Submissão: 10/09/2019 Aprovação:
10/09/2019 Publicação: 17/09/2019
Interfaces da Filosofia Africana
ODUS: Filosofia Africana para
uma Metodologia Afrorreferenciada*
ODUS : African Philosophy
for an Afro-referenced Methodology
Adilbênia Freire Machado
Doutora em
Educação-Universidade Federal do Ceará (UFC), Bolsista Capes.
adilmachado@yahoo.com.br
Resumo:
O
presente artigo apresenta a metodologia filosófica, que também é conteúdo, dos Odus. Trata-se de uma metodologia afrorreferenciada
demarcada por nossa origem, nossa ancestralidade, nossos caminhos /
experiências / vivências. Alimentaremos, aqui, um diálogo formativo desde as
culturas, os modos de ser / estar no mundo, as filosofias e saberes africanos e
afrodescendentes. Busca-se delinear um pensamento plural, diverso, numa
perspectiva horizontal, circular, que compreende a universalidade desde um
lugar, desde nosso próprio chão, onde o corpo é produtor e fonte de
conhecimento. Apresentaremos esta metodologia que é tecida por implicações
epistemológicas, ativistas, política, ética, em busca de descolonização
curricular e do próprio conhecimento, delineada pela escuta sensível,
perpassada pelo coletivo, pela memória histórica, pela resistência negra e pela
autoformação.
Palavras-Chave:
Metodologia
Afrorreferenciada; Odus;
Filosofia Africana; Escuta Sensível; Descolonização Curricular
Abstract: The
present article presents the philosophical methodology, which is also content,
of the Odus. This is an afro-referenced methodology
demarcated by our origin, our ancestry, our paths / experiences. We will
nourish here a formative dialogue from cultures, ways of being / being in the
world, African and Afro-descendant philosophies and knowledge. It seeks to
delineate a diverse, plural form, horizontal, circular perspective that
understands universality from a place, from our own ground, where the body is the
producer and source of knowledge. We will presente
this methodology that is woven by epistemological implications, activists,
politics, ethics, in search of curricular decolonization and of the knowledge
itself, delineated by sensitive listening, perpassed
by the collective, by historical memory, by black resistance and
self-formation.
Keywords: Afrorreferenced methodology; Odus; African
Philosophy; Sensitive Listening; Curricular decolonization
Adentrando:
Uma Metodologia Filosófica Afrorreferenciada
Com
o advento da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e
cultura africana e afro-brasileira, tornou-se fundante a criação de
metodologias que possam delinear, demarcar a implementação de tal lei desde
métodos afrorreferenciados, posto que a proposta é um
ensino desde nosso próprio lugar de pertencimento, nosso modo de ser, nossos
saberes, nossas culturas, nossos corpos, nossas histórias. Assim, essas
metodologias são pautadas desde as histórias que nos foram negadas nas escolas
e universidades, perpassadas pela oralidade, pela memória, pelos valores que
delineiam o cotidiano da população negra diaspórica que forma o Brasil,
perpassadas por corpos negados e cheios de potência e resistência.
Dessa
forma, dialoga-se desde nossos modos de ser e estar no mundo, desde os (nossos)
saberes dos povos africanos que a escravização trouxe para nosso país. Ainda
que a colonização tenha nos tornado uma nação marcada por dor, sofrimento,
desumanização e negação, ela deixou um legado que segue existindo, re-existindo e fortalecendo um povo que não nasceu em
África, mas que tem a África nascida em si, uma África que desenhou, teceu,
criou, cria e alimenta o Brasil. Aqui não há, em absoluto, o propósito, ou até
mesmo a ideia de romantizar a mestiçagem, longe disso, mas reconhecer que ainda
com todos os processos de desumanização oriundos da colonização, da
escravização, a cultura africana em terras brasileiras ultrapassa o tempo e os
espaços, fundamentando nosso ser, nossa cultura, fortalecendo-se na luta
cotidiana por sua existência e re-existência, pois
somos um povo demarcado pela ancestralidade e pelo encantamento vindo de
África.
Assim,
esse artigo propõe um diálogo formativo desde a perspectiva afrorreferenciada,
ou seja, as culturas, os modos de ser / estar no mundo, filosofias e saberes
africanos e afrodescendentes. Delineando um pensamento plural, diverso, que tem
o diálogo entre os saberes como preponderante, desde uma perspectiva
horizontal, circular, compreendendo a universalidade desde um lugar, desde
nosso próprio chão, abarcando o corpo como produtor e fonte de conhecimento,
conhecimentos estes oriundos das relações do cotidiano, das nossas
experiências, pois “existir é relacionar-se, e os relacionamentos não se dão no
vazio do nada, mas através de corpos que preenchem o corpo do espaço e os
escorrer do tempo corporal. Não se prescinde do corpo, nem como coisa, nem como
ideia, nem como palavra”[1].
Assim, pensar / criar / aprender / ensinar / ser desde referenciais que tem a
ancestralidade africana como guia, potencializa nosso estar no mundo, nos
encantando, nos implicando com um mundo melhor, mais digno de se viver.
Portanto,
esse artigo apresentará a metodologia oriunda da Filosofia Africana delineada
pelos Odus.
Esses são metodologia e conteúdo demarcados pelos nossos caminhos /
experiências / vivências, pois “não separa caminho de metodologia, forma de
conteúdo. Elas não são separadas na vida, também não podem ficar separadas na
academia”[2].
Também não dissocia experiência de vivência, de atuação política, ética,
social, profissional, assim, trabalha-se desde a compreensão de “formação como
ação”[3],
pois a formação é um “fenômeno que se realiza nos sujeitos concretos,
contextualizados, historicizados, política e
coletivamente situados”.[4]
Odu, que é oriundo do Ifá, é a fonte de
inspiração para a criação dessa metodologia, que fora gestada por Eduardo
Oliveira[5]
para o ensino de “História e Cultura Africana e Afro-brasileira”, desenvolvida,
especialmente, para o componente curricular de mesmo nome ofertado no curso de
Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia,
entretanto, tal metodologia pode ser “aplicada” em todos os campos do
conhecimento afrorreferenciado, pois Odu é uma metodologia filosófica oriunda das filosofias africana,
de seus saberes, valores e tradições. Eduardo Oliveira inspira-se em sua
espiritualidade, na sua relação com o Ifá, cultura em que é iniciado. O Ifá é
oriundo da Nigéria, é uma cultura pré-colonial que representa um sistema ético
africano. Segundo Eduardo Oliveira[6],
Na religião de matriz africana, pensando ela como um grande
fenômeno social, há uma coisa absolutamente importante que é o oráculo. O
oráculo é aquilo que faz com que eu possa me comunicar com o Outro perto e com
o Outro distante, é a comunicação do humano para com o humano, do humano para
com o sagrado e do sagrado para com o humano. É o lugar da fala da sabedoria,
ou seja, o oráculo é o lugar que preserva a sabedoria produzida por um grupo.
Um oráculo privilegiado por esse sistema se chama IFÁ.
Ronilda Ribeiro[7],
diz que o Ifá é “Orumilá, o oráculo divino, deus da
sabedoria iorubá. Também jogo adivinhatório realizado com ikin ou opelê”
(grifo da autora). Para Eduardo Napoleão[8],
o Ifá é o “Oráculo praticado por sacerdotes yourubanos
cujo patrono é Orunmilá. Compêndio do saber yourubano contendo ensinamentos e textos sobre música,
literatura, história, religião, mitologia, ecologia, ciência, filosofia, arte, etc”.
Desse
modo, o Opelê-Ifá, que é o colar de Ifá, é utilizado
como inspiração metodológica, pois:
é
um instrumento (...) para me comunicar com o oráculo, ele é efetivamente a
metodologia, o instrumento, aquele que faz a comunicação, aquele que revela a
sabedoria produzida pelos antepassados para os viventes de agora e atualiza
essa sabedoria na experiência desses viventes de agora[9].
Um
objetivo fundante do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira é
o diálogo com as filosofias presentes na sabedoria de nossos antepassados, nas
experiências vividas e transmitidas. Sabedorias / Experiências! Sabedorias /
Ações! Sabedorias / Modos de Ser – Estar no Mundo!
O
oráculo, o opelê-ifá é circular, pois o círculo é
“uma estética radical de inclusão (...), todo mundo tá lado a lado com o Outro,
com companheirismo, numa relação fraternal (...) e vendo a face do outro.
Então, é uma escritura ética, é uma estética de inclusão”[10].
Por isso o círculo é fundante como instrumento metodológico.
Opelê Ifá
– Fonte: Internet
E
o oráculo do Opelê-Ifá[11]:
é composto de oito sementes que são
oito caminhos para entendermos o que a gente fez na humanidade desde os
primórdios até agora. Só que na cultura Iorubá – Nagô, o Ifá nunca é pensado
como um corpo único, sempre é dois, então não existe indivíduo [...], o
africano não se pensa como indivíduo / único, se pensa como comunidade, essa é
outra chave de leitura importantíssima, logo o Ifá se pensa sempre como duplo[12].
A
multiplicação é fundamental, o duplo pessoa / comunidade, assim, as sementes do
Opelê-Ifá são colocadas lado a lado, ficando quatro
sementes de um lado e quatro de outro, ao se abrirem formam oito, que são
duplicadas por dois formando dezesseis caminhos e segue multiplicando-se...
Assim, enquanto metodologia, a proposta é que os/as educandos/as possam também
construir suas próprias metodologias, a construção e a produção é coletiva, é oriunda da experiência vivência de cada um/a,
onde todos nossos saberes são valorizados. Portanto, a metodologia dos Odus, inspirada no Ifá, é construída sempre numa
perspectiva coletiva e de valorização dos saberes antigos e dos saberes do
agora.
ODUS:
caminhos / experiências
Os Odus, ou seja, conteúdo e metodologia, apresentam chaves de
leituras e de interpretações, instrumentos para produção de outros olhares
sobre a história e cultura a africana e afro-brasileira, trazendo sempre os
deslocamentos de sentidos, a coletividade, a memória, o corpo e a ludicidade
como fios condutores dessa produção. Filosofias fundantes do pensamento
africano. Eduardo Oliveira desenvolveu oito Odus,
entretanto, iremos trabalhar aqui apenas os cinco primeiros, pois foram estes
com os quais se trabalhou, no componente curricular HCAA[13], no
período de 2010 a 2014. Os Odus, os caminhos, que
estão em processo, acontecendo, são os seguintes:
1 – Odu de Origem
2 – Odu de Transição
3 – Odu de Desconstrução
4 – Odu de Transformação
5 – Odu de Beleza (Estética / Encantamento)
6 – Odu de Natureza
7 – Odu de Espaço
8 – Odu de Tempo
Agora vamos caminhar com e desde os Odus!
Odu de Origem
O primeiro Odu
a ser apresentado é o de Origem, entretanto, é só didaticamente que se começa
por ele, pois origem não é começo, posto que no círculo, no opelê-ifá,
pode-se começar de vários pontos, assim, há mais de uma origem:
não há
uma origem única, não tem um dia em que a bondade começou, que a maldade
começou, que o homem nasceu, que a história iniciou (...). Isso é sempre
dinâmico, (...) a origem é uma questão de escolha, não é uma questão
ontológica, ou seja, não é um fato consolidado, é só uma escolha, cada pesquisador,
cada pesquisadora, escolhe o seu ponto de partida, porque o ponto de partida
não é arbitrário[14].
Desse modo, é importante compreender
que a “origem não se impõe como um dado, a origem é uma construção
epistemológica, (...) mental, (...) conceitual” (Idem), é uma escolha e como
tal não se dá do nada, é pesquisa científica, e acontece em virtude de nossa
liberdade, partindo sempre de um princípio ético. Ética esta que se apresenta
como liberdade da pessoa dentro do coletivo, ou seja, é como aquele ditado que
diz: “a minha liberdade termina quando a do Outro começa”. Assim:
a origem
não dá margem para a arbitrariedade, a origem é fruto de uma livre escolha,
portanto, a base de uma escolha é o que caracteriza a humanidade, não é a racionalidade.
O que caracteriza o humano é a liberdade e a liberdade não é uma coisa só
docinha, gostosa e etc. (...) Por isso a educação é fundamental, por que é a
educação que nos dá mais condições de discernimento, de fazermos melhores
escolhas sem nenhuma garantia que elas irão dar certo, ninguém pode garantir a
vocês do ponto de vista epistemológico que o que ela tá dizendo é garantido,
(...) ninguém! Isso eu acho maravilhoso, porque desautoriza as autoridades
absolutas e coloca como condição da produção do conhecimento a interação com o
outro. O conhecimento não pode ser produzido sozinho, conhecimento é um
fenômeno coletivo[15].
O conhecimento nunca é individual, é
coletivo e a liberdade são vestes da criatividade, desse modo:
a base
epistemológica da produção do conhecimento não é a lógica, (...) não é o
raciocínio causal. A base epistemológica do conhecimento é a criação viva, o
universo não está estruturado em torno de matérias antigas, sólidas, o universo
está estruturado encima de criação. (...) a matéria é uma ilusão da compreensão
humana e o que a gente tem é um estado pulsante, constante de criação[16].
A criação é subjetiva e essa
subjetividade é quem condiciona a produção de conhecimento e a lógica é o
instrumento para organização do conhecimento. Essa subjetividade é responsável,
é implicada, portanto, ela se apresenta com a responsabilidade de criar mundos
melhores, desde as nossas experiências, vivenciadas em nós mesmos e com o/a/s
Outro/a/s. Essa criação oriunda da subjetividade tem origem em nossos processos
formativos. É encantamento, implicação e responsabilidade com nosso estar no
mundo.
Educar desde uma perspectiva afrorreferenciada, desde as cosmopercepções
africanas, é educar pela experiência, pois o conhecimento real, que pode ser
efêmero, tem origem em nós, em nosso lugar de pertencimento, nosso chão, nossa
cultura e saberes. É o educar o olhar, educar para a sensibilidade, para
perceber o Outro como parte de nós mesmos/as, é promover o exercício da nossa
capacidade de sentir, de ter a emoção como a base, o sustentáculo para a razão,
pois “em formação é preciso entender que a emoção coloca o sujeito em movimento
e impulsiona a ação”[17]. Assim,
a criação que parte do sentir torna-se base para o
conhecimento, para o ser / fazer.
Para Eduardo Oliveira[18], na
educação do olhar há três posições fundamentais: o olhar de longe (ou distanciado), o olhar de perto (ou
aproximado) e o olhar do entre-meio[19].
O olhar de longe “tende a privilegiar
o conjunto e perder os detalhes. Com isso perde-se o movimento das
singularidades e se ganha na percepção da totalidade”, já o olhar de perto “vê fragmentos, mas distancia-se da visão de conjunto” e o olhar do entre-meio
é “um híbrido que combina tanto a dinâmica do olhar distanciado quanto do
aproximado, ele não substitui, nem supera os outros olhares, pois não se trata
nem de negação nem de aprimoramento de outras perspectivas”. Assim, compreende
que o olhar do entre-meio
é o escolhido para essa construção metodológica, pois é aquele olhar:
que vai
de um a outro, tendo como referência sempre o oposto, ou seja, o alheio, o
Outro. Assim, quando está sob efeito da vertigem causada pela proximidade
(olhar aproximado) terá como referência a mansidão do olhar de totalidade
(olhar distanciado) e vice-versa. Ao contemplar o conjunto de uma paisagem terá
como referência a singularidade de seus movimentos, pois o olhar entre-meios é uma relação / interação dos extremos. Por
isso ele é relativista posto que, ao relacionar-se com os extremos de um oposto
a outro, pode redefinir os contextos e suas medidas de grandeza. (...) O olhar entre-meios reconhece que o olhar cria o contexto na mesma
medida em que o contexto cria o olhar. Um é corrente para o outro e juntos
formam os elos culturais[20].
Desse modo, no Odu
de Origem escolhemos nosso ponto de origem, sabendo-se que essa escolha não é
arbitrária e é coletiva, fruto de uma cultura, um chão, de uma ancestralidade
que é fonte de pertencimento e que tece esse chão / lugar. Escolhemos nosso
lugar de origem, mas como se dá o processo de transição? Nosso próximo Odu poderá nos responder.
Odu de Transição
Ao encerrarmos, sem encerrar, o Odu de Origem, percebemos que basta apenas escolhermos nossa
origem, pois, ainda se apresenta como um ponto, ainda que não seja arbitrário,
assim, é imprescindível pensarmos o seu deslocamento, o seu movimento, ou seja,
faz-se necessário
compreendermos como acontece esta transição ou “como isso se processa na prática,
como se ganha forma, corpo[21]”. O Odu de Transição tem como conceitos fundamentais o
movimento, o deslocamento e o processo, pois:
não
basta ter origem, que é uma escolha, que não é um dado imposto, (...) a origem
é só origem, é só o primeiro passo, para entender qualquer fenômeno (...) eu
preciso entender como isso se modificou, criou movimento, ganhou corpo, como
chegou a constituir-se naquilo que eu vejo hoje. Nós não somos os homens
primatas que fomos a princípio, nós evoluímos, nós não somos mais aqueles
hominídeos, nós somos homens sapiens, sapiens muito desenvolvidos, dizem.
Então, eu preciso entender a transição, como a coisa sai do seu estado de
origem, do seu estado original (...) para transformar-se naquilo que é hoje, no
fenômeno que a gente estuda agora[22].
É importante destacarmos que isso é
válido para qualquer campo do conhecimento, qualquer área. Seguindo essa itinerância, o Odu de Transição
apresenta-se como esse processo de compreensão da transição de como algo sai do
seu estado original e transforma-se no que vemos, por exemplo: “É
entender que têm deslocamento de conceito, de ideia, de pesquisa, que tem além
de deslocamento, tenho que acompanhar o movimento”[23]. O
movimento é fruto das nossas intenções, dos nossos desejos, dos sopros de vida
cotidianos movidos por nossas experiências / vivências, por nossas andanças!
O conhecimento livre e criativo é
contínuo, por isso o movimento é sua condição, posto que nada na natureza está
parado e não há como pensar, produzir, conhecer, ser desde a perspectiva
africana sem que estejamos em relação com a natureza, pois é ela que “nos ajuda
a ser o nosso verdadeiro ser”[24].
Porquanto, é fundamental desenvolver, criar epistemologias que acompanhem o
movimento próprio da existência, da realidade que vemos, sabendo-se que há
diversos modos de se ler as coisas, o mundo (as coisas do mundo), não há uma
verdade absoluta, há verdades possíveis, realidades possíveis e diferentes,
pois as culturas são diferentes, somos diferentes e essas diferenças são fontes
de fortalecimento e crescimento. Eduardo Oliveira[25] afirma
que ainda “perdura
o paradigma de que pensar é congelar as coisas, separá-las, é dar respostas
definitivas”. Na perspectiva africana “o que não se renova e não se recria
continuamente apodrece e morre. É preciso mover-se e se aquecer sempre para
manter aceso o pavio da vida”[26]. Portanto:
o objeto
de estudo da epistemologia é o processo, é o movimento, não é o resultado,
porque nunca tenho resultado final, tenho sempre resultados provisórios e
parciais (...). Meu aluno nunca vai estar pronto, eu como professor nunca
estarei pronto, é sempre provisória a formação, porque eu sempre vou
efetivamente reelaborar, desconstruir, criticar, acrescentar, manter. É
dinâmico, não para nunca[27].
Nesse movimento de existência e re-existência, escolhemos uma origem, transitamos pelos
movimentos contínuos e diversos, nos desconstruímos, nos transformamos, pois
“conhecer é reter informações, dominar técnicas e reflexões. Sabedoria é mais!
Sabedoria é viver o que se conhece”[28]. Então,
na busca do viver o que conhecemos, escolhemos / encontramos nossa origem,
passamos por um processo de transição e desconstruímos o que nos foi colocado
de um modo imposto por uma cultura que se deseja mono (cultura ocidental),
transformando-nos e nos encantando, descolonizando e ampliando, trazendo as
diversas vozes para a construção, desconstruindo e transformando e não
destruindo como é próprio de nossa(s) história(s). Desconstruímos para
potencializar a existência, para transformar desde um processo inclusivo,
comunitário, circular!
Odu de Desconstrução
Em nossa caminhada fazemos alguns
percursos, passamos por acontecimentos diversos, escolhemos nossa origem,
passamos por processos de transição que nos levam a mudanças de paradigmas,
porém, é necessário “desconstruir o que tá instituído, mesmo que eu tenha
localizado, de maneira livre, o meu ponto de partida, mesmo que eu tenha
compreendido o processo e o movimento, eu posso sedimentar, posso ossificar,
posso cristalizar esse conhecimento como ‘certeza’”[29].
Isso implica que é fundante
constantemente se fazer crítica, porém uma crítica responsável, construtiva,
que nos leve ao descontentamento, ou seja, ao não se acomodar com o que está
dado:
com o
que já está dito, com o que já está
pronto. É a hora de mexer um pouco nas estruturas dos edifícios, (...) é a
parte da problematização propriamente dita, é o momento de entender que estudar
história e cultura africana não é igual a estudar história ocidental. Isso é
óbvio, mas apesar de ser óbvio até hoje não está na academia, por isso a
crítica tem que ser cada vez mais radical, não é a crítica pela crítica é a
crítica para a raiz, ai está toda a diferença[30].
É pensar com os pés, pois eles estão
sempre plantados no chão, é trazer a cabeça para o chão, pois o chão é a raiz,
é a inversão de paradigmas. É mexer nas estruturas, questionar o que está
sedimentado e dar sentido desde nosso contexto, os acontecimentos que formam e
transformam. Eduardo Oliveira traz a percepção de que, por exemplo, o street dance, o break, o hip hop, etc. tinham muitos
movimentos que se davam no chão, “inclusive um dos movimentos mais radicais é
rodar sobre a sua própria cabeça com muita velocidade (...). Isso quer dizer
muita coisa”[31].
Sabemos que essas danças têm origem na cultura negra, onde “a estética não é
uma coisa decorativa, espetacular, ela denuncia uma cultura, apresenta uma
cultura, sintetiza e atualiza”[32]. Esses
exemplos mostram como é importante levar o nosso cotidiano para sala de aula,
para os espaços de ensino – aprendizagem, onde os questionamos, proporcionando
reflexões desconstrutivas, que nos permitem, por exemplo, sair do ciclo do
racismo e ter perspectivas outras dos diferentes modos de ser.
É importante não haver apenas o
discurso de diversidade, multirreferencialidade,
multiplicidade, diferença, inclusão, multiculturalismo, é importante que isso
seja colocado em prática, que faça parte da nossa formação, da formação do
nosso próprio conhecimento, da nossa cultura, pois essa diversidade, essa multirreferencialidade proporciona valorização e respeito
do que é diverso, diferente, valorização e potencialização da diversidade. Onde
nossos espaços de ensino – aprendizagem possam ser
delineados por um currículo plural, diverso, reflexivo, que tem a vida como
fundante para e na sua construção.
Tais reflexões permitem debates
pertinentes, abrindo horizontes para que nossos/as estudantes, e até mesmo
educadores/as, acreditem que é possível enveredar pelos caminhos que
acreditamos, por caminhos outros, culturas outras, ainda que não tenhamos
abertura ou que ela seja pequena. “Desconstrução rima com a criação, (...)
leva à necessidade de continuar produzindo conhecimento, porque caso contrário
posso só repetir conhecimento e repetir não é criar”[33].
Entretanto, há momentos em que a repetição é importante, mas, não podemos ficar
sempre na repetição,
é
necessário a criação e para isso eu tenho que desconstruir conceitos,
metodologias, visões, olhares, imaginários. Desconstruir estruturas sociais,
históricas, políticas. Desconstruir é necessário, não é destruir, destruir
significa que você vai eliminar, desconstruir significa que você vai decompor
para compor novamente, é diferente o sentido[34].
Esse Odu nos
impele a compreender que o conhecimento é contínuo, além de coletivo, é um
exercício de crítica radical, ou seja, uma crítica que vai à raiz, questiona
toda a estrutura, mas com um sentido de transformação para melhor coletiva,
ligada à natureza.
No caminho percorrido entendemos que a
origem é uma escolha, assim é fundante refletir o processo, desconstruir as
certezas dadas, entretanto, isso não é suficiente para produção de
conhecimento, é necessário transformar, compreendendo que “transformar
significa que o conhecimento tem que ter implicações práticas, pragmáticas, tem
que alterar as relações”[35].
Conhecimento só é válido quando traz transformações, quando altera a realidade,
conhecimento como sabedoria, com implicações práticas e que altera as relações.
Na medida em que o conhecimento não é
individual, mas coletivo, dá-se apenas com o encontro. Conhecimento não
movimentado não faz sentido, a coletividade está intrínseca ao conhecimento,
pois “não basta ter conhecimento cognitivo, é preciso atingir também a
sensibilidade e alterar na prática a relação”[36]. Não
basta ler um texto, é preciso adentrar suas entranhas, entranha-se pelos
sentidos, lê-se com as mãos, com o paladar, o olfato... não se enxerga apenas
com os olhos, enxerga-se com todos os sentidos. Comossensações!!!
Por isso o educar o olhar!!!
Odu de Transformação
O Odu de
Transformação implica no pensar / fazer desde a ética, no compartilhar, no
encontro, o pensar a própria ética, pois “a parte mais importante da ética é a
coletividade”[37].
Transformar desde a ética não é qualquer transformação, é uma transformação
inclusiva, em comunhão. Desse modo o referido Odu
implica em um conhecimento pragmático, ele
causa
alterações reais, visíveis, concretas, sólidas. É também a dimensão da ética,
que é a dimensão da ação, (...) aqui é o conhecimento já em ação, a atitude
ética. E a palavra base dessa ética chama-se responsabilidade, ou seja, essa
transformação não é qualquer transformação, (...) eu tenho que pensar as
consequências da minha ação (...)! Eu tenho que pensar, refletir, medir as
consequências das minhas ações, da minha fala, (...) porque vai ter efeitos
práticos na vida de outras pessoas[38].
Essa ética responsável tem o propósito
da manutenção e ampliação da liberdade, onde “uma ação ética é balizada pela
responsabilidade com o que você diz e faz. A responsabilidade é o maior
princípio da política”[39], da
educação, da vida. Eduardo Oliveira[40] afirma
que “grandes
autores do nosso tempo estão falando numa ética da responsabilidade, eu, além,
de uma ética da responsabilidade, junto com o pessoal da filosofia da
libertação falo de uma ética da libertação, que é uma responsabilidade um pouco
mais ampliada”.
Concluímos que não importa apenas o
conteúdo, mas o que esse conteúdo pode fazer, as transformações que traz para o
cotidiano no qual estamos inseridos/as, o que importa é o que fazemos desse
conteúdo, como o potencializamos. Essa é a potência da Lei 10.639 / 11.645, uma
ação que reflete nas experiências do cotidiano, implicando no re-encontro com nossas origens. O Odu
de transformação é delineado pelo Odu de Estética,
pelo Encantamento, pois é o transformar-se desde a implicação, a
responsabilidade com o estar no mundo!
Odu de Beleza / Estética / Encantamento
Discorrer acerca do Odu
de Beleza / Estética / Encantamento é uma tarefa complexa, ainda que este seja
um conceito fundante na minha trajetória, não apenas enquanto pesquisadora.
Tecer essa teia é intenso, é falar desde a sensibilidade almejando outros modos
de concepções da vida, do fazer / produzir / pensar / criar / ser. É ser desde
o coletivo e numa perspectiva de ser de corpo inteiro, onde esse corpo é
sagrado, é fundamental. Durante nossa caminhada, geralmente, somos
“ensinados/as” que a razão está separada da emoção, acredito que muitos de nós,
ou talvez todos/as nós já nos perguntamos, em algum ou em muitos momentos, como
isso é possível se tudo está “junto e misturado”. Como separar o que sentimos
do que fazemos?
Vanda Machado[41] nos diz
que:
o
pensamento africano não separa, não hierarquiza. Corpo, membro, memória,
tradição, sentidos, imaginário, símbolos, signos, espiritualidade e as
vivências cotidianas, tudo faz parte de uma tradição na sua
multidimensionalidade que não se presta a explicação reduzida, a categoria que fragmentam
sentido.
Tentaram nos tirar desse lugar, de
algum modo o fizeram, pois somos formados/as em outra perspectiva,
racionalizada de um jeito que nega o nosso corpo e tenta nos formatar, então,
como agir com ética se não somos “ensinados/as” desde a sensibilidade? Se vamos
à escola e sentamos em fileiras, um/a atrás do/a outro/a e não olhamos no olho?
Se a educação escolar aparece como um lugar onde temos que guardar informações
(não, necessariamente, compreendê-las, mas, principalmente, armazená-las) que
nem sempre diz quem somos, qual a nossa história, qual a nossa origem. Se somos
orientados/as a concluir uma graduação, depois um mestrado, depois um
doutorado, depois, depois... sempre numa perspectiva de juntarmos bens
materiais, melhor salário, onde a qualidade de vida está relacionada a um
status social?
Assim, o Odu
de Beleza acaba por ter a responsabilidade de implantar uma dimensão filosófica
em nosso estar no mundo, em relação aos Odus
apresentados anteriormente. O Odu do encantamento
“produz os sentidos da vida, é esse odu que produz o
mundo, (...) constrói o mundo”[42].
Vivemos no mundo da complexidade, “pois
quanto mais complexidade, mais a minha liberdade aumenta”[43] e é
dentro da complexidade que fazemos escolhas, desse modo, “quanto mais complexo
for o meu olhar, maior a minha possibilidade de escolha”[44], quanto
mais complexa a realidade, maior deve ser meu critério, o discernimento para
essas escolhas, assim “a gente pode educar o nosso olhar para as complexidades,
porque o mundo é complexo, não adianta olhar o mundo reduzindo a certo e
errado”[45]. Educar
o olhar para a sensibilidade é caminhar por princípios formativos outros,
princípios que tem a ética do corpo, do desejo pelo Outro/a e o respeito à
diversidade como fios condutores para o próprio existir.
A morte
foi um dos temas que teceram o Odu de Estética /
Beleza / Encantamento, delineado por diversas músicas, onde dialogamos sobre
rituais de morte em algumas culturas, especialmente na africana, pois “a crença na imortalidade do homem explica, em grande
parte, a grande importância que a morte e os ritos funerários têm na cosmovisão
de mundo africana[46].
Sabemos que:
a morte abrange as esferas mais importantes da vida
africana, pois abarca a concepção de homem, a necessidade das restituições dos
papéis sociais mais importantes, como chefes de família ou governantes
políticos. Isto porque, uma vez ocorrido o evento da morte o equilíbrio da
comunidade está posto em questão, pois as personagens que morreram sintetizam
as ações históricas do grupo. É neste momento que os ritos funerários ganham
grande importância, pois eles são capazes de reorganizar rapidamente as
comunidades restabelecendo o equilíbrio social[47].
Eduardo Oliveira[48]
considera que a “cultura é a reposta ao problema da morte”, se quisermos
conhecer bem uma cultura deveríamos procurar “saber seus rituais fúnebres”.
Nessa perspectiva a morte aparece não como lamento, mas como reorganização do
meio onde se vive, como um renascimento, pois ela é a condição para o
nascimento. Nesse momento a música “Drão” de Gilberto
Gil chega para dialogar conosco. É importante demarcarmos que a metodologia dos
Odus, perpassada pela nossa memória histórica, pelo
nosso cotidiano, é tecida pelas artes que nos tecem, assim, a música, a dança,
o desenho, enfim, a arte como um modo geral é instrumento metodológico, pois Odus vem dos sentidos, do sentir.
Drão[49]
“Drão,
o amor da gente é como um grão,
uma semente de ilusão,
tem que morrer pra germinar,
plantar nalgum lugar,
ressuscitar no chão
nossa semeadura!
Quem poderá fazer
aquele amor morrer?
Nossa caminha dura!
Dura caminhada
pela estrada escura.
Drão,
não pense na separação,
não despedace o coração,
o verdadeiro amor é vão,
estende-se,
infinito,
imenso
monolito,
nossa arquitetura.
Quem poderá fazer
aquele amor morrer?
Nossa caminha dura!
Cama de tatame
pela vida afora...
Drão,
os meninos são todos sãos,
os pecados são todos meus,
Deus sabe a minha confissão,
não há o que perdoar
por isso mesmo é que há
de haver mais compaixão!
Quem poderá fazer
aquele amor morrer,
se o amor é como um grão:
morre, nasce trigo,
vive, e morre pão!
Drão”
Após ouvirmos a música, destacamos a
seguinte parte: “o amor é como um grão: morre, nasce trigo, vive e morre pão!”
Após muitas reflexões coletiva fortalecemos a concepção de que “a condição para
o nascimento é a morte e que um tema está absolutamente relacionado ao outro”[50]. Do
ponto de vista psicológico é o que fazemos continuamente, pois:
sofremos
muitas mortes e temos necessidade de renascer de novo. A gente se perpetua,
enquanto espécie, no círculo morte e nascimento (...). A cada dia que se vive a
gente fica mais morto, é o paradoxo do viver, e ao mesmo tempo, quanto mais
morto, nesse sentido aqui que a gente está falando, que estou falando, mais
consciente de que estou vivo estarei.[51]
Seguindo a sensibilidade imposta pelos
acontecimentos cotidianos[52],
da produção em diálogo, somos apresentados/as a mais uma música, considerada
com uma perspectiva mais ocidental, em contraponto às reflexões anteriores,
escutemos:
Canto
Para a Minha Morte[53]
Eu sei que
determinada rua que eu já passei
Não tornará
a ouvir o som dos meus passos.
Tem uma
revista que eu guardo há muitos anos
E que nunca
mais eu vou abrir.
Cada vez que
eu me despeço de uma pessoa
Pode ser que
essa pessoa esteja me vendo pela última vez
A morte,
surda, caminha ao meu lado
E eu não sei
em que esquina ela vai me beijar
Com que
rosto ela virá?
Será que ela
vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que
ela vai me pegar no meio do copo de uísque?
Na música
que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela
vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
Virá antes
de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
E que está
em algum lugar me esperando
Embora eu
ainda não a conheça?
Vou te
encontrar vestida de cetim,
Pois em
qualquer lugar esperas só por mim
E no teu
beijo provar o gosto estranho
Que eu quero
e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas
demore a chegar.
Eu te
detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez
seja o segredo desta vida
Morte,
morte, morte que talvez seja o segredo desta vida
Qual será a
forma da minha morte?
Uma das
tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem
tantas... Um acidente de carro.
O coração
que se recusa abater no próximo minuto,
A anestesia
mal aplicada,
A vida mal
vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já
espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Um
escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio...
Oh morte, tu
que és tão forte,
Que matas o
gato, o rato e o homem.
Vista-se com
a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu
corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva
alimente outro homem como eu
Porque eu
continuarei neste homem,
Nos meus
filhos, na palavra rude
Que eu disse
para alguém que não gostava
E até no
uísque que eu não terminei de beber aquela noite...
Vou te
encontrar vestida de cetim,
Pois em
qualquer lugar esperas só por mim
E no teu
beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo,
mas tenho
que encontrar
Vem, mas
demore a chegar.
Eu te
detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez
seja o segredo desta vida
Morte,
morte, morte que talvez seja o segredo desta vida
A reflexão acerca dos sentidos dessa
música acaba por delinear nosso pensamento para “tornar o mistério palatável
dentro do limite do viver”[54], ou
seja, compreender que a ancestralidade nos forma, acessando aquilo que não
podemos identificar. Desse modo, não seria acessar o mistério, mas produzir
sentido desde e para esse mistério, pois quando produzimos sentidos “se morde a
ponta do mistério”[55], ou
seja, o mistério é a possibilidade da existência, é o que movimenta, é
movimento!
Nossas reflexões chegam à religião,
pois “toda vez que se fala de nascimento, de morte e nascimento, é quase
impossível você não falar de religião. A religião é uma resposta cultural à
morte e ao nascimento, (...) não há religião que não trate desse tema como
prioridade”[56].
É, então, mais uma perspectiva para compreendermos o mistério da vida, as
perguntas que nos seguem em nosso cotidiano: por que nascemos, para quê, para
onde vamos, qual a nossa “missão” nesse mundo[57].
Novamente uma música vem dialogar conosco, mais uma vez Raul Seixas provoca
reflexões com “Ave Maria da Rua”[58].
Ave Maria da Rua
No lixo dos
quintais
Na mesa do
café
No amor dos
carnavais
Na mão, no
pé, oh
Tu estás, tu
estás
No tapa e no
perdão
No ódio e na
oração
Teu nome é Yemanjah (Yemanjah)
E é Virgem
Maria
É Glória e é
Cecília
Na noite
fria
Oh, minha
mãe
Minha filha
tu és qualquer mulher
Mulher em
qualquer dia
Bastou o teu
olhar (Teu olhar)
Pra me calar
a voz
De onde está
você
Rogai por
nós
Ooooh, Ooooh!
Minha mãe,
minha mãe
Me ensina a
segurar
A barra de
te amar
Não estou
cantando só
Cantamos
todos nós
Mas, cada um
nasceu
Com a sua
voz,
Ooooh, Ooooh!
Pra dizer,
pra falar
De forma
diferente
O que todo
mundo sente
Segure a
minha mão
Quando ela
fraquejar
E não deixe
a solidão
Me assustar
Ooooh, Ooooh!
Minha mãe,
nossa mãe
e mata minha
fome
Nas letras
do teu nome
Ooooh, Ooooh!
Minha mãe,
nossa mãe
E mata minha
fome
Nas letras
do teu nome
Ooooh, Ooooh!
minha mãe,
nossa mãe
E mata minha
fome
Na glória do
teu nome.
Após ouvirmos a música algumas vezes,
houve uma breve explanação do seu tempo histórico (ditadura militar), em
seguida refletimos a questão de gênero, a associação da mulher com a divindade
criadora, na cultura africana, enquanto o homem no ocidente é considerado o
criador. Para a cultura africana a união dos gêneros é necessária para a
construção e manutenção do mundo. Assim, in-concluimos
o Odu de Encantamento com o mito de “Oxum na
organização do mundo”, que traz a importância fundante da mulher na construção
do mundo. Quem nos conta tal mito é Vanda Machado e Carlos Petrovich[59]:
Oxum na organização do Mundo
Era uma
vez, no princípio do mundo, Olodumaré mandou
todos os orixás para organizarem a terra. Os homens faziam reuniões e mais
reuniões. Somente os homens, as mulheres não eram convidadas.
Aliás as mulheres foram proibidas de participar da organização do mundo. Deste
modo nos dias e horas marcadas, os homens deixavam em casa as suas mulheres e
saiam para tomar as providências indicadas por Olodumaré.
As
mulheres não gostaram de ficar de lado. Contrariadas foram conversar com Oxum.
Oxum era conhecida como uma Iyalodé.
Iyalodé é um título da pessoa mais importante
entre as mulheres do lugar.
Na
verdade, parece que os homens tinham esquecido do poder de Oxum sobre a água doce.
E sem a
água doce, com certeza, a vida na terra seria impossível.
Oxum já estava aborrecida com esta
desconsideração dos homens. Afinal ela não poderia de forma alguma ficar longe
das deliberações para o crescimento das coisas da terra.
Ela
sabia de tudo que estava acontecendo.
Era
preciso compreender que todos são importantes para a construção do mundo.
Procurado
por suas companheiras, conversavam durante muito tempo e por
fim a Iyalodé comunicou: - De hoje em diante, vamos
mostrar o nosso protesto para os homens.
Vamos
chamar atenção, porque somos todos responsáveis pela construção do mundo.
Enquanto
não formos consideradas, vamos parar o mundo!
- Parar
o mundo? O que significa isto? Perguntaram as mulheres curiosas.
- De
hoje em diante, falou Oxum, até que
os homens venham conversar conosco, estamos todas impedidas de parir. Também as
árvores não vão mais dar frutos, nem as plantas vão florescer, nem crescer.
Isto foi dito e isto aconteceu.
Aquela
foi uma reunião muito forte. A decisão foi acatada por todas as mulheres.
E os
resultados foram imediatos. Os planos que os homens faziam, começaram a se
perder sem nenhum efeito.
Desesperados,
os homens se dirigiram a Olodumaré e explicaram como as coisas iam mal
sobre a terra. As decisões tomadas nas assembleias não davam certo de forma
nenhuma.
Olodumaré ficou surpreso com as más notícias.
Depois
de meditar por alguns instantes perguntou:
- Vocês
estão fazendo tudo como eu mandei? Oxum está
participando destas reuniões?
Os
homens responderam: - Veja senhor, estamos fazendo tudo “direitinho” como o
senhor mandou. Agora, este negócio de mulher participando de nossas reuniões...
Isto ai, a gente não fez assim não.
Coisa
de homem, tem que ser separado de coisa de mulher.
Olodumaré falou forte:
- Não é
possível. Oxum é o orixá da
fecundidade. É quem faz desenvolver tudo que é criado.
Sem Oxum o que é criado não tem como
progredir.
Por
exemplo, vocês já viram alguma coisa plantada crescer sem água doce?
Os
homens voltaram correndo para a terra e cuidaram logo de corrigir aquela grande
falha.
Quando
chegaram à casa de Oxum, ela já
esperava na porta, fazendo jeito de quem não sabia o que estava acontecendo. Aí
os homens foram chegando e dizendo:
- Agô nilê! (Com
licença).
In-Conclusões
Caminhantes
Compreendo
não ser possível ensinar sobre história e cultura africana e afro-brasileira
sem pensar uma educação para as relações étnico-raciais, sem voltar-se para
comunidade como um todo, sem a escuta sensível, sem pensar o coletivo. O que
não é válido apenas para o ensino de história e cultura africana e
afro-brasileira, pois não é suficiente ter conhecimento cognitivo se não
mudarmos nossas práticas, se não trabalharmos esse conhecimento, assim, essa é
uma perspectiva válida em todos os campos do conhecimento, da vida. Experiência
/ vivência / aprendência...
A
metodologia dos Odus é tecida por memórias
históricas, pois “valorizar a memória e a resistência negra contra as
hegemonias é um processo decolonial e ressignificante, que fortalece o combate contra o
preconceito e a discriminação racial que afetam a nossa sociedade,
possibilitando a mudança do cenário de desigualdade vivida no Brasil”[60].
Assim, também é perpassada pela autoformação na busca
de uma sociedade mais justa, democrática, antirracista, contra o
patriarcalismo, contra toda e qualquer forma de opressão. Metodologia tecida
por implicações epistemológicas, ativistas, política, ética, em busca da
descolonização curricular, do conhecimento e de nossos próprios corpos.
Ancestralidade tecendo o presente para um futuro livre, liberdade demarcada
pela conquista de todos os direitos, bem-viver!
Assim,
in-concluo esse artigo convidando a cada leitor e a
cada leitora a desenvolver suas próprias metodologias, os Odus
estão ai para serem recriados, tecidos desde o
contexto social, histórico de cada um, de cada uma. Tecidos por nossas próprias
histórias, por nossas escrevivências, como diria
Conceição Evaristo, delineado por educadores e educadoras que se compreendem
como aprendizes contínuos, e também enxergam seus educandos e suas educandas
como construtores de todo e qualquer processo de aprendizagem. Odus é uma metodologia, que também é conteúdo, da escuta
sensível, da potencialização da vida! Que caminhando possamos construir outros
mundos melhores, mundos encantados, fortalecidos, potencializados por nossa
ancestralidade, afrorreferenciado nossos modos de ser
/ fazer. Filosofia(s) Africana(s) como poéticas de sentidos, do viver!
“Antes de morder veja com atenção se é
pedra ou se é pão”.
Mãe Stella de Oxóssi
Referência
BRANDÃO,
Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2007.
CORREA, Marco Aurélio. Pequena
África e os cotidianos da resistência: o cinema negro como possibilidades para
e Lei 10.639/03. Revista da ABPN, v. 10, Ed. Especial-Caderno Temático:
História e Cultura Africana e Afro-brasileira – lei 10.639/03 na escola, p.109-134,
maio-2018.
MACEDO, Roberto Sidnei. Compreender/mediar
a formação: o fundante da educação. Brasília: Liber Livro Editora, 2010.
MACHADO, Adilbênia
Freire. Ancestralidade e Encantamento: filosofia africana mediando a
história e cultura africana e afro-brasileira. Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2014.
MACHADO, Vanda. Pele da Cor da Noite.
Salvador: EDUFBA, 2013.
NAPOLEÃO, Eduardo. Vocabulário Yorùbá. Rio de Janeiro: Pallas,
2011.
OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade: corpo e
mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Editora Gráfica
Popular, 2007.
OLIVEIRA, E. D. de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos
para uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Editora Gráfica Popular,
2006.
PETROVICH, Carlos; MACHADO, Vanda. Irê Ayó: Mitos
Afro-brasileiros. Salvador: EDUFBA, 2004.
RIBEIRO, Ronilda
Iyakemi. Alma Africana no Brasil: Os Iorubás.
São Paulo: Editora Oduduwa, 1996.
SOMÉ, Sobonfu.
O Espírito da Intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre
relacionamentos. SP: Odysseus Editora, 2003.
*
Esse artigo é oriundo da dissertação de mestrado de Machado. Ver MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento como inspirações formativas: filosofia africana mediando a
história e cultura africana e afro-brasileira, 2014.
[1] OLIVEIRA, Filosofia da ancestralidade: corpo
e mito na filosofia da educação brasileira, p. 107.
[2] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 94.
[3] MACEDO, Compreender/mediar a formação: o fundante da educação, 2010.
[4] Ibidem, p. 108.
[5] Professor Adjunto da Faculdade de
Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Professor Permanente do
Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento
(DMMDC) / Salvador. E-mail: afroduda@gmail.com
[6] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e afro-brasileira,
p. 98.
[7] RIBEIRO, Alma Africana no Brasil: Os Iorubás, p. 263.
[8] NAPOLEÃO, Vocabulário Yorùbá, p. 105.
[9] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e afro-brasileira,
p. 99.
[10] Ibidem, p. 99-100.
[11] Segundo Ronilda Ribeiro, “o oráculo sagrado possui 4.096 (16
x 16 x 16) poemas. Com base nesses poemas é feita a interpretação no jogo
adivinhatório de Ifá ou de búzios. Por ocasião do
processo iniciático o babalaô procura, através do jogo divinatório, tomar
conhecimento de qual é o odu de nascimento do iaô que passará a cultuar
também o orixá relativo a esse odu, respeitando os ewo (quizilas,
restrições) por ele prescritos. O odu de nascimento orienta o iaô quanto
ao seu destino, nos mais diversos níveis” (grifo da autora). Ver RIBEIRO, Alma
Africana no Brasil: Os Iorubás, 1996.
[12] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 99-100.
[13] Abreviatura de “História e Cultura
Africana e Afro-brasileira”. Acompanhei o referido componente curricular no
período entre 2010 e 2014.
[14] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 115.
[15] Ibidem, p. 115-116.
[16] Ibidem, p. 116.
[17] MACEDO, Compreender/mediar a formação: o fundante da educação, p. 129.
[18] OLIVEIRA, Filosofia da ancestralidade: corpo
e mito na filosofia da educação brasileira, p. 238-239.
[19] Segundo o autor, esses olhares
caracterizam a percepção da metafísica (olhar de longe), o pensamento
pós-moderno (olhar de perto) e a cultura dogon (olhar do entre-meio) que é uma cultura
africana que muito influencia a pesquisa que realiza em sua tese. Vide
OLIVEIRA, Filosofia da
ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação brasileira, p.
237-243.
[20] OLIVEIRA, Filosofia da ancestralidade: corpo
e mito na filosofia da educação brasileira, p. 239.
[21] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 118.
[22] Ibidem.
[23] Ibidem.
[24] SOMÉ, O Espírito da Intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre relacionamentos, p. 20.
[25] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 119.
[26] MACHADO, Pele da Cor da Noite, p. 110.
[27] Ibidem.
[28] OLIVEIRA, Filosofia da ancestralidade: corpo
e mito na filosofia da educação brasileira, p. 110.
[29] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 120.
[30] Ibidem.
[31] Ibidem.
[32] Ibidem.
[33] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 121.
[34] Ibidem.
[35] Ibidem.
[36] Ibidem, p. 122.
[37] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 122.
[38] Ibidem.
[39] Ibidem.
[40] Ibidem, p. 213.
[41] MACHADO, Pele da Cor da Noite, p. 52.
[42] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 124.
[43] Ibidem, p. 125.
[44] Ibidem.
[45] Ibidem.
[46] OLIVEIRA, Cosmovisão africana no Brasil:
elementos para uma filosofia afrodescendente, p. 56.
[47] Ibidem.
[48] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 125.
[49] Essa música data de 1982, fora feita
quando da separação de Gilberto Gil com sua 3ª esposa, Sandra, com a qual
vivera 17 anos. Fonte: http://www.overmundo.com.br/banco/drao-historia-que-a-musica-de-gilberto-gil-conta
[50] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 126.
[51] Ibidem, p. 127.
[52] Nessa metodologia os acontecimentos
cotidianos são sempre respeitados, privilegiados. As singularidades de cada
um/a em um constante diálogo com o conhecer, seria compreender que “dependendo
da coragem de compreensão com que nos lançamos a investigar e buscar
compreender o que ‘descobrimos do real’, podemos estender o alcance de nosso
olhar, de nosso coração (um excelente instrumento de interpretação da vida e de
nós mesmos) e de nossa mente”. Ver BRANDÃO, O que é educação, p. 44.
[53] Essa música faz parte do quinto álbum
solo de Raul Seixas (cantor e compositor baiano), lançado em 1976, intitulado
“Há dez mil anos atrás”.
[54] OLIVEIRA apud MACHADO, Ancestralidade
e Encantamento: filosofia africana mediando a história e cultura africana e
afro-brasileira, p. 128.
[55] Ibidem.
[56] Ibidem.
[57] Lembro-me de quando criança seguir anos
buscando entender por que havia nascido, pra quê, qual era minha “missão” neste
mundo. No início da adolescência compreendi que nasci para melhorar-me como
pessoa. Hoje, pensando desde a cosmopercepção na qual me reconheço, refletindo
desde a ancestralidade africana, compreendo que se melhorar como pessoa só é
possível quando encontramos a teia do nosso ser e compreendemos que ao nos
tornarmos pessoas “melhores”, tornamo-nos mais éticos e vamos ao encontro com
o/a Outro/a, entendendo esse/a Outro/a como algo que me completa e que é
completado por mim, sempre numa perspectiva do coletivo.
[58] Também faz parte do álbum “Há dez mil
anos atrás” de Raul Seixas.
[59] PETROVICH; MACHADO. Irê Ayó: Mitos Afro-brasileiros, p. 69-71.
[60] CORREA. Pequena África e os cotidianos da resistência: o cinema negro como
possibilidades para e Lei 10.639/03, p. 127.