DOI

Submissão: 30/08/2019 Aprovação: 08/04/2020 Publicação: 15/04/2020

 

 

Fluxo contínuo

 

A “fenomenologia da vida ética” de Arthur Schopenhauer

 

Arthur Schopenhauer's “phenomenology of ethical life”

 

Guilherme Marconi Germer

Pós-doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

 guilhermeguita@gmail.com

 

Resumo: Nós nos propomos a analisar e interpretar em que sentido a descrição de Philonenko de que Schopenhauer desenvolveu uma “fenomenologia da vida ética” pode ser lida sem grandes problemas: se nos detivermos à sua fundamentação empírica da moral, exposta em Sobre o Fundamento da Moral. Caso a estendamos à metafísica dos costumes do filósofo, como fez Philonenko, essa expressão já será inadequada pelo fato da última não ter por objeto nenhum fenômeno, mas o que se “esconde por trás deles (...) a coisa em si mesma”. Esse esclarecimento também nos ajudará a evidenciar que Schopenhauer inovou cientificamente, na moral, ao reconduzir as ações humanas a três motivos fundamentais: o bem-estar próprio, alheio e o mal-estar alheio (predicados, respectivamente, por egoísmo, bondade e malevolência); e ao explicar a possibilidade da segunda motivação como oriunda do sentimento da compaixão (divisível em um grau negativo, o da justiça, e um positivo, a caridade).

Palavras-chave: Moral; Compaixão; Justiça; Caridade; Ciência; Bondade

 

Abstract: We propose to analyse and interpret in what sense Philonenkos description that Schopenhauer developed a “phenomenology of ethical life” can be read without complications: if we stick it to his empirical foundation of morals, exposed in On the Foundation of Morals. If we extend it to the philosopher's metaphysics of customs, as Philonenko did, this expression will be inadequate, because the latter does not have the phenomena as its object, but what “hides behind them (...) the thing in itself”. This clarification will also help us to show in what sense Schopenhauer scientifically innovated in morals, by redirecting human actions to three fundamental reasons: the well-being of others, of ourselves and the discomfort of others (predicated, respectively, by selfishness, goodness and malevolence); and by explaining the possibility of the second motivation as coming from the feeling of compassion (which is divisible in a negative degree, that of justice, and a positive one, charity).

Keywords: Morals, Compassion, Justice, Charity, Science, Goodness

 

De maneira geral, que é a ética?

É a ciência das ações dos homens, a ciência do bem e do mal

(Thomas Mann)

 

Introdução

 

Paul Deussen afirmou que Schopenhauer foi o “‘philosophus christianissimus(...) o mais cristão de todos os filósofos’[1]. E de fato, Schopenhauer não apenas comungou de ao menos quatro perspectivas fundamentais com o cristianismo[2], como argumentou Deussen, mas também definiu o homem como o animal metaphysicum” (W II, 208), o único que em toda a natureza sofre de fortes e prementes necessidades metafísicas, que andam de par com suas necessidades físicas. Aquelas carências provêm de seu conhecimento abstrato e único na natureza da morte, do sofrimento e da vanidade de seus esforços, e se manifestam no fato de o homem erguer suntuosas religiões por todos os tempos e regiões, elaborar minuciosas filosofias e dispender a ambas tempo e energia que chegam mesmo a eclipsar seu cuidado básico com as necessidades físicas. Diante desse vínculo de Schopenhauer com a tradição metafísica (sobretudo platônica, budista e cristã), a afirmação de Alexis Philonenko de que Schopenhauer expôs uma “fenomenologia da vida ética[3], uma ética que se “reduz a uma simples descrição psicológica dos conteúdos éticos”[4] da vida humana parece equivocada. Contudo, nos propomos a demonstrar, aqui, que essa expressão é muito acertada, e que pode ser lida sem grandes complicações, caso restrita à ética científica e empírica desenvolvida por Schopenhauer em Sobre o Fundamento da Moral (1840). Também buscaremos evidenciar que a extensão proposta por Philonenko dessa expressão aos trabalhos desse autor sobre metafísica dos costumes já atrai uma série de problemas.

Em vista desses objetivos, analisaremos, em primeiro lugar, a exposição de Schopenhauer de Sobre o Fundamento da Moral. Nesse momento, veremos que a expressão “fenomenologia da vida ética” adquire bastante sentido pelo fato do pensador opor sua fundamentação da moral à fundação kantiana da mesma, a qual se baseia em uma lei que, assumidamente, não é efetiva na realidade. Caso a fenomenologia tenha por máxima a expressão: “Às coisas mesmas[5] – como define Martin Heidegger; e caso se oponha, sobretudo, às “construções no ar, (...) questões aparentes, que se estendem com frequência através das gerações como ‘problemas’”[6] – defenderemos que a resistência de Schopenhauer em fundamentar a moral em “castelos de cartas apriorísticos”(E II, §6, 52), e sua preferência pela fundação da mesma em “fenômenos que estão diante de nós para serem explicados” (E II, §15, 131) não pode ser melhor descrita do que com a expressão “fenomenologia da vida ética”. Ao abordar essa ciência, veremos que Schopenhauer revolucionou ao apresentar uma tipologia que reconduz a motivação humana, do ponto de vista de seu valor, a três modalidades: a que tem o bem-estar do outro como fim último do agir, única à qual se atribui valor moral, e que é predicada como bondosa; a que tem o bem-estar próprio como fim, à qual se nega valor moral e que se denomina egoísmo; e a que tem o mal-estar alheio como fim, é repreendida ainda com severidade do que a anterior e é nomeada de malevolência. Logo desse teorema morfológico, o pensador se aplicou a explicar, etiologicamente, a possibilidade da ação bondosa, e o resultado ao qual chegou foi o de que a causa, o motivo ou o fundamento da mesma só pode ser o sentimento de compaixão, isto é, a propriedade humana de sentir a dor alheia como própria, e que é o único motivo fático capaz de nos impelir à ação em vista do bem-estar alheio. Sua fórmula é: Neminem laede, immo omnes, quantum potes, iuva!” (Não prejudiques a ninguém. Ajuda a todos quanto puderes!) (E II, §16, 140), e sua exposição se compara ao encontro da “pedra fundamental da ética” (E II, §18, 164).

Uma vez que Schopenhauer procurou, na sequência dessa dissertação, complementar a fundação científica anterior com um esclarecimento metafísico, buscaremos sintetizá-lo, e sobretudo, explicitar a sua diferenciação entre a ciência da moral e a metafísica dos costumes. Veremos, nesse momento, que toda ciência tem por objeto, conforme seu entendimento, as aparências fenomênicas (no caso, os fenômenos morais), e por fio conector o princípio de razão suficiente (em sua sub-modalidade da lei de motivação). A metafísica dos costumes, pelo seu turno, como toda metafísica, procura ir além da aparência fenomênica e se tornar cônscia do “que se esconde por trás do fenômeno (...) a coisa em si mesma” (P II, §21, 27). Essa distinção schopenhaueriana entre a ética científica e a metafísica dos costumes desautoriza a extensão de Philonenko da expressão “fenomenologia da vida ética[7] à metafísica dos costumes desse autor. Assim, argumentaremos que é mais coerente restringir sua aplicação à ciência da moral de Schopenhauer, o que também ajuda a isolar a inovação científica desse autor no campo da moral, uma vez que Schopenhauer provavelmente foi o primeiro filósofo alemão a propor uma abordagem estritamente científica para os fenômenos morais, que exerceu uma influência decisiva, embora nem sempre reconhecida sobre genealogistas como Paul Rée e Friedrich Nietzsche. Já que na “fenomenologia da vida ética” se encontra a raiz da fortuna desse autor, sobretudo, no trabalho sobre a moral de seus chamados os “discípulos hereges[8], vale a pena nos empenharmos em sua justa compreensão.

 

A Ética científica e a eudemonologia teológica

 

O conceito de “ética”, como o de “estética”, estão entre os utilizados no sentido mais distinto do proposto originalmente por Schopenhauer por seus comentadores. “Estética” foi definida com bastante clareza pelo filósofo da Vontade em suas preleções sobre a metafísica do belo, lidas em 1820 na Universidade de Berlim: diferentemente de seu emprego mais usual, a saber, como sinônimo de metafísica do belo[9], Schopenhauer a definiu como uma parte da teoria do belo não dedicada propriamente ao conhecimento ou ao aclaramento da beleza, mas à sua produção por meio de regras. Com as seguintes palavras essa definição foi apresentada pelo pensador:

A estética relaciona-se com a metafísica do belo como a física se relaciona com a metafísica da natureza. A estética ensina o caminho pelo qual o efeito do belo é atingido, dá regras às artes, segundo as quais elas devem criar o belo. A metafísica do belo, entretanto, investiga a essência íntima da beleza (SCHOPENHAUER, Metafísica do belo, I, 24).

Com o verbete “ética” ocorre algo análogo: os comentadores a utilizam, amiúde, como sinônimo de metafísica da ética ou dos costumes[10]. Contudo, se levarmos em consideração o todo da obra de Schopenhauer, e sobretudo, os momentos em que ele se propôs a defini-la, notamos que esse conceito é apresentado como a ciência empírica e universal da motivação humana, analisada desde o ponto de vista de seu valor. No último capítulo desse artigo nos concentraremos nessa definição. Uma outra questão indissociável da última é a da bibliografia em que o filósofo abordou a ética. Contudo, tampouco aqui há consenso entre os comentadores e coerência plena com os textos do filósofo. No Capítulo 47. A propósito da ética, do segundo tomo de O Mundo como Vontade e representação (doravante abreviado por O Mundo), Schopenhauer foi bastante claro a respeito da bibliografia de sua “ética em sentido estrito”. Com as seguintes palavras ele abriu esse capítulo, de modo muito didático sobre seus textos:

Aqui se encontra a grande lacuna destes suplementos, que se originou do fato de eu já ter tratado da moral no sentido estrito do termo em meus dois ensaios que concorreram a prêmio publicados sob o título: Os dois problemas fundamentais da ética, cujo conhecimento deles, como já disse, pressuponho, a fim de evitar repetições inúteis. Resta-me aqui, pois, apenas um pequeno acréscimo de considerações isoladas que eu não pude fazer naqueles escritos (...) Trabalho [esse atual] que (...) recebeu a sua sequência nos capítulos oitavo e nono do segundo tomo de Parerga (W II, Cap. 47, 703)[11].

Como se nota, Schopenhauer destacou a leitura de Os dois problemas fundamentais da ética como introdutória aos interessados em adentrarem sua doutrina moral, e advertiu que os capítulos 47 do segundo tomo de O Mundo, e os capítulos oitavo e nono do segundo tomo de Parerga devem ser lidos por último. Em uma nota de rodapé, afirmou ainda que esse capítulo 47 “conecta-se com §55, 62 e 67 do primeiro tomo” (Idem) de O Mundo. Quando consultamos esses três capítulos, porém, encontramos uma nota de rodapé no final do §67 (inserido nele a partir de sua segunda edição, de 1844), em que Schopenhauer escreveu o seguinte: “Desnecessário lembrar que toda a ética exposta em esboço nestes §61-67 recebeu seu tratamento mais detalhado e completo no meu escrito sobre o fundamento da moral” (W I, §67, 480). Esses §61-67 de O Mundo pertencem ao Livro IV (§53-71), que delimita o essencial de sua metafísica dos costumes. Sendo assim, infere-se dessa última nota não apenas que a ética schopenhaueriana – ou a “moral no sentido estrito do termo” (W II, Cap. 17, 703), como ele prefere escrever no capítulo 47 do tomo II – não é sinônimo de metafísica dos costumes (pois afinal, como identificar um recorte de sete aforismos com um livro que se estende dos §53-71?), mas também que Sobre o fundamento da moral é o seu texto mais importante (pois nele é que a ética recebeu seu “tratamento mais detalhado e completo” [W I, §67, 480]). Não entraremos na questão da relação da ética com o segundo texto compilado por Schopenhauer junto a Sobre o fundamento da moral, em Os dois problemas fundamentais da ética – os quais foram anunciados no capítulos 47 como as principais portas de entrada à “moral no sentido estrito do termo (W II, Cap. 47, 703): Sobre a liberdade da vontade. Seguiremos a priorização de Sobre o fundamento da moral apresentada pelo autor na nota de rodapé do §67 de O Mundo, entre os textos passíveis de comporem sua fenomenologia da vida ética.

Sobre o fundamento da moral consiste em uma dissertação elaborada em ocasião de um prêmio oferecido pela Sociedade Real Dinamarquesa, e a partir de uma indagação sobre a “fonte e o fundamento da filosofia moral” (E II, §1, 4). Em sua Introdução, Schopenhauer afirmou procurar expor, nele, de modo teórico e objetivo, o “último fundamento de toda ação moralmente boa” (E II, §1, 5). Como se trata de uma “monografia curta” e escrita para uma premiação (que na realidade não ocorreu, provavelmente pela influência da filosofia kantiana sobre a sociedade), ela deveria ser a mais autossuficiente possível, e portanto, ser desvinculada de qualquer sistema filosófico ou metafísico. Na primeira apreciação dessa limitação, Schopenhauer lamentou o fato de ela “não só dificultar a sua realização, mas até torná-la incompleta”. Afinal:

Na filosofia, qualquer que seja seu fundamento ético, ele deve ter, por sua vez, seu ponto de apoio e sua base em alguma metafísica, quer dizer, na explicação do mundo e da existência em geral. Pois a última e verdadeira elucidação sobre a essência interna do todo das coisas tem de estar necessária e estreitamente ligada com aquela que expressa o significado ético do comportamento humano, em todo caso, com aquilo que é estabelecido como fundamento da moral (E II, §1, 7).

No Prólogo de Os dois problemas fundamentais da ética, porém (cabe notar que Sobre a liberdade da vontade, reunida nele junto a Sobre o fundamento da moral, também possuía as mesmas limitações), Schopenhauer já teve uma postura mais favorável sobre as limitações aludidas, e argumentou que o desenvolvimento de sua moral muito ganharia, com elas, “em amplitude, força de convencimento e desenvolvimento de seu significado” (E I, §19, 168). Após sinalizar, na Introdução de Sobre o fundamento da moral, ao fato de que, conforme seu entendimento, toda exposição científica isolada da metafísica é, de certo modo, incompleta, o filósofo buscou esclarecer o tipo de abordagem que seria forçado a desenvolver nesse texto. Nesse momento, afirmou que sua investigação seria analítica, psicológica e empírica; o que foi feito com as seguintes palavras:

Com a separação, posta nessa tarefa como necessária, entre a ética e a metafísica, nada mais resta senão o procedimento analítico, que parte dos fatos, quer da experiência externa, quer da consciência. Estes últimos podem, com efeito, reconduzir à raiz última na mente do ser humano, a qual tem de se afirmar como fato fundamental, como fenômeno originário, sem que este fato seja a seguir reconduzido a qualquer outra coisa. Com isso toda explicação permanece meramente psicológica. Pode-se, no máximo, indicar apenas de modo acessório sua ligação com alguma visão metafísica fundamental e geral (E II, §1, 8).

Assim, Schopenhauer buscou esclarecer que sua explicação ética desenvolvida nesse texto seria desligada de toda metafísica: ela seria analítica, psicológica e empírica, baseada apenas em fenômenos extraídos da experiência externa (histórica, cotidiana, etc.) ou interna (psicológica em sentido estrito). Seu ponto de partida não seriam dogmas ou conceitos, mas apenas fatos, isto é, fenômenos observáveis. E inclusive seu ponto de chegada (a “raiz última”, à qual o exame deveria reconduzir os fenômenos morais) também deveria se “afirmar como fato fundamental, como fenômeno originário” (Idem). Ora, uma investigação ética que tem como ponto de partida e de chegada, apenas, fatos ou fenômenos, não seria perfeitamente definível como uma “fenomenológica da vida ética[12]? – Como o faz Philonenko. A resposta nos parece ser afirmativa. Investiguemos ainda mais de perto essa questão: é verdade que dentro do domínio da filosofia, como o autor afirmou na penúltima citação, o fundamento ético deveria se apoiar, em última instância, na metafísica. Contudo, fora do mesmo, isto é, dentro do domínio mais propriamente científico, a ética poderia ser exposta, de modo “detalhado e completo” (MVR, §67, 480), sem esse complemento.

Dados esses moldes à sua exposição, Schopenhauer a iniciou com um capítulo denominado por II. Crítica do fundamento dado à moral por Kant, em que desenvolveu uma oposição polêmica contra a ética de Kant, com a justificativa de que “os contrários se esclarecem” (E II, §2, 15). Antes de iniciá-lo, porém, reconheceu ainda que a fundamentação kantiana da moral “tinha reais vantagens diante das anteriores” (Idem), por dois motivos principais: o primeiro é que Kant buscou apresentar uma ética que não fosse eudomonológica, isto é, que fosse independente da doutrina da felicidade; e o segundo é que ele também reconheceu, acertadamente, que “o modo de agir humano tem um significado que ultrapassa toda possibilidade da experiência e, por isso mesmo, a ponte própria para levar a ele é o que chama de mundo inteligível, ‘mundum nournenon, o mundo das coisas em si” (E II, §3, 20). Apresentado esse breve reconhecimento do que já havia sido argumentado há pouco, a saber, que o esclarecimento último da ética, e mais ainda do que o das demais ciências, urge pela luz-limite da metafísica, Schopenhauer passou a se ocupar da crítica da fundamentação kantiana da moral. A primeira objeção levantada por ele contra o filósofo do século XVIII concerniu a própria definição do campo da moral: Kant defendeu que esse domínio tem por objeto as leis segundo as quais as ações humanas devem acontecer, mesmo que nunca aconteçam, na prática efetiva. Schopenhauer, pelo seu turno, está completamente comprometido com a elaboração de uma ética empírica e científica, enraizada na realidade fenomênica. A seus olhos, portanto, a busca kantiana pelo estabelecimento de uma lei moral pouco efetiva, isto é, independente de qualquer convenção humana, força natural e evidências fenomênicas, só poderia ser uma “petitio principii” (petição de princípio). Há, de fato, conforme o autor, uma lei a priori, necessária e universal, sob a qual a vontade humana se subordina incontornavelmente: essa lei, porém, não é a lei moral kantiana, mas seu avesso. É a lei de motivação, que consiste em uma modalidade da lei de causalidade. Essa última estabelece a priori que todo fenômeno deve possuir uma causa real e efetiva, que deve ser de uma dessas três espécies: causa em sentido estrito (Ursache), a qual movimente o mundo fisicamente e quimicamente; estímulo (Reiz), inteiramente responsável pelos fenômenos vegetais ou vegetativos; e motivo (Motiv), que consiste em uma representação intelectual e que dá propriamente o caráter da animalidade a qualquer evento natural (no último capítulo trataremos dessa tripartição mais detidamente). A necessidade e a universalidade da subordinação de toda ação humana (e animal) à lei de motivação está absolutamente fora de questão: qualquer que seja o ato humano (ou animal), enquanto humano ou animal, esse deve ter um motivo. A lei da motivação, portanto, tem uma validade a priori, isto é, compõe a forma a priori dos fenômenos humanos (e animais), sem a qual esses não podem ser dados em hipótese alguma, e nem sequer pensados. Ela é “a única lei demonstrável da vontade humana, à qual essa, como tal, está submetida” (E II, §4, 24) – concluiu Schopenhauer. A lei moral kantiana, porém, se encontra em suas antípodas, como o próprio Kant reconhece abertamente, por exemplo, quando declarou que talvez ela nunca tenha sido efetiva em um único caso real sequer. Diante da discrepância da necessidade dessa última lei, que é completamente divorciada da realidade efetiva, e da primeira, a qual constitui a forma a priori, universal e irrevogável de toda ação humana real, Schopenhauer concluiu que a aplicação da lei moral kantiana é absolutamente incoerente no plano do conhecimento, e só pode ser compreendida (cientificamente) caso tenha sua origem explicada pela influência da Bíblia. Se, por um lado, o fundamento último da lei moral kantiana não pode ser nem a revelação divina, nem a fé subjetiva e incapaz de convencer universalmente, por suas próprias premissas, por outro, o olhar científico tampouco pode aceitar uma ética que não se funda em nada intimamente conectado com o mundo real, e assim não pode deixar de suspeitar que essa ética consiste em uma nova roupagem da eudemonologia teológica. Assim, dado que Kant manteve como o objeto principal de sua ética uma lei que não possui apoio algum na experiência fenomênica, e que ademais possui a mesma forma prescritiva da moral das religiões monoteístas, é bem mais convidativo à ciência crer que ambas as éticas são uma só e a mesma coisa. Com as seguintes palavras, Schopenhauer apresentou essa breve genealogia da moral kantiana:

Como se pode falar de necessidade absoluta para estas supostas leis morais – como exemplo, ele cita o ‘tu não deves (‘sollt’) mentir’ – já que elas, reconhecidamente e como ele mesmo garante, na maioria das vezes e mesmo via de regra, não têm êxito? Para que se possa admitir numa ética científica leis para a vontade, tem-se de demonstrá-las e derivá-las segundo toda a existência delas, isto se se pensa também em exercer na ética a probidade e não apenas em recomendá-la. Até que se proceda àquela prova, não reconheço nenhuma outra origem para a introdução na ética dos conceitos de lei, prescrição, dever, a não ser o Decálogo Mosaico (Idem).

Como se nota, Schopenhauer deu bastante importância, em seu escrito, à diferença entre uma forma científica da ética, a saber, por excelência, descritiva, fundamentada na realidade empírica, e portanto, capaz de convencimento universal; e outra forma teológica, por excelência prescritiva, infundada empiricamente, e portanto, capaz apenas de recomendação, a quem compartilha da mesma fé subjetiva da qual depende sua aceitação, igualmente subjetiva. A primeira – polemiza o autor – é completamente honesta e se baseia no convencimento propiciado pela verdade; a outra já é no mínimo digna de desconfiança. Que essa perseguição de Schopenhauer por uma separação clara entre uma ética científica e outra ética eudemonológico-teológica esteja no seio de sua compreensão é perceptível já na epígrafe de seu trabalho: “Pregar a moral é fácil, fundamentar é difícil” (E II, 2). Para superar a mera pregação, recomendação ou prescrição da moral, portanto, o filósofo afirmou que é mister encetar a ética no caminho das ciências empíricas, e isso só seria possível por meio de uma análise rigorosa dos fenômenos humanos propriamente ditos. Com essa missão em vista, o autor se sentiu obrigado a rejeitar como inválido não apenas o conceito de lei moral, mas também o conceito a ele associado de dever, introduzido por Kant em sua ética “sem prova posterior que o sustentasse” (E II, §4, 25). Ambos os conceitos – afirmou – só poderiam ter suas “origens na moral teológica”, e ser “um estranho na filosofia até o momento em que se apresente um reconhecimento válido a partir da essência da natureza ou do mundo objetivo” (Idem). Na realidade fenomênica, todo dever só poderia ter significado ou sentido quando “referido à ameaça de castigo ou à promessa de recompensa (...) É simplesmente impossível pensar em uma voz que comanda, venha ela de dentro ou de fora, a não ser ameaçando ou prometendo” (E II, §4, 26). Na linguagem de Kant, isso equivaleria a dizer que, no mundo efetivo, não existiriam imperativos categóricos, mas apenas hipotéticos: ante esse vínculo derradeiro de Kant com a ideia religiosa de um Deus poderoso, único que poderia garantir a recompensa ou aplicar o castigo, respectivamente, à obediência ou à desobediência do homem diante de sua lei revelada, não era de se surpreender que a ética kantiana culminasse no mesmo conceito do qual buscou se desvencilhar em sua apresentação: o de uma síntese entre a virtude e a felicidade, comunicada sob a estranha ideia de Soberano bem. Esse movimento de dar por resultado o que era, na realidade, seu princípio oculto foi denominado por Schopenhauer de circular, e comparado ao truque de um mágico que “retira da cartola o coelho” (E II, §4, p. 30) que desde o início escondera nela. Em outras palavras, Kant teria destacado a ética do eudemonismo teológico apenas aparentemente. Como, porém, não se libertou da forma prescritiva da última, era inevitável que sua ética exibisse, ao menos em seu termo, o que ocultara desde o início: o vínculo com a religião, e seu pressuposto irremovível da fé subjetiva na revelação.

 

A elaboração de uma Ética fenomenológica e empírica

 

A partir do Capítulo 3 de Sobre o fundamento da moral, Schopenhauer expôs mais diretamente sua fundamentação da “ação correta e boa” (E II, §12, 107). Acreditamos que essa exposição pode ser chamada de “fenomenologia” caso seja entendido sob essa palavra a metodologia científica que parte dos fenômenos eles mesmos, e não de meras “construções no ar, (...) conceitos só aparentemente rigorosos, (...) questões aparentes, que se estendem com frequência através das gerações como ‘problemas’[13] – como a define, por exemplo, Martin Heidegger. No próximo capítulo buscaremos aprofundar esse vínculo. O que cabe mais assinalar, aqui, é que Schopenhauer opôs à ética prescritiva kantiana uma verdadeira conversão dessa disciplina a algo não tão distante do que Heidegger definiu como uma “ciência dos fenômenos[14]: seu ponto de partida não são mais “castelos de cartas apriorísticos, de cujos resultados nenhum homem faria caso em meio ao ímpeto da vida”(E II, §6, 52) – polemiza o autor – mas ações “faticamente dadas às quais se atribui valor moral como sendo fenômenos que estão diante de nós para serem explicados e, de acordo com isso, para investigarmos o que é que pode mover os homens a ações deste tipo” (E II, §15, 131). Com o fim de deixar bem clara a emancipação de sua ética da eudomonologia teológica, Schopenhauer abriu o terceiro capítulo com um aforismo (§12) intitulado por “exigências”, em que destacou, entre as condições de sua ciência da moral, a necessidade de que o fundamento apresentado às ações morais não fosse constituído de “combinações artificiais de conceitos” (E II, §12, 108). Nas antípodas disso, o fundamento (causa ou motivo) da moral deveria ser “algo que, sendo independente da cultura do intelecto, fale a todo homem, mesmo ao mais tosco, repousando meramente na apreensão intuitiva e impondo-se imediatamente a partir da realidade das coisas” (Idem). Salvo que o cientista da moral queira ser zombado pela “vida real”, ele deve ouvir o “conselho paradoxal de primeiro olhar um pouco para a vida humana” (Idem).

O aforismo seguinte se chama Visão cética. Nele, Schopenhauer testou em suas últimas consequências o ponto de vista cético segundo o qual “não há por natureza nem bem nem mal, mas é a mente dos homens que os diferenciou” (E II, §13, 109). Essa sentença, porém, que segundo o autor, provém do pirronismo, fundado por Enesidemo de Cnossos, parece retornar à ideia da relatividade dos conceitos de bom e mau, defendida pelo próprio Schopenhauer no §65 de O Mundo[15]. Provavelmente por essa razão, o filósofo preferiu remodelar, na sequência, a visão cética que levaria até o extremo, e apresentou-a pela perspectiva de Holbach e Helvetius, conforme a qual toda e qualquer ação humana pode ser reconduzida, por um caminho mais curto ou mais longo, a uma motivação egoísta. Assim, o que Schopenhauer buscou testar, propriamente dizendo, nesse aforismo não foi exatamente a relatividade de “bom” e “mau”, com a qual ele concorda, mas o prisma segundo o qual o “bom” e o “mau” (ou seja, o ético ou moral, e o antiético ou o antimoral) são uma só e a mesma coisa, pois derivam de uma mesma fonte: o egoísmo onipresente. Segundo essa visão, haveria duas formas de egoísmo: a mais civilizada, que dá a aparência de ter o bem-estar do outro ou da comunidade por fim, quando na realidade só se visaria sempre o próprio bem-estar; e a mais primitiva, que perseguiria o bem-estar próprio pelo caminho mais reto possível. Ambas as formas seriam predicadas, respectivamente, por “bom” e “mau”, muito embora, em última instância, tivessem um só e mesmo fim motivacional. Graças à domesticação do homem pelo Estado, pela religião e por essas convenções morais, o homem teria passado a perseguir o bem-estar próprio usando também o bem-estar do outro como meio – isto é, pelo caminho civilizado, e não apenas pelo primitivo, que o leva a se opor ao outro mais cruamente. Contudo, nunca o bem-estar alheio teria sido e nem poderia ser o fim último da conduta humana.

Conforme o autor, essa visão cética é bastante persuasiva, mas um “olhar mais atento” se depara com uma série de fenômenos que parecem contradizer seu credo. Antes de mencioná-los, porém, Schopenhauer buscou extrair o máximo de proveito dessa etapa cética e provisória de sua fenomenologia[16]. Esse proveito consistiu, basicamente, no grande desmascaramento obtido por ele da abundância da aparência moral, em última luz hipócrita, sob a qual se escondem motivos que jamais seriam aceitos pelos demais e pelos próprios praticantes caso fossem revelados. Nesse sentido, o autor observou que: “Encontrar-nos-íamos num grande e muito juvenil erro se acreditássemos que todas as ações justas e legais do ser humano fossem de origem moral” (E II, §13, 109). Afinal, a integridade, a honestidade e a legalidade da conduta, ostentada a todo custo pelos homens em seus tratos gerais, e:

Afirmada em máximas firmes como rochas repousam principalmente sobre dois tipos de necessidade externa: em primeiro lugar, sobre a ordem legal, por meio da qual o poder público protege o direito de cada um, e em segundo lugar, sobre a conhecida necessidade do bom nome e da honestidade civil para a subsistência no mundo, por meio da qual os passos de cada um ficam sob a fiscalização da opinião pública, que, inexoravelmente severa, não perdoa nunca nenhum passo em falso (E II, §13, 110).

Também no concernente às “ações caritativas, não resta dúvida”, segundo Schopenhauer, de que o ceticismo moral é extremamente verossimilhante. Afinal, elas quase sempre “provêm da ostentação e muitas vezes da crença numa retribuição futura elevada ao quadrado ou mesmo ao cubo, deixando ainda de lado outros motivos egoístas” (E II, §13, 114), que também tomam parte na falsa caridade. Após aplicar, de modo vitorioso, essa análise cética aos fatos externos, Schopenhauer também não obteve menor triunfo em sua extensão da mesma aos fenômenos internos, vinculados à chamada consciência moral: inúmeros moralistas frustram, conforme sua leitura, o exame teórico desses fenômenos ao apelarem, enérgica e ilicitamente, à consciência do leitor, como se o reconhecimento teórico da pureza moral fosse indissociável da ética pessoal do próprio moralista cobrada pela sociedade. Esse comportamento profuso entre os moralistas é um reflexo de algo muito inerente à psicologia humana, a saber, o fato de que a aclamada consciência moral da maioria das pessoas se origina de fontes tão desconhecidas e inadmissíveis para elas próprias, que em seu lugar real há, antes de mais nada, uma consciência espúria, a ser desmascarada pela seguinte inquisição:

Muitos ficariam admirados se vissem do que se compõe sua consciência moral, que lhes aparece tão imponente: aproximadamente um quinto de temor aos homens, um quinto de temor aos deuses, um quinto de preconceito, um quinto de vaidade e um quinto de costume (E II, §13, 116).

A despeito da ampla força de convencimento dessas críticas céticas contra a maioria dos fenômenos que, segundo o autor, são louvados como morais apenas porque não se tem clareza de sua verdadeira origem e natureza, Schopenhauer também acreditou encontrar – como Descartes – uma pedra de apoio arquimediana, sobre a qual erigir seu edifício científico. Seu “cogito, ergo sum[17] será, como veremos, sua Triebfedernlehre (doutrina dos móbeis ou molas impulsoras), que comentaremos a seguir. O caminho para tanto, porém – comparável ao “eu sou, eu existo[18], de Descartes, isto é, o primeiro pensamento que pareceu ao moderno absolutamente indubitável e vitorioso diante da dúvida cética – começou a ser construído antes, e já no §13, com a percepção de que embora a radicalização do olhar cético lograsse desmascarar a maioria das ações às quais se vincula o valor moral (e sob as quais se escondem as intenções mais repreensíveis), há uma minoria de atitudes que se apresentam como incapazes de serem questionadas facilmente, e mesmo pelo ceticismo mais extremo, desde que também arrazoado. Esse minoria de ações foi exemplificada, pelo autor, em primeiro lugar, com a indicação dos:

Casos isolados mas indubitáveis em que, não havendo nem o perigo da perseguição legal nem também da descoberta e de qualquer suspeita, foi, não obstante, dado pelo pobre ao rico o que lhe pertencia. Por exemplo, no caso de algo perdido e achado; no caso em que um depósito feito por um terceiro já morto é devolvido ao proprietário; em que um depósito clandestino, feito por um desertor a um pobre, foi fielmente guardado e devolvido. Sem dúvida, existem tais casos (...) como há também realmente trevos de quatro folhas (E II, §13, 114).

Logo de encontrar esse conjunto de fatos que pode ser considerado como a primeira resistência da pureza moral contra a vitória plena do ceticismo moral, Schopenhauer a viu se fortalecer diante da recepção dos eventos da história europeia. Nos relatos sobre a guerra de resistência da minoria suíça contra a invasão austríaca, no século XVI – exemplificou o autor – conta-se que o mártir Arnold von Winckelried lançou seu próprio corpo, e voluntariamente, sobre os piques dos invasores, apenas para que ele, perfurado e morto, pudesse abrir uma fenda no exército invasor, pela qual os resistentes pudessem penetrar. Teve esse suicida algum “interesse próprio? Não posso pensá-lo, pense-o quem puder” (E II, §15, 130) – escreve[19]. Finalmente, Schopenhauer também acreditou topar com um certo limite da vitória plena do ceticismo moral no exame interno da consciência: após se privar da exortação do leitor a não renunciar à aparência da própria pureza moral, por meio da afirmação, sem hesitação, da existência da moralidade, o filósofo complementou que, hipocrisias à parte, tampouco é fácil negar completamente a existência de sentimentos morais, tais como arrependimentos, remorsos, preocupações com o outro, e etc., oriundos de nossa própria consciência, que não parecem ter o bem-estar do outro por meio, mas como fins neles mesmos. Com base nessa fenomenologia baseada em fatos históricos, cotidianos e psicológicos, e que se valeu do ceticismo hiperbólico metódica e provisoriamente, Schopenhauer concluiu que é bastante contundente registrar a raridade, porém, igualmente, a existência de ações às quais se atribui valor moral mesmo após serem inqueridas pelo olhar mais minucioso e cético possível. Essas ações – conclui sua observação – são aquelas praticadas por “caridade desinteressada e justiça espontânea” (E II, §13, 114); como ele afirma com as seguintes palavras:

O conjunto destes escrúpulos céticos não é por certo suficiente para negar a existência de toda a moralidade genuína, mas o é para moderar nossa expectativa sobre a disposição moral do ser humano e, assim, sobre o fundamento natural da ética, pois muito daquilo que lhe é atribuído resulta de outros motivos, e a observação sobre a corrupção moral do mundo prova, à suficiência, que a motivação para o bem não pode ser tão poderosa (E II, §13, 117).

Nos §14 – Motivações antimorais e no §15 – Critérios das ações dotadas de valor moral, Schopenhauer se ocupou da descrição e definição das potências basilares da motivação humana, separadas no exame anterior: em primeiro lugar, “a motivação principal e fundamental, tanto no homem como no animal, é o egoísmo, quer dizer, o ímpeto para a existência e o bem-estar” (E II, §14, 120). Considerado como o verdadeiro “senhor do mundo”, ele asseverou que o egoísmo se liga “o mais estreitamente possível (...) com o âmago e o ser mais íntimo” (E II, §14, 121) do homem e do animal; e é, por isso, neles, ilimitado. Sua predominância beira a onipresença e se baseia no fato de que “cada um é dado a si mesmo imediatamente”, enquanto que “os outros lhe são dados apenas mediatamente, por meio da representação deles na sua cabeça. E a imediatez afirma seu direito” (E II, §14, 122). O egoísmo é tão torpe que precisa ser escondido a todo momento, o que é realizado por meio da cordialidade e dos bons modos, que agem como se fossem cortinas indispensáveis à cobertura de uma monstruosidade desagradável. Suas consequências são tão prejudiciais ao bem-estar comum, que devem ser prevenidas e remediadas incessantemente pela sociedade, a qual se vale, nessa guerra, da punição do Estado, da opinião pública, dos dogmas religiosos, e por fim, também da motivação autêntica da moral. Esse último adversário dos prejuízos do egoísmo, é verdade, consiste no mais fraco dos quatro apontados, mas não por isso ele deve ser subordinado aos outros três, como o fazem a maioria dos moralistas.

A segunda potência antimoral à qual a moralidade deve se opor, conforme Schopenhauer, é a “malevolência ou o ódio” (E II, §14, 124). À diferença da primeira, ela não nos leva a prejudicar os outros em nome do benefício próprio: para ela, “o sofrimento e a dor de outrem são fins em si mesmos; alcançá-los é o que dá prazer” (E II, §14, 126). Embora possua uma natureza mais “diabólica” do que o egoísmo, que é mais “humano”, os níveis mais baixos da maldade também são cotidianos, e aparecem, por exemplo, como indiferença, aversão e difamação. Em seus níveis intermediários, a malícia vem a lume de modo ainda mais repreensível nos ataques de cólera, na inveja, e no prazer malicioso com a desgraça alheia. Por fim, seu cume mais abjeto é a maldade ou a crueldade propriamente ditas. Essas últimas estão para o prazer malicioso, a curiosidade indiscreta e a inveja como a prática está para a teoria: consistem em atitudes concretas, ao passo que as últimas são apenas sentimentos ou pensamentos. Alegrar-se com a dor e o fracasso alheio é inveja – distingue o pensador. Ser sua causa efetiva já é crueldade.

Após distinguir e descrever as duas potências antimorais anteriores, Schopenhauer analisou, no §15, e nos mesmos moldes empíricos, a potência moral genuína que pôde resistir à inquisição cética. Nesse momento, ele admitiu que não podia decidir essa questão do fundamento da moral “de modo puramente empírico, porque, na experiência, sempre é dada apenas a ação, mas os impulsos não são evidentes” (E II, §15, 129). Isso, porém, não quer dizer, de modo algum, segundo o autor, que seu exame buscaria se refugiar em princípios a priori e não efetivos, mas apenas que, no fim das contas, não poderia apresentar uma demonstração empírica que lograsse refutar o ceticismo de modo perfeito e inconteste, porquanto, para qualquer ação aparentemente moral, sempre restaria a dúvida de se ela teve ou não uma motivação egoísta. Essa admissão nos faz crer que não são os casos isolados que levaram Schopenhauer a recusar o ceticismo moral, mas sua recepção dos fenômenos morais como um todo. A conclusão schopenhaueriana, em todo caso, foi bastante cautelosa: antes de bramir nos ouvidos do auditor fórmulas de solução ética, optou por reconhecer os limites de seu próprio discurso científico. Deve ser lembrado, aqui, que o autor jamais acreditou que a falta de concretude e de exatidão plena nos argumentos e conclusões de uma ciência comprometam seu rigor científico. Afinal, “o fim da ciência não é a certeza máxima” – como escreveu em O Mundo – “pois esta pode ser igualmente encontrada até mesmo no conhecimento singular mais desconexo, mas a facilitação do saber mediante a sua forma e, assim, a possibilidade aberta para a sua completude” (W I, §14, 115). A perfeição formal científica, conforme sua leitura, “reside no maior número possível de princípios subordinados e no menor possível de princípios coordenados” (Idem). Sendo assim, se o campo da ética tem, por um lado, o relevo de ser o mais sério de todos, pois “concerne às ações do homem, objeto que afeta de maneira imediata cada um de nós e a ninguém pode ser algo alheio ou indiferente” (W I, §53, 353); por outro, ela acumula o contrapeso de que suas premissas e conclusões não se fundam em provas tão exatas como no caso das ciências mais básicas. Ela perde em exatidão o que ganha em seriedade, portanto, e se a primeira fosse de todo decisiva à cientificidade de um discurso, certamente, a experiência particular seria o centro ou o cume do conhecimento – o que não é o caso. O mais importante em uma ciência, conforme Schopenhauer, é, do ponto de vista formal, confeccionar, com base em fundamentos efetivos – no caso, os fenômenos morais – a menor quantidade possível de princípios universais, que permitam ao saber científico se movimentar com facilidade entre a menor quantidade alcançável de conceitos coordenados e o máximo possível de conceitos subordinados. Na próxima seção voltaremos à questão da cientificidade da ética schopenhaueriana. Retornando à linha de exposição desenvolvida por ele nesse domínio, com as seguintes palavras o filósofo concluiu, após o exame empírico anterior, que as ações justas às quais se atribui valor moral, e mesmo diante do exame mais cético possível, não são de todo inexistentes:

Acredito que são muitos poucos os que duvidam (...) a partir da própria experiência, de que, muitas vezes, as pessoas se comportam de modo justo única e exclusivamente a fim de que não ocorra com os demais qualquer injustiça e de que haja pessoas para as quais o princípio de fazer justiça aos outros é como que inato e que, portanto, não se aproximam de alguém interesseiramente, que não buscam incondicionalmente a própria vantagem, mas que também consideram os direitos dos outros e que, por deveres reciprocamente aceitos, vigiam não apenas para que seja dado ao outro o que é dele, mas também para que este receba aquilo que é seu, pois essas pessoas lealmente não querem que aquele que trata com elas fique para trás. Estas são as pessoas verdadeiramente honestas, os poucos ‘aequi’ (justos) no meio dos inumeráveis ‘iniqui’ (injustos) (E II, §15, 130).

O mesmo pode ser dito – acrescentou – sobre os raros, mas existentes casos em que uma caridade é praticada sem que se tenha o bem-estar do outro como meio para fins egoístas ocultos, mas como um fim nele mesmo. Na sequência, Schopenhauer passou ao exame dos critérios de atribuição do valor moral colhidos da fenomenologia da moral anterior. E nele, percebeu que é a ausência de interesse próprio e de malevolência na motivação última de uma ação o que decide, sem deixar rastros a questionamentos ulteriores, sobre sua eticidade. Em outras palavras, é a descoberta de quaisquer interesses próprios na motivação de uma ação o que faz com que as pessoas se privem de louvarem-na moralmente e passem a repreendê-la, e tanto mais, quanto mais essa motivação se aproxima da malevolência. Além dessa condição basilar ao louvor moral, o filósofo afirmou ainda que, não configurando propriamente um critério de ação moral, mas se apresentando mais como uma característica que a acompanha sempre, percebe-se que as ações valorizadas moralmente “deixam ficar um certo contentamento com nós mesmos que é chamado de aplauso ela consciência” (E II, §15, 131). Por fim, constata-se também, como outra “marca externa e acidental” (Idem) de ações morais, que elas “ocasionam o aplauso e o respeito das testemunhas que não participam delas” (Idem), enquanto que as potências antimorais provocam o remordimento de consciência e a repreensão austera dos observadores. Essas conclusões empíricas fundamentam os teoremas axiais da ciência da moral schopenhaueriana, que abordaremos na sequência.

 

A Triebfedernlehre (doutrina dos móbeis impulsores) como teorema morfológico, e a compaixão como solução etiológica do bem

 

No §16. Estabelecimento e prova da única motivação moral genuína, Schopenhauer elevou a conclusão empírica anterior a um nível que acreditou ser mais apropriado ao de teorema de uma ciência universal. Como não pretendia sugerir a moral – afirmou – mas provar, verdadeiramente, que a motivação indicada (ausência de egoísmo e de maldade) é a “única realmente possível” (E II, §16, 132), ele acreditou ser necessário apoiar as conclusões anteriores em nove princípios, dos quais afirmou que os sete primeiros poderiam valer como axiomas. Seriam esses os princípios científicos da moral:

1. Nenhuma ação pode acontecer sem motivo suficiente, assim como uma pedra não pode mover-se sem um choque ou impulso suficiente;

2. Ainda menos uma ação para a qual se apresenta, para o caráter do agente, um motivo suficiente pode não se efetuar se um contramotivo mais forte não tornar necessária sua cessação;

3. O que move principalmente a vontade é o bem-estar ou o mal-estar, tomados no sentido mais amplo da palavra, como também inversamente bem-estar e mal-estar significam ‘de acordo ou contra uma vontade’. Portanto todo motivo tem de se referir ao bem-estar e ao mal-estar;

4. Consequentemente, toda ação refere-se a um ser suscetível de bem-estar ou mal-estar como seu fim último;

5. Este ser é: ou o próprio agente, ou um outro ser que, portanto, participa da ação passivamente, pois ela acontece para seu dano ou para seu proveito e alegria;

6. Toda ação cujo fim último é o bem-estar e o mal-estar do próprio agente é uma ação egoísta;

7. Tudo o que aqui foi dito das ações vale igualmente para as omissões de tais ações, para as quais existem motivos e contramotivos;

8. Em consequência das explicações dadas nos parágrafos precedentes, egoísmo e valor moral simplesmente excluem-se um ao outro. Se uma ação tiver um fim egoísta como um motivo, então ela não pode ter nenhum valor moral. Deva uma ação ter valor moral, então um fim egoísta não pode ser seu motivo imediato ou mediato, próximo ou longínquo.

9. (...) A significação moral de uma ação só pode estar na sua relação com outros. Só com referência a estes é que ela pode ter valor moral ou ser condenável moralmente e, assim, ser uma ação de justiça e caridade, como também o oposto de ambas (E II, §16, 132).

É muito interessante notar que Schopenhauer reconheceu que as duas últimas premissas não são axiomáticas, mas procedem da análise empírica anterior. Essa diferenciação destacada pelo filósofo é de suma importância na medida em que recusa à vinculação do não-egoísmo com a valoração moral qualquer caráter de necessidade e universalidade, pertencente apenas às sete primeiras premissas, que são ou analíticas (3, 4, 5, 6) ou transcendentais (1, 2, 7). Esse é o momento em que é válido mencionar o modo como o filósofo introduziu sua análise de bom e mau (e respectivamente, de valoração moral positiva ou negativa) no §65 de O Mundo, a saber, por meio de uma oposição frontal ao uso da noção de bom absoluto na ética, junto ao argumento de que bom e mau são conceitos relativos, utilitários e individuais. Com as seguintes palavras essa introdução foi apresentada pelo autor:

O conceito bom (...) é essencialmente relativo e indica a adequação de um objeto com algum esforço determinado da vontade. Portanto, tudo o que é favorável à vontade em alguma de suas exteriorizações e satisfaz seus fins é pensado pelo conceito bom, por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectos. Eis por que dizemos boa comida, bom caminho, bom tempo, boas armas, bom augúrio etc., em síntese, chamamos de bom tudo o que é exatamente como queremos que seja. Assim, algo pode ser bom para uma pessoa, embora seja exatamente o contrário para outra (W I, §65, 459).

É muito pouco assinalado pelos comentadores o fato de que Schopenhauer iniciou a resposta, em sua obra magna, à tarefa de “elevar à distinção abstrata e filosófica o significado propriamente ético da conduta humana, indicado na vida pelas palavras bom e mau” (W I, §65, p. 458), com a definição de “bom” e “mau” do modo anteriormente apresentado, vale repetir, como aquilo que satisfaz ou desgosta, respectivamente, a vontade individual de quem julga. Caso essa satisfação seja imediata, o bom se identifica com o “agradável”, e caso o faça em referência apenas ao futuro, terá o sentido de “útil” (W I, §65, p. 460). Posteriormente apenas – argumentou o autor – bom e mau deixaram de ser utilizados, e no caso excepcional do homem, pelo ponto de vista passivo (isto é, não bem da perspectiva do bom ou mau, mas de quem os recebe e os julga), e passaram a ser empregados pela perspectiva ativa (isto é, a do próprio bom ou mau, dos seres avaliados como tais e que se avaliam como tais). Nesse estágio, primeiro, bom e mau foram identificados à conduta do homem feliz ou infeliz, o que ocorreu, sobretudo, na ética antiga; e depois, foram atados à conduta do homem que produz para si próprio a felicidade ou a infelicidade, o que foi mais próprio da ética moderna. Por fim, ambos puderam ser analisados, detidamente, em sua doutrina, como algo distinto e independente da felicidade, como se nesse patamar se ascendesse a um estágio de compreensão não mais correspondente às “palavras bom e mau” (Idem), mas à sua “matéria mesma” (W I, §65, 461).

Schopenhauer jamais aprofundou essa breve “história da moral”, com a qual iniciou sua análise da questão no §65 de O Mundo. Em vez disso, preferiu passar, no próprio §65, ao esclarecimento metafísico desses conceitos, o que se estendeu até o §67, e foi considerado, nesse texto, como vimos, como uma análise mais essencial do que uma história desses conceitos (essa concerniria às palavras bom e mau, enquanto a metafísica aclararia sua matéria). Em Sobre o fundamento da moral, porém, dissertação que não permite partir de pressupostos metafísicos, pareceu suficiente para o filósofo destacar, cientificamente, que os princípios 8 e 9 da comprovação do fundamento da moral não são axiomáticos, mas sim frutos da observação empírica e fenomênica. Assim, que: “Nenhuma ação pode acontecer sem motivo suficiente” (E II, §16, 132), como reza a premissa 1, contém uma verdade necessária e universal, pois enuncia a própria forma de todos os fenômenos humanos e animais de acontecerem. Que “toda ação cujo fim último é o bem-estar e o mal-estar do próprio agente é uma ação egoísta” (Idem), como estabelece a premissa 6, também é algo inconteste, pois o predicado se depreende logicamente do próprio conceito do sujeito: é completamente impossível que o conceito de “ação egoísta” não implique o de uma ação cujo fim último é o “bem-estar e o mal-estar do próprio agente”. Porém, que egoísmo e valor moral simplesmente excluem-se um ao outro” (Idem) já não possui nenhuma necessidade, e portanto, o princípio que o enuncia (o 8) não pode ser avaliado como um axioma. Sua verdade não é nem analítica e nem transcendental, mas é uma “consequência das explicações dadas nos parágrafos precedentes” (Idem). Ela é fruto, portanto, da observação empírica, e inclusive, não se pode negar que, mirado por esse ângulo, esse vínculo pertença a uma cultura e um momento histórico determinados (como a história brevemente trilhada por Schopenhauer no §65 de O Mundo parece indicar). É a aparência fenomênica o fundamento último das premissas 8 e 9, de modo que a doutrina da aparência erigida sobre eles pode perfeitamente ser chamada de fenomenologia. Entre os §65 e 67 de O Mundo, é verdade, o pensador aprofundou esse fundamento com um esclarecimento metafísico. Em sua ciência da moral, porém, ele apenas se limitou a isolar, morfológica e etiologacamente, o que recebeu, na qualidade de fenômeno, de seu mundo. Somente de modo fenomenológico, portanto, os princípios 8 e 9 podem ser entendidos e aceitos: desde que se entenda sob essa expressão a doutrina aparência fenomênica, ou o método de se fazer ciência partindo dos fenômenos eles mesmos.

Retornando à exposição ética de Schopenhauer do §16, toda ação e omissão humana, a rigor, devem ter uma causa, e essa causa deve se referir ou ao bem-estar ou ao mal-estar de um sujeito. Basicamente, as combinações lógicas possíveis a partir dessas premissas configuram quatro possibilidades; contudo, apenas três delas são constatáveis fenomenicamente: o motivo da ação pode ser o bem-estar do próprio agente, o bem-estar alheio ou o mal-estar alheio[20]. “No primeiro caso a ação é necessariamente egoísta” (E II, §16, 133), e no último, vil. Do ponto de vista do observador neutro, que recebe os fenômenos morais e se propõe a descrevê-los e sistematizá-los cientificamente, tais como se apresentam, é inevitável que se note que a ambos os tipos de motivação são associadas a repreensão e o repúdio; e forçoso que se conclua que apenas no caso em que o motivo da ação é o bem-estar alheio, ela é louvada moralmente. Essa diferenciação dos motivos básicos humanos a partir de seu valor e conteúdo consiste no teorema morfológico fundamental da ciência da moral de Schopenhauer. Seu complemento etiológico indispensável se baseia nas seguintes questões: o que motiva, propriamente, a ação bondosa? De onde nasce a força dessa causalidade? O que deve estar atuando para que um ser humano aja tendo o bem-estar do outro como o motivo último de seu agir? Conforme o filósofo, para que o bem ocorra, deve ser pressuposto:

Necessariamente que eu sofra com o seu mal-estar, sinta seu mal como se fora o meu e, por isso, queira seu bem como se fora o meu próprio. Isto exige porém que eu me identifique com ele, quer dizer, que aquela diferença total entre mim e o outro, sobre a qual repousa justamente meu egoísmo, seja suprimida pelo menos num certo grau (E II, §16, 135).

Schopenhauer ressalvou que essa possibilidade de identificação com o sofrimento alheio não consiste necessariamente em uma experiência mística, mas é preenchida por “algo bem real e de nenhum modo raro” (E II, §16, 136): ela se concretiza no “fenômeno diário da compaixão, quer dizer, a participação totalmente imediata, independente de qualquer outra consideração, no sofrimento de um outro (...) Esta compaixão sozinha é a base efetiva de toda a justiça livre e de toda a caridade genuína” (Idem). Indicado esse fundamento fenomênico do devir do bom, Schopenhauer passou a analisar a essência das duas virtudes indicadas anteriormente, que consistem nas duas metades do “fenômeno diário da compaixão” (Idem): a justiça e a caridade. No §17. A virtude da justiça, ele esclareceu que a principal diferença da justiça e da caridade repousa no fato de que a primeira não se apresenta por si só e originalmente, mas consiste na privação ou na obstrução da injustiça, à qual somos empurrados, em primeira instância, por nossas próprias necessidades, apetites e carências. Ainda com mais precisão:

Originariamente, somos todos inclinados para a injustiça e a violência, porque nossa necessidade, nossos apetites, nossa ira e nosso ódio aparecem imediatamente na consciência e têm por isso o ‘ius primi occupantis’ [o direito do primeiro possuidor). Em contrapartida, os sofrimentos alheios que causam nossa injustiça e violência chegam à consciência só através do caminho secundário da representação e só através da experiência, mediatamente, portanto. Por isso diz Sêneca: ‘Ad neminem ante bona mens venit quam mala’ (A ninguém vem antes a boa mente, mas sim a má) (Epistulae, 50) (E II, §17, 142).

No §62 de O Mundo, o autor propôs uma hierarquia dos graus de violência ou injustiça a que chega o homem, e que permite uma leitura associada ao caminho fenomênico aqui trilhado. Conforme o autor, no nível mais extremo de injustiça se encontra o canibalismo, seguido da “mutilação intencional ou mera lesão do corpo alheio” (W I, §62, 430), a subjugação do outro indivíduo, cujo cume é a escravidão, e por fim, o ataque à propriedade alheia. O roubo ou a lesão da propriedade podem ser entendidos, segundo o filósofo, naturalmente, como injustiças, na medida em que a propriedade lesada ou roubada for fruto do trabalho do prejudicado. Nesse caso, o roubo ou a lesão equiparam-se:

Em essência à escravidão, estando para esta como a simples lesão está para o homicídio. Pois a propriedade, que não será usurpada sem injustiça, é (...) aquilo trabalhado por intermédio das próprias forças; portanto, quem a usurpa serve-se das forças do corpo (...) alheio. Sem dúvida, nesses moldes, o praticante da injustiça, ao atacar não um corpo alheio mas uma coisa sem vida, totalmente diferente dele, invade do mesmo modo a esfera de afirmação estrangeira da vontade, pois as forças, o trabalho do corpo alheio, por assim dizer, confundem-se e identificam-se com essa coisa. Segue-se daí que todo autêntico direito de propriedade, isto é, moral, está originariamente baseado única e exclusivamente no trabalho elaborador (W I, §62, 430).

            Resumidamente, Schopenhauer defendeu que o conceito de injustiça consiste na “índole da conduta de um indivíduo na qual este estende tão longe a afirmação” (W I, §62, 434) de sua própria vontade corporal e pessoal, que essa chega ao ponto de invadir e prejudicar a esfera de afirmação da vontade corporal e pessoal de outro indivíduo. A injustiça nega a afirmação natural e imediata de todo indivíduo de seu corpo, desejo e trabalho, dentro de seu círculo de não prejuízo aos demais. A justiça, pelo contrário, nega essa negação da injustiça: “Ela me grita ‘pare!’ e se coloca como arma defensiva diante do outro, protegendo-o da ofensa a que, não fora isso, meu egoísmo ou minha maldade me teriam impelido” (E II, §17, 142). O que pode levar o homem a frear, efetivamente, sua própria inclinação ao prejuízo e à lesão alheia? Conforme o pensador, apenas a representação da dor alheia em nossa mente, e a nela baseada compaixão, por meio da qual sentimos sua dor sob a nossa própria pele. Nessa linha, Schopenhauer concluiu que a justiça é o primeiro grau da com-paixão (Mitleid, que tanto em português como em alemão, denotam, literalmente, a propriedade humana de com-padecer, com o outro, a dor do outro, como se fosse a nossa). Que esse grau seja negativo e não ainda positivo se entende já pelo fato de que o desejo da lesão alheia nos é dado imediatamente, e a partir de nossa própria vontade, em geral sedenta e insatisfeita. Já o impulso de ajudar o próximo pressupõe, primeiro, a representação da dor alheia em nosso espírito, e por fim, a propriedade (que não existe em igual grau em todos nós) de compadecimento dessa dor. Logo, o primeiro sentido, original e imediato, é a inclinação à injustiça; e o segundo, o derivado e o mediato, é a justiça. Por isso, caso se queira expressar em uma fórmula abstrata o conteúdo do sentimento ou móbil produtor da justiça, o pensador propõe a seguinte: Neminem laede[Não prejudiques a ninguém] (E II, §17, 143). Resumidamente, “se meu ânimo for receptivo” em um grau suficiente “para a compaixão, então ele me deterá onde e quando eu possa empregar o sofrimento alheio para alcançar meus fins; [e] tanto faz que este sofrimento sobrevenha instantaneamente ou um pouco mais tarde, direta ou indiretamente, mediado por um termo médio” (Idem). Ante qualquer representação da dor alheia, o justo se privará imediatamente de produzir sua lesão, e isso ocorrerá quer pela abdicação às mais diversas formas de lesão física (domínio, agressividade, etc.) ou espiritual de outrem (humilhação, calúnia, sedução), quer pela renúncia à usurpação ou destruição da propriedade alheia.

No §18. A virtude da caridade, Schopenhauer elevou sua análise ao grau positivo da compaixão: a caridade. Esse segundo grau da moralidade difere do primeiro na medida em que não consiste mais em um mero impedimento à lesão de outrem, mas se constitui de uma iniciativa imediata e direta de auxiliá-lo, em nome de seu bem-estar. Na prática da caridade, “sou movido, em parte porque minha participação é vívida e profundamente sentida, em parte porque a necessidade alheia é grande e urgente” (E II, §18, 160). Esse fenômeno exige que eu faça “um grande ou pequeno sacrifício à carência ou à necessidade do outro, que pode consistir num esforço em seu favor de minhas forças corporais ou espirituais, da minha propriedade, da minha saúde, da minha liberdade e, até mesmo, da minha vida” (Idem). Um nível tão profundo assim de identificação com a vontade alheia só pode ser alcançado na medida em que eu não parto, nesse fenômeno, da representação da dor alheia, como ocorre no caso da justiça, mas de sua experiência efetiva, sob a própria pele, como se ela não pertencesse ao outro, mas a mim mesmo. Em outras palavras, o sofrimento ao qual a justiça se opõe é apenas virtual: ele ocorreria caso eu não me freasse, antes, de produzi-lo, movido pela justiça compassiva. O sofrimento ao qual a caridade busca pôr termo é real e atual: existe no momento presente, e diante do qual me esforço por removê-lo ou arrefecê-lo, mesmo que isso me exija sacrifícios. Uma vez que não consiste, como no caso da justiça, em uma mera negação da inclinação original e humana à injustiça e à violência, mas em uma atitude positiva contra uma dor já existente e concreta, Schopenhauer equiparou a caridade ao grau positivo da compaixão, e formulou abstratamente sua influência com a seguinte expressão: “Imo omnes, quantum potes, iuva!’ [Ajuda a todos quanto puderes]” (E II, §16, 140). É verdade que a possibilidade da compaixão se baseia, mais ainda do que no caso da justiça, em um mistério; pois afinal, como é possível que eu sinta a dor do outro em minha própria pele, como se fosse minha? Apesar disso, é inegável que a caridade pura, como a justiça genuína, são dois fenômenos incomuns, mas que também se apresentam cotidianamente. Ela foi praticadofaticamente em todos os tempos” (E II, §18, 159) e lugares, mas foi trazido à baila teoricamente e estabelecida:

Como a maior de todas [as virtudes], estendendo-se mesmo aos inimigos, em primeiro lugar pelo cristianismo, cujo maior mérito consiste nisto, embora só em relação à Europa. Pois, na Ásia, já milhares de anos antes, o amor ilimitado do próximo era objeto tanto de doutrina e prescrição quanto da prática, pois os Vedas e Dharma-Sastra, Itihasa e Purana, como também a doutrina de Buda Sakiamuni, não se cansavam de pregá-la (E II, §18, 159).

Apesar das diferenças apontadas anteriormente entre a justiça e a caridade, Schopenhauer registrou que elas são as duas virtudes cardeais, que delimitam por inteiro a extensão e o conteúdo essencial da compaixão. Todas as demais virtudes derivam dessas duas, ao passo que a compaixão consiste na “pedra fundamental da ética” (Idem, p. 164), cuja fórmula filosófica se compõe pela junção das duas expressões anteriores: Neminem laede, immo omnes, quantum potes, iuva!” (Não prejudiques a ninguém. Ajuda a todos quanto puderes!) (E II, §16, 140)[21]. De todos os motivos examinados que, de fato, determinam o agir humano, a compaixão é o único capaz de atender aos critérios estabelecidos anteriormente para a conduta humana à qual se atribui valor moral, e que foram extraídos da observação empírica e fenomênica por nós trilhada. É verdade que a felicidade e o prazer alheio, conforme Schopenhauer, também são capazes de nos sensibilizar. Contudo, isso não é feito do mesmo modo (imediato) e com a mesma intensidade em que nos abala a dor alheia. Em primeiro lugar, essa discrepância se deve ao fato de que nós nos alegramos, a princípio, apenas com o júbilo de “nosso filho, pai, amigo, parente, serviçal, súdito e assim por diante” (E II, §16, 139), mas não com o de qualquer ser humano, como ocorre com a compaixão. Além disso, nós só somos capazes de nos alegrarmos com a felicidade de um desconhecido caso conheçamos sua carência ou dor anteriormente à sua felicidade ou prazer; logo, essas últimas consistem, ao fim e ao cabo, em libertações daquelas. Essa verdade evidencia que “a natureza do contentamento, do prazer, da felicidade, consiste só no fato de que uma carência foi suprimida, uma dor aquietada” (E II, §16, 138). Isto é, eles trazem a lume o fato de que a alegria e o prazer são negativos, e apenas “a dor, o sofrer, de que faz parte toda falta, carência e necessidade e mesmo todo desejo, é o positivo, aquilo que é sentido imediatamente” (Idem). Diante dessa desigualdade entre a natureza psicológica, imediata e original da carência (necessidade ou dor), e a mediata e secundária da felicidade e do prazer, o filósofo concluiu que:

Aquele que é feliz ou que tem prazer não estimula puramente como tal nossa participação imediata, como o sofredor, o carente e o infeliz como tal o fazem. Também nosso sofrer, no qual tem de ser incluída toda carência, necessidade, desejo e mesmo tédio, estimula também, até para nós mesmos, nossa atividade, enquanto um estado de contentamento e de felicidade nos deixa inativos e em sossego preguiçoso. Por que não aconteceria o mesmo em relação aos demais, já que nossa participação repousa sobre uma identificação com eles? (E II, §16, 139).

A visão da alegria alheia, na realidade, suscita, para o autor, a inveja, e não a “Mitfreude[22] (alegria em comunhão) alegada por Rée. Afinal, se, por um lado, a alegria alheia não nos mostra nenhum estado propriamente original ou positivo do outro, mas apenas sua libertação momentânea de uma carência, por outro, ela nos faz recordar de nossas próprias carências, o que estimula nossas potências antimorais. Caso devamos agir em nome do bem-estar alheio e de modo puro e desinteressado, Schopenhauer afirmou que isso só pode ocorrer se formos sensibilizados não por sua alegria, mas por sua carência, tormento ou tédio:

E, mesmo, quanto mais feliz for nosso estado e, pois, quanto mais contrasta a nossa consciência com a situação do outro, tanto mais sensíveis seremos para a compaixão. A explicação deste fenômeno altamente importante não é porém tão fácil de alcançar apenas pela via psicológica (...) Só metafisicamente é que ela pode dar bom resultado (E II, §16, 140).

É verdade que Schopenhauer concluiu sua exposição empírica e científica do fundamento da moral com essas palavras, que retomam o que ele afirmou na Introdução, a saber, que “na filosofia, qualquer que seja seu fundamento ético, ele deve ter, por sua vez, seu ponto de apoio e sua base em alguma metafísica” (E II, §1, 7). Por outro lado, o pensador também assinalou, na sequência, que “para fundar a ética” como ciência, a demonstração por nós trilhada “é suficiente, uma vez que ela tem de estar apoiada sobre algo existente, efetivo e demonstrável, dado ou no mundo exterior ou na consciência” (E II, §21, 205), como foi realizado. “A tarefa proposta pela Sociedade Real parece estar com isto cumprida, pois ela se dirige ao fundamento da ética, e uma metafísica ainda não é exigida para fundamentá-lo” (Idem). Diante dessa conclusão, Bacelar tem razão quando afirmou que Schopenhauer possui um “elevadíssimo apreço por sua doutrina dos três móbeis ou molas impulsoras (Triebfedernlehre)[23] da motivação humana: a compaixão, o egoísmo e a malevolência. Seu estabelecimento na doutrina ética de Schopenhauer se compara à descoberta do “cogito, ergo sum” na metafísica de Descartes: toda elaboração posterior se apoia, de alguma maneira nela, o que também inclui sua explicação etiológica da bondade, pela remissão da mesma ao à causa ou fundamento da compaixão. No aforismo derradeiro do capítulo 3, Schopenhauer remontou o que chamou em O Mundo de a “grande diferença ética dos caracteres” (W I, §68, 503) humanos ao fato de que essas “três motivações morais dos homens, o egoísmo, a maldade e a compaixão, estão presentes em cada um numa relação incrivelmente diferente” (E II, §20, 195). Uma vez que acreditou responder tanto à tarefa morfológica dessa ciência (a de subordinar seus fenômenos e conceitos ao menor número possível de princípios fundamentais), como à sua ocupação etiológica – a de explicitar a origem do fenômeno da moral, o bom, como oriunda da compaixão – Schopenhauer repudiou a recusa da Academia Real Dinamarquesa de lhe conferir o prêmio de seu evento, mesmo tendo sido o único participante do mesmo, com as seguinte palavras:

Eu alego que demonstrei real e seriamente minha fundamentação da moral com um rigor que se aproxima da matemática. Isto não tem precedente na moral e só se tornou possível pelo fato de que eu, penetrando na natureza da vontade humana mais profundamente do que até agora se tem feito, trouxe à luz e expus os três móbeis últimos da mesma, a partir dos quais surgem todas as suas ações. (E, Prefácio).

A compreensão da cientificidade da ética de Schopenhauer se torna ainda mais clara à luz do confronto de sua definição de ciência com a de metafísica (e consequentemente, entre ética e metafísica da ética). Abordaremos essa questão no próximo capítulo, com o que também esperamos jogar alguma luz sobre a pertinência da descrição de sua doutrina moral como uma fenomenologia da vida ética, e a dificuldade de se estender essa expressão à metafísica dos costumes.

 

A ciência e a metafísica da Ética

 

Após concluir a resposta anterior à tarefa proposta pela Sociedade Real Dinamarquesa, Schopenhauer apresentou um último capítulo à sua dissertação, denominado por 4. A explicação metafísica do fenômeno ético originário. Em seu início, o filósofo reafirmou a independência da ética de toda metafísica, com as seguintes palavras: “A tarefa proposta pela Sociedade Real parece estar com isto cumprida, pois ela se dirige ao fundamento da ética, e uma metafísica ainda não é exigida para fundamentá-lo” (E II, §21, 205). Dito isso, ele agregou que o campo da moral, mais do que qualquer outra ciência, pede pelo complemento metafísico, uma vez que, como citou em outro texto, “a base última na qual todo o conhecimento e ciência repousam é o inexplicável” metafísico. “Toda explanação conduz de volta a ele, por meio de mais ou menos estágios intermediários, assim como o prumo sempre encontra o fundo do mar, ora com maior, ora com menor profundidade” (P II, §1, 9). A ética seria, portanto, o campo científico em que esse fundo “marítimo” e metafísico seria alcançado em sua máxima profundidade: daí porque o pensador sentiu a necessidade de explorar ao máximo essa conexão. Todas as filosofias e religiões do mundo – afirmou – concordam em que os fenômenos morais informam mais do que a experiência ordinária e possuem uma íntima relação com a totalidade, o âmago, o destino e o cume da existência. O fato do pensamento de todo homem tomar, diante da morte, um caminho moral também evidencia essa natureza de posição-limite à qual a moral impele, na qualidade de ciência que mais aporta à metafísica. Essa superioridade da contribuição da ética à metafísica, em relação à das demais ciências, foi assinalada por Schopenhauer com as seguintes palavras:

Como no final de toda pesquisa e de toda ciência real, também aqui o espírito está diante de um fenômeno originário que esclarece tudo o que é compreendido sob ele e o que dele se segue, mas ele próprio permanece inexplicável e apresenta-se como um enigma. Portanto, aqui também coloca-se a exigência de uma metafísica, isto é, de um último esclarecimento do fenômeno originário como tal e, se tomado na sua totalidade, do mundo (...) Na ética, a necessidade de uma fundamentação metafísica é bem mais urgente, já que os sistemas filosóficos e religiosos concordam em relação ao fato de que a significação ética das ações teria de ter, ao mesmo tempo, uma significação metafísica, quer dizer, ir além do mero fenômeno das coisas e, assim, de toda possibilidade da experiência, estando portanto em íntima relação com toda a existência do mundo e com o destino do homem; pois o último cume a que em geral acede o significado da existência é indubitavelmente o ético. Este último fato confirma-se também por meio do fato inegável de que o caminho dos pensamentos de um homem que se aproxima da morte, quer seja partidário de dogmas religiosos ou não, toma uma direção moral (E II, §21, 205).

Como não está entre os objetivos desse artigo examinar esse complemento metafísico de Schopenhauer de exposição do fundamento da moral, nos limitaremos a citar uma síntese genial e precisa proposta por Paul Rée desse complemento, em A origem dos sentimentos morais. Com as seguintes palavras, Rée resumiu a explanação metafísica de Schopenhauer da possibilidade da compaixão:

Schopenhauer explica (...) a possibilidade das ações altruístas (...) da seguinte maneira: o espaço, de acordo com Kant, é uma forma a priori da intuição: nosso aparelho de conhecimento é organizado de tal forma que nos representamos as coisas como espaciais. Contudo, em si mesmas e independentemente da representação desse sujeito representador, o espaço não compete às coisas mesmas (...)

Por outro lado, reflitamos um pouco: a essência de todo ser, como se apresenta empiricamente, é a Vontade de viver. A organização corpórea do homem, bem como seus instintos e suas faculdades intelectuais (entendimento e razão) servem apenas para esse fim, se colocam, portanto, a serviço de sua Vontade de viver. Do mesmo modo, a organização de todos os outros seres, das plantas, bem como dos animais, é dedicada à sua Vontade de viver. Mesmo as propriedades da matéria, de fato, como a gravidade, devem ser consideradas em analogia com os outros seres, como se também nelas a Vontade de viver se ‘objetivasse’. Afirma Copérnico a esse respeito: ‘Eu acredito que a gravidade é apenas um esforço natural (appetentia) que a divindade implantou nas partes, de modo a se unirem em um todo e, assim, se manterem incólumes’ (Cf. Schopenhauer, Der Wille in der Natur, p. 4). A Vontade é a alma de tudo. Os seres humanos, os animais, as plantas e a matéria são apenas formas fenomênicas espaciais e diferentes dessa mesma força fundamental (...)

Se considerarmos, todavia, a Vontade de viver como uma coisa em si mesma, então, deveríamos considerá-la como algo não espacial, e por isso, como algo que não seja múltiplo, composto, mas sim uma unidade (...) Em si mesmas, portanto, todas as coisas – embora se apresentem ao sujeito conhecedor como muitas objetivações da Vontade – são uma só.

Com a compaixão, portanto, isto é, quando o homem se preocupa com os outros como consigo mesmo, desaparece momentaneamente a aparência de que as coisas seriam divididas fundamentalmente em indivíduos. O ser-unitário das coisas se abre, e o compassivo se sente um só com o sofredor, se identifica com ele. Dessa forma que as ações não-egoístas são possíveis[24].

Como se nota, essa explicação de Schopenhauer, sintetizada por Rée, da possibilidade última da compaixão é muito diferente da analisada por nós anteriormente. A diferença entre ambas está no fato de que a última é metafísica, e a primeira, científica. Conforme Schopenhauer, toda ciência tem por objeto os fenômenos, ao passo que a metafísica busca “aprender a conhecer mais de perto (näher kennenzulernen) a coisa em si mesma” (P II, §21, 27). Os fenômenos possuem por forma a priori o princípio de razão suficiente, cuja fórmula geral é a seguinte: “Nada é sem uma razão pela que é” (G, §5, 33). O princípio de razão exige que todo fenômeno, objeto ou representação tenha uma causa, razão ou fundamento, em virtude da qual esse fenômeno ou objeto é e existe dessa e não de outra maneira. Uma vez que o princípio de razão está intimamente associado ao indivíduo humano, dotado de um corpo pessoal, que se apresenta como a expressão de uma vontade pessoal, Schopenhauer sintetizou que sua modalidade principal é o principium individuationis, a qual engloba as formas a priori do tempo, do espaço e da causalidade. A vontade individual – afirmou o autor, em sua metafísica – cria e utiliza o principium individuationis como o melhor recurso para obter seus fins. Todo conhecimento, conforme esse princípio, tem na vontade individual, portanto, seu referencial último: é sempre, portanto, interessado. Caso queiramos mergulhar na busca filosófica da coisa em si mesma, devemos nos distanciar do fenômeno o máximo possível, e por conseguinte, também de suas formas a priori, e sua natureza de interessante à vontade. Essa busca filosófica se chama metafísica, e se divide em metafísica da natureza, do belo e da ética. O âmago da natureza, a beleza e a moral – entendeu o pensador – são o que mais pode nos ajudar a decifrar o enigma do mundo, sem abandonar a imanência do último. E por que a moral teria essa capacidade? Porque, como vimos, ela nos distancia da visão fenomênica, enraizada em um indivíduo, e como tal, interessante e fonte do egoísmo. A moral nos impele para além do ilusório umbigo do universo, a saber, nosso indivíduo efêmero, e assim, nos aproxima da unidade originária de todos os seres vivos (passível inclusive de ser estendida aos fenômenos inorgânicos, por meio de analogias metafísicas): a Vontade de viver. Pela riqueza metafísica da experiência ética e compassiva, o filósofo acreditou que os resultados da ciência moral aportam decisivamente à necessidade metafísica humana por uma decifração ao enigma da existência. Sendo assim, ele desenvolveu uma metafísica da compaixão, que a rigor, se sustenta nos dados mais universais da ciência da ética. Ambas, assim, não são idênticas.

Mais precisamente, a ética, como qualquer ciência, limita seu discurso ao saber fenomênico, e em seu campo próprio, portanto, é de todo independente da metafísica. Sua forma é o sistema racional, que se distingue de um mero “agregado de informações” (G, §4, 32), pela fácil e organizada capacidade de descensão e ascensão gradual entre seus conceito mais gerais (física, química, vida, moral, etc.) até seus dados mais particulares, passando pelo “maior número possível de princípios subordinados e o menor possível de coordenados” (W I, §14, 111). A forma da pirâmide, portanto, é a que melhor representa a perfeição formal científica. No que concerne ao conteúdo de toda ciência, o filósofo asseverou que “se trata, propriamente dizendo, sempre das relações dos fenômenos do mundo entre si conforme o princípio de razão suficiente” (W I, §15, 134). Essas relações fundamentam os “porquês” científicos, os quais foi chamado de a “mãe de todas as ciências” (G, §5, 33). No caso das ciências empíricas, os porquês sistematizados se fundam nas relações estabelecidas pela lei da causalidade, primeira raiz do princípio de razão[25]. A lei de causalidade estabelece a priori que toda transformação fenomênica é sempre ocasionada por uma força natural (uma força da física, como a da gravidade, uma da química, como a que une ou desune os elementos conforme suas afinidades, uma força vital, atuante nos organismos vivos, uma vontade, etc.), a qual age sobre uma causa, isto é, uma configuração específica da matéria, e a partir da qual produz um efeito, suportado pela mesma matéria que sustentava a causa. A causa, como já foi dito, pode ser de três formas: causa em sentido estrito (Ursache), estímulo (Reiz) ou motivo (Motiv)[26]. É com base nessa divisão tripartite do conceito de causa que Schopenhauer propôs a divisão mais fundamental das ciências empíricas, no Capítulo 12. A propósito da doutrina das ciências, do segundo tomo de O Mundo, com as seguintes palavras:

1. A Doutrina das Causas:

a. Universal: Mecânica, Hidrodinâmica, Física, Química

b. Particular: Astronomia, Mineralogia, Geologia, Tecnologia, Farmácia

2. A Doutrina dos Estímulos:

a. Universal: Fisiologia das plantas e dos animais, junto à sua ciência subsidiária, a Anatomia

b. Particular: Botânica, Zoologia, Zootomia, Fisiologia Comparada, Patologia, Terapia

3. A Doutrina dos Motivos:

a. Universal: Ética, Psicologia

b. Particular: Jurisprudência, História (W II, Cap. 12, 165)[27].

Após apresentar essa “pequena amostra, sem dúvida capaz de muita melhoria e completude” (Idem) do edifício sistemático das ciências empíricas, Schopenhauer afirmou que “a filosofia e a metafísica, como doutrina (...) do todo da experiência enquanto tal não entra na série; porque não se dedica sem mais à consideração exigida pelo princípio de razão, mas antes tem a este mesmo como problema” (W II, 12, 155). Mais precisamente, a filosofia procura, enquanto epistemologia, explicitar a constituição a priori do princípio de razão, e enquanto metafísica, busca decifrar o enigma da experiência como um todo, “aprendendo a conhecer mais de perto (näher kennenzulernen) a coisa em si mesma” (P II, §21, 27). Toda ciência, portanto, é independente da filosofia e da metafísica, e se sustenta apenas sobre as relações do princípio de razão e sua própria metodologia. Isso, porém, não impede que cada ciência também:

Possua a sua filosofia específica: e eis porque se fala de uma filosofia da botânica, da zoologia, da história, e assim por diante (...) De maneira arrazoada, não se deve entender por isso outra coisa senão os resultados principais de cada ciência, considerados e sintetizados desde um ponto de vista superior, isto é, o mais universalmente possível interiormente a essa ciência. Semelhantes resultados os mais universais são diretamente associados à filosofia universal (...) A filosofia de cada ciência surge, entrementes, de maneira independente da filosofia geral, a saber, a partir dos dados de sua própria ciência (W II, Cap. 12, 165).

À ciência da moral, portanto, vale o mesmo que às demais ciências: suas explicações se baseiam no princípio de razão, sob a modalidade da lei de causalidade ou de motivação, e são completas e legítimas, cientificamente, isto é, são independentes de qualquer metafísica. Contudo, o complemento metafísico sempre pode ser apresentado sobre os resultados mais universais de toda ciência, e mais ou menos nos moldes em que Schopenhauer o ofereceu no capítulo final de Sobre o fundamento da moral: como “um acréscimo que se dá por gosto e que se aceita por gosto” (E II, §21, 210). A superioridade da contribuição da ética sobre o das demais ciências à metafísica chega ao ponto de que Schopenhauer quase a identificou à metafísica dos costumes: essa última procura interpretar e explanar o “agir humano e suas diversas e até mesmo opostas máximas, das quais ele é a expressão viva, de acordo com sua essência íntima e conteúdo” (W I, §53, 355). Aquela, por sua vez, busca “tomar por objeto os motivos e as máximas mesmas, segundo seu valor e sua origem” (G, §51, 223). A despeito da quase identidade dos objetos de ambos os campos, seus métodos são distintos: a ética toma por “fio condutor” (Idem) de suas explanações a lei de motivação, já a metafísica da ética rompe com o olhar do princípio de razão e busca se tornar consciente da coisa em si. Uma vez que ambos os campos têm semelhanças, como também diferenças, não é de se surpreender que o próprio Schopenhauer tenha hesitado às vezes sobre qual dos dois termos empregar; por exemplo, quando deu ao terceiro conjunto de preleções que ofereceu na Universidade de Berlim, em 1820, primeiro, o título Ética, e depois, o rasurou e substituiu por Metafísica dos Costumes[28]. Se ambos os domínios fossem idênticos, essa substituição não teria sido necessária. O fato de ele ter sido realizada também atesta que o autor tinha uma concepção distinta de cada campo, como indicado anteriormente.

Sendo assim, Philonenko não foi tão feliz quando aplicou a expressão “fenomenologia da vida ética[29] não só à ética, mas à metafísica dos costumes de Schopenhauer como um todo. Esse comentador, em última instância, não distingue ambos os campos, o que já se nota no título dos capítulos de sua obra Schopenhauer – uma filosofia da tragédia: 1- Dianoilogia, 2- Metafísica da natureza, 3- Metafísica do belo, e 4- Fenomenologia da vida ética. Caso leiamos esse último capítulo na expectativa de encontrá-lo restrito aos textos de ciência da moral do filósofo, ou em todo caso de eudemonologia, nos surpreendemos com o fato de que ele aborda, por inteiro, a metafísica dos costumes. Essa confusão aparece anunciada já em suas primeiras palavras:

Essa fenomenologia [da vida ética] constitui o quarto e último dos momentos fundamentais do pensamento de Schopenhauer (...) Na obra cardinal de Schopenhauer, o quarto momento determinante é intitulado: ‘Livro Quarto. O mundo como Vontade, segundo ponto de vista’: chegando a conhecer-se a si mesma, a vontade de viver se afirma, e depois se nega. Nos Parerga e paralipomena os desenvolvimentos dedicados à vida ética não estão agrupados sob um título dogmático. Schopenhauer o duvidou até o fim. As lições de Berlim o provam melhor. Elegeu primeiro o título Ética. Depois o suprimiu para harmonizar o conjunto: posto que já havia uma metafísica da natureza, uma metafísica do belo, era normal substituir o título Ética pelo de Metaphysik der Sitten (...) Mas se considerarmos o que Schopenhauer chama de ‘a intenção de minha ética’, estaremos inclinados a recolher em parte o título original. O que se coloca na realidade? ‘Nenhuma doutrina do dever, nenhum princípio moral universal, nenhum dever incondicionado’ (...) a Ética de Schopenhauer quer ser só um discurso filosófico sobre a ‘vida humana’ e a filosofia, aqui como em toda parte, será teórica[30].

Philonenko tem toda razão quando opôs a ética e a filosofia de Schopenhauer, enquanto apresentações teóricas e descritivas do mundo, a outras propostas de filosofia prescritiva, como a kantiana, que buscam estabelecer regras ou os imperativos categóricos para a vontade. Segundo Schopenhauer: “Toda filosofia é sempre teórica, já que lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa, não importa o quão próximo seja o objeto de investigação, e sempre inquirir, em vez de prescrever” (W I, §53, 353). Contudo, essa metodologia foi empregada pelo filósofo, como vimos, de duas maneiras distintas, em relação ao valor da conduta humana: no campo da ética em sentido estrito, o pensador realizou uma análise empírica e fenomênica, e na metafísica dos costumes, procurou elevar os resultados da última ao olhar mais essencial e universal possível. Schopenhauer foi bem claro a esse respeito: em seu cume, “a filosofia vai da aparência fenomênica àquilo que aparece, que se esconde por trás do fenômeno, logo, ‘τα μετα τα φυσικα’ (tá metáfisicá)[31] (P II, §21, 27). Em outro momento, também afirmou que:

O tempo, o espaço e a causalidade não pertencerem à coisa-em-si, mas exclusivamente ao seu fenômeno, do qual são as formas, o que, na minha linguagem, soa: o mundo objetivo como representação não é o único, mas apenas um lado do mundo, por assim dizer o seu lado exterior: o mundo ainda possui um outro lado completamente diferente, a sua essência mais íntima, o seu núcleo, justamente a coisa-em-si (W I, §7, 76).

A metafísica busca conhecer esse outro lado não fenomênico do mundo: a coisa em si. Como chamar o método nela empregado de “fenomenologia”? – como o faz Philonenko. Conforme esse autor, a expressão “fenomenologia” foi criada por J. H. Lambert, “que a conotou como a ‘doutrina da aparência’[32]. Ora, como aplicá-la à parte do saber que, segundo Schopenhauer, vai além da aparência e procura concentrar-se no outro lado do mundo, sua essência em si? Quando observamos as palavras utilizadas por Heidegger na definição de fenomenologia, é difícil não se recordar da investigação anteriormente apresentada de Schopenhauer do fundamento da moral; e também é fácil recusar sua extensão à metafísica do que “se esconde por trás do fenômeno(P II, §21, 27) de Schopenhauer. Com as seguintes palavras Heidegger definiu o método fenomenológico:

O título ‘fenomenologia’ expressa uma máxima que pode ser formulada assim: ‘Às coisas mesmas’! (...) Fenomenologia seria portanto a ciência dos fenômenos (...) Permitir ver o que se mostra e tal como se mostra por si mesmo. Esse é o sentido formal da disciplina a que se dá o nome de fenomenologia (...) ‘Fenomenologia’ nem designa o objeto de suas investigações, nem é um termo que caracterize o conteúdo material desse objeto. A palavra se limita a indicar como mostrar e tratar o que se deve tratar nessa ciência. Ciência ‘dos’ fenômenos quer dizer: essa forma de apreender seus objetos, que tudo o que esteja em discussão sobre eles tem que ser tratado mostrando-o diretamente e demonstrando-o diretamente[33].

Se tomarmos pelo sentido de fenomenologia mais o como mostrar do que o quê mostrar, sua restrição à ciência da moral se torna ainda mais contundente: é verdade que tanto a ética como a metafísica dos costumes procuram esclarecer a vida humana do ponto de vista do valor e de seu conteúdo. O que muda nelas não é o objeto, mas o método empregado: apenas a primeira parte de fenômenos e se limita a fenômenos. A segunda já rompe com o fenômeno, assim como com seu fio condutor a priori, o princípio de razão, e se concentra no que se esconde por trás dele. Philonenko, portanto, não tem muita razão quando afirma que Schopenhauer rasurou o título Ethik e o substituiu por Metaphysik der Sitten apenas para “harmonizar o conjunto[34] de suas preleções berlinenses. Tratam-se, antes, de dois campos distintos: no primeiro ele executou uma “fenomenologia da vida ética”, e apenas no “quarto e último dos momentos fundamentais do pensamento de Schopenhauer[35], a saber, na metafísica dos costumes, avançou à abordagem de temas que extravasam em muito a esfera do fenômeno, como o da negação da Vontade. É incoerente, portanto, com o texto schopenhaueriano, afirmar que Schopenhauer aborda aquilo que não é fenômeno, não pode sê-lo e consiste, antes, na supressão da própria possibilidade do fenômeno, em uma “fenomenologia da vida ética”. Com as seguintes palavras Philonenko realizou essa asserção:

É preciso distinguir na fenomenologia da vida ética [de Schopenhauer] dois conceitos que parecem se aproximar para o homem comum: por um lado, se encontra o vazio, que examina detidamente o tédio; por outro lado, se encontra o nada, no qual a vontade, negando-se a si mesma, encontrará a paz (Idem, 242).

Ribot também cometeu esse deslize, quando afirmou que “essa antítese entre a afirmação e a negação do querer-viver é o ponto mais elevado da moral de Schopenhauer[36]. Esse segundo erro não é menos grave do que aquele: Schopenhauer afirmou, com todas as letras, que “‘moralisch’ é um conceito científico” (E II, §14, 120), e portanto, sua abordagem deve se limitar à esfera fenomênica, a qual é por inteiro expressão da afirmação da Vontade e não pode culminar na negação da possibilidade do fenômeno. Philonenko tampouco se manteve fiel à doutrina de Schopenhauer quando, após escrever: “Deveríamos, sem dúvida, aclarar melhor a expressão fenomenologia da vida ética[37], passou a analisar detidamente conceitos metafísicos, como as qualidades da Vontade de ser (1) um “querer sem fim (Zwecklos)”[38], (2) a “essência da nossa existência”[39], (3) a origem de nosso “caráter inteligível”[40], (4) o fundamento da “comparação do homem com a planta”[41], (5) una, dado que a “multiplicidade não afeta à coisa em si, que, como Vontade, está presente em todos os fenômenos”[42], e etc.. Em uma fenomenologia da vida ética que faça jus a essa expressão não pode haver, como parece querer o comentador, uma “revelação aterrorizante” do fato de que, no egoísmo, o “microcosmo quer o macrocosmo[43], a saber, que “em cada um de nós se concentra toda a gravidade do mundo”[44], muito embora a compaixão revele que “todos os indivíduos que pesam tanto [para si próprios] sejam como gotas de água no mar do ser”[45]. Essas imagens podem ser muito coerentes com a metafísica dos costumes schopenhaueriana, mas não foram e nem poderiam ser desenvolvidas na “ética propriamente dita” desse autor, única que, restrita a fenômenos, pode ser descrita como uma fenomenologia da vida ética. Por fim, a inclusão de Philonenko sob a última perspectiva do conceito de que “a morte (...) não existe (...) Schopenhauerdes-realiza’ metafisicamente a morte”[46], bem como o da “contradição interna da Vontade cega”[47], entre outras, tampouco pode ser aceita, caso sejamos cuidadosos com os termos aqui empregados. Todos esses conceitos foram trabalhados pelo autor em sua metafísica dos costumes, a qual rompe com o fio condutor do princípio de razão, e se distancia assim a tal ponto da aparência fenomênica, que muito dificilmente poderia ser descrita como uma “doutrina da aparência[48].

 

Conclusões

Teria Rée sido justo quando afirmou que “agora, desde que Lamarck e Darwin publicaram seus escritos, os fenômenos morais podem ser reconduzidos às suas causas naturais, tão bem como os fenômenos físicos[49]? Teria Nietzsche sido imparcial quando, no mesmo aforismo em que acusou Schopenhauer de ter apresentado o problema da moral (como a tarefa de encontrar um “último fundamento de toda ação moralmente boa” [E II, §1, p. 5]) com uma “inocência quase venerável[50], também ter confessado:

Com o máximo de seriedade que o que nós necessitávamos fazer por um longo tempo e ainda necessitamos, a única coisa que provisoriamente é justificável, é realizar uma coleta de material, formulação e classificação conceituais de um imenso reino de delicados sentimentos e diferenciações de valor (...) como preparação para uma tipologia da moral[51] [?].

Certo é ao menos que Schopenhauer parece ter inaugurado desde a filosofia alemã uma nova forma de abordagem dos fenômenos morais: uma analítica, científica, empírica – e caso queiramos ressaltar o fato de que ela parte de fenômenos, se limita aos mesmos, e diante de Kant, representa um retorno radical aos fenômenos eles próprios – também pode ser descrita como uma “fenomenologia da vida ética”[52] – como o fez criativamente Philonenko. Sem dúvida, a fundamentação descritiva da moral de Schopenhauer não foi uma glorificação do: Neminem laede, immo omnes, quantum potes, iuva!” (Não prejudiques a ninguém. Ajuda a todos quanto puderes!) (E II, §16, 140) – máxima essa que, conforme Nietzsche, possui uma significativa “falta de gosto, falsidade e sentimentalismo[53]. Como visou apresentar, em sua ciência da moral, sobretudo, uma tipologia da qualificação e da valoração moral dos fenômenos humanos, bem como uma recondução dos mesmos às suas causas naturais, Schopenhauer tem por herdeiros psicólogos e cientistas da moral como Rée e Nietzsche, os quais também procuraram aclarar os fenômenos pelo caminho estritamente empírico. Isso é verdade ainda que os últimos não o reconheçam aberta e completamente, e ainda que se apropriem de uma série de conceitos da filosofia schopenhaueriana de modo bastante polêmico. Pode-se dizer que, sobretudo, os “discípulos hereges[54] da “escola de Schopenhauer em sentido lato” deram extensão e profundidade aos trabalhos desse autor sobre a ciência da moral; e que isso foi feito com tamanha radicalidade que essa extensão os levou a recusarem a necessidade de um complemento metafísico, a qual, segundo Schopenhauer, era de suma importância à decifração do enigma do mundo da metafísica. Em virtude da relevância da fenomenologia da vida ética de Schopenhauer em sua fortuna sobre a filosofia contemporânea, é ainda mais oportuno que se esclareça o sentido em que essa expressão pode ser aplicada à sua doutrina sem grandes problemas: caso se restrinja à sua ética em sentido estrito, ela é bastante adequada e ilustrativa por todas as razões apontadas. Contudo, se ela também for estendida à metafísica dos costumes schopenhaueriana, como o fez Philonenko, também será necessário esclarecer que essa última não se identifica com a ética schopenhaueriana, e sobretudo, por seu método de não abordar fenômenos com base no fio condutor do princípio de razão, mas se distanciar o máximo possível dos últimos, e se concentrar apenas no âmago da bondade, a qual conteria uma informação especial sobre a coisa em si mesma. Uma doutrina metafísica, portanto, não pode ser chamada de fenomenológica, por mais que seja imanente e se apoie em uma ciência fenomenológica como a ética schopenhaueriana.

 

Referências

 

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[1] DEUSSEN, Schopenhauer und die Religion, 8.

[2] Cf. DEUSSEN, Schopenhauer und die Religion, 13-15.

[3] PHILONENKO, Schopenhauer – Una filosofía de la tragédia, 232.

[4] Idem.

[5] HEIDEGGER, El ser y el tempo, §7, 38, 45.

[6] Idem.

[7] PHILONENKO, Schopenhauer – Una filosofía de la tragédia, 232.

[8] FAZIO, KOSSLER, LÜTKEHAUS, Arthur Schopenhauer e La Sua Scuola, 73.

[9] MAGEE, Schopenhauer, 180. RIBOT, Schopenhauer y su filosofia, 30. CLAROS, Estudio introductorio, 61. MARÍA, Introducción, 10.

[10] SAFRANSKI, Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, 486. ARAMAYO, Estudio preliminar, 15. RAMOS, Introdução, 9. DAMASCENO, Ética e metafísica em Schopenhauer: a coexistência da Vontade livre com a necessidade das ações, 13.

[11] Embora Schopenhauer tenha delimitado claramente a bibliografia básica de sua ética nessa citação, uma série de comentadores preferiram seguir recortes próprio. L. F. Claros afirmou, por exemplo, que os “parágrafos e capítulos essenciais de O Mundo dedicados a apresentar as reflexões éticas de Schopenhauer são os seguintes: do quarto livro do primeiro tomo se destacam os” §53, 55, 57, 65-68, 71, e do segundo, os capítulos 41, 46 e 50 (CLAROS, Estudio introductorio, 62). F. C. Ramos incluiu no “conjunto de ensaios que tem como tema principal a ética” (RAMOS, Introdução, 9) os capítulos 8-15 de Parerga e paralipomena – Tomo II. R. Aramayo escreveu que “as partituras que concernem diretamente ao último dos movimentos da grande sinfonia schopenhaueriana, a saber, as relativas à moral” (ARAMAYO, Estudio preliminar, 14), consistem no quarto livro de O Mundo, o quarto ensaio e o oitavo capítulo, respectivamente, de Parerga e paralipomena - Tomo I e II, Os dois problemas fundamentais da ética, o capítulo de Sobre a vontade na natureza dedicado à moral, e as preleções berlinenses sobre a metafísica dos costumes. E Santa Maria afirmou que “a produção especificamente ética de Schopenhauer” (MARÍA, Introducción, 7) se reduz a Os dois problemas fundamentais da ética e as preleções sobre metafísica dos costumes. Defenderemos, no último capítulo desse artigo, que a ética e a metafísica dos costumes não consistem em campos idênticos na filosofia schopenhaueriana, e que, portanto, o mais seguro é respeitar a bibliografia delimitada na citação anterior sobre a “moral em sentido estrito”, para que não se confundam domínios distintos.

[12] PHILONENKO, Op. cit, 232.

[13] HEIDEGGER, El ser y el tempo, §7, 38, 45.

[14] Idem.

[15] Abordaremos o conceito de Schopenhauer dessa relatividade na próxima seção.

[16] Há uma grande semelhança entre esse ceticismo metódico e hiperbólico empregado por Schopenhauer, aqui, no campo da moral, e a dúvida metódica e hiperbólica aplicada por René Descartes, em Meditações, no campo da metafísica. Na perseguição de uma verdade rigorosamente clara, segura e indubitável na metafísica, e que pudesse sustentar toda sua teoria do conhecimento, Descartes também iniciou seu exame com uma dúvida radical, que o levaria a descartar como falsa qualquer hipótese sobre a qual pairasse a menor incerteza. Com as seguintes palavras, Descartes propôs esse método provisório e radical: “Por desejar (...) ocupar-me somente com a pesquisa da verdade [metafísica], pensei que era necessário (...) rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse indubitável” (DESCARTES, Discurso do método, 54). Após concluir sua crítica à fundação da moral kantiana, o primeiro passo Schopenhauer na busca de um fundamento seguro e efetivo à ação moral também foi testar, em suas últimas consequências, a possibilidade de que esse fundamento inexistisse. A semelhança é tamanha do método empregado por ambos os filósofos que a busca de Schopenhauer pode ser descrita com as mesmas palavras anteriores de Descartes sem grandes complicações: “Desejando ocupar-se da pesquisa das ações morais autênticas, Schopenhauer acreditou ser mister rejeitar, preliminarmente, como absolutamente imoral (egoísta) tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em seu crédito, que fosse” indubitavelmente digno de louvor ético.

[17] DESCARTES, Discurso do Método, 55.

[18] Idem.

[19] No §115 do Capítulo 8 de Parerga e Paralipomena – Vol. II, Schopenhauer também incluiu entre esses fenômenos capazes de nos convencer de que certas atitudes humanas têm o bem-estar do outro como o fim último de seu agir, os casos “particularmente belos e nítidos” em que uma pessoa “entregue à morte ainda se dedica com um zelo temeroso e disposição ativa ao bem e à salvação de outras. Deste tipo é a conhecida história de uma criada que, mordida à noite no pátio por um cão raivoso e dando-se por irremediavelmente perdida, o agarra, arrasta até um recinto e o tranca para que ninguém mais seja molestado. Do mesmo modo, aquele caso de Nápoles, que Tischbein eternizou em uma de suas aquarelas: à frente da lava que rapidamente escoa em direção ao mar, o filho foge carregando o velho pai às suas costas: porém, quando apenas um estreito traço de terra separa ambos os elementos destruidores, o pai manda o filho deitá-la ao chão, e correr para salvar-se a si próprio; pois caso contrário, ambos estariam perdidos. O filho obedece e lança ainda ao partir um olhar de despedida ao pai. Eis o que o quadro representa. Também deste tipo é o fato histórico que Walter Scott apresenta com mão de mestre em Heart of Mid-Lothian (Cap. 2), onde, de dois delinquentes condenados à morte, aquele que provocou a prisão do outro por causa de sua inabilidade liberta este com sucesso na igreja, após a missa mortuária, ao dominar violentamente o guarda, sem fazer qualquer tentativa para si mesmo. Pode-se até mesmo contar aqui, embora possa ser chocante ao leitor ocidental, a cena apresentada em uma gravura tão frequente, em que o soldado ajoelhado, prestes a ser fuzilado, espanta com o lenço o seu cachorro que quer chegar perto. – Em todos os casos desse gênero vemos um indivíduo certo de ir ao encontro de sua destruição pessoal, sem se preocupar mais com sua própria conservação, dirigindo todos os seus cuidados e esforços a favor de um outro” (Sobre a ética, §115, p. 61-2). Exemplos ainda mais sublimes de compaixão incontestável são, para o autor, os casos em que uma pessoa que não estava condenado à morte se sacrifica pela salvação de outrem. Como exemplo, ele cita: “A história de Paulinus, bispo de Nola, no século V, durante a invasão dos vândalos da África na Itália: ‘Depois que ele ofereceu para resgate dos prisioneiros todos os tesouros da Igreja, a sua fortuna e a de seus amigos e viu a lamentação de uma viúva cujo único filho fora levado, se ofereceu, no lugar deste, para a servidão. Pois quem tinha boa idade e não tinha caído pela espada era levado para Cartago como prisioneiro’” (E I, §20, 196).

[20] Para uma reflexão sobre a possibilidade metafísica da quarta motivação (que não seria propriamente uma motivação), cf. BACELAR, Sobre a quarta motivação na psicologia de Schopenhauer, 175-196.

[21] A fórmula mística mais ilustrativa da compaixão, como acrescenta o filósofo no §115 de Parerga e paralipomena – Tomo II, consiste na expressão do Veda e Vedantatat twan asi (isto é tu), que é afirmada com referência a todo ser vivo, seja homem ou animal, e denomina-se então o Mahavakya, o grande verbo” (P II, §115, 61).

[22] RÉE, Der Ursprung der Moralischen Empfindungen, 8.

[23] BACELAR, O desenvolvimento da psicologia moral de Schopenhauer, 17.

[24] RÉE, Der Ursprung der moralischen Empfindungen, §1, 5-7. Nesse mesmo livro, Rée acusou Schopenhauer de considerar a compaixão e os fenômenos morais como algo suprassensível ou “transcendente; de certo modo, uma revelação do mundo transcendente” (RÉE, Der Ursprung der moralischen Empfindungen. Introdução, XI). Isso, no fim das contas, não se distanciaria tanto da leitura dos mesmos “como a voz de Deus, como dizem os teólogos” (Idem). Dois problemas nessa crítica são: em relação ao complemento metafísico, Schopenhauer o inseriu em uma metafísica imanente, e não transcendente, isto é, uma que procurou apresentar a solução do enigma do mundo a partir “da compreensão profunda do mundo mesmo”, e não em “algo completamente diferente dele (pois este é o significado de ‘para além da possibilidade de toda experiência’” (SCHOPENHAUER, Kritik der Kantischen Philosophie, 578), perseguido por toda transcendência. Em outros termos, conectar o significado último da existência com o fenômeno moral e cotidiano da compaixão não tem, por exemplo, a transcendência de atá-lo a uma revelação divina testemunhada por poucos, ou a uma lei moral prescritiva e pouco ou nada efetiva. Além disso, Rée não fez menção ao fato de que Schopenhauer foi talvez o primeiro filósofo alemão a propor uma explicação do fenômeno da moral de modo estritamente empírico, psicológico e científico, com o qual sua genealogia se conecta diretamente.

[25] Sobre a subordinação a priori dos fenômenos à lei de causalidade, cf. G, §20, 68.

[26] Sobre as diferenças e caracterizações dessas três modalidades básicas da causalidade, cf. G, §20, 84.

[27] Embora Schopenhauer não tenha utilizado a expressão “psicologia moral” (BACELAR, O desenvolvimento da psicologia moral de Schopenhauer, 21. DEBONA, Bemerkungen ou Beobachtungen? sobre as “observações psicológicas” de Schopenhauer e Rée, 154), Bacelar e Debona foram coerentes com seu texto quando a empregaram para se referirem à sua psicologia empírica. Afinal, como vimos, Schopenhauer não apenas afirmou que sua explicação do fenômeno originário da moral deveria ser “meramente psicológica (E II, §1, 8), como também definiu, no §21 de Parerga e Paralipomena – Tomo II, o objeto da psicologia empírica como a “variedade das individualidades (ou dos caracteres) que, por sua vez, permitem apreender as manifestações e as par­ticularidades morais e intelectuais do gênero humano” (P II, §21, 27). Cabe anotar apenas que, como se depreende da citação anterior, a psicologia e a ética não são ciências idênticas para o autor. Jean Lefranc assinalou essa distinção, e a necessidade de limitar a expressão aqui abordada de Philonenko à ética, com as seguintes palavras: “Philonenko sugeriu a expressão ‘fenomenologia da vida ética’ para explicar essa busca do fundamento [científico da moral]. Acreditava Kant que poderia apoiar-se sobre o ‘fato’ da razão prática. Schopenhauer não lhe contrapõe nem uma psicologia nem uma sociologia, mas (...) ‘os três móveis fundamentais do egoísmo, da maldade e da piedade’ (...) Não se vejam aí ‘fatores’ psicológicos que contribuiriam para estabelecer uma nova classificação dos caracteres. Se existe aí alguma caracterologia, esta é de ordem ética” (LEFRANC, Compreender Schopenhauer, 154-155).

[28] Cf. SCHOPENHAUER, Metafísica de las costumbres, 2.

[29] PHILONENKO, Op. cit, 232.

[30] Idem.

[31]Τα μετα τα φυσικα” (tá metáfisicá), em grego, significa metafísica, isto é, “o que vem depois da física”.

[32] LAMBERT, J. H.. Philosophische Schriften, Bd. II. P. 215. Apud. PHILONENKO, Op. cit, 237.

[33] HEIDEGGER, El ser y el tempo, §7, 38, 45.

[34] PHILONENKO, Op. cit., 232.

[35] Idem.

[36] RIBOT, Schopenhauer y su filosofia, 138.

[37] PHILONENKO, Op. cit., 236.

[38] Idem, 235.

[39] Idem, 238.

[40] Idem.

[41] Idem, 239.

[42] Idem.

[43] Idem.

[44] Idem.

[45] Idem, 240.

[46] Idem, 245.

[47] Idem, 241.

[48] Um bom exemplo de atenção com a diferença entre a ética e a metafísica dos costumes de Schopenhauer se encontra em: DURANTE, Virtude, direito, moralidade e justiça em Schopenhauer, 8-26. L. Chevitarese e V. Debona também enfatizaram a distinção entre a metafísica dos costumes e o que chamaram, respectivamente, de uma “ética empírica” (CHEVITARESE, A eudemonologia empírica de Schopenhauer: a ‘liberdade que nos resta’ para a prática de vida, 141) e uma “pequena ética” (DEBONA, A Grande e a Pequena Ética de Schopenhauer, 38). Chevitarese chegou mesmo a falar de uma “radical distinção entre os pontos de vista metafísico e empírico, tal como Schopenhauer os concebe” (CHEVITARESE, Op. Cit., 140). Ambos opuseram nesses textos à metafísica dos costumes de Schopenhauer sua eudemonologia, exposta em Aforismos para a sabedoria de vida, e que também poderia ser chamada de fenomenológica. Que ela seja passível de ser concebida como um escrito de ética foi autorizado pelo próprio Schopenhauer, que definiu esse campo como uma “ética da melhoria” (E, §20, 199), muito embora ele a considere como fundada no “erro” (A, 1) de que há uma felicidade positiva nos aguardando alhures ou no futuro, quase que por uma questão de direito.

[49] RÉE, Der Ursprung der moralischen Empfindungen, Introdução, XII.

[50] NIETZSCHE, Mas allá del bien y del mal, §186, 125.

[51] Idem.

[52] PHILONENKO, Op. cit., 232.

[53] NIETZSCHE, Op. cit., §186, 125.

[54] FAZIO, KOSSLER, LÜTKEHAUS, Arthur Schopenhauer e La Sua Scuola, 73.