Submissão: 10/09/2019 Aprovação:
10/09/2019 Publicação: 30/09/2019
Interfaces da Filosofia Africana
Filosofia da Macumba: a sacralização do corpo do negro na
poética de Solano Trindade
Philosophy of Macumba: the
sacralization of the body of the black man in the poetics of Solano Trindade
Bas´Ilele Malomalo
Docente no
Programa de Mestrado Interdisciplinar em Humanidades, Instituto de Humanidades
e Letras/Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(BA), líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento,
Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global; E-mail:
basilele@unilab.edu.br
Resumo: Esse trabalho analisa a
quarta e a quinta estrofes do poema “Macumba” de Trindade. Defende que esse
poeta negro usa a estética poética, pautando-se nas religiões de matrizes
africanas, para enfrentar o paradigma branco-racista que reduz o corpo negro à
vadiagem. Trindade interpreta o corpo negro como um corpo sagrado e convida
para a prática de uma política filosófica que valoriza a vida em todas suas
manifestações.
Palavras-chave: Trindade; Macumba;
Negro; Vida
Abstract: This work analyzes the fourth and fifth stanzas of the poem
"Macumba" of Trindade. It argues that this black poet uses poetic
aesthetics, based on the religions of African matrices, to face the
white-racist paradigm that reduces the black man body to vagrancy. Trindade
interprets the black man body as a sacred body and invites to practice a
philosophical policy that values life in all its manifestations.
Keywords: Trindade; Macumba;
Black; Life
Palavras encantadas
Na
prática da filosofia de macumba que tenho praticado cada epigrafo é parte do
texto e por isso faço questão de começar com esse poema da professora
universitária e ativista do movimento negro, Lívia Natália, inserindo-o no
texto:
Da
inutilidade da poesia (Para
o Prof. Hélio Santos)
63 jovens negros são mortos por dia.
23 mil jovens negros são mortos por ano.
Ao menos um morreu agora,
Enquanto você lia este poema[1].
Essas
estrofes merecem ser tratadas pela necessidade que o sujeito que retratam, o
homem negro, merecer outros olhares que sejam valorativos, como diria Guerreiro
Ramos, investigar ‘o negro desde dentro’[2], para escapar dos
olhares que tendem a coisificá-lo. Por isso, o seu
corpo é tratado pelo pensamento branco-racista como território permitido para a
execução quaisquer tipo de violência física e simbólica. A necropolítica[3], que não tem somente o
Estado como seu agente executor principal, mas toda sociedade euro-ocidental
capitalista e racista, opera no sentido de decidir sobre a morte de vidas de
pessoas negras.
Seguindo
um dos passos da filosofia de macumba proposta por mim, sugiro contemplar a
estética do poema de Solano Trindade, antes de prosseguir com outros passos que
compõem o propósito desse texto. Vamos saborear a estética trindadiana
presente no seu poema e se trata, com certeza, do primeiro passo da filosofia
da macumba[4]:
macumbizar desmacumbizando-se
pelo belo.
1 |
MACUMBA[5] |
2 |
Noite de Yemanjá Negro come acaçá Noite de Yemanjá Filha de Nanan Negro come acaçá Veste seu branco abebé |
3 |
Toca o águe O caxixi O agogô O gã O engona O ilu O lê O roncó O run O rumpi |
4 |
Negro pula Negro dança Negro bebe Negro canta Negro vadia Noite e dia Sem parar Pro corpo de Yemanjá Pros cabelos de Obá Do Calunga Do mar |
5 |
Cambondo sua Mas não cansa Cambondo geme Mas não chora Cambondo toca Até o dia amanhecer |
6 |
Mulata cai no santo Corpo fica belo Mulata cai no santo Seus peitos ficam bonitos |
7 |
Eu fico com vontade de amar... |
Tenho sugerido, na filosofia
de macumba, que a construção de um trabalho intelectual negro deve se pautar
nas bibliotecas negras, africanas e afro-diaspóricas, e não negras
antirracistas. Os materiais que devem auxiliar
para construção de um vôo filosófico podem ser
extraídos das bibliotecas
acadêmicas e não acadêmicas, salvaguardando a cultura negra sempre como o lugar
de partida desse fazer filosófico.
Tendo
em conta o material primário que disponho, um bem artístico negro para analisar,
fundamento minhas interpretações filosóficas nas obras de Mveng[6],
Bilolo[7],
Ntumba[8],
Faik-Nzuji[9],
Sodré[10]
e Bourdieu[11].
As propostas sociológicas desse último autor são necessárias pelo fato de
auxiliar a tratar toda obra de arte como um bem cultural produzido socialmente
e que obedece às regras de uma economia simbólica. Em
outras palavras, toda arte retrata as relações de poder entre os agentes
envolvidos na luta no campo particular de sua produção. Interpreto o poema de
Trindade levando em conta os mecanismos do racismo mundial e brasileiro[12];
os debates filosóficos e sociológicos da intelectualidade negra sobre as
estratégias de morte impostas ao corpo do homem negro[13].
Outros
autores citados anteriormente trabalham diretamente com a cultura negra e
filosofia africana, continental e diaspórica, que é parte desse sistema
cultural. Está presente nesse trabalho a ideia de uma hermenêutica do primeiro
grau e segundo grau de Ntumba[14].
No caso, parto do princípio de que o poema “Macumba” de Trindade é uma obra
filosófica do primeiro grau e minhas interpretações constituem uma filosofia da
segunda instância que engajam somente o seu autor.
Aproprio-me
de Faik-Nzuji[15],
Mveng[16]
e Sodré[17]
a ideia de que os bens da cultura negra são elementos, gestos, ações, signos e
símbolos a ser decifrados filosoficamente. E digo com Bilolo[18],
decifrados sempre, a partir de uma hermenêutica valorativa e não pejorativa e
racista. Nei Lopes[19]
e Kileuy e Oxaguiã[20]
me possibilitam estabelecer o diálogo entre os textos acadêmicos e não
acadêmicos, tendo a cultura negra como centro da gravitação filo-sociológica.
Divido
esses textos em quatro partes: “Palavras para o encantamento” que é a
introdução; o “Negro devoto é um auxiliar da macumba” e “O corpo sacro-profano
do Negro devoto” que compõem o desenvolvimento da minha argumentação; e as
“Palavras do recomeço” que é a minha conclusão. Com isso, defendo que a
liberdade da escrita é uma liberdade filosófica e isso implica uma ruptura com
formas tradicionais de organizar os textos[21].
O corpo
sacro-profano do Negro devoto
Negro pula
Negro dança
Negro bebe
Negro canta
Negro vadia
Noite e dia
Sem parar
Pro corpo de Yemanjá
Pros cabelos de Obá
Do Calunga
Do mar”
(Solano Trindade)
Iniciar
uma argumentação com um epigrafo, quando possível, é não somente um recurso
estético, mas igualmente uma forma de organizar o discurso científico dentro da
epistemologia da macumba[22].
Quando
lido do ponto de vista da totalidade do todo poema, na quarta estrofe, o Negro
devoto continua a ser o destaque: ele pula, dança, bebe, canta e vadia durante
um tempo indetermino (“Noite e dia”; “Sem parar”) não por qualquer motivo ou qualquer
personagem, mas para duas orixás: Yemanjá e Obá. O
verbo “vadiar” constitui a ação principal que comanda as outras: “pular”,
“dançar” e “beber”. Esses três formam o que se chama de vadiagem.
Interessante
é perceber que algumas ações que em outros contextos seriam vistas pelo olhar
racista vigente como fatos sociais a serem reprimidos e que levariam a morte de
seus autores quando fossem negros, são recuperados positivamente pelo poeta.
Estou me referindo às ações como “pular”, “dançar”, “beber” e “vadiar” que, no
contexto brasileiro, carregam representações negativas contra o negro, visto
este como o bêbado ou vagabundo. Preconceitos e estigmas raciais que remontam
desde os tempos da colonização e escravidão[23]
e que têm por função cometer o genocídio contra o corpo negro e sua cultura[24].
Através do recurso poético, Solano Trindade
tenta quebrar essas representações pejorativas e racistas. Inverte-as política
e poeticamente. Busca na cosmovisão africana, onde o profano e o sagrado
dialogam permanentemente, novos recursos para retratar a imagem do novo negro[25].
Os gestos tidos por profanos e sacrilégios, são transformados em sagrados. Tudo
se passa como se houvesse um processo de sacralização do profano e a profanação
do sagrado. No meio de tudo isso é o corpo do Negro devoto que ocupa a cena.
Aqui como em outros momentos do seu poema se consume o que identifico com Mveng[26]
como liturgia cósmica da arte africana.
A dimensão litúrgica da Arte negra
inaugura a celebração da vitória da Vida sobre a Morte pela unificação do
destino do homem e o destino do mundo. Eis a razão pela qual a Arte negra não
é, como a Arte ocidental, um “mimêma tou pantos”, uma reprodução do
universo. Ela é, ao contrário, uma recriação do universo. Nos ritos africanos,
a escultura, a pintura, a arte decorativa, os ornamentos, a música, a dança,
sopram nos elementos do cosmos a plenitude da alma humana, e os elementos do
cosmos se tornam o corpo humano. Os ritos de iniciação realizam a perfeição
dessa dimensão litúrgica da nossa arte. O homem encontra-se nele pelos todos
gestos da criatividade artística. Ele fala, recita, declama, improvisa, canta,
escultura, desenha, decora, cria ornamentos, adornos, vestimentas; aprende a
construir a sua morada, e celebra todo isso através de uma longa paixão onde
todos seus aliados, na natureza, juntam-se a ele para dar o supremo golpe à
Morte[27].
Solano
Trindade vai mais longe e transforma a vadiagem, que tem o corpo negro como
suporte, em sagrado. O corpo do Negro devoto “vadia”, isto é, pula, dança e bebe age para o “corpo de Yemanjá”
e os “cabelos de Obá”. Yemanjá continua a ocupar o
espaço maior nessa liturgia secular ou política[28],
pois é evocada duas vezes na segunda estrofe do poema e no quarto, uma vez que
o mar remente à sua moradia: ela é tida como a rainha do mar.
Ao
descrever Iamanjá no Brasil, Kileuy
e Vera de Oxaguiã[29]
escrevem que ela transformou-se na “senhora dos mares”, talvez devido à
grandeza oceânica do país que lhe acolheu, mas o autor afirma também que ela é
tida como a rainha dos lagos, das lagoas e da junção do rio com o mar, por isso
é chamada de “odô-iyá”, “a mãe dos rios”. Não só
isso. Ela é reconhecida como a “mãe dos peixes” e a “mãe de todos os orixás”,
“aquela que recebe e acolhe com amor mesmo os que não foram gerados por ela, mas
que foram entregues a seus cuidados”[30];
ela é a “mãe de todas as cabeças”, a mãe de todos os iniciados.
Sua importância é tão grande que todos os
iniciados, mesmo aqueles que não a têm como seu orixá principal, possuem uma
ligação especial com ela, pois ao ser considerada a mãe de todos os orixás,
torna-se avó de todos! E todas as pessoas iniciadas no candomblé, em um período
de sua evolução religiosa, terão que assentar Iemanjá porque ela faz parte da
corte dos orixás que reinam em todas as cabeças. Assim, ninguém merece mais do
que ela o poderoso título de a “Grande Mãe”[31].
Iemanjá
é tida como filha de Nanã. Esta é considera a orixá mais velha, a ancestral; orixá
da lama a partir da qual, em alguns mitos iorubanos, o ser humano foi moldado,
criado[32].
Em
vez de uma necropolítica para com o corpo negro[33],
de tratar o homem negro como homo saccer, parafraseando Agamben[34],
sujeito cuja vida deve ser eliminada pelo fato de ter nascido negro, Trindade
convida a sociedade a tratá-lo numa perspectiva da “potência de vida-ntu-axé-kalunga” e “política de
vida-ntu-axé-kalunga”. Ou
seja, uma vida humana que deve ser respeitada por si. Uma vida cuja dignidade
deve ser valorizada por pertencer a comunidade cósmica. Quer dizer que
comunidade do universo-natureza e do sagrado-ancestral das quais a
comunidade-universo-natureza e comunidade-bantu (ser pessoa) emanam e
participam solidariamente. O slogan
“vidas negras importam” nesse contexto deve ser interpretado do ponto de vista
da ética biocêntrica[35]
que exige que cada vida seja respeitada por si só. Ademais a sua compreensão
filosófica nos obriga compreender cada comunidade de vida na sua
interdependência solidária com outras formas de vida.
Na
perspectiva da filosofia de Iemanjá, a ética biocêntrica
africana nos convida a praticar a ética do cuidado, do acolhimento e do amor
para todos os entes que formam a comunidade-ntu-axé-kalunga: a potência da vida, a força vital ou a vida-energia-em-plenitude.
Ou seja, como nos lembra Mveng[36]
celebrar com a arte negra a vitória da Vida sobre a Morte.
O
calunga evocado no poema de Trindade nos introduz na complexidade dos saberes
africanos e afro-brasileiros para o diálogo intercultural:
Termo usado no Brasil em várias acepções:
Na umbanda, nomeia cada um dos
integrantes da falange de seres espirituais que vibram na linha de Iamanjá. Em linguagem mais geral, designa qualquer boneco
pequeno; camundongo; pessoa de pequena estatura principalmente por ser aleijada
da coluna vertebral; indivíduo de cor preta; cada um dos habitantes da
comunidade dos Calungas, em Góis; falar banto da região do Triangulo Mineiro e
do alto Paraiba; cada um dos bonecos que fazem parte
do cortejo dos maracatu; o mar; o ceú; a morte.
Etimologicamente: a origem etimológica do vocabulário está no multilinguístico
banto kalunga,
que encerra a ideia de grandeza, imensidão, designando Deus, o mar, a morte.
Segundo A. Costa e Silva, entre alguns povos bantos, kalunga representada por uma
boneca sempre guardada em um curso de água, é símbolo de força e fonte de poder
político. No Brasil, o ícone antropomorfo (o iteque,
a estatueta, representativo de qualquer entidade divinizada) passou a se chamar
“calunga”. Ver, por exemplo, a “calunga de maracatu”. O termo, portanto, se
estendeu, formando outras acepções[37].
Quero
explorar, primeiro, o significado do Calunga na sua ligação ao mar, visto este
como morada de Yamanjá. Pois é nessa direção que o
Negro devoto faz dançar o seu corpo.
Iamanjá representa a água que refresca e dá a
vida à terra, que ajuda na procriação e na geração de novos seres. A água que
apascenta e que acalma; a que cai do orum e depois
retorna, para descer novamente em forma de chuvas – a “água divina e sagrada”
de Olorum [divindade suprema iorubana][38].
A
água é, para os povos africanos, sinal da vida-ntu-axé-kalunga. Auxilia na procriação e regeneração de seres. Na
filosofia do Egito antigo, nos alerta Obenga[39],
ao lado de outros elementos da natureza, ar e fogo, a água é a força vital, o arkhê africano[40]
a partir do qual tudo que existe emana.
Faik-Nzuji, estudiosa congolesa,
na mesma perspectiva traduz a visão dos povos da região do Kongo com esses
termos:
O universo se concebe assim como uma
totalidade de uma rede de relações ininterrompidas ou circular, chocam-se ou trocam
energias quentes e frias, machas e fêmeas, positivas e negativas, fortes e fracas, etc. Essas diferentes polaridades traduzem a
natureza de todos os seres e todas as coisas criadas e determinam seu caráter
em todas as circunstâncias onde se manifestam. Essa concepção é representada
pelo símbolo de Kalunga[41].
Kalunga,
explica a mesma estudiosa congolesa, traduz a ideia do sagrado.
Os Valucazi, Tshokwe e Baluunda que habitam no
leste de Angola, centro-sul do Congo-Kinshasa e nordeste chamam esse símbolo de
Kalunga [...]. Esse termo forma o campo léxico-semântico do “sagrado” e nomes
designando “Deus”. O símbolo de Kalunga representa o Ser primordial, o
infinito, uma “Coisa sem começo nem fim” e que contém em si todas as Criaturas[42].
Faik-Nzuji[43]
explica o símbolo de Kalunga afirmando que o pequeno signo em cima representa
Kalunga o Criador ele mesmo; o pequeno signo abaixo representa o homem; o
pequeno círculo à esquerda representa o sol e o semi-círculo
à direita representa a lua; os seis signos inscritos na linha vertical central
representam as gerações que precedem ao indivíduo e que o ligam ao seu Criador.
Kalunga ou símbolo de
infinito[44]
Para
a autora, a linha vertical, no centro, marcada de seis pontos, aponta a estrada
que leva a Deus. Os pontos inscritos nos pequenos quadros representam as criaturas
de todas as espécies que existiram, existem e a vir. Esses pequenos quadros
estão moldados por uma linha continua que as engloba e volta sobre ela mesma.
Não tem nem início nem o fim: é o infinito, a eternidade. Os seis pontos
inscritos na linha vertical representam as gerações que nos ligam à origem. O
desenhar o símbolo Kalunga é, em geral, acompanhado de um recital mítico
explicando por que o sol aparece cada dia, porque a lua volta cada vinte e oito
dias e porque o ser humano conhece a morte[45].
O
Negro devoto de Solano é também devoto de Obá. Divindade do rio do mesmo nome,
ela é um orixá feminino energético e fisicamente mais forte que muitos orixás
masculinos. Era uma das esposas do Xângo e teria perdido
uma das orelhas na batalha com uma de suas rivais, a Oxum. A sua dança é
guerreira: ela brande um sabre com uma das mãos e leva um escudo na outra[46].
A
interpretação de Odé e Oxaguiã
sobre Obá, para mim, é mais ousada e apaixonante do que a anterior.
Obá (obà) é uma divindade ioruba feminina, de idade avançada, guerreira
poderosa, com um temperamento forte, e também uma
grande feiticeira. Na Nigéria, um rio caudaloso e perigoso demostra bem o
caráter irrequieto desta belicosa iyabá e a
homenageia, levando seu nome. A sua importância no cerne da religião é
conseguir comprovar a força da mulher e mostrar que quando ela vai à guerra é
para vencer! Em conjunto com o homem, pode prover sua casa e seu proveito de
alimentos. Ela mostra que, na luta diária, os dois sexos participam de batalhas
vencidas instantaneamente ou que perduram por muito tempo. Mostra também que
com a perseverança e coragem elas serão debeladas incontestavelmente. A mulher,
geralmente, é quem produz e consegue um elemento para vencê-las![47]
No
que diz respeito ao arquétipo de seus filhos e filhas, Pierre Verger registra o
seguinte:
O arquétipo de Obá é das mulheres
valorosas e incompreendidas. Suas tendências um pouco viris fazem-nas frequentemente
voltar-se para o feminismo ativo. As suas atitudes militantes e agressivas são
consequências de experiências infelizes ou amargas por elas vividas. Os seus
insucessos devem-se, frequentemente, a um ciúme um tanto mórbido. Entretanto,
encontram geralmente compensação para as frustrações sofridas em sucessos
materiais, onde a sua avidez de ganho e o cuidado de nada perder dos seus bens
tornam-se garantias de sucesso[48].
Que
filosofia africana os elementos levantados por Kileu
e Oxaguiâ e Verger da figura de Obá nos proporciona?
Uma
das primeiras interpretações que faço é que, para Solano Trindade, a vida de um
devoto dos orixás não é só flores, mas está repleta também de atritos,
incompreensões, sofrimento. Todavia, como o Negro devoto se confia aos cuidados
da “Guerreira poderosa”, “Grande feiticeira”, ele tem a capacidade de resistir
e vencer os obstáculos da vida cotidiana. E pode se perceber aqui que macumba
como feitiço tem outro sentido: a confiança na Grande orixá,
ancestral do ser humano, da natureza e de todos os orixás com intuito de
resolver problemas existências.
Outra
pista de leitura é levar em conta os princípios de solidariedade e
complementaridade entre homens e mulheres em suas lutas cotidianas, familiares
e políticas. Intelectuais africanas, como Amadiume[49]
e Oyewumi[50],
por exemplo, não veem nenhum problema para que homens africanos participam nas
batalhas de mulheres. Trata-se, no caso desse trabalho, da elaboração conjunta
de estratégias de resistência contra a necropolítica
voltada contra a população africana continental e diaspórica. Ou seja, faz-se
necessário que homens negros e mulheres negras se unem entre si e com outras
raças para exigir o direito de existir[51].
Ficou
claro que o Negro devoto é filho de Iamanjá e Obá. A
sua vadiagem consiste em cultuar essas duas mulheres. A quinta estrofe nos
revela que ele é um ogã. O que ratifica a tesa da
sacralização do seu corpo. Ou seja, se ele vadia é para suas órixas. Diga-se de passagem, trata-se de uma vadiagem
sagrada.
Negro devoto é um auxiliar da macumba
Cambondo sua
Mas não cansa
Cambondo geme
Mas não chora
Cambondo toca
Até o dia
amanhecer
(Solano Trindade)
Na
quinta estrofe, Trindade continua destacando o Negro devoto que, desta vez, é
retratado como “Cambondo”. A pesquisa feita traz alguns
significados deste termo. O primeiro é o que encontrei num dicionário português
online:
Significado de Cambondo.
Adj. (quimbundo kambanda)
Amancebado. s.m. 1 Amásio, amigo. 2 Acólito do oficiante, na macumba.
Definição de Cambondo.
Classe gramatical: Substantivo masculino e Adjetivo.
Separação das sílabas: cam-bon-do. Plural: cambondos[52].
Nei Lopes[53]
escreve com a grafia Cambono que é, para ele, o
auxiliar de pai-de-santo, na umbanda. Em Roger Bastide[54],
encontramos o termo Cambône, que significa assistente
dos sacerdotes ou dos médiuns na cabula ou na macumba.
O Cambono trindadiano
é um ser humano real, vivo, histórico. Tocando o candomblé/umbanda, as músicas
e danças sagradas, ele sua; ele cansa; ele geme; ele chora; ele toca até o dia
amanhecer. É um sujeito resistente, forte e devoto. É um ogã
(em iorubá), xicaringome/xicarangoma
ou tata cambono, um oficiante de macumba, tocador dos
tambores sagrados das religiões afro-brasileira enunciado na segunda estrofe do
poema.
Toca o águe
O caxixi
O agogô
O gã
O engona
O ilu
O lê
O roncó
O run
O rumpi
Essa é a explicação que nos fornece Kileuy
e Oxaguiã sobre os ogãs:
São autoridades masculinas, de posto
hierárquico abaixo do/a sacerdote/sacerdotisa, e seus auxiliares diretos, assim
denominado pelos ioruba. Na nação fon recebem o nome
de runtó/huntó e na nação
bantu são chamados xicaringome/xicarangoma
ou tata cambono. Estes homens [...] não entram em
transe [...][55].
Tambores são instrumentos musicais sagrados que conecta as
três comunidades-de-vida (comunidade-do-sagrado-ancestral,
comunidade-universo-natureza e a comunidade-dos-bantu), que é a comunidade-ntu-axé ou comunidade-kalunga. O
tambor coloca em comunhão o mundo visível (Aiyê) com o mundo invisível (Orun). Nesse processo ritualístico o ogã
é um sujeito importante dentro da comunidade de fé, o terreiro, nos momentos
ritualísticos e fora deles.
O Negro devoto, o ogã, toca “Até o
dia amanhecer” é o último verso da quinta estrofe que constitui um quiasmo com
o primeiro verso que abre o poema: “Noite de Iemanjá”. Interessante entender é
o cruzamento destes dois versos através das palavras “Noite” e “Dia” que aponta
para o cumprimento de um ciclo histórico-cósmico: Kalunga, o infinito. Ou seja,
o corpo do homem negro de Trindade é um corpo sagrado. A sua luta envolve
forças visíveis e invisíveis. Por isso, é permitido cantar a vitória do amor,
da vida sobre a morte, as forças maléficas que regem as sociedades racistas.
Palavras do recomeço
O poema de “Macumba” de Trindade me levou a praticar o que se
chama de filosofia cultural ou hermenêutica da macumba na Filosofia africana. É
em si uma peça filosófica pela sua estrutura e densidade pedagógica.
Elegi para a análise filosófica da segunda instância, a
quarta e quinta estrofes. Estes me levam a afirmar que o corpo do homem negro,
nesse poema, é sacralizado e é sagrado. Para tanto, Trindade faz uso de alguns
recursos estéticos servindo-se da filosofia africana presente nas religiões de
matrizes africanas.
O que Prandi diz do povo ioruba
pode se estender a outros povos africanos e confirma a nossa tesa da sacralização
da vida cósmica em geral e da vida humana em particular:
Os iorubas acreditam que homens e
mulheres descem dos orixás, não tendo, pois, uma origem única e comum, como no
cristianismo. Cada um herda do orixá de que provém marcas e características, propensões
e desejos, tudo como está relatado nos mitos. Os orixás vivem em luta uns
contra outros, defendem seus governos e procuram ampliar seus domínios,
valendo-se de todos os artifícios e artimanhas, da intriga dissimulada à guerra
aberta e sangrenta, da conquista amorosa à traição. Os orixás alegram-se e
sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os
humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais descem[56].
A sacralização do corpo do homem negro, no poema analisado,
acontece quando Trindade reverte o paradigma branco-racista da vadiagem sobre o
negro para atrelar esse termo às ações ritualísticas da comunidade de fé do seu
personagem, o terreiro. Nesse paradigma africano, o negro trindadiano
aparece como devoto de Iamanjá e Obá. Duas órixas femininas cujos elementos da ética e estéticas
filosóficas nos convidam para a prática do cuidado, do amor e do acolhimento do
outro que interpretei, em diálogos com outros textos das bibliotecas africanas
e afro-brasileiras, como o convite à prática da ética biocêntrica
assente na valorização do Real total, processual, global e multiforme[57].
Comunidade-vida-ntu-axé-kalunga
que se manifesta na comunidade-do-sagrado-ancestral, comunidade-bantu e
comunidade-universo-natureza[58].
Nessa ótica toda vida tem o seu valor intrínseco. A necropolítica, que ameaça as vidas negras, especialmente do
homem negro, pelas práticas do racismo e genocídio deve ser confrontada e
superada pela implementação urgente da política filosófica do ntu-axé-kalunga por valorizar
essa filosofia a vida na sua plenitude ou potência da vida. Macumba, levando em
conta as duas partes analisadas do poema é um convite à celebração da vida
sobre a morte. A última estrofe do poema de Trindade nos dá razão, quando o
poeta grita: “Eu fico com vontade de amar...”. Quer dizer, a superação da crise
planetária que afeta de forma cruel a vida de pessoas negras, exige a mudança
de paradigma do ódio e do racismo para um outro paradigma do amor-macumba.
Encantamento pelo Outro que é sempre sagrado.
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VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás:
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[1] NATÁLIA, Sobejos do mar, p. 73.
[2] RAMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira.
3 MBEMBE, Necropolítica / Sobre el gobierno
privado indirecto. Santa
Cruz de Tenerife: Editorial Melusina.
[4] MALOMALO, Macumbização e desmacumbização,
2016.
[5] TRINDADE, Poemas antológicos, p. 76-77.
[6] MVENG, Problematique d´une estétique negro-africaine, 2014; MVENG, L´art d´Afrique noire: liturgie cosmique et langage religieux,
1974.
[7] BILOLO, Les cosmo-théologiques
philosophiques de l’Égypte antique: Problématiques-prémisses
hermenêutiques-et-problèmes majeurs, 1986.
[8] NTUMBA,
Le réel comme procès multiforme: pour
une philosophie du Nous processuel, englobant et plural, 2014.
[9] FAIK-NZUJI,
Arts africains: Signes et symboles,
2000.
[10] SODRÉ, A verdade seduzida: Por um conceito de cultura no Brasil, 2005; SODRÉ, Pensar nagô, 2017.
[11] BOURDIEU, Les règles de l´art:
Genèse et structure du champ littéraire, 1998.
[12] BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico, 2018; MBEMBE, Crítica da razão negra, 2014; MOORE, Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo, 2007.
[13] Foco nesse texto no homem
negro, pois essa é a pista dada pelos versos que estou analisando. Entre outros
textos que asseguram minhas reflexões ver FLAUZINA, Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocídio
do Estado brasileiro, 2017; FLAUZINA; VARGAS. Motim: Horizontes
do genocídio antinegro na Diáspora, 2017;
PESSANHA; NASCIMENTO, Necropolítica:
Estratégia do extermínio do corpo negro, 2018; NASCIMENTO, O Genocídio do Negro Brasileiro:
Processo de um Racismo Mascarado, 1978.
[14] NTUMBA,
Le réel comme procès multiforme:
pour une philosophie du Nous processuel, englobant et plural, 2014.
[15] FAIK-NZUJI,
Arts africains: Signes et symboles,
2000.
[16] MVENG, Problematique d´une estétique negro-africaine, 2014.; MVENG,
L´art d´Afrique noire: liturgie cosmique
et langage religieux, 1974.
[17] SODRÉ, A verdade seduzida: Por um conceito de cultura no Brasil, 2005; SODRÉ, Pensar nagô, 2017.
[18] BILOLO, Les cosmo-théologiques
philosophiques de l’Égypte antique: Problématiques-prémisses
hermenêutiques-et-problèmes majeurs, 1986.
[19] LOPES, Enciclopédia brasileira: Diáspora
africana, 2004; LOPES, Dicionário
escolar afro-brasileiro, 2006.
[20] KILEUY; OXAGUIÃ. O Candomblé bem explicado (nações bantu, ioruba e fon), 2009.
[21] MALOMALO, Bioepistemolologia do Ntu:
Meu(s) diálogo(s) com Dagoberto José Fonseca, 2018; MALOMALO; FERREIRA (Orgs.). Intelectualidade
coletiva negra: memórias, educação e emancipação, 2018.
[22] Ibidem; Ibidem.
[23] MOURA, Dialética radical do Brasil negro;
MOORE, Racismo e sociedade: novas
bases epistemológicas para entender o racismo; BENTO,
Branqueamento e branquitude no Brasil, p.
25-58.
[24] FLAUZINA, Corpo negro caído no chão: o sistema
penal e o projeto genocídio do Estado brasileiro, 2017; FLAUZINA, Motim:
Horizontes do genocídio antinegro na Diáspora,
2017; PESSANHA, Necropolítica: Estratégia
do extermínio do corpo negro, 2018; NASCIMENTO, O Genocídio do Negro Brasileiro:
Processo e um Racismo Mascarado, 1978.
[25] FERNANDES, A integração do negro na sociedade de
classes, 1978.
[26] MVENG, Problematique d´une estétique negro-africaine, 2014.
[27] Ibidem, p. 10-11.
[28] RIVIÈRE, As liturgias políticas, 1989.
[29] KILEUY; OXAGUIÃ, O Candomblé bem explicado (nações bantu, ioruba e fon),
p. 296-297.
[30] Ibidem, p. 297.
[31] Ibidem.
[32] PRANDI, Mitologia dos orixás, 2001.
[33]
MBEMBE, Necropolítica / Sobre el gobierno
privado indirecto, 2011.
[34]AGAMBEN, Meios sem fim: Notas sobre a política,
2015.
[35] NAKOULIMA, A crise ecológica como exigência de um novo paradigma, 2012; THÉSÉE, L’interculturel en environnement: Rencontre de la justice sociale et de la justice environnementale, 2008.
[36] MVENG, L´art d´Afrique noire: liturgie cosmique et
langage religieux, p. 10
[37] NEI, Enciclopédia
brasileira: Diáspora africana,
p. 556 (grifo do autor).
[38] KILEUY; OXAGUIÃ, O Candomblé bem explicado (nações bantu, ioruba e fon), p. 297.
[39] OBENGA, La philosophie africaine
de la période pharaonique, 2780-330 avant notre ère, 1999.
[40] SODRÉ, O pensar nagô, 2017.
[41] FAIK-NZUJI,
Arts africains: Signes et symboles,
p. 30.
[42] Ibidem.
[43] Ibidem.
[44] FAIK-NZUJI, Arts africains: Signes et symboles, p. 30.
[45] Ibidem.
[46] VERGER, Orixás: Deuses iorubas na África e no novo mundo, 2002.
[47] KILEUY; OXAGUIÃ, O Candomblé bem explicado (nações
bantu, ioruba e fon), p. 285.
[48] VERGER, Orixás: Deuses iorubas na África e no novo
mundo, p. 187.
[49] AMADIUME, Reiventing Africa: Matriarchy, religion and
culture, 2001.
[50] OYEWUMI, The invention of Woman: Making na african sense of wester gender
discourses, 1997.
[51] MALOMALO, Retrato dos brancos/as antirracistas feito do ponto de vista de uma educação macumbista, 2017.
[52] DICIO, Dicionário
português online. (grifo meu)
[53] LOPES, Enciclopédia brasileira: Diáspora
africana, 2004.
[54] BASTIDE, As religiões africanas no Brasil: Contribuições a uma sociologia das
interpretações de civilizações, p. 558.
[55] KILEUY; OXAGUIÃ, O Candomblé bem explicado (nações
bantu, ioruba e fon), p. 60.
[56] PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 24.
[57] NTUMBA, Le réel comme procès
multiforme : pour une philosophie du Nous processuel, englobant et
plural, 2014.
[58] MALOMALO, Bioepistemolologia do Ntu: Meu(s) diálogo(s) com Dagoberto José Fonseca,
2018.