Submissão:
10/09/2019 Aprovação: 10/09/2019 Publicação: 30/09/2019
Interfaces
da Filosofia Africana
“Só quem
sabe onde é Luanda saberá lhe dar valor”: a tradição oral como herança ancestral
“Solely
who knows where Luanda is will know how to value”: oral tradition as ancestral heritage
Julvan Moreira de Oliveira
Professor do Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); membro do GT de Filosofia Africana
e Afrodiaspórica da ABPN; Doutor em Educação pela
USP; Licenciado em Filosofia pela USF
julvan.moreira@ufjf.edu.br.
Kelly de Lima
Farias
Professora de Educação Infantil na Rede
Municipal de Educação de Juiz de Fora; Graduada (2017) em Pedagogia pela UFJF
kelly.moreno@hotmail.com
Resumo: O objetivo desse trabalho foi refletir
sobre a importância da tradição oral, tal como as possibilidades de esta se
fazer presente nas práticas educativas brasileiras, provocado pelas
experiências do estágio realizado na Escola Primária 16 de Junho, em Luanda,
Angola, através do Programa de Intercâmbio Estudantil. Baseando-se em pesquisas
bibliográficas de autores que dedicaram seus estudos à temática da tradição
oral africana e seus desdobramentos, buscamos perceber a tradição africana não
apenas como rica em aspectos históricos, mas como instrumento de conhecimento
cultural que permeiam uma sociedade. Os aportes teóricos trazidos pretendem
ampliar nosso olhar sobre o legado de culturas predominantemente orais que não
se esvaziam de ensinamentos. Tais considerações nos ajudam a perceber que as
várias práticas culturais negras desenvolvidas em nosso país abarcam as
práticas e saberes africanos. Tido como um continente da palavra falada, a
África reconhece a palavra como instrumento de preservação dos saberes
ancestrais. A palavra é sagrada e composta de força vital. Na educação, a
palavra, a oralidade, se faz presente, tal como na tradição oral. A oralidade,
elemento da tradição, é mediadora das relações sociais, políticas, econômicas e
culturais. Assim, concluímos pensando uma educação que através dos ensinamentos
da tradição oral africana contribua para um conhecimento no qual o ser se
envolve na totalidade.
Palavras-chave: Tradição Oral; Saberes Ancestrais;
Práticas Educativas
Abstract: The objective
of this paper was to reflect on the importance of the oral tradition, as well
as the possibilities of this being present in the Brazilian educational
practices, provoked by the experiences of the stage realized in Escola Primária 16 de Junho, in Luanda,
Angola, through the Program of Student Exchange. Based on bibliographical
researches of authors who have dedicated their studies to the theme of the
African oral tradition and its unfolding, we seek to perceive the African
tradition not only as rich in historical aspects but as an instrument of
cultural knowledge that permeates a society. The theoretical contributions
brought forward aim to broaden our view of the legacy of predominantly oral
cultures that are not emptied of teachings. Such considerations help us to
realize that the various black cultural practices developed in our country
embrace African practices and knowledge. Considered as a continent of the
spoken word, Africa recognizes the word as an instrument for the preservation
of ancestral knowledge. The word is sacred and composed of vital force. In
education, the word, orality, is present, as in the oral tradition. Orality, an
element of tradition, mediates social, political, economic and cultural
relations. Thus, we conclude by thinking of an education that through the
teachings of the African oral tradition contributes to a knowledge in which the
being is involved in the totality.
Key-words: Oral Tradition; Ancestral Knowledge; Educational Practices
Introdução
O objetivo desse trabalho é
refletir sobre a oratura ou oralitura
africana, provocado pelas experiências do estágio realizado na Escola Primária
16 de Junho[1],
em Luanda, Angola, através do Programa de Intercâmbio Internacional de
Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em cooperação com a
Universidade Agostinho Neto (UAN), realizado entre março de 2014 a fevereiro de
2015, cujos os objetivos deste intercâmbio foram: realizar o levantamento de
livros infantis e infanto-juvenis adotados nas escolas da capital angolana;
analisar a construção da identidade étnica presente nestas obras e observar a
contribuição que essas obras possam ter na construção da identidade étnica da
criança negra brasileira.
Esse intercâmbio permitiu que
fossem refletidos alguns momentos em que se notou como a tradição é vivida e
sentida, como os costumes são transmitidos através do modo de se viver, através
das vozes, das cores existentes em cada vestimenta, em cada palavra que se faz
viva. Assim, aquele que sabe como aquele que não sabe onde é Luanda, poderá se
encantar, e refletir acerca do repertório cultural que envolve suas gentes.
Ao que nos parece, quase todos
em Luanda tem um “que” de ator, de contador de histórias. Parece ser algo
inerente daquele povo que em suas vozes trazem novas nuances a uma fala já
dita. E aquele que a ouve, pelo prazer e encantamento, fica atento apreciando
tal habilidade. A sensação é que essa gente se diverte com as palavras.
O andar, o olhar, o bailar, o
cantar, o sorrir e o falar, quanta grandeza se reúne em um ser. Somos
microcosmos, reluzentes, plenos de histórias que nos compõem. A fala, a voz, as
cordas vocais são fios que tecem (dis)cursos que
conduzem a uma infinita herança ancestral; o ritmo vocal embala as
manifestações, os processos de transformações e tradições de um povo. A voz que
ressoa, conecta o passado ao presente trazendo aos ouvidos a vivência que
carece ser perpetuada.
Dessa forma, iniciamos com
breves considerações de intelectuais sobre a tradição oral, um convite para uma
reflexão sobre sua importância em África. Esta tradição pode consistir desde um
ensinamento moral a uma norma de vida, os ecos ancestrais tecem histórias de
rico aprendizado.
Em seguida, apontamos as
possíveis designações para tradição oral, destacando a relevância da palavra e
os conjuntos de saberes trazidos por ela que muitas vezes foram colocados à
margem em função de estereótipos, seja pela ausência de registros concretos
seja pela problemática conceitual da tradição oral.
Dando sequência, adentraremos a
questão de
a oralidade conceder a mesma confiança que se concede à escrita quando se trata
de testemunho de fatos já ocorridos. Procurando assim, identificar as leituras
que compreendem as características da memória para a tradição africana.
Nós gostaríamos de reafirmar que nos
interessa não somente mencionar as proximidades culturais entre Brasil e o
continente africano, mas chamar a atenção como essas práticas culturais que
preservam saberes ancestrais, podem ser possibilidades fecundas na educação
brasileira.
Acerca da cultura tradicional
africana que se pauta essencialmente na transmissão oral dos seus saberes, um
dos importantes legado que nos permite mergulhar nesse universo, nos foi
deixado por Amadou Hampâté Bâ.
O filósofo malinês ao dizer que “na África cada ancião que morre é uma
biblioteca que se queima”[2]
acaba por nos revelar a importância da voz, da transmissão oral no continente
africano e a grandeza de ouvir um sábio africano relatar suas experiências; é como
se vários livros se abrissem, com uma profusão de detalhes, para dar voz às
histórias e às tradições locais.
As escolas Primárias em Angola
são as escolas que lecionam desde a 1ª a 6ª classe. O ensino primário em Angola
é tido como fundamento para o ensino geral, têm acesso ao ensino primário as
crianças com 6 anos de idade, cuja função social é desenvolver capacidades e
aptidões no aluno, defendendo um currículo que agrupa diversas facetas da
cultura, do desenvolvimento social e pessoal. E, uma das primeiras lembranças
sobre essa escola é a seguinte:
Para frequentar a escola, era necessário
usar a bata branca, que em Angola foi adotada com o objetivo de avaliar o asseio,
prevenir a desigualdade social entre os alunos na sala e evitar o assédio por
parte das meninas. Por entre olhares curiosos, e cabeças adornadas com puchinhos[3],
as crianças da escola, perguntavam acerca do meu uniforme, que para elas era
sinal de respeito e colocava todos em pé de igualdade. Sobre respeito, outro
hábito na escola, era o levantar dos alunos ao adentrar na sala de aula uma
pessoa importante, por exemplo, um professor, um diretor, um supervisor ou um
visitante. Todas as crianças ficam de pé, e em coro dizem: “Boa tarde senhora
professora ou senhor visitante” e só após o recebimento dos cumprimentos pelo
visitante é que elas se sentam novamente em seus lugares. Questões que
inicialmente causam certo desconforto para quem não vive esta realidade, e que
a mim não era diferente, entretanto, este “estar de pé”, foi sendo substituído
por um caloroso abraço coletivo à minha chegada, estabelecendo assim uma
relação de afetividade em sala de aula.
E nesse clima de afeto é que os olhares tímidos foram se
transformando em sorrisos criando um ambiente propício para as perguntas que
surgiam a cada novo encontro naquela escola.
- Professora, falas brasileiro?
- Professora, teu cabelo é “postiço”[4]?
- Professora, como são as crianças brasileiras?
- Professora, sabes jogar “zero”[5]?
Perguntas estas muito frequente nos primeiros dias de contato
com os alunos da Escola Primária 16 de Junho. Estabelecer esta relação de
vínculo é um processo importantíssimo, pois pouco a pouco se tece a trama dos
costumes daquele lugar, assim a oralidade vai
assegurando seu lugar de importância não
apenas na fala dos “mais
velhos”, mas na doce palavra
da criança, que trama e borda
lindas narrativas nos ajudando a compreender o papel de transmissão dos saberes
que povoam a sociedade africana.
(Notas do caderno de campo).
Figura
1: Crianças da Escola Primária 16 de Junho, em Luanda, Angola com estagiária
Kelly.
Fonte:
arquivo pessoal de Kelly de Lima Farias.
A tradição oral provoca um
encanto sobre aqueles que se aventuram nessa senda, pois esta revela um mundo a
ser descoberto através da fala. Para quem está na diáspora e faz o primeiro
contato com esta maneira peculiar de tecer o cotidiano, compreende que se
coloca diante de múltiplas possibilidades de rico aprendizado. E dessa forma se
encanta e escolhe conhecer curso a tradição oral africana, como forma de construção
da própria identidade.
Há um mundo de histórias na
fala, em Angola, por exemplo, um país de raiz de tradição oral, há uma
multiplicidade de sentidos, uma miscelânea de vocábulos, onde a marca da
oralidade está presente no cotidiano das pessoas de forma tão fluida que até
mesmo uma explicação acerca de um possível atraso ao trabalho pode virar uma
história. A marca do oral está nas histórias contadas pelos “mais velhos”,
representados aqui não com sentido pejorativo, onde o “mais velho” não diz respeito
à idade, mas ao acúmulo de conhecimento. Nessa fala, fatos, lendas e costumes
são transmitidos e fortalecidos como herança cultural.
Em um tempo em que o papel
necessita ser preenchido pela tinta para que exista história, contudo, é a
oralidade destituída de valor que nos provoca interesse de estudo, no sentido
que nos aponta Silva[6].
Muito embora as civilizações
africanas em grande parte fossem civilizações da palavra falada, é preciso
levar em conta a existência da escrita antes da chegada dos colonizadores
europeus ao continente africano, entretanto a predominância era de civilizações
orais.
A tradição oral africana poderá
ser uma grande aliada na educação para o resgate da identidade afro-brasileira,
pois “a dimensão da oralidade abrange todas as culturas tradicionais
afro-brasileiras”, como aponta Oliveira[7].
A voz não silenciada é uma voz que vibra e faz vibrar em nós o encanto perene
das tradições do povo africano. Nesse universo destacam-se elementos
significativos como, música, religião ensinamentos, ritos, mitos, cantos,
dança, poesias que podem ser trabalhados nas práticas educativas.
A tradição oral africana pode
ser vista como elo com a nossa ancestralidade, já que elementos dessa tradição
foram trazidos para o Brasil principalmente através dos africanos escravizados
e foram sendo incorporados através das culturas negras aqui existentes ao
universo da cultura nacional. Portanto, conhecer a história dos nossos
ancestrais se faz necessário para que possamos compreender os desdobramentos dessa
presença, como nos torna também responsáveis em transmiti-la.
Embalada pelo calor angolano e
pelo ritmo das vozes que cresciam em espiral, um breve pensamento toma corpo
neste poema autoral:
Pérola Negra
Vivias em meus sonhos
Desejei em tuas terras pisar
És bela em todo e qualquer detalhe
Tua pluralidade é singular
A zungueira com
a cria nas costas e olhar distante
traz ainda o suor que a noite não secou
Os amantes se despedem em longos olhares
enquanto a madrugada se deita nos lençóis
do sol
Começa a labuta, o guerreiro da urbe já
está na via
O amarelo de seus olhos entrega as lutas
travadas
Até seu silêncio grita
Tua gente sai sob o sussurro do vento
para zungar entre os guetos
Dores e cores se misturam ao suor no
rosto
Que caindo na terra faz germinar a
esperança
Nessa terra que dança, nos sorrisos que
bailam
Aiwe minha Angola![8]
O continente africano tido como
o berço da humanidade carrega de forma tão singular a marca da voz, a voz de um
povo rico em sabedoria, a voz de povo que fora muitas vezes silenciada pela
colonização, mas não calada. África[9]
guarda embaixo de cada árvore, ao redor de cada fogueira acesa, os ecos
ancestrais das vozes que tecem a memória de muitos saberes, transcendendo tempo
e espaço trazendo vida e longanimidade às tradições locais.
A voz era o meio que homens e
mulheres utilizam para reproduzir suas memórias, que ao transmiti-las de
geração em geração era possível perpetuá-las. Vansina[10]
retrata pontualmente a questão oral:
Uma sociedade oral reconhece a fala não
apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de
preservação de sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar
elocuções-chave, isto é a tradição oral. A tradição, pode ser definida, de
fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para a outra.
Para Vansina,
as tradições são fontes para o conhecimento do passado, são as fontes mais
importantes para o estudo da história dos povos ágrafos.
Escrever sobre a tradição oral
africana não é tarefa simplista, engana-se quem pensa ser fácil aventurar-se
nessas águas. Ao ler um texto oral temos que nos deixar encantar, pois não há
como lê-lo uma ou duas vezes e acreditar que já o compreendemos como um todo,
devemos cuidadosamente examiná-lo para que possamos apreender seus muitos
significados. Em uma sociedade como a que vivemos, na qual dispomos de meios
tecnológicos, das tecnologias de informação, debruçar-se sobre a literatura
oral implica em “aprender a trabalhar mais lentamente, refletir, para
embrenhar-se numa representação coletiva, já que o corpus da tradição é a memória coletiva de uma sociedade”[11].
A tradição oral abrange o
entendimento e conhecimento humano, liga o homem ao seu espaço, seu papel e seu
universo, nos aponta Vansina, ao estudar sociedades
orais africanas.
As narrativas orais nas
sociedades tradicionais africanas podem ser tidas como os pilares em que se
apoiam os valores e as crenças transmitidas pela tradição. Uma tradição de
acordo com esse autor, é uma mensagem transmitida de uma geração para a seguinte.
No entanto, para ele, nem toda informação verbal é uma tradição, podendo ser
somente o relato de um testemunho ocular, mas quando essa informação é repetida
por gerações posteriores torna-se então tradição. Assim, são tradições orais as
fontes narradas, as que são transmitidas de boca em boca através da linguagem.
Eu
digo, tu me escutas – tradição oral, literatura e os desafios de uma designação
perfeita
Se formulássemos a seguinte
pergunta a um verdadeiro tradicionalista africano: ‘O que é tradição oral?’,
por certo ele se sentiria muito embaraçado. Talvez respondesse simplesmente,
após longo silêncio: “É o conhecimento total”[12].
Ao falar de tradição em relação
à história africana, Hampâté Bâ[13]
reitera que “nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos
africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de
toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a
discípulo”.
É desafiador falar sobre
tradição oral africana, este desafio se dá pela dificuldade de encontrar uma
designação que possa abarcar todos seus aspectos. A tradição oral possui
características peculiares, a saber, o verbalismo e a maneira como é
transmitida, diferindo-se das fontes escritas. A cultura da oralidade para a
transmissão de conhecimentos e perpetuação das tradições é uma marca do
continente africano, que, durante muitos séculos se manteve sem a interferência
da escrita vivendo na memória dos mais velhos.
Assim, essa memória viva ao recuperar as narrativas
dos mais velhos, cumpre o papel de transmitir saberes africanos, ajudando a
tecer os fios da continuidade.
É preciso retomarmos que África
ao longo de muitos séculos foi alvo de diversos interesses, sobretudo
interesses relacionados à exploração de seu território. Com a colonização nos
países africanos, uma importante mudança pode ser observada nas sociedades
tradicionais, que passaram a incorporar outras línguas e outros costumes. Não
obstante, o processo colonialista em África para além da exploração territorial
procura modificar o olhar do africano para si mesmo, para a sua cultura,
estabelecendo então condições de estranhamento e descontentamento de sua
própria cultura, em favor da cultura europeia.
Os territórios onde o
colonizador hasteou sua bandeira são locais onde mergulhamos em um mar de
narrativas e valores que o colono não conseguiu apagar. Em “Eu e o outro – o
invasor”, Manuel Rui[14]
relata:
Quando chegaste mais velhos contavam
estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O
texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas
porque havia árvores (...). E era texto porque havia gesto. Texto porque havia
dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias
ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando
chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões.
O escrito de Manuel Rui
descreve a ação do colonizador que, pela força de suas armas, e principalmente
pela escrita veio ameaçar a identidade africana. A identidade de um povo, tal
como, seus costumes, religiosidade, tradições, dizem respeito à constituição
social da memória. Como vimos, o falar é desconsiderado e apenas o que é
escrito torna-se válido, ou seja, a existência de uma história está embasada
naquilo que é documentado.
Nessa esteira, pensamentos que
relegam ao continente africano a ideia de inferioridade, têm raízes profundas
como as raízes de um baobá, notando-se um preconceito arraigado de que os
africanos não teriam tido qualquer participação na história da civilização.
A Europa exemplificava o estado
adulto da civilização, enquanto as culturas não-europeias eram encaradas como
símbolos de um estado de infância, através do qual a Europa já tinha passado.
Encarada sobre este prisma, a tradição oral era considerada primitiva[15].
O europeu era considerado como
o apogeu de um processo evolutivo, sendo esta a
justificativa para exercer o domínio sobre outros povos. Foi com esse
pensamento que se deu também “a exclusão do negro na construção da
nacionalidade brasileira”[16],
justificadas por uma filosofia etnocêntrica desenvolvida no ocidente[17].
Entretanto contrariamente à
ideia de povos pouco evoluídos e trazendo luz aos créditos conferido à tradição
oral, Vansina[18],
explica que tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito funcionamento
de suas instituições é feito através da transmissão que, em uma sociedade oral
é feita pela tradição; enquanto numa sociedade escrita somente as memórias de
menos importância são dedicadas à tradição. Para ele, “é esse o fato que levou
durante muito tempo os historiadores, que vinham de sociedades letradas, a
acreditar erroneamente que as tradições eram um tipo de conto de fadas, canção
de ninar ou brincadeira de criança”[19].
Fato que colabora com o pensamento de uma África inferiorizada.
Negada qualquer dimensão
histórica aos seus povos, o continente africano passou a ser estudado como
povos sem história por não disporem de documentos escritos, entretanto, a
ausência de registros concretos não exime a existência de um passado ou que os
seus conhecimentos e cultura sejam transmitidos e conhecidos. Enquanto a
escrita constitui-se como elemento técnico, a palavra liga-se à ação do homem
que revela as principais proposições históricas de uma dada sociedade.
Percebemos que os estereótipos
negativos advindos de tempos remotos engendram a problemática conceitual da
tradição oral. Entretanto, é valido e pertinente ressaltar o valor da memória e
da tradição oral africana, pois os povos que passaram pela opressão do
colonizador, estabeleceram mecanismos de resistência às condições a que foram
submetidos, passaram ainda a afirmar o valor da tradição africana e sua
transmissão, garantindo assim a preservação dos traços culturais e
civilizatórios mesmo em um contexto de colonização.
Vansina propõe
em seus estudos uma reflexão importante às tradições, incluindo a elas não
somente os depoimentos orais que descrevem acontecimentos passados, mas também
toda uma literatura oral que fornecerá detalhes sobre o passado, sendo fonte
importante para a história das ideias, dos valores e da habilidade oral. “As
tradições são também obras literárias que deveriam ser estudadas como tal,
assim como é necessário estudar o meio social que as cria e transmite e a visão
de mundo que sustenta o conteúdo de qualquer expressão de uma determinada
cultura”[20].
Segundo Hampâté
Bâ[21],
ao contrário do que alguns pensem, a tradição oral, não se restringe às lendas,
ou mesmo a relatos mitológicos ou históricos, e os griots estão longe de ser seus
únicos guardiães. A esse respeito ele diz:
A tradição oral é a grande escola da
vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica
àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade
cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. (...) Ela é
ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte,
história, divertimento, recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite
remontar à Unidade primordial[22].
Para o malinês Hampâté Bâ, a fala é o grande
agente ativo da magia africana, esta magia não é nada mais que o controle das
forças. Segundo ele, na Europa a palavra magia
geralmente é tomada pelo seu mau sentido, mas em África é algo neutro que pode
ser benéfica ou maléfica de acordo com o direcionamento que lhe é dado.
É nesse contexto
mágico-religioso e social que se encontra o respeito à fala, principalmente
quando esta é responsável por transmitir as palavras dos ancestrais. Dessa
forma, cabe considerar, que a palavra é sagrada onde o sopro vital habita,
portanto não deve ser confundida com a oralidade humana informal, ou ser mau usada; mas deve ser concebida como elemento de
continuidade histórica. Nas sociedades orais, o homem está ligado à palavra que
profere, a palavra é testemunho daquilo que ele é.
O texto oral transmite um
legado legítimo das culturas locais através de exemplos que solidificam os
laços e garante o discernimento do lugar de pertença do indivíduo, sua filiação
identitária, permitindo-lhe uma visão de si mesmo e do outro.
O que os estudiosos como Hampâté Bâ[23]
e J. Vansina[24]
designam como tradição oral nos remete a considerá-la como aquela transmitida
através da oralidade, tradição que conduz o homem à sua totalidade. Susana
Dolores Machado Nunes[25],
explica que a expressão “tradição oral” por encerrar um caráter generalizante,
é geralmente evitada quando se pretende designar especificamente os textos
literários de expressão oral. Dentro dessa perspectiva de apontar uma
denominação apropriada, a autora adota em seu estudo o termo “oratura”, reconhecendo a “presença da oralidade enquanto
meio de transmissão de um corpus
vivo”[26],
e a escrita como suporte que garante a conservação deste.
Embora haja uma diversidade de
designações, pensar a tradição oral sob a ótica da transmissão através da
oralidade é uma constatação viável, pois constitui-se não apenas como veículo
de comunicação e reprodução social, mas como meio de desenvolvimento humano e
de construção de uma imagem de mundo.
Entre a
Palavra e o Papel: a tradição
Segundo Nunes “as literaturas africanas
modernas, na sua forma escrita, nascem intrinsecamente ligadas à experiência da
colonização, uma vez que, como é sabido, a arte verbal tradicional se exprime
através da oralidade”[27].
Ana Mafalda Leite[28]
reitera afirmando que o fenômeno da escrita dos textos orais decorre, em parte,
do acesso à independência da maioria dos países africanos na década de sessenta
e do desejo de conhecimento e revalorização do seu patrimônio oral.
É nesse contexto, que as obras dos
intelectuais africanos ganham destaque, tais obras desconstroem a premissa que
a literatura oral era encarada como uma manifestação primária, simples, não
sujeita a trabalho reflexivo, um produto de uma comunidade, enquanto a
literatura escrita revelava o oposto[29].
Face a essa premissa e aos preconceitos
acerca da ausência da escrita em África, se faz pertinente destacar o trabalho
realizado por intelectuais africanos, que procuraram salvaguardar a memória e
as tradições do continente; estes partem de uma visão endógena e não de uma
perspectiva constituída pela visão do colonizador. A representação da África
através da ótica do africano reflete aquilo que lhes é mais próximo em suas culturas, a
questão da identidade começa a ganhar corpo. Os escritores africanos encontram
embasamento para seu projeto literário de reconstrução da identidade nacional
na tradição oral, transformando, assim, sua narrativa num espaço de expressão
da memória coletiva. Assim, a perpetuação da tradição encontra veículo
poderoso nos textos literários.
É comum entre alguns estudiosos indagar sobre a oralidade
pode conceder a mesma confiança que se concede à escrita quando se trata de
testemunho de fatos já ocorridos. Nesse sentido possíveis questionamentos se
levantam no que diz respeito a utilização da linguagem escrita para transmitir
saberes ancestrais. Como traduzir a oralidade dos relatos dos “mais velhos”
numa narrativa escrita?
Apesar do dilema de exprimir uma sensibilidade e uma mensagem
singular existente na linguagem oral por meio do código linguístico, vários
escritores têm se empenhado em realizar esta tarefa. Alguns se dedicaram a
reescrever contos, lendas e fatos recolhidos junto aos habituais detentores da
palavra da tradição nessas sociedades, outros escritores usaram a escrita em
defesa de um sentimento de liberdade, nesse caso as obras literárias ganharam a
força da expressão do anticolonialismo.
É interessante perceber que antes
da escrita, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou como foram
vividos através de sua própria experiência. Assim no intercâmbio
tradição/escrita, é possível constatar as marcas da oralidade presentes no
enredo das obras. A oralidade é nas sociedades tradicionais africanas, a fonte
de transmissão dos conhecimentos, pois “nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais
fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração a geração”[30].
De
acordo com Vansina[31],
a memória africana, de modo geral, surpreende pelo seu alcance e espanta pelo
seu registro detalhista. A tradição oral tem na memória o aliado indispensável
para sua continuidade.
Antônio Filogênio de Paula Junior[32]
nos suscita um questionamento quando indaga o fato de um memorialista estar
fazendo uso das letras: “Como um homem da tradição oral, transfere os saberes
para uma forma escrita?”
Embora haja dificuldades em conciliar estas formas de transmissão do
saber é importante pontuar que, no caso africano, a memória insere-se no que se
chama de tradição viva. Nessa perspectiva, Hampâté Bâ nos propõe uma reflexão considerável, ao dizer que para
estes povos, ao relacionarem a palavra a um universo de sacralidade na qual
todas as coisas se conectam, acabam por ter no universo da tradição oral um
solo de segurança em relação à coerência e autenticidade dos relatos.
O que se encontra por detrás do
testemunho, portanto, é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor
da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias
individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada
sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e a palavra[33].
A compreensão
do diálogo entre oral e o papel tem sido um desafio para diversos pesquisadores
das culturas orais. Nunes[34] salienta que o
memorialista ao utilizar a escrita, desenvolve uma oratura,
ou melhor, uma representação escrita da tradição oral.
Cabe elucidar
que não se pretende nesse trabalho responder a tais questionamentos, fazer
juízo de valor entre a palavra e a escrita ou traçar a superioridade de uma
delas, mas exprimir a ideia de continuidade entre as tradições orais e a
literatura africana. Nunes ressalta que “a escrita constitui um suporte que
garante a conservação da performance passada de uma criação coletiva anônima”[35]. Para ela, é uma
escrita que tem cheiro, sabor e muitas cores. Através desta oralidade escrita
temos podido nos aproximar de uma África muitas vezes estigmatizada pelas
misérias, barbáries e exotismos. As argumentações de uma África vitimada devem,
portanto, dar lugar a uma África que tem em seu conjunto civilizatório
elementos socioculturais a serem refletidos e compartilhados.
Tradição
Oral na Escola: possibilidades
A partir dos estudos acerca da
tradição oral africana vimos que esta, se apoia na transmissão dos saberes
através da oralidade. No entanto, essa oralidade não é tratada aqui como a fala
informal e rotineira, mas vista pela ótica de sua potencialidade e habilidade.
A história e memória dos povos
africanos está presente na cultura negra no Brasil. As proximidades culturais
em Brasil e o continente africano não são recentes. Durante o período de
colonização, as terras brasileiras receberam milhares de africanos na condição
de escravizados. Tais indivíduos trouxeram também um aparato cultural que teve
influência na estruturação da cultura dos negros no Brasil.
De acordo com Nunes[36],
os africanos que chegavam ao Brasil eram trazidos de diferentes regiões da
África, pertenciam a várias etnias e a estágios culturais diversos. Havia
indivíduos de Estados politicamente organizados, de sociedades que dominavam
tecnologias sofisticadas, como por exemplo, o uso dos metais, negras e negros
praticantes do islamismo que sabiam ler e escrever, o que contrasta com a ideia
de que os africanos eram oriundos de tribos primitivas e exóticas.
Assim sendo, através da
transmissão dos saberes, os africanos recriaram a memória dos feitos
ancestrais, ressignificando a vida nos lugares que passariam a viver. Portanto,
as características da oralidade estão enraizadas na cultura negra desenvolvida
no Brasil.
Antônio Filogênio
de Paula Junior[37],
aponta que o universo cultural africano e a tradição oral foram taticamente reinventados
em nosso país como forma de garantir ao escravizado a sua condição humana em
contraposição à condição determinada pelo colonizador. Portanto, o autor,
ressalta ainda que de acordo com Cunha Junior, os modos de ser dos africanos,
foram arranjados em solo brasileiro, de maneira que as principais
características, ou aquilo que determinaria sua essência estivesse assegurado.
Nesse sentido, buscamos nessa trama, não
somente apontar as proximidades culturais entre o Brasil e o continente
africano e suas ressignificações, mas trazer à luz como essas práticas
culturais revelam saberes ancestrais em terras brasileiras. Uma vez que a
tradição do universo africano se faz presente na cultura negra no Brasil
através dessas práticas, podemos pensar esta tradição fazendo-se presente
também na escola.
Uma certa
manhã africana brindou-me com seus tons laranja e uma grata conversa:
- Professora,
você será nossa professora brasileira?
- Professora
brasileira?
- Sim? Como os
teus alunos te chamam lá?
- Me chamam de
tia!
- Tia?
- Lá nos
chamam por vezes de tia sim!
- Tia? Assim
és mais velha então – entre muitos risos dizia- uma tia aqui é uma kota[38]!
Fobada[39]
para morder uma bela magoga[40],
de súbito ouço a criança disparar: - Epah estás a
comer magoga, ewe não faz isso professora, mamã diz que magoga mata as pessoas e que é comida de feiticeiro! Come ginguba!
A criança
jogou as gingubas em minhas mãos. Sorri, guardei a magoga e levei os ensinamentos comigo. Magoga,
o tal pão com frango, que matara minha fome nos dias de estágio, era agora
comida de feiticeiro, kota eu deduzi o que pudesse
ser, ou seja, uma pessoa mais velha e ginguba eram os
amendoins que eu havia ganhado para não comer a tal comida enfeitiçada[41].
Figura
2: Criança na sala de aula da Escola Primária 16 de Junho, Luanda, Angola.
Fonte:
arquivo pessoal de Kelly de Lima Farias.
Para Cícera Nunes[42]
a escola enquanto uma instituição que tem o papel de
organizar, socializar e transmitir o conhecimento sobre a história, a cultura e
a sociedade, pode se transformar em um importante local de diálogo, troca de
experiência, e de debates que visem o (re)conhecimento
de uma história que se encontra incorporada em nós mesmos.
A oralidade em África é
mediadora das relações sociais, das relações políticas, econômicas e culturais.
Tais características, como o respeito aos mais velhos, a coletividade,
transmissão dos conhecimentos, elementos que reúnem em si valores educativos. É
oportuno pensarmos em uma educação que contemple os elementos do universo
cultural africano, já que estes adentraram nossa cultura. Muitas das práticas
culturais desenvolvidas no Brasil, abarcam as práticas e costumes africanos,
assim é importante que a escola também contemple os fatos históricos e
culturais que envolvem o povo negro brasileiro.
Embora a instituição escolar
não seja o único espaço para a construção de conhecimento sobre a cultura
negra, ou sobre os legados de povos africanos, reconhecemos que é, no entanto,
um espaço privilegiado para a superação de uma educação que ainda diminui a
existência dos africanos e suas culturas.
Compreendemos que não há
fórmulas educativas prontas, principalmente quando as práticas culturais e
saberes africanos contidos na cultura dos negros no Brasil, ao serem pensados
sob o ponto de vista da educação, são trabalhados no viés da educação não
formal. Neste caso, observa-se entraves em sua inserção no currículo da
educação formal, já que não são reconhecidos como “oficiais”. Não é raro que a
proposta de uma educação que contemple a tradição oral seja tomada como coisa
pontual, no entanto, há possibilidades que nos auxiliam (des)cobrir
caminhos para tais práticas e saberes, e “permitem de uma forma muito mais
orgânica apreender as dinâmicas dos grupos e dos sujeitos em seus afazeres,
valores, normas, comportamentos, etc”[43].
Paula Junior[44]
nos traz como exemplo, o samba e a capoeira como expressões culturais que
carregam, em seus símbolos e suas práticas, um vasto conjunto de informações
que reúnem muito mais do que aquilo que é percebido num primeiro olhar, tais
como as letras das músicas que trazem várias informações relevantes.
A mandiga na capoeira, ou seja,
o disfarce expressa uma tática de desconstrução de uma ideia de poder que o
opressor tende sempre a alimentar sobre o oprimido. Segundo Paula Junior ao citar
Reis, a capoeira, esta luta-jogo não se propõe à agressividade, mas sim à
defesa, e quando os lutadores se entendem o que temos é um diálogo corporal que
se pauta no respeito ao outro, na condição do outro, algo que nos faz lembrar
muito os valores propostos por Hampaté Bâ e que se tornam significativos para um entendimento
maior da condição do homem no mundo[45].
Segundo Paula Junior[46]
é o batuque de umbigada, dança de origem bantu praticada na região do médio
Tietê, em cidades como Piracicaba, Capivari, Tietê e Rio Claro. Ao se dançar, o
contato de umbigos entre o homem e a mulher, apresenta-nos o equilíbrio da
criação e a continuidade da vida, um gesto que reflete toda uma perspectiva de
observar o mundo. Essas práticas possibilitam uma vasta leitura da vida,
escrita de um modo tal que apenas a oralidade consegue captar.
O hip hop, manifestação
cultural, evoca referencial de respeito e o mesmo sentimento de unidade que se
observa em culturas que remontam ao período escravista[47].
O repertório cultural africano
está ligado a cultura negra no Brasil e precisa se fazer presente na escola de
forma efetiva. Entretanto para que esse caminho possa ser trilhado, é preciso
pensarmos em uma pedagogia que permita aos alunos a valorização e respeito de
nossos ancestrais e um diálogo constante que procure convergir os saberes comuns a cada povo e cultura para um
encontro em que todos sejam valorizados.
Uma
cantiga era sempre cantada nas aulas de Língua Portuguesa na Escola Primária 16
de Junho, é uma quadrinha antiga que as crianças cantam para assimilarem bem as
tarefas que envolviam o uso das vogais. Segundo a professora regente da turma,
ela ensinava essa cantiga, pois aprendera quando ainda era uma criança que
estudava nas classes primárias. E assim essa pequena e singela quadrinha se
repetia como uma forma de valorização do repertório cultural naquela comunidade
escolar.
“O (a) é uma bolinha que tem uma perninha
O (e) é uma bailarina que dá uma voltinha
O (i) é uma igrejinha
O (o) é uma bolinha
O (u) é o chifre da vaquinha”[48].
Figura
3: Kelly Farias com as crianças na sala de aula da Escola Primária 16 de Junho.
Fonte:
arquivo pessoal de Kelly de Lima Farias.
Embora haja a constatação de
que reunimos uma notável diversidade cultural, a escola brasileira muitas vezes
cala essas vozes muitas vezes ignorando a senda de conhecimentos advindos das
práticas culturais que têm a oralidade e a tradição como embasamentos. Cabe
pensarmos em uma prática educativa que possibilite o povo brasileiro que se
conheça nos muitos elementos de sua cultura, tal como o reconhecimento da sua
própria construção histórica. Mais do que ministrar conteúdos sobre a África ou
levar apresentar os valores da tradição oral africana, é importante percebê-la
como agente formador da pessoa.
Kabengele Munanga, em “Superando o racismo na escola”, é bastante
profícuo ao elucidar que o resgate da memória coletiva e da história da
comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra, mas
também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente a branca.
Além disso, essa memória não pertence
somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual
nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que,
apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada um
de seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional[49].
Como já
abordado ao longo desse trabalho, a palavra para as sociedades africanas, tem
importância fundamental, é através dessa base sólida que se dá a transmissão da
visão de mundo e saberes inerentes a um povo. A palavra cria, ressignifica o
cotidiano, contribui com a troca de ideias, a contestação e a reflexão.
Nessa
perspectiva, a educação que interage com o universo da tradição oral busca uma
educação para a vida, para a totalidade das relações e interações humanas.
Hampâté Bâ[50] aponta que os
valores culturais africanos podem ser colocados à disposição do homem
contemporâneo, pois muitos deles encerram valores universais, cabíveis à
constituição do ser humano.
Na educação
tradicional africana há uma interação entre os indivíduos e o seu meio,
possibilita a harmonia do ser com ele mesmo e o mundo a sua volta, pois tudo
está interligado. Podemos ponderar que trabalhar com os referenciais da cultura
africana, auxilia na formação do ser humano para a vida, e não apenas para o
atendimento de conteúdos.
Rosa Margarida de Carvalho Rocha traz
uma consideração que nos ajuda a pensar uma educação na e pela tradição, para
os africanos e afro-brasileiros:
A educação refere-se ao processo de ‘construir a
própria vida’ que se desenvolve em relações entre gerações, gêneros, grupos
raciais e sociais, com a intenção de transmitir visão de mundo, repassar
conhecimentos, comunicar experiência. Na perspectiva africana, a construção da
vida própria tem sentido no seio de uma comunidade, e visa não apenas o avançar
de cada um individualmente. O crescimento das pessoas tem sentido quando
representa fortalecimento para a comunidade a que pertence. [51]
Segundo Rocha[52], a educação tem um
vínculo comunitário e social, todos aprendem com todos, onde cada um tem sua
parcela de contribuição.
Portanto,
entendemos ser necessário dar visibilidade ao negro nos currículos escolares,
tratando-o enquanto sujeito histórico.
Descobrir nossas raízes significa descobrirmos uma
parte de nós que estava escondida, apagada pelo descaso e pelo desconhecimento
da sociedade. Seja em nossa árvore genealógica, seja nos costumes, na religião,
na culinária, na dança, no artesanato ou, enfim, na tradição deixada por nossos
ancestrais e passada de pais para filhos, é a nossa história, o nosso
patrimônio cultural que nos faz sentir orgulho do que somos e de quem somos,
despertando-nos para a preservação de nossa herança cultural[53].
Dessa forma,
nos faz pertinente o pensamento de Glória Cecília de Souza e Silva[54], quando apresenta
a proposta de se buscar, na tradição oral, contribuições para se pensar o aqui
e o agora, pois o presente da Educação está cheio de lacunas ancoradas nas mais
variadas tradições científicas.
De acordo com
Silva[55] embora, não seja
objetivo da ciência, encontrar respostas definidas para qualquer problema,
incluir outras tradições no debate, principalmente quando há a preocupação de
se repensar processos e práticas educativas que contribuam para humanizar
homens e mulheres, tem sim, o seu valor.
À
vista disso, a oralidade, sendo elemento da tradição africana que traz consigo
resistência, conhecimento e preservação dos referenciais culturais, ao dialogar
com a educação tem muito a contribuir, seja na própria reconstrução histórica
de um povo, seja na construção de um conhecimento no qual o ser
se envolve na totalidade.
Considerações
Finais
A história
oral tem sido um campo de investigação de relevância para a história dos povos
africanos. Ao falarmos em África,
certamente falaremos da oralidade, traço marcante dessa cultura. A oralidade
aqui não é pensada como uma fala informal, mas uma fala que há vida, memória e
resistências.
A oralidade
presente na tradição oral nos apresenta a configuração social de sua sociedade,
permite que reconheçamos através dos traços dessa cultura tanto os caminhos
percorridos, como também perceber os desafios para que haja a consolidação de
seus costumes, ritos etc.
Algumas
designações para a tradição oral, têm sido utilizadas por autores como Susana
Dolores Machado Nunes. Segundo ela, quando
essa cultura é expressa em letras, é designada como oratura,
pois leva de algum modo toda a carga simbólica e valorativa da tradição oral ao
corpo do texto.
A África tem
sido despertada para sua história, uma história contada por sua própria voz,
tendo na tradição oral os principais elementos que caracterizam um modo de ser
africano que propicia uma representação mais próxima de sua identidade.
Através do
trabalho com a tradição oral reconhecemos o conjunto de valores sociais,
religiosos, educacionais veiculados pela oralidade, que, por conseguinte, nos
permite entender como as sociedades recordam e constroem suas memórias, bem
como imprimem sua identidade.
De
acordo com Vansina[56],
“a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma
habilidade”. A oralidade determina um modo de ser, de pensar, de agir, ou seja,
todo um modo de educar e aprender estão configurados no universo tradicional.
Nesse sentido que buscamos
nesse trabalho, refletir sobre a importância da tradição oral africana e a
riqueza de conhecimentos que emanam dessas narrativas. Pois “quanto mais a
tradição consegue dialogar com o mundo a sua volta, mais ela é fortalecida”[57].
E, a partir delas, repensar as possibilidades de trabalhá-las na Educação
brasileira. Pois a tradição oral não se trata apenas de conhecimentos a serem
transmitidos, ou ritos e lendas, mas de formas de se olhar para si e para o
outro que fortaleçam a dignidade, o respeito e principalmente um sentido de
vida.
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VANSINA, Jan. A tradição oral e sua
metodologia. In:
ZERBO, Joseph K. (org). História Geral
da África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010.
[1] 16 de Junho,
nome da escola, é o dia da criança africana, homenagem às centenas de crianças
assassinadas e milhares feridas no dia 16 de Junho de 1976 em Johannesburg,
Soweto, África do Sul.
[2] BÃ, Confrontações Culturais, p.
08-09.
[3] Penteado feito com ligas de elástico e
tranças.
[4] Cabelo artificial.
[5] Brincadeira feminina em que as jogadoras, frente a
frente, lançam os pés, como em um sapateado, seguindo um ritmo ditado por
palmas; os pés devem formar par (pé esquerdo de uma com o pé direito da outra),
quem tiver escolhido “o par” ganha um ponto. Assemelha-se ao “par ou ímpar”.
[6] SILVA, Os “Fios de Contos” de Mãe Beata de Yemonjá: mitolofia afro-brasileira e educação, 2008.
[7] OLIVEIRA, Africanidades e Educação: ancestralidade, identidade e oralidade no
pensamento de Kabengele Munanga,
p. 224.
[8] FARIAS, Poema autoral.
[9] É oportuno destacar que não podemos nos
limitar em dizer que existe uma só África. A pluralidade de civilizações,
povos, culturas, línguas e religiões faz do território africano um mosaico com
múltiplas identidades.
[10] VANSINA, A tradição oral e sua
metodologia, p. 157.
[11] Ibidem,
p. 158.
[12] BÂ, A tradição viva, p. 182.
[13] Ibidem,
p. 181.
[14] RUI, apud
NUNES, A milenar arte da oratura angolana e moçambicana: aspectos estruturais e
receptividade dos alunos portugueses ao conto africano, p. 41.
[15] LEITE apud NUNES, A milenar arte da
oratura angolana e moçambicana: aspectos estruturais
e receptividade dos alunos portugueses ao conto africano, p.41.
[16] OLIVEIRA, Africanidades e Educação: ancestralidade, identidade e oralidade no
pensamento de Kabengele Munanga,
p. 94-98.
[17] OLIVEIRA; NASCIMENTO, A construção do
legado: a negação de uma epistemologia filosófica africana, p. 177-194.
[18] VANSINA, A tradição oral e sua metodologia, 2010.
[19] Ibidem, p. 163.
[20] Ibidem, p. 159.
[21] BÂ, A tradição viva, 2010.
[22] Ibidem, p. 183.
[23] Ibidem.
[24] VANSINA. Op. Cit.
[25] NUNES, A milenar arte
da oratura angolana e moçambicana: aspectos
estruturais e receptividade dos alunos portugueses ao conto africano,
p. 33.
[26] Ibidem, p. 35.
[27] Ibidem, p. 38.
[28] LEITE, Oralidades e Escritas nas Literaturas
Africanas, 2014.
[29] Ibidem, p. 19.
[30] BÂ, A tradição viva, p. 182.
[31] VANSINA, Op. Cit.
[32] PAULA, Educação e Oralidade na Cultura Negra no Brasil, p. 93.
[33] BÃ, Op. Cit., p. 182.
[34] NUNES, Op.
Cit.
[35] Ibidem, p. 35.
[36] NUNES, A cultura de base africana e
sua relação com a educação escolar, 2011.
[37] PAULA, Op. Cit.
[38] Pessoa mais velha.
[39] Com fome.
[40] Pão com frango recheado de molho,
repolho e batata frita.
[41] Notas do caderno de campo.
[42] NUNES, Op. Cit.
[43] SILVA, Memória, tradição Oral e a
afirmação da identidade étnica, p. 01.
[44] PAULA, Op. Cit.
[45] PAULA, Educação
e oralidade no oeste africano pela representação de Amadou Hampâté
Bâ, p. 128.
[46] PAULA, Educação
e oralidade na cultura negra no Brasil, 2013.
[47] FÉLIX, Hip Hop: cultura e política no contexto paulistano, 2018.
[48] Notas do caderno de campo.
[49] MUNANGA, Superando o racismo na escola, p. 16.
[50] BÃ, A tradição viva, 2010.
[51] ROCHA, A Pedagogia da Tradição: as
dimensões do ensinar e do aprender no cotidiano das comunidades
afro-brasileiras, p. 41.
[52] Ibidem.
[53] GOMES apud NUNES, A cultura de
base africana e sua relação com a educação escolar, p. 41.
[54] SILVA, Os “Fios de Contos” de Mãe Beata de Yemonjá: mitologia afro-brasileira e educação, 2008.
[55] Ibidem.
[56] VANSINA, A tradição oral e sua metodologia, p. 140.
[57] PAULA, Educação
e oralidade no oeste africano pela representação de Amadou Hampâté
Bâ, p. 107.