Submissão: 10/09/2019 Aprovação:
10/09/2019 Publicação: 30/09/2019
Interfaces da Filosofia Africana
O que pode Elegbara?
Filosofias do corpo e sabedorias de fresta
What can Elegbara? Philosophies
of the body and wisdoms of border
Luiz
Rufino
Doutor em Educação- (UERJ) e pós-doutorando em Relações Étnico-raciais- (PPRER/CEFET)
luizrfn@gmail.com
Resumo: Este
artigo invoca Exu/Elegbara, esfera de saber
negro-africana transladada nos fluxos da diáspora, como princípio explicativo
de mundo, potência criativa e disponibilidade conceitual para pensar filosofias
montadas e paridas no/pelo corpo. Nesse sentindo, a corporeidade como parte da
problemática do conhecimento investe na reflexão e crítica das questões
epistemológicas como étnico-raciais. Assim, via giros enunciativos e os
conceitos de cruzo, incorporação e mandinga investe-se em um debate que atenta
para questões da ordem do racismo epistêmico, colonialidade
do ser/saber e a emergência de outras pedagogias no combate as injustiças
sociais e cognitivas.
Palavras-Chave: Exu; Corporeidade; Epistemologia; Pedagogia
das Encruzilhadas; Descolonização
Abstract: This article invokes Exu/Elegbara, the black-African
sphere of knowledge translated into diaspora flows, as an explanatory principle
of the world, creative power and conceptual availability to think of
philosophies assembled and born in the body. In this sense, corporeity as part
of the problematic of knowledge invests in the reflection and critique of
epistemological questions as ethnic-racial. Thus, through enunciative turns and
the concepts of cross, incorporation and mandinga,
one invests in a debate that deals with issues of the order of epistemic
racism, coloniality of being / knowledge and the emergence of other pedagogies
in combating social and cognitive injustices.
Keywords: Exu;
Corporeidade; Epistemology; Pedagogy of the
Crossroads; Decolonization
O arrebate do corpo,
a ênfase no saber corporal
Qual é a cor do gorro que veste Exu?[1]
Qualquer uma que ele queira, ele é aquilo que quiser, é um princípio
incontrolável. Exu é a divindade mais próxima dos homens, encarnado em nossas
existências, desde o grito do recém-nascido ao último suspiro de morte. Já
diria o sábio conhecedor do riscado: “Exu é o primeiro na vida e na morte.”[2]
Mesmo interpenetrado a todas as faces da existência humana ele ri de nossas
limitações, anseios, zomba daqueles que enveredam pelas obsessões de grandeza e
certeza. Exu nos faz sentar no vazio, esculhamba nossas pretensiosas verdades.
Constrói ao destruir. No jogo sincopado, o que nos espreita é a queda. Não à
toa, é ele o princípio da imprevisibilidade. Assim, o que há de emergir no
vazio do sincopado? Exu nos sopra: reinvente-se, crie. Haverá sempre uma
possibilidade.
O corpo, princípio de Exu, é esfera mantenedora de potências múltiplas,
o poder que o incorpora o transforma em um campo de possibilidades. O corpo em
performance nos ritos se mostra como arquivo de memórias ancestrais, um
dispositivo de saberes múltiplos que enunciam outras muitas experiências. Assim, o saber corporal[3], inteligibilidade e motricidade
emanada dos suportes físicos revelam o elemento e núcleo responsável pelas manifestações
e reproduções das sabedorias negro-africanas transladadas e ressignificadas na
diáspora.
O saber corporal[4]
constitui-se como o núcleo de uma série de ações inscritas enquanto
estratégias, cuja finalidade é a edificação de espaços onde as identidades
sejam vigoradas. Assim, nas práticas cotidianas, as ações advindas dessa
sabedoria operam na tessitura de identidades reivindicadas a partir de seu
próprio núcleo. Esse processo enuncia identidades corpóreo-gestuais. Nessas
vias, as dimensões dos ritmos corporais e a movimentação gestual apontam as
encruzilhadas em que as culturas negras estão lançadas. Encruzas essas que
alinhavam os permanentes conflitos, embates, adaptações e negociações em que
esses saberes estão lançados.
O arrebate do corpo a partir de Exu, bem como a emergência e a credibilização dos seus saberes implicam no exercício de rolês epistêmicos[5]
movimentos que nos deslocam ao encontro de caminhos pluriepistêmicos
e polirracionais. Esses cursos, cruzados e imantados
pelo axé de Exu, se atam de forma ética/estética às orientações antirracistas/decoloniais, e se entrecruzam compartilhando o ideal de uma
transformação radical implicado na luta pela equidade.
A instituição colonial edificou-se a partir da pilhagem de corpos
indígenas, negros e femininos brutalmente assassinados, desencantados,
desmantelados e blindados cognitivamente[6]. O
corpo, como um suporte que monta outras sabedorias, um inventário e mola
propulsora de ações táticas firma como um assentamento de outros modos de
racionalidades, opostos aos praticados pelo Ocidente. Dessa forma, o corpo se
consagra como a própria instituição que compreende a existência do ser em
integralidade com a comunidade e o universo[7].
Assim, saio em defesa de que Exu é o elemento que nos possibilita um
reposicionamento do corpo no debate epistemológico. A disponibilidade
conceitual inscrita nesse signo nos revela dimensões historicamente negadas
pelos regimes de verdade mantidos pelo ocidente. A emergência de novas
perspectivas, a partir de Exu, nos permite credibilizar
princípios, domínios e potências do ser
que transgridam os parâmetros da política colonial. Cabe ressaltar que essa
política de dominação exercida há mais de quinhentos anos é demasiadamente
concentrada na violência contra os corpos. Assim, a violência praticada nos
cotidianos da colônia autoriza a coisificação dos seres, do mesmo modo que a
coisificação perpetua a violência. Nesse sentido, funda-se uma lógica de
governabilidade da vida, uma maldição que substancia o sentido existencial do
homem branco (colonizador) em detrimento do desvio existencial do ser não
branco (colonizado).
Assim, a política colonial foi e permanece sendo uma biopolítica. Por
aqui, há mais de cinco séculos se empilham corpos, se cavam covas rasas, assim
como se investe em tecnologias de contenção, tortura e docilização
dos mesmos. Para além da manutenção do genocídio das populações não brancas
(negros e indígenas), há também o investimento na perpetuação do esquecimento.
A empresa colonial mata de inúmeras formas, seja com balas, com a precarização
da vida, com o desarranjo das memórias, com o desmantelo cognitivo, com a
coisificação do ser e a produção e a manutenção do trauma.
Nesse sentido, cabe ressaltar a estratégia política da ordem colonial em
interditar, demonizar e perseguir o signo Exu, já que o mesmo emerge como
esfera ôntica, epistêmica e semiótica que azucrina os
limites da arrogância e intransigência impostos pela razão moderna-ocidental.
Em outras palavras, e em diálogo com as reflexões de Grosfoguel,
nos cabe problematizar as dimensões do terror colonial lendo o caráter tático
do racismo epistêmico e a sua economia redutora da experiência social no que
tange o ataque e extermínio de signos e gramática em favor de uma racionalidade
que opera como o próprio olho de Deus[8].
Exu é a força motriz do universo, um poder incontrolável e impossível de
ser dominado. A interação com o mesmo reivindica uma ética responsiva, uma vez
que é ele o múltiplo no uno e o um multiplicado ao infinito, está em tudo e em
tudo está. Assim, Exu, como uma potência inesgotável, dobra qualquer
perspectiva de escassez. Por isso ele é o senhor dos caminhos (Onã), pois o seu caráter dinâmico é uma constante
produtiva. São inúmeros os mitos em que Exu protagoniza pelejas vencendo a morte,
e, em grande parte delas, Exu age através de sua perspicácia, a ludibriando,
pregando peças nela e a afastando de afetar aqueles a quem ela se destina. Como
no caso do mito em que Exu salva Orunmilá da morte,
servindo a ela a comida que Orunmilá ofertou como ebó. Assim, a morte não poderia mais matá-lo, pois havia se
alimentado da sua comida.[9]
É importante ressaltar que, em grande parte das narrativas míticas, a
noção de morte transcende a dimensão de uma simples oposição à vida. Nesse
sentido, destacam-se as perspectivas explicativas assentes na cosmogonia
iorubana e, respectivamente, nos cruzos[10]
da afro-diáspora, em que a noção de morte, para além da constituição da
matéria, se vincula às noções de esquecimento, escassez, desencante e perda de
energia vital. Esse giro explicativo é fundamental para credibilizarmos
os cultos à ancestralidade ‒ suas invocações e encarnações ‒ como um elemento emergente e fundamental na
reinvenção da vida na diáspora, na medida em que abrem um campo de
possibilidades de combate à escassez.
Assim, a dimensão do corpo, para essas sabedorias, transcende os limites
do emprego usado pela lógica ocidental. O mesmo é suporte de sabedorias
múltiplas que baixam e o encarnam; é também um elemento de imantação e diálogo
constante (cruzo) com o campo multidimensional. O corpo potencializado pelo
transe (deslocamento e trânsito por múltiplas dimensões) passa a não ser
meramente passivo às violências a ele empregadas, se desgarra da fixidez
material imposta pelo substantivo racial e passa a operar
inventando/inventariando ações de transgressão e montagem.
Nesse sentido, reposicionar o corpo a partir de um curso de ser/saber
outro, perspectivado pelas encruzilhadas de Exu, perpassa por credibilizá-lo como potência. Assim, emerge como caminho
não somente aquilo que, em primeiro momento, é o corpo nos limites de sua
materialidade, mas aquilo que o filósofo afro-brasileiro Vicente Ferreira
Pastinha atou como sendo “tudo que o corpo dá”. Ou seja, a integralidade entre
suporte físico e suas potências, que eu compreendo como as operações de Bara e Elegbara, o corpo físico e
sua espiritualidade (potências).
Dessa forma, é a partir desses conceitos que adentramos as práticas de
saber (performatividades) da afro-diáspora como
repertórios táticos antirracistas/decoloniais
inventariados nas dimensões da corporeidade. Mandinga, incorporação, ginga,
negaça, transe, rolê, efó, amarração, feitiço, terreiro, esquiva, drible, entre
outros inúmeros conceitos praticados como sabedorias de fresta, são marcas que
tecem esse inventário assente nos limites do corpo.
Exu é aquele que tem a cabeça afiada como a ponta de um obé[11].
Ifá nos conta que sobre a cabeça desse orixá não repousam fardos, ele é um único
corpo, um ser integral, que sente/age e reverbera as potências criativas do ser
supremo em seu todo. Exu, quando se parte, é porque de seus pedaços emergirá um
novo ser, tão completo e integral como aquele que havia antes. Ele é o
movimento primordial, de tempos remotos, antes mesmo da criação do universo, o
dinamismo dessa força gerou a primeira matéria, um ponto concentrado que se
materializou imantando toda a força propulsora. Esse ponto concentrado,
materialização da potência de Exu, não suportou conter toda a força criativa e
explodiu. Da própria energia da explosão gerou-se o movimento de ordenação do
universo. Dos pedaços estilhaçados por todo o infinito nasceram novas criações,
a reverberação desse evento gerou a possibilidade do acontecer, do devir. É por
isso que Exu é lido como a espiral do tempo, o primeiro corpo, aquele que é
dotado de inteligibilidade, que atravessa tudo e todos, pois é o próprio
acontecimento em si.
Por um projeto político/poético/ético intitulado Pedagogia das Encruzilhadas[12] o corpo e os seus saberes emergem a
partir do referencial Exu. O corpo, primeiro lugar do ser no mundo, suporte em
que baixam potências múltiplas. Esse elemento, alvo de tortura, objetificação,
cárcere e estupro durante a pavimentação do Novo Mundo, é aqui lido a partir
dos domínios e potências de Bara (dono do corpo) e Elegbara (senhor do poder mágico). Minha intenção ao
invocar esses domínios é praticar uma verdadeira arruaça teórico-metodológica,
porém, comprometido com o espírito exusíaco[13]
de reorganizar a partir da desordem, para apontar novos caminhos. Isso se faz
necessário na medida em que o colonialismo concentrou seus ataques
primeiramente nas dimensões do corpo.
Essa trilha aberta por Fanon[14]
é incursionada por Tavares[15],
que nos lembra que os processos ditos civilizatórios, praticados via
escravidão/colonialismo, transformaram o ser negro em algo coisificado. De um
corpo integrado às múltiplas dimensões de suas cosmovisões, instância do
sagrado, como também de toda e qualquer possibilidade criativa, o corpo negro
foi transformado em peça[16]
de um processo de transformação material. Exatamente o que Mbembe[17]
chamou de “homem metal” ou “homem niquelado”, aquele que só é tido como
possível a partir de seu caráter mercantil, de seu desvio ontológico, para ser
fundido como uma nova forma nas forjas do Novo Mundo.
Como parte integrante da agenda curricular do Estado Colonial, os modos
de educação praticados via escolarização, ao longo dos tempos, reificaram os
ideais dominantes. Assim, manteve-se de forma institucional a lógica de
disciplinarização dos corpos, os desmantelos, blindagens e desordens das
memórias e das cognições. Plantou-se na subjetividade dos seres da colônia a
toada “preto não tem história”, “o preto é mais adaptado ao trabalho braçal”, “preto
é desalmado”. A tríade colonialismo, igreja e ciência operou no desmembramento
da integralidade entre mente, corpo e espírito e na transformação dessas três
instâncias como partes a serem cultivadas de forma separada. A invenção do ser
via essa lógica dominante perpassa, então, pela vigilância do corpo (pecado), a
edificação da mente (racionalidade) e a salvação do espírito (cristianização).
Para o ser negro, fixado a uma condição vacilante, animalizado,
coisificado e fundido, nas fornalhas coloniais, nos moldes do lucro, o que
resta é a contenção dos seus impulsos primitivos por meio da subordinação do
corpo (cativo, objeto sexual, brinquedo, alegoria), da infantilização da mente
(não fala, ingênuo, imaturo, não inteligível e não sofisticado) e da conversão
da alma (colonização cosmológica, monologização da
linguagem e submissão aos regimes de punição).
Porém, o mesmo corpo que é investido de violência para a sustentação
desse regime é também o corpo que vibra as potências da imprevisibilidade e das
possibilidades. É o corpo que nega, dissimula, faz a finta, enfeitiça, joga,
finge que vai, mas não vai. É a sabedoria de fresta da síncope, a invocação da
palavra que constrói mundos, a encarnação do ser em outras esferas, a ginga que
vadeia ocupando os espaços vazios e fazendo do pouco muito. É o corpo de Bara e Elegbara, o corpo de
transgressão e resiliência. Aquele que faz do seu suporte físico arquivo, arma,
amuleto, totem e terreiro. Aquele em que a mente vagueia no cruzo entre sentir/fazer/pensar, se permitindo montar por
experiências cosmopolitas, pulsada por saberes fronteiriços.
Incorporação e mandinga: o bailado das sabedorias
de fresta
As produções discursivas assentes nos princípios de Bara
e Elegbara esculhambam a linearidade histórica e a
suposta supremacia dos conhecimentos versados pelo Ocidente-europeu. As
potências de Exu nos movem para outras rotas. Trabalho com uma espécie de
síntese desses infinitos discursos pulsados pelos saberes corporais a partir da
máxima pastiniana
que diz: “tudo que a boca come e tudo que o corpo dá!” Assim, nessa máxima,
compreendo todos os saberes e possibilidades de enunciação advindas do corpo,
sejam verbais ou não. Até mesmo aquelas difíceis de serem classificadas em uma
dessas categorias, como as negaças, as mandingas e as demais mentiras[18]
envoltas aos encantamentos da magia. A questão que me mobiliza é o deslocamento
para um pensamento de fronteira ou ciência encantada/epistemologia da macumba[19],
referenciada por Exu, onde o corpo aparece como elemento fundante e integral no
que tange à produção e a perpetuação do saber.
Desde os mitos iorubanos até as ressignificações de Exu nas travessias
pelo Atlântico, o corpo cumpre função elementar como via existente, explicativa
e possível. Não só uma visão de mundo, mas o próprio conceito de mundo perpassa
pelas potências e pela fisicalidade do corpo. Assim, a concepção de que o corpo
(individual) é apenas parte de um mundo é rasurada para a inscrição de uma
lógica que rompe com o binarismo ‘todo e parte’. O corpo é o registro do ser no
mundo, como do mundo no ser. O que nos permite nos
lançar sob essa perspectiva são as múltiplas faces de Exu e seus princípios
explicativos.
Assim, de Yangí, a pedra de laterita, a protomatéria da existência, ao pião de Òkòtò,
aquele que gira como espiral das existências sem que não se alcance seu cume.
De Enugbarijó, aquele que carrega um pedaço da boca
de todos os seres, o princípio da restituição, das transformações radicais, até
os efeitos mágicos do poder de Elegbara. De Bara, o suporte físico, a materialidade, até a humanidade
demasiada, a contradição e ambivalência do povo
de rua[20].
Dos caminhos e caminhantes de Onã até o riso e a
alegria transgressora de Odara. Em todas as carapuças
vestidas sobre o mesmo ser está a se imantar um múltiplo e inacabado inventário
de conhecimentos que revelam o corpo, o que ele pode e dá como elemento
construtor de uma contranarrativa à modernidade,
combatente da miséria e da escassez.
O corpo, pulsado por Exu, radicaliza com a problemática do conhecimento
historicamente tutelado pelo regime monológico do mundo ocidental. Exu
confronta com a problemática epistemológica na medida em que lança a noção de
que todo conhecimento só se manifesta na medida em que é incorporado. A incorporação[21] historicamente marcada pelas
produções de temor, impossibilidade, desvio e subalternização advindas do
colonialismo e de sua teologia política cristã, é aqui reinscrita. Na Pedagogia
das Encruzilhadas desatam-se os sentidos postos pelas marafundas
coloniais para reinscrever a incorporação
como uma noção que engloba os inúmeros saberes praticados, vibrados nos tons do
pensarsentirfazer[22] A noção de incorporação aqui defendida, além de praticar um rolê epistemológico, fuga para outras
zonas de fronteira, também pratica o ebó epistemológico[23]
procedimento que lança as questões do saber nas vias do encantamento e da
retomada da espiritualidade.
A espiritualidade retorna ao cerne das questões do conhecimento na
medida em que não há desvinculação das instâncias corpo, mente e espírito. Os
conhecimentos, praticados a partir de outra concepção de ser, esse imbricado às
tessituras e interações da vida nesses outros modos, revela uma dimensão do
humano que se fundamenta em sua integralidade. Dessa forma, há uma série de
deslocamentos a serem feitos: o primeiro seria o da noção de razão vinculada
estritamente à atividade da mente e do pensamento; num segundo momento, a da noção
de corpo rigorosamente vinculada às ordens dos impulsos, instintos,
animalidades, e à presença e consequente necessidade de vigilância do pecado;
e, em terceiro, a da noção de espiritualidade ligada às instâncias do sublime,
da santidade, da evolução e do distanciamento e desprendimento dos referenciais
corpóreos. Essas três perspectivas apontadas são rasuradas para serem
reinscritas sob outro arranjo, referenciado por outras lógicas. Esses outros
modos são impossíveis de serem lidos sem que sejam compreendidos na
integralidade e interação de suas instâncias.
Dessa forma, a espiritualidade não se opõe ao saber, que, por sua vez,
está diretamente imbricado à condição da experiência dos sujeitos no mundo
(corpo) e de suas práticas (incorporações). A ideia de um corpo físico alocado
em um polo oposto ao das imaterialidades do espírito não se sustenta nas
lógicas assentes nos saberes aqui elencados. Talvez esse seja um dos caminhos
para problematizarmos os genocídios produzidos contra as populações negras e indígenas
no Brasil. A morte do corpo físico acompanha a lógica de expurgar os saberes e
as subjetividades produzidas e incorporadas pelos sujeitos que vibram em outro
tom e se referenciam por outros modos de racionalidade.
Assim, existe uma lógica por trás de séculos de assassinatos. O que
talvez alguns apontem como uma fragilidade presente no meu argumento, na medida
em que a minha fala pode tender a determinadas generalizações, eu defendo que é
a lógica perpetuada ao longo do tempo, nada mais do que a ortopedia do
colonialismo/colonialidade. Não à toa, Fanon amarrou o ponto atando os diferentes aspectos entre
as dimensões físicas e simbólicas.
Retorno ao pensamento de Fanon destacando mais
uma vez o aspecto concernente à linguagem[24], no
que ele chamou de colonialismo epistemológico, e as operações do racismo nos
cotidianos das mulheres e homens negros. Sobre outro aspecto, disparou
denunciando a violência em estado bruto que fundamenta o sistema colonial,
revelando suas múltiplas faces experienciadas sob diferentes dimensões do corpo
e da existência do ser.
Fanon é novamente invocado para baixar nesta encruza textual e nos ajudar a
enfrentar algumas demandas. Se outrora foi ao campo de batalha, aqui, no agora,
é invocado para adentrar esse campo de mandinga. O chamo para destravar os nós
do corpo, uma vez que venho a defender a noção de mandinga[25] com a sapiência do corpo. O racismo
e o colonialismo se engendram nas dimensões mais profundas das existências, por
isso, para uma transformação radical, teremos de apostar em possiblidades não credibilizadas pelo Ocidente. É isso que busca a Pedagogia
das Encruzilhadas, a aposta se dá nos poderes que operam nas frestas e nos cruzos. Assim, aposta-se nas sabedorias operadas em viés,
nas gingas, rolês, pontos atados, ebós, encantamentos
e incorporações.
O preto velho, egun da afro-diáspora, me sopra
no ouvido: é no território corporal que serão investidas as ações do
racismo/colonialismo, é nos limites do corpo que serão praticados os primeiros
golpes ‒ “olhe, um
preto!”[26].
Seguindo as trilhas de Fanon, compreenderemos que,
abaixo do esquema corporal, há um esquema histórico racial subjetivamente
plantado e tecido não pelo que o suporta, mas pelo outro, o branco. “Eu existia
em triplo: ocupava determinado lugar. Ia ao encontro do outro... e o outro,
evanescente, hostil, mas não opaco, transparente, ausente, desaparecia. A
náusea...”[27].
Os desmantelamentos cognitivos, os desarranjos da memória, o ataque à
consciência coletiva, o racismo, substância elementar do colonialismo,
apresenta formas sofisticadas de operação. O racismo epistemológico é parte
integrante da política de morte alçada pela empresa colonial. Nesse sentido,
pratiquemos as frestas, invoquemos a espiritualidade vadia que nos arrebata no
jogo de corpo para praticarmos o que chamo de rolê epistemológico e saltarmos nos vazios deixados. Fanon nos ajuda, uma vez que ressalta a emergência de um
giro enunciativo, desdobra as questões da linguagem, a elegendo como território
a ser pensado. Percebamos que a virada linguística praticada por Fanon pode ser também lida nos termos exusíacos,
como “tudo aquilo que o corpo dá”! A magnitude da contribuição de Fanon é justamente o que se cruza com uma perspectiva elegbariana.
O colonialismo funda um mundo partido, maniqueísta, porque as condições
para ser aceito nos ditames coloniais implicam submeter o corpo a uma série de
disciplinas; o corpo do colonizado está em constante estado de tensão. As
musculaturas, os arranjos corpóreos, as palavras, a rítmica e as entonações. O corpo
em constante estado de tensão se arranja para ser aceito, para se forjar como
algo novo, porém nunca aceito, carregando o fardo do desvio. Fanon[28]
leu o mundo colonial como um mundo cindido, polarizado, imóvel. Mundo que
edifica os monumentos de civilidade como cavalos de Troia. O que era o presente
dos gregos senão uma marafunda das brabas? Um
artefato encarnado pelo espírito da barbárie[29].
No mundo colonial, mesmo sendo lançado à força ao enquadramento, mesmo
sendo vítima de um desmantelo cognitivo e de uma desordem das memórias, o corpo
ainda é capaz de encontrar rotas de fuga. As encruzilhadas me apontam que,
mesmo que o indígena[30]
aprenda primeiramente a se pôr no seu lugar, aprende também a burlar essa
regra. Fanon foi certeiro ao expor os sonhos do
colonizado como sonhos musculares, sonhos de ação e de agressividade.
Segundo ele, “Eu sonho que dou um salto, que corro, que subo. Sonho que
estouro na gargalhada, que transponho o rio com uma pernada, que sou perseguido
por bando de veículos que não me pegam nunca”[31].
Porém, a ambivalência do mundo colonial forja também sujeitos abusados,
desobedientes, que fazem suas traquinagens nos vazios deixados ou simplesmente
jogam o jogo incorporando outros sentidos. Por mais que Fanon
me diga que “o colonizado não cessa de se libertar entre nove horas da noite e
seis da manhã”[32],
eu não o desminto, mas encruzo algo à sua fala, já que nas bandas de cá
“malandro dorme com um olho aberto e outro fechado”[33]!
Ah, as batalhas de corpo, os jogos de valentia, as vadiações do jogo da
capoeira nos guardam muitas histórias. Se lança a pergunta “Mestre,
o que é Valentão?” [34]. O mestre responde: “Valentão é um cara pior do
que a gente.” “Ora, como
assim mestre?” O mestre
solta o verbo: “Sim! Porque ele é mais educado, mais gentil! Valentão não gosta
de injustiça. Valentão vê a polícia maltratando um, vai lá e bate na polícia,
não deixa que as coisas ruins cheguem na comunidade dele. Eu vou te apresentar
dois Valentões!”
As formas de invenção da vida nas bandas de cá do Atlântico são saberes de frestas presentes em
múltiplas práticas que têm por efeito despachar o carrego do racismo e
colonialismo. No que tange às dimensões do corpo, busca-se o seu encante como
suporte de memórias e saberes a partir da perspectiva lançada pela noção de incorporação[35]. A incorporação, noção que credibiliza os
saberes praticados, os saberes em performance, parte do pressuposto de que todo
saber, para se manifestar, necessita de um suporte físico. O suporte físico é,
por sua vez, parte do saber, não há separação. O suporte físico ‒ corpo humano ou outra materialidade ‒ é incorporado por um efeito, um poder que o “monta”.
Bara e Elegbara são noções que compreendem
domínios e potências que se interligam e fundamentam outras bases explicativas
necessárias para um giro epistemológico. Os domínios e potências de Bara e Elegbara são lidos no
cruzo com as palavras de Mestre Pastinha. Ao ser questionado sobre o que seria
a capoeira, o mestre respondeu: “capoeira é tudo que a boca come e tudo que o
corpo dá!” A máxima cunhada pelo mestre é seminal, é como se dissesse tudo e
ainda assim abrisse caminho para ainda muito se falar. Em outros termos, firmo
o ponto, as palavras de Mestre Pastinha, assim como a capoeira, são exusíacas. Ora, não é Exu o dono do corpo, o senhor das
potências do corpo e também aquele que bota palavras em nossas bocas?!
A relação de Exu com o pensamento de Mestre Pastinha ainda nos apresenta
outra interface. O domínio de Exu intitulado como Enugbarijó, o Senhor da boca coletiva, nos diz sobre
aspectos que podem ser percebidos na capoeira, mas também em todas as dinâmicas
de transformação, reprodução, multiplicação, possibilidade, imprevisibilidade,
criação, comunicação, mediação e tradução. A noção de Enugbarijó
é também conhecida popularmente como a
boca que tudo come. Assim, seu Pastinha, ao lançar uma amarração contendo
seu pensamento acerca da capoeira, definiu os saberes circundantes ao jogo de
corpo cruzando-o aos domínios de Enugbarijó, Bara e Elegbara. Diria que o mais fascinante da máxima cunhada
pelo mestre é o seu caráter inacabado, aberto ao imprevisível e a toda e
qualquer possibilidade de se apresentar em um outro tom.
A noção de Enugbarijó integra a Pedagogia das
Encruzilhadas encruzando todas as travessuras teóricas/metodológicas propostas.
Os domínios e potências de Exu, enquanto boca que tudo come, são abarcados pela
pedagogia montada por Exu como um conceito fundamental, na medida em que a
mesma versa sobre transformações radicais. Em uma perspectiva de mundo em
encruzilhadas existe a necessidade de, nos cruzos praticados, engolirmos algumas coisas e cuspirmos de forma
transformada. Enugbarijó versa sobre a capacidade de
restituirmos algo de forma transformada, se come de um jeito para se cuspir de
outro.
As noções de incorporação e mandinga estão necessariamente
encruzadas pelos domínios e potências de Bara, Elegbara e Enugbarijó. A partir do
referencial Exu, escrever uma tese, recitar uma poesia, ler um tratado, falar
múltiplas línguas são saberes incorporados tanto quanto o tocar tambor, o
sambar no miudinho, a esquiva e o “entrar sem ser percebido e sair sem ser
lembrado”. Todas essas formas são saberes assentes nos domínios e potências de
Exu. A mandinga, versada aqui como uma das formas de sapiência do corpo, vincula-se
às dimensões da incorporação, porém ressalta aspectos ímpares no que tange às
suas produções e manifestações.
As mandingas estariam
vinculadas aos saberes corporais envoltos a atmosferas mágicas, únicas e
intransferíveis. A mandinga lida como
a sapiência do corpo é aquele tipo de saber que não pode ser traduzido por
outra textualidade que não sejam as pertinentes aos limites do próprio corpo. O
que proponho, nesta obra, não é a noção de mandinga como concebida e praticada
pelos mestres mandingueiros[36],
mas sim um cruzo, uma amarração conceitual.
A mandinga na Pedagogia das
Encruzas se consiste como a sapiência do corpo envolta à atmosfera da magia e
aos procedimentos do encantamento. Essa só é possível vislumbrada no rito, na performatividade em consonância com os elementos que
compõem a dimensão da magia.
Destrói-se para se construir
novamente. Para aqueles que foram relegados ao esquecimento, ao desvio e à não
existência, o que cabe é a invenção. A transformação do mundo perpassa pela
invenção de novos seres, essa é a pedra cantada pelo preto velho Césarie[37]
e praticada pelos corpos de saber na diáspora, aqueles que gingam, buscam no
vazio o golpe não necessariamente desejável, mas possível. É necessário soltar
a mandinga, mergulhar nesse campo de potências ainda pouco conhecido por nós,
seres assombrados que desconhecemos os próprios encantos do corpo. Mestre
Canjiquinha, capoeira, mandingueiro, filósofo da ancestralidade já enunciaria
em uma de suas máximas: “as ideias estão no chão, eu tropeço encontro
soluções.”
A mandinga é veneno e remédio,
é brinquedo e faca de ponta. Foi através da mandinga, sapiência do corpo
envolta ao encante, que se transformou a vadiagem em vadiação. Assim, virou-se
de ponta cabeça, reinscreveram-se lógicas, apontou-se para novos caminhos. A
vadiagem, dos modos de fazer perseguidos e reprimidos conforme a lei aprovada
no código penal de 1890[38],
foi ressignificada como vadiação. Rasura-se a invenção do crime para atar modos
de potencialização da vida. A vadiação compreende as experiências lúdicas e
afirmativas praticadas nas ruas, rodas e terreiros, fundamentadas nos ritos dos
praticantes de frestas.
Ginga o
capoeira, o malandro, o vadio... o chapéu de lado, o tamanco arrastando,
a navalha no bolso e o lenço no pescoço[39]. O capoeira, o mandingueiro, o corpo arrebatado pelas
potências de Elegbara, eis o inventor da vadiação,
aquele que seu Canjiquinha definiu como
Almas vibrantes em corpos orgulhosos,
mesmo quando mutilados. Andam de cabeça para baixo. Põem a cabeça no chão, emparafusam-se nas coisas (conhecendo-as por dentro) e no
giro, vão dando ideias subterrâneas que servem de guias para a gente se
transformar e encarar o mundo[40].
Ah, a mandinga. Existem muitas
histórias sobre as magias do corpo...
Meu
filho, vou te levar para conhecer uma senhora, ela reza na folha e depois
olha pra folha e diz o que é. Rapaz, essa mulher é tão santa que, às vezes, eu
estou com uma dor de cabeça, eu passo, ela tá na porta, eu falo com ela: oi,
dona Santa! Pronto, a dor de cabeça passou![41]
Ah, camaradinhas, o mundo tem seus mistérios! Mandinga é mumunha de “nego véio”, é buraco
de cobra, é nó em corda seca, é Besouro Preto que avoa. Mandinga é Exu que
carrega azeite em uma peneira e não perde sequer uma gota. É necessário
adentrar as gramáticas do encante, praticar os cruzos,
permitir o arrepio do corpo e a incorporação de outros saberes.
Em outra história, o mestre narra:
Rapaz,
mestre Gerson Quadrado era tão mandingueiro que, quando ele conheceu mestre Ananias
‒ eu tive o prazer de levar ele na casa
dele ‒, o mestre Ananias perguntou: “Qual é o seu
orixá?” Ele
respondeu: “Não mecho
com isso não.” No
final, mestre Ananias trocou a língua com ele: “Olorun...
não sei lá o quê...”, ele respondeu e o Ananias disse: “Mas você não disse que
não era?!” E mestre Gerson: “Eu não posso te dar tudo de vez, Ananias!”
Como cantaria o verso, “valha
meu Deus, senhor São Bento, buraco velho tem cobra dentro”. As mandingas são os
saberes que navegam no invisível e vira e mexe baixam em nós. O cabra
mandingueiro é aquele que incorpora o saber que se manifesta e se dilui em
questão de segundos. Quem viu, viu! Quem sabe, sabe. Quem está dentro não sai e
quem está fora não entra. Ouvi histórias sobre seu Antônio Venâncio, caboclo
mandingueiro que curava bicho no rastro, mas que botava quebranto em
recém-nascido. Como já disse, é remédio e veneno, mandinga é troço ambivalente.
Meu pai me contou: “Eu vi o velho Antônio Venâncio matar uma rês no olhar, como
vi também amansar bicho brabo com uma língua que só ele falava! O velho foi
picado de cobra venenosa e nada lhe aconteceu. ”[42]
Ah, a mandinga! Todo saber tem
suas mirongas, mumunhas. Minha avó, em suas palavras,
me disse:
Meu filho, tem gente que tem poder, uns
sabem que têm e faz coisas boas, os que não sabe do poder que têm bota coisa
ruim. Eu tinha uma vizinha que não podia entrar aqui em casa que era só ela
falar: “dona Neuzinha, tão bonita suas plantas!” Não dava outra: quando eu ia
ver, estavam tudo murchas! Você não lembra do que aconteceu com a Joaninha?!
É verdade, tenho que admitir
que eu mesmo fui testemunha do enredar dos mistérios das mandingas. Em estadia
na casa de minha avó quando eu era criança, caí durante mais de uma semana com
febre alta e outros piripaques. Entre hospitais, médicos e muitas receitas, o
que eu ouvia é que não era nada demais, porém a febre e a cama me acompanharam
por esse tempo.
Até que um dia, no meio da
noite, acordei sob uma surra de galho de aroeira acompanhado por uma ladainha
que misturava palavras nunca ouvidas a outras identificadas como ‘cinco-salomão’, ‘divino espírito santo’ e ‘bendito e louvado
seja’. À minha frente, uma senhora negra de estatura muito baixa e aparência
envelhecida, ao seu lado, minha tia, que me dizia: “Meu filho, não tenha medo
que ela irá lhe curar.” Coincidência ou não, na manhã seguinte, acordei outro e
até me aprontei para um passeio de bicicleta.
Muitas são as histórias das
mandingas de cura. Sou testemunha do trato curtido nos versos das rezas e
ladainhas. Quando criança, fui frequentador assíduo dos encantes das palavras,
dos galhos de arruda, fumo de rolo e copos d’água. Às vezes alguns modos
chegavam a assustar, como as rezas acompanhadas dos sinais feitos na ponta da
faca. Porém, sempre fui acalmado pela máxima: “se bem não fizer, mal também não
vai fazer!” Impingem, febre, inflamações, furúnculos, esporros. Da infância
para cá, acompanhei alguns modos, tomei reza no Ceará, no Maranhão, tomei
lições no Pará e cruzei algumas rotas nos terreiros dos subúrbios do Rio de
Janeiro e na Baixada.
Existe uma multiplicidade de
mandingas: são técnicas, magias, saberes fronteiriços, encantes que vigoram,
protegem e potencializam o corpo. Algumas se inscrevem nas instâncias da cura
revelando um amplo repertório terapêutico, formas que tratam e realinham o ser
com as condições de sua existência. Outras formas se revelam dinamizando outras
instâncias da vida. Assim, existem as mandingas de sorte, que são lançadas no curso
dos jogos. A sorte de um se inscreve nas circunstâncias do azar do outro. Não
há sorte plena, como também não há azar pleno, a lógica dessa dinâmica se
inscreve na ordem do jogo. Por isso, os mais sábios já exaltariam a máxima
“devagar também é pressa.”
São muitas as histórias que
falam de mandingas, as sapiências do
corpo. Uma é o ocorrida entre mestre Martinho da Pemba
e um sujeito chamado Dimola, na feira de São Joaquim,
em Salvador, onde seu Martinho trabalhou até falecer.
Seu Martinho diz: Vocês conhecem o Dimola? Rapaz, aquele menino é bom! Ele veio aqui pegou uma
cana minha (a cana custava 50 centavos, era produzida em uma roça na região de Mapele). Eu disse “me devolve que a cana tem dono!” Ele
disse dacolá: “Que isso, coroa, vou levar essa cana!” Eu tornei a dizer: “Você
não vai levar não!” Peguei o facão e joguei no pescoço dele! Rapaz, não é que
ele ‘deitiou’ todo?! Quando ele se ‘deitiou’, eu piniquei e ele rolou. Aí eu disse: “Pode levar
a cana!” Ele, de lá, respondeu: “Eu não quero mais não! Não quero mais essa
cana não!” Eu tornei a dizer: “Leve, eu gostei! Isso eu conheço muito! Leve a
cana, porque foi a primeira vez que eu puxei o zinco para não ver pingar!”
As mandingas se expressam não
somente nas curas dos corpos, mas também nos seus sacrifícios. Afinal, cura e
sacrifício são termos que, nessas lógicas, só fazem sentido se inscritos e
lidos de forma cruzada. Assim, há um repertório infinito de mandingas que se
manifestam nos jogos de valentia e nas pelejas de amarração de versos. Saberes
corporais atados via versos e movimentos envoltos na atmosfera do encante. Nos
campos de batalha, que são também campos de mandinga, o corpo que toca o chão
tombado pelo golpe se inscreve como o sacrifício que encanta o rito.
Assim, como ensinado por seu
Martinho da Pemba, haveremos de reconhecer o mérito
daqueles que invertem a lógica e usam o poder do seu próprio corpo como
potências que o livram do sacrifício. Esses tipos possuidores dessas artimanhas
são mitificados como detentores do corpo fechado. Mas o que viria a ser o tal
do corpo fechado? Responderei nas palavras diretas, mas encruzadas no enigma
versado pelo lendário Madame Satã. Ao ser perguntado se possuía o corpo
fechado, o malandro responde: “Ué, meu corpo é fechado porque não está aberto.
Agora, sobre isso que você diz, eu digo que é sorte mesmo!”
Mandinga, o conhecimento do
invisível, a malícia, o fazer do pouco
muito[43],
esperteza, malandragem, o que fez Besouro voar, mágica, ginga particular,
manhas, truques, a sapiência do corpo.
Mandinga é tudo que a boca come e tudo
que o corpo dá! Seu Pastinha, seu Martinho da Pemba,
Madame Satã, Mano Elói Antero Dias, dona Santa, seu Martiniano Eliseu do
Bonfim, dona Neuzinha, seu Antônio Venâncio, mestre Gerson Quadrado, Padre
Cícero, me perdoem, a lista é infinita... As mandingas e incorporações nos têm
muito a dizer sobre outros saberes. Talvez não, porque, como bom mandingueiro,
há de se lembrar que nem tudo o que se sabe é para ser dito. Porém, a prosa nos
invoca importantes problematizações reivindicadas pela Pedagogia das
Encruzilhadas.
Dessa forma, retomo as inúmeras respostas que tive ao lançar, em
contextos de práticas como a capoeira, o jongo, o candomblé, entre outras
muitas manifestações, a pergunta: Como se aprende? As respostas: “Aprendi no pé
de fulana!” “Aprendi na barra da saia!” “Aprendi de ouvir!” “Aprendi fazendo!”
“Aprendi na marra!” “Aprendi de esperar!” “Aprendi de teimoso!” “Aprendi na
barriga de minha mãe!” “Aprendi de ver os mais velhos fazendo!” Todas essas
respostas nos dão o tom da complexidade dos saberes e dos horizontes pluriepistêmicos que compõem as diferentes formas de vida e
de educação.
Existem muitas outras formas possíveis. A rotina do colonialismo tem
sido a de executar milhões de corpos, construir igrejas, catequisar, velar e
buscar uma salvação. Porém, aqueles milhões de corpos assassinados, torturados,
sequestrados, estuprados, mulheres, crianças e jovens compõem uma tessitura de
sabedorias que subsidiam as práticas que disferem golpes na maquinaria
colonial. Se para cada centena de mortos pelo colonialismo se constrói uma
igreja, na perspectiva das encruzilhadas, cada corpo é um totem que imanta e
reverbera potências que significam a vida.
Assim, é nesses termos que, vira e mexe, baixam por aqui praticantes de outros
tempos, uns se encantaram em cipós, olhos d’água, pedras de rio, gameleiras e
sabiás. Outros se imbricam aos ditos “viventes” e deixam seus recados. Os que
me inspiram nessas travessias se fixaram nas esquinas, nos goles de cerveja
lançados ao chão, nas nuvens de fumaça, nos requebrados, batidas de mão no
couro e no sacrifício da vida regado a dendê. Para o que é lançado a partir de
uma via explicativa assentada no complexo cosmológico iorubano, só existe morte
pelo esquecimento! Só morre aquilo que não é lembrado. Cuspido feito travessura
da boca do Mestre das ruas, em uma conversa, ele manda: “Meu filho, eu estou
aqui falando com você, agora me diga eu tô vivo ou tô morto?!”[44]
(Gargalha...)
Firmo o ponto novamente, a racionalidade moderna ocidental é decapitada
e assombrada pela má sorte de ter o corpo (Bara)
deslocado da cabeça (Ori). As questões acerca dos
saberes (epistemologias) perpassam necessariamente por um reconhecimento e credibilização do corpo, na medida em que todo saber se manifesta
quando praticado, ou seja, incorporado. Se as questões acerca do saber estão
diretamente vinculadas às dimensões das práticas, incorporações, e dos agentes que as praticam, as incorporam, as
questões epistemológicas se inscrevem também como uma problemática
étnico-racial.
É defendendo que as problemáticas epistemológicas são também
étnico-raciais que me fidelizo a ressaltar as proezas de Bara
e Elegbara. A emergência do corpo a partir do signo
Exu substancia a crítica e aponta caminhos que despacham a negação dos saberes
corporais. As perspectivas advindas dos domínios e potências de Exu são mais um
golpe operado pela Pedagogia das Encruzilhadas, que provoca um revés na medida
em que traz o corpo para o cerne do debate poético/político/ético. Ao mesmo
tempo em que falo das proezas e dos poderes do corpo, falo também da má sorte
do mundo Ocidental, que tem suas cabeças deslocadas dos seus corpos. Um mundo
de decapitados em que as cabeças caminham em direção contrária a dos corpos.
A perspectiva da pedagogia encarnada por Exu aponta e credibiliza outras travessias no campo do saber. Assim,
segundo os conhecimentos versados nos terreiros, Bara
é o elemento individual corporificado que, junto ao Ori,
individualiza o ser. Bara, o corpo, e Ori, a cabeça, que, integrados, marcam as individualidades
e os caminhos que cada um de nós carregamos. Elegbara
é o domínio de Exu que o titula como o senhor do poder mágico. A este domínio
estão creditados o dinamismo e o pulsar das energias que constituem, conectam e
perpassam as existências como um todo. É nos domínios de Elegbara
que se assentam os princípios e potências de todo e qualquer movimento e ação
criativa. É Elegbara que funde o princípio dinâmico
das existências, além de se firmar nos termos de produtor de toda e qualquer
possiblidade e imprevisibilidade.
Elegbara é aquele andarilho que vagueia mundos, bate o ogó[45] no vazio e já está do outro lado,
montado em formigas, viaja nos redemoinhos, canta de tardinha e de manhã canta
novamente. Elegbara é pinto e galo ao mesmo tempo, é
ele que emprenha as moças virgens, desnuda certezas. O brincalhão escreve o
ontem no hoje, fuma o cigarro ao avesso sem se queimar, de sua flauta, sopra o
espiral do tempo que nos faz acontecer. Elegbara nos
encarna, é o moleque travesso que numa hora quer de comer, e um minuto depois
já não quer mais. É o dengo e o choro, o gozo e a birra. O garoto querido de Olodumaré, o filho que Orunmilá
pediu para mimar. Elegbara vagueia mundos, tropeça e
encontra soluções, veste a carapuça que quiser e carrega a cabeça do rei em seu
bornal. Nas palavras assentadas na esteira do saber popular dos terreiros, Elegbara “é a força de Exu, o movimento como um todo”.[46]
É um pouco de cada um de nós.
Referências
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Alegria da Capoeira. Salvador: Editora a Rasteira, 1989.
CARVALHO, José J.; FLÓREZ, Juliana F. Encuentro
de Saberes: proyecto para decolonizar
el conocimeto universitário
eurocênctrico. Nómadas, nº 41, p. 131-147,
2014.
CÉSARIE, Aimé. Discurso
sobre o colonialismo.
Trad. Anísio Garcez Homem. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.
FANON, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira S.A, 1968.
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades
ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista
Sociedade e Estado, v. 31, n 1. Jan-Abr 2016.
LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário
da História Social do Samba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2015.
MASOLO, Dimas. A. Filosofia e conhecimento indígena uma
perspectiva africana. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MENEZES, Maria
Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São
Paulo: Cortez, 2010.
MBEMBE,
Achile. Crítica
da Razão Negra. Tradução Marta Lança. Lisboa: Antígona Portugal,
2014.
PASTINHA,
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Pastinha. Salvador:
Acervo Fred Abreu Capoeira, 2013.
RUFINO, Luiz. Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas. Tese de Doutorado- Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2017.
RUFINO,
Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo
no Mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
TAVARES, Júlio Cesar. Dança de guerra- arquivo e arma: elementos para uma Teoria da Capoeiragem
e da Comunicação Corporal Afro-Brasileira. Belo
Horizonte: Nandyala, 2012.
TAVARES, J. C. Colonialidade do Poder,
Cooperação Internacional e Racismo Cognitivo: Desafios ao Desenvolvimento
Internacional Compartilhado. In: ADESKY, Jacques d’; SOUZA,
Marco Teixeira de (Orgs.). Afro-Brasil: debates e
pensamentos. Rio de Janeiro: Cassará
Editora,
2015.
[1] Esse questionamento se
encruza a uma das mais conhecidas narrativas sobre Exu, presente em um dos 256 odus
Ifá, em que o orixá veste um
gorro de duas cores e
serpenteia entre os limites de visão de dois vizinhos que travam uma trágica
disputa pela certeza acerca da cor do gorro.
[2] Essa frase foi enunciada
pelo sacerdote de candomblé Pai Carlinhos.
[3] TAVARES, Dança de
guerra- arquivo e arma: elementos para uma Teoria da Capoeiragem e da
Comunicação Corporal Afro-Brasileira, 2015.
[4] Ibidem,
p. 25-26.
[5] RUFINO, Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas, p. 41.
[6] TAVARES, Colonialidade
do Poder, Cooperação Internacional e Racismo Cognitivo: Desafios ao
Desenvolvimento Internacional Compartilhado, 2015.
[7] Ibidem.
[8] GROSFOGUEL, A estrutura do conhecimento nas
universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro
genocídios/epistemicídios do longo século XVI, p. 28.
[9] Essa passagem está contida
em um dos 256 odus Ifá. Nela também
se ressalta a dimensão de uma
ética responsiva entre Exu, Orunmilá e Iku.
[10] RUFINO, Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas,
p.103.
[11] Faca.
[12] RUFINO, Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas,
2017.
[13] SIMAS; RUFINO, Fogo no Mato- A Ciência Encantada das
Macumbas, p. 113.
[14] FANON, Os Condenados da Terra, 1968.
[15] TAVARES, Dança de
guerra- arquivo e arma: elementos para uma Teoria da Capoeiragem e da
Comunicação Corporal Afro-Brasileira, 2015.
[16] Segundo Tavares, a
denominação era justamente a de peça. O corpo negro, dado que sua condição de humanidade
desaparecia, era uma ferramenta descartável.
[17] MBEMBE, Crítica
da razão negra, 2014.
[18] Mentira é um termo
recorrente na capoeira para se referir aos
poderes e efeitos das mandingas.
[19] SIMAS; RUFINO, Fogo no Mato - A Ciência Encantada das
Macumbas, p.11.
[20] RUFINO, Exu e
a Pedagogia das Encruzilhadas, p.161.
[21] Ibidem, p. 198.
[22] CARVALHO; FLOREZ, Encuentro
de Saberes: proyecto para decolonizar el conocimeto universitário eurocênctrico, 2014.
[23] RUFINO, Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas, p.
194.
[24] FANON, Pele Negras, Máscaras Brancas, 1968.
[25] RUFINO, Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas, p. 87.
[26] FANON, Pele Negras, Máscaras Brancas, 2008.
[27] Ibidem, p. 105.
[28] FANON, Os Condenados da Terra.
[29] Menção ao pensamento de
Walter Benjamin.
[30] O termo ‘indígena’ aqui é utilizado como
expressão que alude ao caráter etnocentrado. Sobre essa discussão, ver MASOLO, Filosofia
e conhecimento indígena uma perspectiva africana.
[31] FANON, Os Condenados da Terra, p. 39
[32] Ibidem.
[33] Aforismo versado
nas umbandas e macumbas cariocas pelas entidades de malandros.
[34] O referido mestre é Gerson
Quadrado. Essa história me foi passada por mestre Plínio.
[35] RUFINO, Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas,
2017.
[36] Mestres mandingueiros são como são
reconhecidos os mestres da capoeiragem que compreendem as habilidades do que se
entende por mandinga.
[37] CÉSARIE, Discurso
sobre o colonialismo, 2010.
[38] Ver LOPES; SIMAS, Dicionário da História Social do Samba, 2015.
[39] Menção à canção de Wilson Batista “Lenço
no pescoço”.
[40] CANJIQUINHA, Alegria
da Capoeira, p.39.
[41] Fala de Mestre
Gerson Quadrado.
[42] Essa história aconteceu nos
idos dos anos 1960 no
interior do Ceará.
[43] O “fazer do pouco muito” é uma definição que mestre Cobra Mansa dá sobre a
mandinga. Não coincidentemente, na
capoeira há um verso popular que diz: “Um
pouco com Deus é muito, um muito sem Deus é nada.”
[44] Esse questionamento me foi
lançado em um diálogo com a entidade
espiritual seu
Tranca Rua das Almas.
[45] Ferramenta,
instrumento mágico de Exu.
[46] Cabe ressaltar que, devido à
aproximação e à imbricação das noções e diante de uma circulação cada vez maior
de produções referentes aos ritos negro-africanos, algumas generalizações vêm sendo
feitas colocando as noções de Bara e Elegbara como sinônimos. Essas
generalizações são comuns, inclusive na literatura acerca do tema. Porém, cabe
aqui destacar que, por mais que as duas noções estejam imbricadas, uma
interpenetrando a outra, referem-se a títulos distintos, que indicam domínios
próprios. Sendo Bara o título referente à condição de dono do corpo, e Elegbara
o título referente à condição de o senhor do poder mágico.