítica.
De lá para cá, os Estados são Estados, necessariamente, de guerra, onde a busca
maior é por exterminar o Outro. Em
sua obra Políticas da Inimizade, Achille Mbembe argumenta que,
numa sociedade de inimizade:
Já não passa claramente por alargar o
círculo, mas por tornar as fronteiras formas primitivas para afastar inimigos,
intrusos e estrangeiros – todos aqueles que não são dos nossos. Num mundo mais
do que nunca caracterizado pela desigualdade no acesso à mobilidade e onde,
para muitos, o movimento e a circulação são a única hipótese de sobreviver, a
brutalidade das fronteiras é agora um dado fundamental do nosso tempo. As
fronteiras deixam de ser lugares que ultrapassamos, para serem linhas que
separam. (...). A guerra não só se instalou como fim e como necessidade na
democracia, mas também na política e na cultura. Tornou-se o antídoto e o
veneno – o nosso pharmakon.
A transformação da guerra em pharmakon da nossa época, em contrapartida, libertou paixões
funestas que, pouco a pouco, empurram as nossas sociedades para fora da
democracia, transformando-as em sociedades da inimizade, como aconteceu durante
o colonialismo.[23]
Nas sociedades de inimizade, que também são sociedades onde
o poder necropolítico atua incessantemente, o inimigo
é o Outro, aquele que está marcado com um “signo da morte.”[24]
A pele negra, nesse contexto, é um signo da morte. Ou seja, o negro é o
inimigo. Nesse contexto, o “inimigo” não é somente o oposto do “amigo”, mas
aquele que deve ser, a qualquer custo, exterminado. E este morto, exterminado,
não tem sua morte entendida como trágica, como algo que mereça ser sentido,
chorado, é “uma morte à qual ninguém se sente obrigado a responder. Ninguém tem
qualquer sentimento de responsabilidade ou de justiça no que respeita a esta
espécie de vida ou esta espécie de morte.”[25]
Esse cenário instaura “uma guerra que opõe as espécies entre
si, e a natureza, aos seres humanos.”[26]
Sobre isso, a partir do pensamento de Carl Schmitt, Mbembe
salienta que:
O inimigo de que Schmitt fala não é um
simples concorrente ou adversário, nem um rival privado que odiamos ou por quem
temos antipatia. Remete para um antagonismo supremo. No seu corpo e na sua
carne, é aquele a quem se pode provocar a morte física, porque ele nega, de
modo existencial, o nosso ser.[27]
Uma sociedade de inimizade atua, necessariamente, através da
política de morte, para a qual o desejo fundamental, nas relações humanas,
torna-se aquele de exterminar aqueles que não são iguais a “nós”. A partir
disso, devemos estar atentos para uma das principais características da
sociedade de inimizade: a substituição da relação de cuidado pela relação sem
desejo. Nas palavras de Mbembe, “no interior de
sociedades que não param de multiplicar os dispositivos de separação e de
discriminação, a relação de cuidado foi substituída pela relação sem desejo.” [28]
Um exemplo incontestável disso é o trágico acontecimento que
arrancou – no sentido mais brutal do verbo – a socióloga e vereadora Marielle Franco deste mundo. Marielle
carregava em seu corpo muitos signos da morte: era mulher, negra, bissexual e
favelada. O signo da morte representa, aqui, um aval para a atuação do poder necropolítico. Quando Marielle
realiza sua pesquisa e escreve sua dissertação de mestrado[29]
sobre a violência institucional através de uma análise da segurança pública do
Rio de Janeiro, ela confronta, de certo modo, a atuação genocida do Estado. A
morte de Marielle Franco não causou comoção aos
grandes governantes com corpos hegemônicos pois ela era vista enquanto o Outro,
o corpo que deveria ser exterminado e, em uma sociedade de inimizade, esse
extermínio é tangenciado – quando não promovido – até mesmo pelo próprio
Estado.
Dessa maneira, as sociedades de inimizade estão
intrinsecamente ligadas à Estados genocidas de modo que o signo de morte
prevalente é a negritude, a pele negra. Por isso, a política do amor não é
consoante à sociedade de inimizade, não há coexistência possível. A nossa
hipótese evidencia a construção de uma nova sociedade na qual o amor seja, de
fato, “profundamente político.”[30]
Essa sociedade não existe e, por conta disso, ainda não tem nome, mas,
audaciosamente, a chamaremos de sociedade
do amanhã, na qual a prática do amor possa ser o esteio para relações das
pessoas consigo e com as outras. Em que a política seja baseada em um desejo
amoroso de que os encontros, mesmo quando atritados, não precisem ser
destinados ao ímpeto de exterminar a figura do outro entendido como inimigo.
Com base nessas reflexões, já podemos traçar uma conclusão
acerca da política do amor: enquanto ela não for inserida, diretamente, em
nossas vidas e relações, não avançaremos enquanto militantes, professores,
teóricos, mas, sobretudo, não avançaremos enquanto seres humanos.
Assim, falar e defender a aplicabilidade da ética e da
política do amor nas sociedades de inimizade (transformando-as em sociedades do
amanhã), e de termos o amor enquanto orientação moral, é romper com o silêncio
imposto pelo projeto colonial. Aquele que, por mais que nos digam o contrário,
sabemos que não acabou.
Nesse sentido, bell hooks salienta que:
O amor é profundamente político. Nossa
revolução mais profunda virá quando entendermos essa verdade. Só o amor pode
nos dar força para avançar no meio do desgosto e da miséria. Somente o amor
pode nos dar o poder de reconciliar, redimir, o poder de renovar os espíritos
cansados e salvar as almas perdidas. O poder transformador do amor é o
fundamento de toda mudança social significativa. Sem amor nossas vidas são sem
significado. O amor é o coração da questão. Quando tudo mais
se for, o amor sustenta.[31]
A importância do espírito nas
sociedades do amanhã
A professora burquinense, natural da aldeia Dagara, Sobonfu Somé (cujo nome significa “a mantenedora do ritual”), em
seu livro O Espírito da Intimidade:
ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar nos fala,
assertivamente, sobre, como o próprio nome do livro já indica, a importância do
espírito nos relacionamentos. Aqui, no entanto, estaremos interessados em falar
de relações humanas e sociais e não somente afetivas, como pode ser deduzido ao
ler-se a palavra “relacionamento”.
Somé, ao contrário da tradição Ocidental
que insiste em distinguir espírito e matéria, razão e emoção, fala acerca da
importância de manter uma relação saudável com o seu espírito e como isso pode
guiar os relacionamentos. Ela explica, por exemplo que, quando um casal briga,
o que eles devem fazer é ouvir o seu espírito e, após isso, se perguntarem:
“qual é o próximo passo?”[32].
Nesse sentido, Somé ressalta que:
A separação do espírito, como vemos
aqui no Ocidente, tem como consequência fazer as pessoas darem uma importância
desmedida ao amor romântico. Essa separação cria um forte desejo por outra
pessoa, faz ansiar por uma forma de conexão. O amor romântico, porém, é apenas
uma forma de descobrir essa outra conexão, que é a do espírito, aquela que de
fato estamos procurando.[33]
Nesse sentido, ao buscarmos uma ética e uma política do
amor, devemos, necessariamente, estar conectados com o nosso espírito, o qual
tem um papel muito importante para o povo Dagara.
Para os dagaras, o espírito constitui o pilar central
da comunidade. E essa conexão com o espírito é um movimento constante, uma vez
que “crescer é um processo de esquecimento,”[34]
estar conectado com o nosso espírito é importante, pois é o que, de certa
forma, nos reconecta com África. Por isso, destaca Somé,
“precisamos tentar não educar nossas crianças longe do espírito, para que elas
não tenham de despender tanto esforço para se reconectar, quando crescerem.”[35]
Não integra o escopo deste trabalho uma longa discussão
sobre infância, mas vale ressaltar alguns pontos. Primeiramente, crianças são
potências, isso significa que devemos educar nossas crianças de modo que, no
futuro, elas venham a dar continuidade ao nosso legado, qual seja, a construção
de uma sociedade alicerçada numa ética do amor. Em segundo lugar, durante esse
processo de educação (e conexão com o espírito), é importante fornecer à
criança subsídios para que ela construa sua própria narrativa em África. Isto
é, educá-la de maneira que ela se sinta representada e apta para construir sua
própria história, não enquanto “objeto”, mas enquanto “sujeito”. Na perspectiva
de bell hooks, “sujeitos”
são pessoas que “têm o direito de definir sua própria realidade, estabelecer
sua própria identidade, nomear sua própria história.”[36]
Fornecer à criança, meios para a construção de sua narrativa não-hegemônica é o
primeiro passo desse processo.
A compreensão de Somé ressalta que
“não se pode ser nada sem o espírito.”[37]
Nesse sentido, as “necessidades do espírito só podem ser satisfeitas quando
cuidamos da alma. Nossos ancestrais sabiam disso.”[38]
Em outras palavras, para construirmos sociedades do amanhã, nas quais as
políticas do amor ocupam um lugar central nas relações humanas, precisamos,
antes, cuidar do nosso espírito.
Sobre este ponto, caso não tenha ficado explícito o
suficiente, é importante salientar que partimos de uma perspectiva africana, a
partir da qual a noção de família “é sempre ampla.”[39]
Nesse contexto, a noção ampliada de família envolve toda a comunidade na qual
estão inseridas as pessoas. Esse fato por si só já se mostra uma característica
fundamental para as lutas que buscam a construção de uma sociedade do amanhã.
Quando povos tribais falam de espírito,
estão basicamente, referindo-se à força vital que há em tudo. (...). Em nossa
tradição, cada um de nós é visto como espírito que tomou forma humana, para
desempenhar um propósito. Espírito é a energia que nos ajuda a nos unir, que
nos ajuda a ver além de nossos parâmetros racialmente limitados.[40].
Nesse sentido, o espírito ocupa um lugar central em nossa
busca por uma política do amor. É a partir dele que nossas relações podem ser
humanizadas deixando, assim, de ser relações sem desejo. O espírito
possibilita, em nossa perspectiva, a efetividade da relação de cuidado, onde a
vida do meu irmão – no sentido amplo de família – importa tanto quanto a minha.
Esse é um fator importante para as sociedades do amanhã.
O propósito do espírito, de acordo com Somé,
“é nos ajudar a ser pessoas melhores (...) o espírito nos ajuda a realizar o
propósito de nossa própria vida e manter nossa sanidade.”[41]
Diríamos ainda que o propósito do espírito também é humanizar nossas relações.
Uma sociedade de inimizade é uma sociedade que atravessa uma crise do espírito.
Nesse quadro, o Capital se opõe ao espírito.
Nas sociedades do amanhã o espírito deve ocupar um lugar
central. “Sem espírito, fica realmente difícil saber se vamos acordar vivos
amanhã; fica realmente difícil saber que temos vida.”[42]
Devemos entender as sociedades do amanhã, enquanto baseadas numa lógica
comunitária, o que implica, necessariamente, na concepção ampla de família, como
supramencionado.
Quando você não tem uma comunidade, não
é ouvido; não tem um lugar em que possa ir e sentir que realmente pertence a
ele; não tem pessoas para afirmar quem você é e ajudá-lo a expressar seus dons.
Essa carência enfraquece a psique, tornando a pessoa vulnerável ao consumismo e
a todas as coisas que o acompanham.[43]
O fato é que essa noção de comunidade não existe em
sociedades de inimizade. O poder necropolítico jamais
seria admitido nas sociedades do amanhã, afinal, as vidas possuiriam valor
imprescritível e central, sendo a condição para que a prática do amor se
exercesse: não seria possível conciliar o desejo e necessidade de viver em
comunidade com uma política da morte. Nesse sentido, para a construção de
sociedades do amanhã, precisamos, necessariamente, deslocar nossas compreensões
ontológicas existenciais.
Quando nós, a partir de uma percepção biocêntrica
da realidade, falamos do valor da vida e que, em nossos projetos de sociedade,
todos os seres vivos devem existir com a mesma dignidade, devemos chamar
atenção para o fato de que a concepção de vida não se restringe somente às
pessoas. A filosofia indígena, por exemplo, salienta que “os organismos da Mãe
Terra são partes do corpo, extensões do espírito e consciência.”[44]
Nesse sentido, ao pleitearmos a consolidação de uma
sociedade do amanhã, devemos estar, obrigatoriamente, pautados numa política e
numa ética do amor. bell hooks
salienta que “uma cultura de dominação é anti-amor.
Exige violência para se sustentar. Escolher o amor é ir contra os valores
predominantes dessa cultura.”[45]
Isso significa que sociedades do amanhã não se pretendem enquanto sociedades de
dominação, pois não há uma lógica violenta dando rumo a este projeto. É
importante salientar o papel do amor neste processo construtivo e que isso,
como é de se esperar, pode levar tempo. No entanto, quando nada mais tivermos,
ainda assim teremos o amor. E é através dele que nosso projeto de sociedade se
consolidará.
Conclusões parciais: o valor da vida na
política atual
O Brasil vivencia um tempo difícil, num período de
instabilidades sociais, políticas e econômicas. E instabilidades espirituais
também, diríamos. De forma alguma há aqui a tentativa de culpabilizar os
indivíduos que vivem e convivem na sociedade brasileira contemporânea, no
entanto, parte das instabilidades supramencionadas partem da crise espiritual
pela qual estamos passando, a qual impede a consolidação de sistemas de valores
que nos permitam lidar com os conflitos de modo produtivo em contextos comunitários.
Como já exposto, acreditamos que uma das consequências dessa
crise é a desvalorização da vida no atual cenário que nos cerca. Mas não são
todas as vidas que são desvalorizadas, o fator que determina isso é o signo da
morte. Nesse sentido, faça-se a pergunta, levando em consideração o atual
quadro político: vidas negras realmente importam? Partindo de uma sociedade de
inimizade, a resposta é, explicitamente, não. Por isso pleiteamos e lutamos
pela construção de sociedades do amanhã. Nas quais a valorização da vida, sem
exceção, ocupa um lugar central, assim como o espírito.
Como
nossos corpos foram construídos de modo a importar ou a não importar? Como a
nossa sociedade e as cidades foram construídas de modo que somente certos
corpos possam transitar livremente nas ruas? Para que durante o dia não seja um
horário seguro para uma mulher trans andar na rua,
como a nossa sociedade fora construída? Para que a noite não seja um horário
seguro para os jovens negros ocuparem a rua, que sociedade é essa que foi construída?
Nesse
sentido, a discussão que fizemos aqui é, sobretudo, sobre o valor da vida. A
vida, portanto, ocupa um papel central na política contemporânea. A diferença
das sociedades de inimizade e do amanhã é o valor que é dado à determinadas
vidas.
Portanto, ao
discutirmos o atual cenário político, pensamos que a seguinte pergunta é
crucial: qual será o valor das nossas vidas num regime de inimizade? Essa
pergunta por si só já acende o anseio por construir uma sociedade do amanhã.
Restaurado à vida e, assim,
diferente do corpo rebaixado da vida colonizada, este novo corpo será convidado
a pertencer a uma nova comunidade. Desenvolvendo-se de acordo com o seu próprio
plano, caminha agora com outros órgãos, podendo assim recriar o mundo.[46]
Nesse sentido, “apenas uma política de conversão em que nós
retornamos ao amor pode nos salvar.”[47]
Referências
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Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
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SOMÉ, Sobonfu.
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ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar. Trad. Deborah
Weinberg. São Paulo: Odysseus Editora, 2003.
WELLER, Julia; WELLER, Francis.
Prefácio. In: SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre
maneiras de se relacionar. Trad. Deborah Weinberg. São Paulo: Odysseus
Editora, 2003, p. 7-10.
[1] HOOKS, Salvation:
black people and love, p. 3-17.
[2]
MBEMBE, Políticas da Inimizade, p.
71-106.
[3] HOOKS, All
about love: new visions, p. 5.
[4]
ANGELOU, Mamãe & Eu & Mamãe, p. 8.
[5] HOOKS, Love as
the practice of freedom, p. 244.
[6]
Embora bell hooks fale mais
sobre uma “ética do amor” do que de uma “política do amor”, neste artigo
adotamos o termo “políticas do amor”, pois o que reivindicamos, sobretudo, é um
princípio que guie nossas vidas para atingir um bem comum a todos, em contextos
onde o poder é exercido, e esse princípio é o amor.
[7]
SOMÉ, O Espírito da Intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre
maneiras de se relacionar, 2003.
[8]
RIBEIRO, Quem tem medo do feminismo
negro?, p. 27.
[9] HOOKS, Salvation,
p. 17.
[10] BUTLER, Kindred:
laços de sangue, p. 13.
[11] HOOKS, Love as
the practice of freedom, p. 250.
[12]
ARENDT, Introdução na Política, p. 144.
[13] Ibidem, p. 145.
[14] Ibidem, p. 146.
[15] King apud
HOOKS, Salvation, p. 7.
[16] HOOKS, Love as
the practice of freedom, p. 247.
[17] HOOKS, Salvation,
p. 7.
[18] Ibidem, p. 4.
[19] Ibidem, p. 14.
[20]
MBEMBE, Crítica da razão negra, p. 175.
[21]
HOOKS, Vivendo de Amor, p. 189.
[22]
MBEMBE, Políticas da Inimizade, p.
13.
[23] Ibidem, p. 10-11.
[24]
CARNEIRO, A construção do Outro como
não-ser como fundamento do ser, p. 72.
[25]
MBEMBE, Políticas da Inimizade, p.
65.
[26] Ibidem, p. 31.
[27] Ibidem, p. 82.
[28] Ibidem, p. 104-105.
[29] A
dissertação, intitulada UPP – A redução
da favela à três letras: uma análise da política de segurança pública do estado
do Rio de Janeiro, publicada em 2014, foi lançada em forma de livro, pela
n-1 edições, em 2018.
[30] HOOKS, Salvation,
p. 16.
[31] Ibidem, p. 16-17.
[32]
SOMÉ, O Espírito da Intimidade, p. 33.
[33] Ibidem.
[34] Ibidem, p. 69.
[35] Ibidem, p. 34.
[36] HOOKS, Talking
back: thinking feminist, talking black, p. 42.
[37] WELLER; WELLER, Prefácio, p. 7.
[38] HOOKS, Salvation, p. 15.
[39]
SOMÉ, O Espírito da Intimidade, p.
23.
[40] Ibidem, p. 26.
[41] Ibidem, p. 25.
[42] Ibidem, p. 27.
[43] Ibidem, p. 35.
[44]
MACHADO, Comunicação ancestral e filosofia
indígena: a educação da mãe terra, p. 515.
[45] HOOKS, Love as
the practice of freedom, p. 246.
[46]
MBEMBE, Políticas de Inimizade, p.
250.
[47] HOOKS, Salvation, p. 15.