Submissão: 10/09/2019 Aprovação:
10/09/2019 Publicação: 30/09/2019
Interfaces
da Filosofia Africana
Filosofia Africana: um estudo sobre a conexão entre ética e
estética
African Philosophy: A Study on the
Connection Between ethics and aesthetics
Naiara
Paula
Escritora, editora, formada em Artes pela EAV-Parque Lage,
bacharel e licenciada em Filosofia, mestra em Crítica e História da Arte,
doutoranda em Filosofia CAPES-UERJ, professora orientadora de pesquisa
LLPEFIL-UERJ e Lab. Geru Maa-UFRJ.
_naiarapaula.e@gmail.com
Claudia
Wer
Atriz,
graduada em Filosofia, especialista em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade;
Produtora Cultural e pesquisadora LLPEFIL-UERJ.
_claudia.wer1@gmail.com.
Resumo: O
artigo articula a relação da ética com a estética africana através de dois
conceitos de base ancestral defendidos por expoentes do pensamento africano nos
textos: “Complementaridade Binária” de Sophie Bosede Oluwole e “Kugusa Mtima” de Dona Marimba Richards. O texto analisa aspectos
vitais da cosmovisão Africana que reverberam na produção ético-estética dos
povos Africanos e destaca o papel primordial da vida espiritual para a
experiência Africana, sobretudo, nos desafios contemporâneos, como forma de
afirmação e construção de uma consciência nacional.
Palavras-chave:
Ética africana; Estética Africana; Complementaridade
binária, Kugusa Mtima,
Cosmovisão Africana
Abstract: The article articulates the relationship between
ethics and African aesthetics through two ancestral concepts defended by
exponents of current African thought: "Binary Complementarity" by
Sophie Bosede Olewole and
"Kugusa Mtima" by
Dona Marimba Richards. The text analyzes vital aspects of the African worldview
that reverberate in the ethical-aesthetic production of the African people and
highlights the primordial role of the spiritual life for the African experience
in the contemporary challenges, as a form of affirmation and construction of a
national consciousness.
Key words: African ethics; African aesthetics; Binary complementarity, Kugusa Mtima, African
worldview
Introdução
O
presente artigo discute os padrões éticos que reverberam na estética africana a
partir da análise de dois artigos: “A Estética Africana
e a consciência nacional” de Dona Marimba Richards, um capítulo do livro “A
Estética Africana” organizado por Kariamu Welsh-Asante, e
“Complementaridade binária e a busca por uma nova ordem (social) mundial” do
livro “Socrates and Orúnmìlà” de Sophie Bosede Oluwole. O estudo destes
autores deriva das investigações do projeto de pesquisa no Laboratório de
Licenciatura e Pesquisa Sobre o Ensino de Filosofia (LLPEFIL), através do
Núcleo de Filosofia Africana, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob pesquisa e
orientação de pesquisa da doutoranda em Filosofia e Pesquisadora Naiara Paula.
A
relação entre a ética e a estética, na cosmovisão africana, faz pensar um
conjunto de valores sobre os quais fazemos escolhas e decidimos comportamentos,
também imbricados nas diversas produções estéticas. Podemos pensar, ainda,
sobre a possibilidade do ideal estético influir nas
demandas éticas, sob a perspectiva de um mundo em interconexão.
Ainda
preservando distinções entre a forma de pensar ocidental e africana sobre ética
e estética, é possível uma base de entendimento similar sobre ambas as
vertentes. O objeto estético demanda uma certa harmonia, um certo modo de estar
no mundo que projeta em nós uma plenitude. Existe uma identidade qualitativa
peculiar ao estético, assim como na ética existem peculiaridades prescritivas,
que sinalizam para as pessoas e grupos como devem direcionar suas ações.
Cumpre
percorrer uma breve contextualização sobre as obras dessas autoras, para melhor compreensão do que se trata a filosofia africana dentro
da cosmovisão africana. Em seguida, aponto aspectos relevantes
das reverberações da ética na concepção da estética africana e seu amalgama
como a concepção de uma vida plena, como uma proposta de reconceitualização
de “estética” com uma base espiritual, fiel ao utamaroho africano (vida
espiritual) defendida por Dona Marimba Richards.
Contextualizando a jornada
Os
povos africanos têm uma forma particular de viver e expressar o mundo que os
caracterizam. Essa forma e cosmovisão de mundo embasa o constructo
ético-filosófico africano e S. B. Oluwole tem
sólido trabalho sobre filosofia africana e nesta obra coloca o Ifá e a tradição
oral Yorubá em destaque e como ponto de partida para explicar a cosmovisão
africana. Neste artigo, a autora apresenta características e novos fatos para
uma comparação entre Sócrates e Òrúnmìlà, como dois grandes Mestres da tradição ocidental e africana,
respectivamente.
O
Culto de Òrúnmìlà-Ifá é originário da África
Ocidental e, mais especificamente, da cultura Yorubá
que concebe o mundo como formado por elementos físicos, humanos e espirituais.
Os elementos físicos amplamente divididos em dois planos de existência: ayé (terra) e òrun (céu)[1],
que durante uma fase ancestral da mitologia compartilhavam um território comum.
Assim,
para a compreensão da filosofia de Òrúnmìlà-Ifá é fundamental a análise
interpretativa da cosmovisão própria, com arcabouço complexo de divindades
hierarquizadas a partir de um Ser Supremo: Òlódùmarè
que lidera e organiza a estrutura e o movimento entre o céu e a terra,
mobilizando no sentido do bem e da paz as demais arqui-divindades,
ancestrais, fenômenos da natureza e orisá.
A
ancestralidade é destaque nessa cultura. A figura do ancestral, uma pessoa ou
entidade reverenciada por suas virtudes e ensinamentos éticos, geralmente,
anciãos que repassam valores de geração a geração firmando uma forte
característica de tradição oral com princípios voltados para a formação do bom
caráter, da convivência harmoniosa e de respeito ao outro e a natureza.
No
trabalho de Oluwole, contudo, é importante
compreender que Òrúnmìlàe
as outras figuras do Corpus Literário Ifá não são deuses no significado
ocidental do termo, também não apenas figuras mitológicas, como são deuses no
Monte Olimpo na tradição grega e sim, nesta pesquisa, a autora, nos leva a entender
Òrúnmìlà como ser humano histórico, que foi
reverenciado e "deificado" após sua morte, por causa de sua
contribuição para a filosofia, ciência política e diversos conhecimentos que
aprimoraram o conjunto de saberes do povo.
Tendo
realizado extensa pesquisa sobre Òrúnmìlà, Oluwole
apresenta características importantes de arcabouço filosófico deste Mestre e
seus ensinamentos sobre a “vida plena” do indivíduo e sociedade e faz um
paralelo com a produção socrática sobre a “vida boa”.
Oluwole reconhece a contribuição Socrática
para a construção do conhecimento ético com sua preocupação da constituição
individual e social, mas enfatiza que esta visão não é exclusiva do
conhecimento ocidental e ainda mais, mesmo a produção filosófica ocidental
posterior não deu conta do vácuo conceitual que existe, por exemplo, na
concepção atual de direitos humanos. Ainda após a fase iluminista, a cisão
entre sujeito e objeto (“um ou outro”) oblitera a formatação de direitos que
possam ser estabelecidos como fundamentais e inalienáveis, daí a necessidade de
estabelecimento de um outro arcabouço lógico, não excludente. Afirma a
pensadora:
A demanda intelectual por um axioma
científico em termos do qual os Direitos Humanos sejam justificados
racionalmente, precisa ser satisfeita. A questão é que, enquanto a realidade é
identificada e formulada dentro estruturas conceituais de oposições binárias,
com um inerente “um ou outro”, assumido no sentido exclusivo, em que toda e
cada existência não é apenas independente da outra, mas em oposição a isto, não
pode haver racionalmente interesse e obrigação inalienável por parte de um
indivíduo de reconhecer e respeitar a existência e igualdade de direitos de
outros seres humanos.[2]
A partir dessas reflexões iniciais, Oluwole revela seus argumentos contra um jogo de oposições
que se constituem um verdadeiro paradoxo para a experiência humana, uma vez que
todo fenômeno pareado (binário) existe independentemente do outro e, na visão africana,
complementarmente ao outro.
Assim, a filosofia africana pode
contribuir para superar a oposição binária via a Complementaridade Binária, sua
proposta trata-se de um conceito que reabilita uma visão de mundo sistêmica e
integrada, capaz de fazer o ser humano se entender e se colocar sempre “em relação
a”, como explica a pensadora: “... como pode a ‘cara’ e a ‘coroa’ de uma moeda
existir independentemente uma da outra? Quão significativa é a ideia de uma
montanha que não é complementada pela ideia de um vale? O lado frontal de uma
medalha existe separadamente da parte de trás? O fato de que cada aspecto
pareado dessa existência apareça como o oposto do outro, não justifica a crença
de uma existência independente ou ainda, o funcionamento correlato de duas
existências de oposição irreconciliável. A experiência humana é da existência
pareada com aspectos complementares entre si”.[3]
Após reconhecer o que há de mais
original africano se desvela na filosofia africana ancestral, a jornada deste
texto continua com Dona Marimba Richards que estabelece em seu texto uma
relação entre a espiritualidade com as necessidades políticas dos povos
africanos, entendendo que as possibilidades dessa relação estão na natureza da
estética africana.
Richards nos leva a refletir em qual medida
a ética da “vida plena” ou ideal de vida estético “em interconexão” pode
contemplar as demandas políticas para sedimentação de uma consciência nacional africana,
especialmente após a diáspora africana, assim diz a autora:
Uma
consciência nacional é uma consciência política na qual os membros de um grupo
se compreendem como compartilhando um destino comum, baseado em uma história
cultural compartilhada e em uma origem radical. Uma consciência nacional
Africana existe quando nos identificamos com a África como um ponto de origem
simbólico, um princípio maternal ou criativo, que determina nosso ser coletivo[4].
A
proposta de Dona Marimba Richards é muito desafiadora, foca em como promover
consciência nacional após o epistemicídio secular que
negou e mesmo, bloqueou acesso inúmeros conhecimentos formadores de identidade
do povo Africano, questão discutida por muito pesquisadores da diáspora africana,
como Ramose:
Os conquistadores da África durante as
injustas guerras de colonização se arrogaram a autoridade de definir filosofia.
Eles fizeram isto cometendo epistemicídio, ou seja, o
assassinato das maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados
[...] que não nivelou e nem eliminou totalmente as maneiras de conhecer e agir
dos povos africanos conquistados, mas introduziu, entretanto, e numa dimensão
muito sustentada através de meios ilícitos e “justos”, a tensão subsequente na
relação entre as filosofias africana e ocidental na África[5].
A
base fundamental da resposta a esse desafio, segundo a autora, é a retomada do
eixo estruturador e estruturante da civilização Yorubá,
e aproximação ao princípio originário da ancestralidade Òrúnmìlà-Ifá
que leva as pessoas a formarem a consciência de si e que dirige a vida da
comunidade, assim, um conjunto ético que repercute nas produções estéticas
africanas. Ao longo de seu projeto, a
autora introduz alguns termos africanos buscando “africanizar” a conceituação
de forma crescente na perspectiva de afrocentricidade.[6]
Richards
propõe uma reconceitualização de "estética"
com base espiritual, para ser fiel ao utamaroho africano
(vida espiritual). E afirma o Kugusa Mtima (tocar o coração) como um termo Africano de apoio
ao entendimento e afirmação de africanidade. Trata-se da experiência africana
de ser mobilizado e sensibilizado pelos fenômenos de forma autoconsciente, com
tremenda capacidade de transformação da realidade.
A concepção ética africana
A
extensa pesquisa de Oluwole sobre Socrates
e Òrúnmìlà
mostra que existem semelhanças surpreendentes, ambos viveram em épocas
próximas, cerca de 500 a. C. , também tiveram discípulos a quem transmitiram
seus ensinamentos sobre virtudes como o ideal de vida plena (ou vida boa) e
viviam em centros de vida intelectual e social de seus povos à época: Atenas na
Grécia antiga e Ile-Ife, respectivamente. Tudo o que
sabemos sobre eles advém de fontes secundárias, o que dá a esses dois Mestres
um certo caráter lendário ou mesmo, mítico. Tais similaridades são
detalhadamente explanadas na Introdução da obra.[7]
O
mais inovador dessa comparação é, sem dúvida, a confrontação sobre as produções
e ensinamentos desses Mestres, sinalizando um conjunto teórico, de visões e
ideias muito similares, que a autora explicita em um quadro comparativo com as
principais questões do pensamento desses patronos[8].
Os achados de Oluwole evidenciam que Òrúnmìlà desenvolveu uma Filosofia dentro do Sistema Africano tradicional de
pensamento de forma tão crítica e rigorosa quanto Sócrates, que inclui até
mesmo, as bases de Álgebra e de Geometria. Deste modo, Oluwole rebate a posição Ocidental que negam a existência
de critérios, racionalidade e conteúdo crítico e científicos na filosofia
africana e mesmo de alguns poucos estudiosos africanos como Kwasi
Wiredu, Kwame Gyekye, Gerald Joseph Wanjohi,
Peter O. Bodunrin, entre outros, que apontam um alto
grau de abstração no corpus da produção do conhecimento tradicional africano.
Em suas conclusões, Oluwole esclarece
como Sócrates, o Patrono da Filosofia ocidental clássica, faz distinções
binárias na produção de sua Filosofia, criando um jogo de oposições que separa
corpo e mente, imanente e transcendente e, porque não dizer, um mundo do lado
de cá e outro do lado de lá - um mundo sensível e outro inteligível - ou seja,
a realidade dividida em duas partes: o mundo sensível (mundo material), mediado
pelas formas autônomas que encontramos na natureza, e que percebemos pelos
sentidos; e o mundo das ideias (realidade inteligível) denominado de “mundo
ideal”. Assim, aproxima-se da ideia de perfeição de algo aquilo que alcança a
elevação do mundo das ideias, em que se observa já a aproximação com um ideal
estético. Essa visão de mundos desarticulados em uma cisão vai impactar a
produção filosófica de muitas gerações de filósofos no Ocidente por séculos
posteriores.
Por outro lado, Òrúnmìlà, o patrono da
filosofia africana clássica, tem como premissa uma cosmovisão abrangente e
interconectada, que a autora passa a nomear como “Complementaridade binária”.
Oluwole sinaliza este achado como uma grande contribuição da filosofia africana
para a humanidade. Trata-se de um modo de pensar e visão de mundo sem cisão, ou
ainda, de dois mundos em permanente relação. Superar a cisão proporciona
perceber-se a si e o outro sem oposições. Também leva a perceber o outro como
condição necessária para a minha própria existência como ser humano, em uma
forma ancestral de fraternidade universal - mas com outro entendimento acerca
do que seja universal - talhado naquilo que é comum a todos e que inclui todas
as formas de vida e a própria Natureza.
A mesma concepção também pode ser
encontrada no termo “Ubuntu”[9]
como termo fundamental da filosofia africana, amplamente estudado por Mogobe
Ramose da Universidade da África do Sul, que desenvolveu filosofia africana através
do Ubuntu.
Oluwole também faz referência a
provérbios “bantu” redescobertos por Ramose por expressar o núcleo da filosofia
do Ubuntu e do conceito de complementaridade binária, evidenciando que as bases
filosóficas africanas pressupõe um mundo em interconexão e não fragmentado[10].
Assim diz Ramose:
A lógica de Ubuntu é em direção ao
sufixo formador de substantivos abstratos (dade).
Esta lógica se coloca em oposição ao dogmatismo do raciocínio fragmentado. Um
dos primeiros princípios da ética ubuntu é a
libertação do dogmatismo. É flexibilidade orientada para o equilíbrio e para a
harmonia no relacionamento entre seres humanos, e entre os últimos e o mais
abrangente ser-sendo ou natureza.[11]
Transcrevo aqui alguns do provérbios
“bantu” investigados por Ramose que Oluwole aponta como exemplo de metáforas
socias, resultado inerente da Complementaridade Binária:[12]
1.
Umuntu ugumuntu nga bantu
Ser
um ser humano é afirmar a própria humanidade reconhecendo a humanidade dos
Outros, e com base nisso, estabelecer relacionamento humano com eles[13]
2.
Motho gase mphshe
ga a tshewe sesotlho
Nenhum
ser humano pode ser tão inútil.
3.
Kgosi ke kgoSi batho
A
fonte e justificação do poder real é o povo.
4.
Molato ga o bole
Justiça
significa a restauração do equilíbrio perturbado.
5.
Feta
kgomo o tshware motho
Quando
uma escolha deve ser feita entre preservar a vida e integridade de um ser
humano ou construir riqueza, então o primeiro deve ser preferido e prevalecer.
Os
achados e proposta de Oluwole sintonizam com a
proposta de Marimba Richards para uma retomada do vínculo espiritual que
favoreça a formação de uma consciência nacional, um vínculo que está acima de
oposições binárias.
Dona Marimba Richards estabelece a
relação entre a espiritualidade com as necessidades políticas dos povos
africanos, uma relação de natureza da estética que se faz a base para a
formação da consciência individual que se desdobra em consciência nacional e
política, compartilhada.
A
visão filosófica do Yorubá conserva o aspecto
metafísico que reflete e aprofunda a sensibilidade para o sagrado. As
vivências, experiências de vida e de mundo mantém a abertura espiritual na
produção filosófica e reverbera no aprimoramento do autoconhecimento pessoal e
na convivência ético-comunitária múltipla: relação do indivíduo consigo mesmo,
com o outro e com a natureza. Um estado de completude que amalgama o aspecto
humano e divino do indivíduo, de repercussões ético-estéticas, que foca no
aprimoramento do indivíduo e suas relações e que, em algum grau impõe uma certa
dificuldade de entendimento por parte de quem está mergulhado no modelo
lógico-filosófico ocidental.
Entender
que Òrúnmìlà não faz uma ruptura entre o imanente e o
transcendente, que se dão em uma espécie de continuidade, oportuniza que o
indivíduo tome “conhecimento de si” “em relação a”, apoia que o indivíduo seja
consciente do seu pertencimento, através do processo de autoconhecimento
contínuo, de autoavaliação, de discernimento e revisão dos seus valores.
Essa
consciência de si mesmo está afinada com um tipo de vida filosófico pautado no
bom caráter, no bem comunitário, na bondade e na convivência harmoniosa com
todos os seres. Essa condição de existência possibilita o alcance da felicidade
compartilhada, o encontro consigo mesmo e a plenitude de uma consciência
voltada ao sagrado em um conjunto Ético-Estético amplificado, inclusivo e
abrangente.
O
sagrado reconsiderado como dentro do mundo, o lugar do mistério preservado. Diz
Marimba Richards
Nesse sistema conceitual limitado
[ocidental], “estética” é entendida como “conceito de beleza”. Se pretende
lidar com “gosto” e apreciação do “belo”. A “Estética” lida com teorias do
caráter essencial do “belo” e como ele pode ser julgado. A discussão europeia
de “estética” torna-se analítica; o pathos (do grego – paixão) é intelectualizado; o mistério
negado. O foco se torna o julgamento e a crítica[14].
A
visão africana, segundo Richards não trata o belo reduzido ao ajuizamento e nem
a diretrizes específicas que determinem um tipo de gosto em oposição binária:
“belo” ao “feio” que é irrelevante para as aspirações africanas. Nesse sentido,
se coloca a proposta de reconceitualização estética
fiel ao princípio espiritual africano. Diz a pensadora:
O universo é concebido como um todo
espiritual no qual todo ser está inter-relacionado. De fato, é a essência
espiritual do universo que explica a interdependência dos seres dentro dele. É
fenomenal. Está vivo.... Os mecanismos culturais estão se unindo,
compartilhando e em coletividade. Essa visão do universo é ao mesmo tempo
mística, espiritual e pragmática[15].
A abertura para o espiritual e a
potente aderência para a cosmovisão africana só pode ocorrer por uma
mobilização que nos afete profundamente. Como fonte inspiradora para este
chamado, Richards acentua e revigora um termo ancestral de origem Kiswahili[16], o “kugusa Mtima”:
Kugusa Mtima é
mais que um conceito analítico; é uma ideia sintetizadora. Unifica o processo
criativo, o fenômeno da sensibilidade, a interação de energia, utamaroho[17] e consciência. É politicamente
prático, desde que possa ser usado para entender a natureza do “Ser Africano” e
para os propósitos de reconstrução da realidade africana. Kugusa Mtima é uma espécie de energia
magnética. Isso nos envolve em um campo de força. Isto é pulsação e vibração.
Relaciona-se com o rearranjo e interação de partículas de energia em
permutações e combinações de cor, forma bidimensional, som e forma
tridimensional[18].
Na
perspectiva metafísica, Kugusa Mtima envolve
as ideias de unidade, harmonia e espírito; um conjunto ético-estético, que
ainda precisa assumido inteiramente em suas implicações psicológicas e
políticas, para a transformação da realidade e favorecimento do povo africano.
Considerações finais
Para
compreender a Filosofia de Òrúnmìlà-Ifá e a sua
importância para os afrodescendentes na diáspora é preciso resgatar as suas
raízes em terras africanas, trajetória que este projeto estabeleceu a partir do
estudo de textos de duas pensadoras importantes da filosofia africana, trazendo
uma posição crítica sobre o que significa e a grande contribuição de África
para o mundo.
Frente
às demandas mundiais atuais, reconhecer essa contribuição é fundamental para a
própria sobrevivência da Humanidade. O argumento de que o desenvolvimento de
uma aldeia global viável é inevitável pode ser válido e até importante, mas
como isso pode ser realidade em um mundo de tantas e tamanhas desigualdades? Um
mundo no qual os benefícios, ou paradoxalmente, as violações dos chamados
Direitos Humanos não atingem a todos os humanos da mesma forma? Como pontua Oluwole uma aldeia global viável não pode aceitar a
suposição do individualismo nas Estruturas Conceituais de Oposição Binária, que
também justifica o Capitalismo implacável como a única teoria racional
econômica e política democrática da administração do Estado.[19]
Neste
mundo cindido, que produções ético-estéticas tem espaço? Estudar África e
derivações afrodiaspóricas é interpretar, compreender
e sentir uma certa sociedade, no tempo e no espaço, em sua plenitude e em sua
complexidade histórica, que fazem com que essa produção de vida espiritual
persista e resista. A filosofia de Òrúnmìlá-Ifá
possui em todo o seu corpo filosófico-literário ensinamentos que englobam
teologia, a metafísica, a ontologia, a matemática, a lógica, a geometria e
demais ciências. A oralidade e o respeito a ancestralidade têm no todo desta
filosofia lugar de destaque, pois o ensinamento oral é a palavra vivificada,
favorece a troca, o convívio social e comunitário, com base em um viver ético-estético.
A
história cultural europeia revela um processo contínuo e implacável de criação
e reforço de uma consciência nacional que se dobra para uma débil perspectiva
de universalidade que mantém um senso de destino comum que não reverbera para a
maior parte da população do planeta.
O Desenvolvimento baseado na visão de
mundo africana da complementaridade binária é o que a maioria dos estudiosos
agora vê como a solução para as várias formas de convulsões sociais e do
pensamento em todo o mundo[20].
Oluwole nos mostra que existe um conhecimento
pleno da precisão filosófica e científica. O sistema de pensamento Yorubá, um dos primeiros povos do planeta que formulou,
desenvolveu e adotou um exercício de vida com base na complementaridade
binária, em que todos os conhecimentos se ligam a um conhecimento maior,
ancestral e espiritual e mobilizador de uma comunidade para o bem comum.
Diferentemente
da filosofia ocidental derivada do racionalismo iluminista, a filosofia Yorubá e o Ubuntu não coloca o indivíduo no centro de uma
concepção de ser humano. Este é todo o sentido do Ubuntu e do humanismo
africano. Nessa filosofia o ser humano de fato humano, só se dá na relação com
o outro, não há individualidade isolada. Este é um compromisso ético-estético
com o outro seja quem for o outro, ou seja, profundo compromisso com a vida da
cosmovisão africana.
Referências
ABIMBOLA, Wande. A concepção iorubá da personalidade humana. Paris: Centre National de
la Recherche Scientifique, 1981. Tradução disponível em: https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/wande_abimbola_-_a_concep%C3%A7%C3%A3o_iorub%C3%A1_da_personalidade_humana.pdf
RAMOSE, Mogobe B. A
Filosofia do Ubuntu e Ubuntu como uma Filosofia. In: RAMOSE. African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond
Books, 1999. Tradução para uso didático por Arnaldo Vasconcellos. Disponível
em: https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/texto16.pdf
RAMOSE, Mogobe
B. The ethics of ubuntu. In: COETZEE, Peter H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The
African Philosophy Reader. New York: Routledge, 2002. Tradução
para uso didático de Éder Carvalho Wen. Disponível
em: https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/mogobe_b._ramose_-_a_%C3%A9tica_do_ubuntu.pdf
OLUWOLE, Sophie Bosede.
Socrates and Orunmila.
Two Patron Saints of Classical Philosophy. Lagos: Ark Publishers, 2014.
RICHARDS, Dona Marimba. The African
Aesthetic and National Consciousness. In: WELSH-ASANTE,
Kariamu (ed.). The African aesthetic: keeper
of the traditions. London: Praeger,
1994.
[1] ABIMBOLA, A
concepção iorubá da personalidade humana, p. 2.
[2] OLUWOLE, Socrates and Orunmila. Two Patron Saints
of Classical Philosophy, p. 159.
[3] Ibidem, p. 160.
[4] RICHARDS, The African Aesthetic and National Consciousness,
p. 63.
[5] RAMOSE, A Filosofia do Ubuntu e
Ubuntu como uma Filosofia, p. 9.
[6]
Conceito desenvolvido por Molefi K. Asante. Ver ASANTE, Afrocentricidade: A
teoria da mudança social, 1980.
[7] OLUWOLE, Socrates and Orunmila. Two Patron Saints
of Classical Philosophy, p. 21-30.
[8]
Ibidem, p. 81-82.
[9]
Ubuntu. Expressão Bantu. Consiste no prefixo “ubu” e a raiz “ntu”. Evoca a
ideia geral de ser-sendo. Ver RAMOSE, The ethics of ubuntu, p. 2. Este
conceito ético enfatiza as alianças entre as pessoas e as relações entre estas.
Trata-se de uma categoria epistêmica e ontológica fundamental do pensamento
Africano dos grupos que falam línguas Bantu. Tal como o autor defende, Ubu-,
como o mais amplo e generalizado ser se-ndo, está profundamente marcado pela incerteza,
por estar ancorado na busca da compreensão do cosmos numa luta constante pela
harmonia. Esta compreensão é importante, pois a política, a religião e o
direito assentam e estão banhados da experiência e do conceito de harmonia
cósmica. Ver RAMOSE. A Filosofia do
Ubuntu e Ubuntu como uma Filosofia, 1999.
[10]
Conceito desenvolvido por Oluwole como uma nova proposta de desenvolvimento via
a cosmovisão Africana, recusando as premissas de uma visão de mundo binário,
cindido e eurocentrado. Ver OLUWOLE, Socrates and Orunmila. Two Patron
Saints of Classical Philosophy, p. 157 e 188.
[11] RAMOSE, A Filosofia do Ubuntu e
Ubuntu como uma Filosofia, p. 4.
[12] OLUWOLE, Socrates and Orunmila. Two Patron Saints
of Classical Philosophy, p. 161. (Tradução nossa).
[13]
Ibidem, p. 42.
[14] RICHARDS, The African Aesthetic and National Consciousness,
p. 64.
[15] Ibidem.
[16]
Língua Bantu.
[17]
Vida Espiritual – força vital cultural. Tradução nossa para African utamaroho (spirit-life). Ver RICHARDS, The African Aesthetic and National
Consciousness, p. 64.
[18] RICHARDS, The African Aesthetic and National
Consciousness, p. 74.
[19] OLUWOLE, Socrates and Orunmila. Two Patron Saints
of Classical Philosophy, p. 188.
[20] Ibidem, p. 175.