Submissão: 10/09/2019 Aprovação: 10/09/2019
Publicação: 30/09/2019
Interfaces
da Filosofia Africana
A legislação antirracista e a
escola como lugar de confissão
The antiracist legislation and school as place of
confession
Dirce Eleonora Nigro Solis
Professora
titular de Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
Coordenadora do Laboratório de Licenciatura e Pesquisa sobre o Ensino de
Filosofia – UERJ
dssolis@gmail.com
Fábio Borges do Rosario
Mestre em Filosofia e Ensino pelo Centro de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ. Professor
de filosofia na Seeduc-RJ
professorfilosofiafabio@gmail.com
Resumo: Neste trabalho investigamos como a desconstrução tal como
formulada pelo filósofo da différance Jacques Derrida contribui no apelo
pela desconstrução da escola básica. Consideramos como a legislação
antirracista aponta para a superação da hostilidade racista. Verificamos como a
escola poderia ser o local de confissão dos crimes cometidos contra a
humanidade e em qual medida tal profissão apela e deputa um horizonte aonde
chega à hospitalidade in–condicional.
Palavras-chaves:
Legislação antirracista; Confissão; Escravidão; Escola.
Abstract: In this
work we investigate how the deconstruction, as formulated by the philosopher of
différance Jacques Derrida, contributes
in the appeal for the deconstruction of the basic school. We consider how
anti-racist legislation points to overcoming racist hostility. We verified how
the school could be the place of confession of the crimes committed against
humanity and to what extent this profession appeals and deputates
a horizon where it arrives at the in--conditional hospitality.
Keywords:
Anti-racism legislation, Confession, Slavery, School.
Travessias
Com e a partir de Jacques Derrida[1]
investigamos se a legislação antirracista[2]
brasileira pode ser entendida como um ato jurídico–performático que apela o
acontecimento de confissão do cometimento de crimes contra a humanidade pelos
lusitanos e pelos luso-descendentes, isto é, a
confissão da Escravidão. Analisamos se a escola e a universidade são
conclamadas pela legislação a apresentarem-se como o lugar da pesquisa e
investigação, e da formação dos profissionais que publicarão, confessarão,
declararão, arrepender-se-ão, expiarão e solicitarão perdão pelos crimes
cometidos contra a humanidade, tais como, a Escravidão.
O
filósofo conflui em si a herança do judeu exilado pelo governo lusitano, marrano
exilado na Argélia, judeu de cidadania francesa, judeu sem cidadania, cidadão
franco-argelino radicado na França. Sua recusa por optar por uma das heranças,
a experimentação de vivenciar as agruras do desenraizado, talvez, aponte uma
rota na direção da superação do binarismo étnico que marca a sociedade
colonizada tanto na Europa quanto nos outros continentes. A crise ontológica
europeia, a busca pela eliminação das diferenças étnicas, a hostilização da
herança considerada estrangeira, a hierarquização das etnias e a desumanização
das consideradas inferiores foi exportada pelos europeus para os territórios
invadidos e transformados em colônias.
Pedimos
inicialmente licença aos que chegaram primeiro nesta avenida aberta por Jacques
Derrida. E em nome da fidelidade infiel, ousa-se aqui diante dos ausentes e dos
presentes, reivindicar o legado para ir a outras margens e contra-assinar
com e em nome daqueles espectros que foram hostilizados, mas que retornam para
acolher e apelar travessias descolonizadas e desconstruídas entre a América,
África, Europa, Ásia e Oceania.
Anima à pesquisa a via
aberta por Dirce Solis quando[3]
conclama os filósofos a investigarem quais espectros assombram a Filosofia ou
quando[4] põe
na cena e no encontro entre Filosofia e Arquitetura o espectral Complexo Penal
da Ilha Grande ou quando[5]
estima que a desconstrução fará diferença, se após perceber a in–decidibilidade, assumir a responsabilidade e decidir pela
construção de um mundo digno para as singularidades humanas. Por Marcelo Moraes
e Adriano Negris[6] que
apelam a acolhida do outro quando apresentam como a desconstrução abala a ética
ou quando trazem a discussão da transgressão, do vadio e narram a história de
Madame Satã; via que Marcelo[7]
percorre transgredindo, suleando, afrocentrando
a filosofia, contra-assinando a obra derridiana ao
atravessá-la com as filosofias africanas e ameríndias. E, por Rafael Hadock Lobo quando[8]
acolhe a proposta derridiana de buscar noutras mitologias os temas de pesquisa
e desce ao Sul, cruza o Mediterrâneo e o Saara para encontrar com Babá Egun – espectro e ancestral –, e com toda a ancestralidade
preta e branca navega pelo Atlântico rumo às terras americanas dos rastros e
heranças da Umbanda. Estes captaram a voz
derridiana na “Palavra Soprada”[9], onde
aponta a busca por horizontes para além da tradição europeia, ao dizer que:
“fora da Europa, no teatro balinês, nas velhas cosmogonias mexicana, hindu,
iraniana, egípcia, etc., procurar-se-á sem dúvida temas, mas também, por vezes
modelos de escritura”.
A
desconstrução e a legislação antirracista
Descrevemos que a legislação antirracista brasileira[10] pode
ser entendida como um ato jurídico–performático na medida em que escutamos a
obra A
universidade sem condição[11]. Entendemos,
aqui, a legislação antirracista como resultado da resistência, dissidência ou
“como uma espécie de princípio de desobediência civil”[12] dos negros
brasileiros que permite, “pelo direito e pela filosofia, pela crítica, pelo
questionamento, pela desconstrução”[13] repensar a
história do país. Ou seja, como um ato jurídico–performático
que possibilita ultrapassar o Direito e “faz operar ou inspira a desconstrução
como justiça”[14].
Acatamos que, tanto no
período imperial quanto no republicano, os intelectuais e legisladores
brasileiros buscavam inspirar-se nas ideias em voga no continente europeu. Esta
contaminação pelo ideário e filosofema europeu os
separava entre os que defendiam a abolição imediata e os que defendiam a
abolição progressiva da escravatura; entre os que defendiam legislações que
fundassem a segregação pigmentar entre brancos e negros e os que defendiam o
silenciamento legislativo quanto aos negros, isto é, abandoná-los à própria
sorte, o que implicaria o insucesso coletivo destes. Tais ideias, independente
da radicalidade com que eram defendidas ou do abismo teórico e prático entre
seus defensores, refletem que o eurocentrismo estava no horizonte previsto
pelos intelectuais e legisladores para a nação.
Noutro
sentido, o de abandonar a hostilidade e promover a hospitalidade é que propomos
entender a legislação antirracista brasileira como um ato jurídico-performático
de confissão do crime contra a humanidade, a Escravidão, cometido pelos
portugueses e seus descendentes e sofrido pelos povos que habitavam o atual
território brasileiro antes da chegada dos lusitanos e contra as etnias
capturadas e escravizadas no continente africano e deportadas para o Brasil.
Para alcançar a finalidade proposta, pela legislação antirracista,
o signatário (legisladores do Congresso Nacional que aprovaram e os presidentes
da República que sancionaram as legislações ou os conselheiros do Conselho
Nacional de Educação ou Ministros da República que aprovaram as Resoluções,
Diretrizes, Orientações e Planos) resolve que os destinatários implementarão as
ações previstas. Sendo destinatários: os gestores e docentes das instituições
superiores, os gestores dos sistemas estaduais e municipais, professores,
coordenadores pedagógicos etc.
O signatário resolve que os destinatários reconheçam, identifiquem
e valorizem as diferentes vozes que marcam a história e a sociedade brasileira
mediante a reformulação do conteúdo dos currículos que passarão a observar
conforme o Art 2º § 2º:
O Ensino de História e
Cultura Afro-brasileira e Africana tem por objetivo o reconhecimento e
valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, bem como a
garantia de reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da
nação brasileira, ao lado das indígenas, europeias, asiáticas[15].
Resolve ainda os signatários que os destinatários devem notificar
os gestores do sistema educacional a fim de garantir o cumprimento dos
dispositivos legais e evitar que o performativo–jurídico entre no rol das leis
que não são observadas e cumpridas no cotidiano.
E
lembramos que a legislação antirracista brasileira, para além da vontade dos
signatários insere-se num movimento internacional que conforme, Derrida:
Bem próxima da profissão de fé, essa
alusão à confissão poderia encadear meu discurso à análise do que acontece
hoje, na cena mundial, semelhante a um processo universal de confissão, de
declaração, de arrependimento, de expiação e de perdão solicitado. Poder-se-iam
citar mil exemplos, dia após dia. Porém, quer sejam crimes muito antigos ou
crimes de ontem, a escravidão, a Shoah, o apartheid
ou as violências da Inquisição (sobre a qual o Papa há pouco anunciou que
deveria dar lugar a um exame de consciência), o arrependimento vem sempre,
explícita ou implicitamente, com referência a esse conceito jurídico bastante
jovem de “crime contra a humanidade”[16].
Quando
dizemos, aqui, que a legislação é um ato jurídico–performático
para a população negra, tomamos o termo performativo no sentido do
quase-conceito derridiano de performativo. O performativo, diz Jacques Derrida[17], produz o
acontecimento que enuncia, e os performativo–jurídicos são aqueles que, desde
as primeiras declarações de direitos até as mais recentes, implicam uma
promessa, prometem desde os direitos fundamentais a homens e mulheres até a
confissão dos crimes cometidos contra a humanidade, tais como a Escravidão, a Shoah e o Apartheid. Quando o filósofo advoga
que o performativo produz o acontecimento que enuncia, pretende demonstrar que
entende por acontecimento o que chega de fora, para além de todo performativo
enunciado, além do horizonte de possibilidades.
A
força do performativo é excedida pela força do acontecimento, pois esta se torna manifesta quando o que acontece solicita a
decisão, a decisão do outro, a chegada do outrem. A força do acontecimento,
deste talvez, afina-se com o operatório performativo, com a gramática do
condicional para declarar o incondicional, o totalmente outro, extremamente
difícil, quase improvável, quase indemonstrável na trajetória de submeter à
soberania atribuída às instituições e mostrar certa independência incondicional
do pensamento, da desconstrução, da justiça, etc. E quanto aos signatários de
um performativo–jurídico, afirma que são, ao mesmo tempo, signatários e
destinatários, pois o acontecimento que foi enunciado tem consequências
inimagináveis.
A legislação antirracista como acontecimento
Apontamos que a legislação antirracista
brasileira[18] pode ser entendida como um
acontecimento do pensamento ao passo que ouvimos do filósofo marrano[19] que
a desconstrução não é nem um método, nem uma doutrina, nem uma metafilosofia especulativa; quando professa a desconstrução
como um acontecimento. E por acontecimento, entende um talvez que se afina com
a impossibilidade; cuja força, a força do que acontece, comporta para o agente,
no momento da decisão, certa passividade diante da decisão do outro que chega.
O acontecimento, portanto, não é um mero performativo, uma ação autorizada
convencionalmente ou fundada numa comunidade institucional que valida os atos
de um agente diante do alter. O acontecimento é da ordem do por–vir,
pertence ao horizonte do im–possível, pois:
Desde o princípio, foi dito
com clareza que a desconstrução não é um processo ou um projeto marcado pela
negatividade, nem mesmo essencialmente pela “crítica” (valor que tem uma
história, como a da “questão”, história esta que provavelmente convém manter
viva, mas que tem seus limites). A desconstrução é antes de tudo a reafirmação
de um sim originário. Afirmativo não quer dizer positivo.
Esclareço de maneira esquemática esse ponto, pois para alguns, como a afirmação
se reduziria após uma fase de demolição. Não há demolição tanto quanto reconstrução
positiva e não “há fase”[20].
Traçamos que a legislação é um acontecimento no sentido que aponta
como horizonte – ao mesmo tempo a abertura e o limite da abertura, define ou um
progresso infinito, ou uma espera – confessar a Escravidão, a Shoah e o Apartheid como crimes contra a humanidade, o que
possibilita desviar da espectralidade da raça como
hostilidade e pensar a raça como rastro, como espectro que não mais assombra,
e, sim, desvia, reconhece e encontra na hospitalidade in–condicional caminhos
para a superação dos efeitos que tais eventos produziram. E compreender a im–possibilidade como condição de possibilidade na procura
por caminhos que desviem da situação atual de dominação onde o traço racial
como motor do ódio se impõe disfarçadamente.
E a tomamos como restância da Abolição
que chegou como evento e como acontecimento. Como evento para aqueles que a consideraram um
fato histórico decorrente da conjuntura internacional e nacional, que se
adequaram à nova situação econômica do país e preferiram silenciar o passado
escravista do país que consideraram inadequado com os novos tempos; e como
Acontecimento para os negros que, agora libertos, teriam que lutar pela
sobrevivência e inserção na vida da nação, e para os intelectuais e políticos
que entendiam que a Abolição não fora um mero evento, mas que prenunciava novos
apelos de inserção do negro no novo sistema econômico do país e,
principalmente, que o tratamento a ser dispensado aos afro-luso-brasileiros e
aos negros seria crucial na definição e constituição da identidade nacional
brasileira.
A
escravidão: silenciamento e memória
Reconhecemos que a legislação antirracista
brasileira rompe com o silenciamento e deputa à confissão da Escravidão como um
crime cometido pelos lusitanos e seus descendentes contra as etnias que
habitavam o continente americano e contra as etnias deportadas sob cativeiro do
continente africano. Escutamos ainda a advertência, da Lettre
à un ami japonais[21],
que a desconstrução é um acontecimento; aquilo que chega, o que inspira a
investigar como o acontecimento da Abolição da escravidão, repercutiu no
cotidiano.
E para
entender como a memória da Escravidão será relatada e experienciada pelas novas
gerações auscultamos da obra “O perdão, a verdade, a reconciliação: qual
gênero?”[22], na qual o
filósofo africano desenraizado apela à confissão do crime cometido contra os
negros: o sequestro de sua liberdade via escravização, segregação, colonização,
etc. Na qual refuta as teses que fundamentaram retirar o negro da história
mundial, denuncia a situação atual de manutenção da exclusão sob as formas
modernas do gueto, das favelas, dos presídios, etc., e conclama que a promessa
feita nas declarações dos direitos humanos im–possibilite qualquer
possibilidade de retorno do racismo.
Entendemos,
portanto, haver pistas que possibilitam recusar a ideologia da democracia
racial como um mito e demonstrar que a nacionalidade brasileira fora forjada na
desigualdade pigmentar entre brancos e negros. A desigualdade está fundada na
crença branco-europeia da inferioridade dos negros e tal mentalidade e
comportamento persistem até a contemporaneidade. Por isso, vários autores confirmam que, no caso brasileiro, não se verifica
uma democracia racial, antes uma flagrante desigualdade pigmentar.
E talvez esta ignóbil desigualdade pigmentar seja a restância da Escravidão, a incapacidade de superar um filosofema que definiu o negro como essencialmente escravo.
Jacques Derrida[23], para denunciar,
explicitar e desconstruir esta noção volta-se para o Hegel da Filosofia da
história. Cujas afirmações sobre a África são consideradas inseparáveis do
conjunto de sua conclamada obra. Hegel, diz, situa o continente africano na
infância da humanidade, sem consciência, sem história, fora do palco da
consciência como história e, como a cor negra de seus habitantes, prisioneiro
da escuridão. Ao negar aos africanos as categorias da universalidade e da
generalidade, o respeito a Deus e a lei, limita o conhecimento dos africanos
apenas ao trovão de Deus e à magia, e ainda que reconheça que os negros têm
ideia da existência da vida após a morte, nega-lhes a noção de imortalidade da
alma, e em consequência nega-lhes o acesso ao direito. A negação do acesso ao
direito insere-se no escopo de sua tese: a escravidão é o traço essencial do
negro, este traço decorre de sua ainda não-consciência da liberdade; o “ainda
não” marca seu atraso, sua letargia em passar da inconsciência para a
consciência, e em consequência de sua não-passagem e por não serem livres, caem
na categoria de coisa sem valor humano, mas que, transformados em mercadoria
pelos humanos [entenda-se aqui, pelos brancos europeus], são reduzidos a
escravidão e comercializados na América.
O abandono deste paradigma eurocentrado que inferioriza o negro–brasileiro é enunciado
pelo performativo–jurídico brasileiro? Talvez, no revisitar a história na busca
de traços da participação de todas as etnias que habitavam o país antes do aportamento lusitano e de todas as etnias deportadas ou que
para cá emigraram se encontre os rastros que possibilitem uma nova memória
nacional.
A legislação antirracista como um acontecimento do pensamento,
prenuncia que se pense a paradoxal relação ente a memória e o esquecimento,
questão que para a desconstrução remete para o por–vir, que o esquecimento ao
mesmo tempo em que remete ao passado prenuncia o por–vir. Que quando se promete
não se enuncia apenas um performativo cuja possibilidade de cumprimento é
possível, quando se promete opera-se um engajamento que exige a
responsabilidade com o cumprimento do prometido. O acontecimento chega como um
monstro, cujo rastro remete para traços conhecidos ao mesmo tempo em que aponta
para traços por–vir. Elenca o direito das vítimas ao riso, ao canto e as
lágrimas; assinala que a situação da vítima é inesquecível, marginalizável e
ilegível ao outro.
No momento da vitimização pretendia o algoz excluir o vitimado da
linguagem e da história e do direito ao protesto ou ao riso ou ao canto ou às
lágrimas, isto é, pretendia o apagamento da singularidade. Nesta direção operou
o algoz o apagamento das provas e dos restos mortais, pretendendo a destruição
da memória, o riscamento do nome da vítima e
destruição da singularidade da vítima, buscou só deixar cinzas. E a cinza,
enquanto traço do desaparecimento é também o rastro do que não se pode mais
identificar, a incineração do corpo que conservaria a memória. Na cinza nada
resta? As cinzas guardam o segredo do desaparecimento, conservam a memória do
aniquilamento, e se não permitem a identificação do aniquilado, testemunham que
algo ou alguém foi aniquilado. As cinzas são o rastro, tanto do aniquilado
quanto do aniquilamento[24].
Reafirmamos a partir das noções de esquecimento e memória a im–possibilidade da confissão deste crime pelos luso-descendentes. Alertamos que a confissão dos crimes
pelos descendentes não se destina as vítimas. Confessar os crimes cometidos
pelos ancestrais é comprometer-se e professar que não se cometerá os mesmos
erros, enunciar a responsabilidade pela não repetição e decidir pela abertura a
alteridade e engajar-se na busca pelos rastros que seus ancestrais pretendiam
apagar.
Desviamos da noção do esquecimento como possibilidade de harmonia
social. Formulamos que o silenciamento da memória obsidia o Estado brasileiro.
E avaliamos que as narrativas da Escravidão permitem a todas as singularidades
– independentemente do pertencimento étnico ou pigmentar – apelar pelo fim das
desigualdades etnopigmentares.
E se conjurar o termo raça
com a intenção de repelir o racismo, é a expectativa daqueles que algures
acusam a legislação antirracista de conjurar, isto é, convocar, chamar de volta
o espectro que assombra. Nesta escritura, entretanto, conjura-se, invoca-se,
suplica-se o espectro da raça como recurso paleonímico
e por economia para operar um desvio do sentido que o ideário racialista brasileiro imprimiu a raça, em especial a raça
negra. E apontar que o espectro da raça, este retornante, retorna como
confissão do crime cometido e profissão de que neste país não se cometerá
novamente o crime da Escravidão.
Brasil: do silenciamento a solidariedade
Se, identificamos no rastro da legislação o apelo pela confissão
do silenciamento dos brasileiros diante da Escravidão é provavelmente porque
muitos brasileiros ainda resistem ao apelo de confessarem que cometeram um
crime contra a humanidade, a Escravidão. Escravidão que marcou a história e as
relações entre negros e brancos no país, no passado colonial e republicano,
ontem e hoje, nas senzalas e nas favelas, nos troncos e nas prisões, na
escravização e no desemprego, o erro nacional originário de negar a liberdade.
Esta dificuldade em
confessar o crime cometido, na esteira da leitura derridiana, contém-se numa
tradição europeia, como se lê em Hegel, que considera que a Escravidão lançou
os negros na história via sua cristianização e que somente mediante esta é que
o negro é autorizado a entrar no teatro da história. Tal pensamento não enxerga
os malefícios da escravidão, antes vê nesta um processo de humanização dos
negros; nesta perspectiva é que Hegel defendia a abolição gradual da
escravidão. Em sua concepção, após o processo escravidão–cristianização, os
negros estariam prontos para participar da história ocidental, já que na África
não havia história. Mas:
Tendo como fundo a voz de
Hegel em off, eis Mandela. No fim infinito, não findo, acabado inacabado
de sua [sic] autobiografia, as últimas linhas do livro aliam o motivo da
reconciliação ao da liberação. Liberação do mestre opressor, duplo genitivo. Ao
se liberar do mestre, libera-se a ele mesmo[25].
Quiçá, o reconhecimento pelo Estado brasileiro de tais crimes
implicaria no reconhecimento da restância da
Escravidão como racismo institucional. Formulamos a partir da noção de
identificação que a confissão da Escravidão, da Shoah
e do Apartheid são vias próximas na conjuração do racismo. Medimos que a
identificação na memória do sofrimento e na luta pela confissão dos atos
praticados agencia a hospitalidade in–condicional.
E a memória dos que sofreram e sofrem a tentativa de serem
aniquilados pela narrativa nacional brasileira é evocada pela legislação
antirracista, não no sentido de abandonar a tradição filosófica ocidental, mas
que se faça a reflexão ético–política sobre a herança do Iluminismo e se pense
um Iluminismo por–vir capaz de abandonar a lógica binária que ora hostiliza ora
hospeda o judeu, o árabe, o negro, etc.
Para insistirmos no apelo por um Iluminismo por–vir precisaremos
soçobrar o esquecimento dos rastros das etnias negras que foram aqui
escravizadas, evocarmos as memórias dolorosas e o sofrimento, atos e gestos de
resistência, individuais e coletivos. Neste sentido não atentamos apenas para o
sentido moderno de resistir como sofrer, agüentar e
suportar. Num gesto econômico e paleonímico,
lembramos que resistir desde o século XVI remete para o ato ou efeito de não
ceder, assim como, reagir contra, conflitar, opor-se
voluntariamente, insurgir, enfrentar, confrontar, etc. E no caso das
singularidades e coletividades negro–brasileiras, sem silenciar a história das
pessoas que sofreram, agüentaram e suportaram a
escravização, é recuperar toda a memória da luta contra a escravização,
assimilação e extermínio.
Qual o lugar da confissão?
Reconhecemos que a escola é conclamada pela legislação a
apresentar-se como o lugar da confissão da Escravidão, da Shoah
e do Apartheid. Ao classificar a escola como o local da confissão dos
crimes cometidos contra a humanidade a identificamos com a Universidade,
apresentada pelo filósofo franco-argelino[26] como
o local da pesquisa e investigação, e da formação dos profissionais que
publicarão, confessarão, declararão, arrepender-se-ão, expiarão e solicitarão
perdão pelos crimes cometidos contra a espécie humana. Demonstramos que a obra
derridiana rasura a distinção entre escola e universidade. Traçamos que a
preocupação com o ensino de filosofia permeia a estratégia desconstrutora.
Provamos que a legislação antirracista rasura a distinção entre escola e
universidade ao conclamar todas as instituições de ensino a desconstruírem-se.
Propomos a confissão dos crimes contra a humanidade como estratégia desconstrutora do racismo institucional que atualmente
assombra a democracia. Avaliamos que a raça é um espectro, um retornante que
para além de assombrar, também apela à hospitalidade in-condicional
de todas e todos na sua différance.
O
sistema educacional, rememora Derrida, em O monolinguismo do outro[27], é
fundamental na construção da identidade, nacionalidade e cidadania, tanto no
continente europeu quanto nos países onde o etnocentrismo tenta impor-se, e a
língua, o idioma tem um papel preponderante, outrora como o aspecto identitário
que unia cidadãos da metrópole e das colônias e, após os processos
emancipatórios, como o aspecto identitário das novas nações, como a restância da dominação europeia que inclui as novas nações
no teatro mundial.
E entrar no concerto das
nações é imergir-se na crise europeia, pois, a identidade elenca os debates
sobre o monoculturalismo e o multiculturalismo, o ipse
e o hospes, a hostilidade e a hospitalidade,
etc.; além das questões anteriores, a cidadania requere: as questões da abstralidade e da naturalidade, da participação e da
exclusão cultural e linguística e histórica, a elegibilidade e a
inelegibilidade, a permanência e a precariedade dos marcos jurídicos, concessão
ou recusa ou supressão do status de cidadão, quais as condições de
supressão e permanência do status de cidadão, etc.
Nos Estados-nação, a língua
apresenta-se como uma propriedade natural do nativo europeu (quando se está na
Europa) ou do colono europeu (quando se está nas antigas colônias), recusada e
estimulada entre os considerados falantes não-naturais, ao mesmo tempo em que o
eurocêntrico recusa aos demais a propriedade natural
da língua. Ainda que seja a única língua falada pelo considerado falante
não-natural, esta é estimulada como o único meio civilizado de comunicação,
como o que insere o antes considerado estrangeiro na comunidade nacional sob um
status recente e ameaçado e precário.
A língua, então, representa
a ameaça de não inclusão e a promessa e esperança de assimilação e participação
na coletividade. O endereçamento ao outro ocorre num jogo onde a promessa é
ameaçante e a ameaça uma promessa, um jogo desesperante entre a hospitalidade e
hostilidade do falante não-natural da língua oficial, sua única língua, e mesmo
quando o falante não-natural fale outras línguas, a oficial é a única que o insere
na promessa e na ameaça de exclusão de sua participação no teatro da cidadania
e da nacionalidade. O equívoco etnocêntrico, diz Derrida, está em não perceber
que não há propriedade natural da língua e que toda singularidade humana fala
uma língua que não é sua: “Desde então, qualquer pessoa deverá poder declarar
sob juramento: eu não tenho senão uma língua inassimilável. A minha língua é-me
uma língua inassimilável. A minha língua, a única que me ouço falar e me ouço a
falar, é a língua do outro”[28].
A escola[29], enquanto o paradigma
nacional for o eurocentrismo, entende-se como reprodutora dos valores
civilizatórios ocidentais, quando na Europa pretende construir no educando o
pertencimento natural aos valores europeus e a missão de preservá-los, e aos considerados
estrangeiros ou não-europeus a promessa de assimilação às nacionalidades
europeias. Já nos Estados-nação ocidentalizados, opera valorizando o
colonizador e o seu papel civilizatório e promete aos demais o ingresso na
cidadania, desde que assimilem os valores da Europa e reneguem as heranças
não-europeias.
Na Europa ou fora dela, a
promessa de assimilação opera conjuntamente com a ameaça de exclusão dos que
não se deixam assimilar. Os programas escolares valorizam a literatura, a
história, a geografia, etc, europeias em detrimento
de outros conhecimentos, funcionam operando, ao mesmo tempo, a identificação do
colonizável com a Europa e a marcação da sua diferença determina qual o papel
do colono e do colonizado. Explicitam que a assimilação é impossível quando o
lembra de não ser proprietário da língua oficial e que só pode falá-la com
sotaque, que o sangue de seus ancestrais não fora derramado no solo europeu, ou
quando ressalta que ou não participou da história narrada – nem da europeia e
nem do Estado-nação ocidentalizado – ou que quando participou foi num papel
subalterno, etc.
Quiçá, se lermos e ouvirmos as mulheres negras[30] se
perceberá para além do que foi dito pelo filósofo da desconstrução, que a
língua portuguesa funcionou para os ewes, fons, yorubanos, benguelas, etc, como uma ferramenta etnopigmentar
de reconstrução de suas vidas assombradas e destruídas pelo sequestro em terras
africanas e transporte para as terras americanas, como construção de uma via de
solidariedade no sofrimento e fraternidade que soçobrasse as antigas
rivalidades étnicas e apontasse rotas de fuga tais como os quilombos ou outras
formas de resistência; ou mesmo nos casos em que as diferenças étnicas não
foram superadas, a língua funcionou como ferramenta aglutinadora das
singularidades de uma mesma etnia para a formação de irmandades religiosas ou
outras formas de resistência que serviam como propulsionadoras da solidariedade
e fraternidade. A língua, portanto, foi ressignificada e apropriada como arma
de sobrevivência e resistência existencial e cultural, individual e coletiva –
solicitando o idioma recebido violentamente do colonizador e disseminando-o
como o pretugês[31] do
samba, do jongo, da capoeira, do candomblé, da quimbanda, da umbanda, do
batuque, dos quilombos, etc., nestes inúmeros acontecimentos de resistência.
Considerações quase-finais: Brasil, hostilidade ou hospitalidade
in–condicional
Apelar, com Derrida[32],
pela democracia por–vir, é reconhecer que nas democracias atuais há um profundo
antidemocratismo, como se verifica com o aumento dos
crimes de ódio na medida em que o número de estrangeiros num dado Estado-nação
aumenta. Sabendo que a democracia por–vir não é um aperfeiçoamento da
democracia atual, mas refere-se ao desviar dos in-decidíveis
da democracia atual para possibilitar a chegada da hospitalidade.
E neste itinerário de apelo por novas relações e instituições que
deputem o perdão, o dom, a confissão, etc, é que se
aponta, aqui, a escola como um local privilegiado de chegada da desconstrução.
E que a desconstrução do ensino de filosofia chega quando se observa a relação
racismo e democracia, quando se reflete sobre as implicações do racismo na
escola e a importância da superação do racismo na escola como condição para o
exercício da cidadania; quando se percebe que a democracia por–vir é um
acontecimento cuja condição de possibilidade é a procura por caminhos que
desviem da situação atual de dominação onde o racismo se impõe disfarçadamente
sempre que aparece o in-decidível, isto é, sempre que
a espectralidade da raça impõe a escolha entre a
hostilidade ou a acolhida da diferença e que a escola e a universidade
in–condicionais pertencem ao escopo da im–possibilidade
e do por–vir, entendida a impossibilidade como a condição de possibilidade de
um por–vir onde não há mais lugar para se entender os traços fisionômicos como
motivadores da discriminação ou da inferiorização ou da segregação ou do
extermínio. Pois:
… é preciso ir (Geh, Vá!) aí
aonde não se pode ir. Paixão do lugar, ainda. Eu diria em francês: il y a lieu de (o
que quer dizer “é preciso”) ir lá aonde é impossível ir. […] Ir aonde é
possível ir não seria um deslocamento ou uma decisão; seria o desenvolvimento
irresponsável de um programa. A única decisão possível passa pela loucura do indecidível e impossível[33].
E como desconstruir esta relação hostil? Como desconstruir os
espaços formadores? Como desconstruir o pensamento? A desconstrução já está, já
chegou, é o que chega, é o im–possível que chega
apelando novas relações na escola. Esta desconstrução da história não objetiva trocar o eurocentrismo
marcante por novos centros, antes se legitima no entendimento que “A ausência
de centro é aqui a ausência de sujeito e a ausência de autor”[34],
pois os rastros dos sujeitos e autores da história brasileira serão encontrados
no “reconhecimento e igual valorização das raízes africanas da nação
brasileira, ao lado das indígenas, europeias, asiáticas”[35].
Pois se espera que o acontecimento chegue, apelando à
hospitalidade in–condicional de todas e todos na sua différance,
e deputa-se com esta pesquisa solicitar a todas e todos os docentes no sentido
de que somente a desconstrução de nossa época é capaz encontrar no in–decidível, nas aporias da democracia liberal, no momento de
decidir, de solicitar, deputar, apelar e ver chegar o imprevisto, o im–possível, a hospitalidade in–condicional, a democracia
por–vir.
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[1] DERRIDA, Du droit à la philosophie, 1990 ; DERRIDA, Margens da filosofia, 1991; DERRIDA, A farmácia de Platão, 1991b; DERRIDA, O outro cabo, 1995; DERRIDA, Une
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[2] BRASIL, Diretrizes curriculares nacionais
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afro-brasileira e africana, 2005; BRASIL, Orientações e ações para educação das relações
étnico-raciais, 2006; BRASIL, Lei nº 11.645 de 10 de março de 2008, 2008
[3] LOBO, Heranças de Derrida:
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[4] SOLIS; MORAES, Políticas do lugar, p. 18-53.
[5] SOLIS, Desconstrução em arquitetura e hospitalidade: uma
abordagem a partir de Derrida, 2004; SOLIS, Jacques Derrida e a ética da
hospitalidade, 2005; SOLIS, Desconstrução e arquitetura: uma abordagem a
partir de Jacques Derrida, 2009; SOLIS, Retórica e desconstrução segundo
Jacques Derrida, 2012.
[6] SOLIS; MORAES, Políticas do lugar, p. 54-85; MORAES; SANTOS, O
pensamento do ético em Jacques Derrida: uma questão de hospitalidade, 2017.
[7] MORAES, Desobediência epistemológica: Ubuntu e Teko
porã: outros possíveis a partir da desconstrução, 2017; MORAES, Desconstruindo
o epistemicídio a partir de Jacques Derrida, 2017b; MORAES, Democracias espectrais: uma abordagem
a partir de Jacques Derrida, 2018.
[8] LOBO; PEREIRA, Por uma topografia das assombrações: os
espectros da desconstrução para-além e para-aquém do Mediterrâneo e do
Atlântico [No prelo].
[9] DERRIDA, A escritura e a diferença, p. 283.
[10] Ver também ROSÁRIO, A
desconstrução do ensino de filosofia e a legislação antirracista, 2013. ROSÁRIO, A
desconstrução do ensino de filosofia e o movimento das mulheres negras, 2018.
[11] DERRIDA, A universidade sem condição, 2003.
[12] Ibidem, p. 24.
[13] Ibidem, p. 23.
[14] Ibidem, p. 24.
[15] BRASIL, Diretrizes curriculares
nacionais para educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história
e cultura afro-brasileira e africana,
p. 31.
[16] DERRIDA, A universidade sem condição, p. 19.
[17] Ibidem.
[18] Ver também ROSÁRIO, O
conceito de antirracismo e a confissão de crimes contra a humanidade, 2017b.
[19] Ibidem.
[20] DERRIDA, Posições,
p. 350.
[21] DERRIDA, Psyché: Inventions de l'Autre. Paris: Galilée, 1987.
[22] NASCIMENTO, Jacques
Derrida: pensar a desconstrução, p. 45-92.
[23] Ibidem.
[24] Ibidem.
[25] NASCIMENTO, Jacques
Derrida: pensar a desconstrução, p. 71.
[26] DERRIDA, A universidade sem condição, 2003.
[27] DERRIDA, O monolinguismo do outro: ou a prótese de origem, 2001.
[28] Idem, p. 39.
[29] Ver também ROSÁRIO, Entrevistas
orais/em vídeo via whatsapp: uma proposta didática para a sala de aula de
filosofia, 2017.
[30] GONZALEZ, Racismo
e sexismo na cultura brasileira,
1984; RIBEIRO, O que é lugar de fala?, 2017; SILVA; PEREIRA, O movimento de
mulheres negras: escritos sobre os sentidos de
democracia e justiça social no Brasil,
p. 205-217; ROSARIO, A desconstrução da Universidade e o
Movimento de Mulheres Negras,
2018b.
[31] Termo empregado por Lélia Gonzales. Ver GONZALES,
Racismo
e sexismo na cultura brasileira,
1984.
[32] DERRIDA, Espectros de Marx: o Estado
da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional, 1994; DERRIDA, O
monolinguismo do outro: ou a prótese de origem, 2001; DERRIDA, Papel-máquina,
2004; DERRIDA, Adeus a Emmanuel Lévinas, 2008.
[33] DERRIDA, Salvo o nome,
p. 42.
[34] DERRIDA, A escritura e a diferença, p. 419.
[35] BRASIL, Diretrizes curriculares nacionais para educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, p. 21.