Submissão: 30/08/2019 Aprovação: 27/11/2019
Publicação: 18/12/2019
Dossiê
Filosofias da memória
Erros de Memória e Erros de (Teorias da) Memória
Errors of Memory and
Errors of (Theories of) Memory
Danilo Fraga Dantas
Doutor em Filosofia pela University of California
System. Pós-doutorando em Filosofia pela Universidade Federal
de Santa Maria
Resumo: Nesse
artigo, investigo três casos de erros de memória obtidos em laboratório como
forma de avaliar as principais teorias da memória (declarativa): teoria causal
e simulacionismo. De maneira geral, a teoria causal afirma que alguém lembra de
algo somente se sua lembrança está numa relação causal adequada com uma
experiência anterior daquilo que é lembrado. No simulacionismo, essa relação
não é necessária. Os casos de erros de memória investigados são DRM, “perdido
no shopping” e erro de conjunção de conteúdo. Esses casos são difíceis para a
teoria causal, especialmente em sua versão direta, mas não para o
simulacionismo. Minha hipótese é a de que essa dificuldade se deve
especificamente ao critério causal adotado.
Palavras-Chave: Memória
episódica; Falsas Lembranças; Confabulação
Abstract:
I investigate three lab cases of memory error and
test their consequences to the main theories of (declarative) memory: causal
theory and simulationism. Roughly, the causal theory
states that a subject remembers something only if her remembering is in a
causal relation with a past experience of that thing. In simulationism,
this relation is not necessary. The cases of memory error are DRM, “lost in the
mall”, and memory-conjunction error. These are problem cases for the causal
theory, but not for simulationism. My hypothesis is
that this difficulty is because of the causal requirement.
Keywords:
Episodic memory; False Memory; Confabulation
Erros da memória têm um papel importante na psicologia
e filosofia da memória. Em psicologia, eles oferecem insights para o
estudo do funcionamento normal da memória. Já em filosofia, erros de memória
são muitas vezes utilizados como uma forma de testar teorias da memória. Nesse
artigo, analiso três casos de erros de memória obtidos em laboratório como
forma de avaliar os dois principais tipos de teorias da memória (declarativa):
1.
Na teoria causal
(Bernecker[1] e Robins[2]), uma lembrança bem-sucedida requer uma representação
acurada do que é lembrado, em que a representação está numa conexão causal
adequada com uma experiência anterior do que é lembrado.
2.
No simulacionismo (Michaelian[3]), uma lembrança
bem-sucedida requer uma representação acurada do que é lembrado que seja gerada
por um processo mnêmico confiável.
Os casos os quais eu vou tratar são: o paradigma Deese-Roediger-McDermott
(DRM) (Deese[4] e Roediger e McDermott[5]); experimentos do tipo “perdido no shopping” (Loftus
e Pickrell[6]) e erros de conjugação de conteúdo (Reinitz et al.[7]). Eu investigo como a teoria causal e o
simulacionismo classificam esses erros de memória, entre lembrança verídica,
lembrança falsídica ou confabulação (falsídica). Argumento que esses casos são
problemáticos para a teoria causal, mas não para o simulacionismo e que essa
dificuldade se deve ao critério causal.
A discordância entre a teoria causal e o
simulacionismo em relação ao critério causal tem consequências para o modo como
modelamos o conteúdo do estado mental que acompanha a lembrança. Por isso,
essas teorias discordam na descrição de casos de lembranças falsídicas (ex. DRM).
Também, é sabido que essas teorias discordam sobre se casos do tipo “perdido no
shopping” são de lembrança falsídica ou confabulação (respectivamente). Nessas
duas circunstâncias, creio que o simulacionismo se sai melhor, mas que essa
discordância não é conclusiva. Porém, creio que a discordância acerca dos casos
de erro de conjugação de conteúdo é conclusiva em favor do simulacionismo.
Na seção ‘Preparativos’, esclareço alguns pontos sobre
o tipo de memória do qual trataremos (memória de indivíduos). Além disso,
explicito os pontos centrais da teoria causal e do simulacionismo e reviso como
essas teorias distinguem casos de lembrança verídica, lembrança falsídica e
confabulação (falsídica). Nas seções seguintes, discuto os casos de DRM,
“perdido no shopping” e erro de conjunção de conteúdo. Esses casos são difíceis
para a teoria causal (mas não para a teoria simulacionista). Na conclusão, argumento
que essa dificuldade se deve ao critério causal.
Preparativos
A teoria causal e o simulacionismo não tratam da
memória em geral, mas da memória declarativa. A distinção mais fundamental
entre tipos de memória é aquela entre memória de curta e de longa duração. A
memória de curta duração processa a informação por pouco tempo (milissegundos,
em alguns casos), enquanto a memória de longa duração trabalha com períodos
maiores. A memória de longa duração, por sua vez, é geralmente dividida em
memória de processos, que é a capacidade de desempenhar capacidades adquiridas
(ler, falar, dançar, etc) e memória declarativa, que é a capacidade de
recuperar no presente experiências e conhecimentos passados. O conteúdo da
memória declarativa pode ser descrito por proposições (daí o nome).
A teoria causal e o simulacionismo tratam da memória
declarativa, mas com ênfases diferentes (em ‘tipos’ diferentes de memória
declarativa). A princípio, é possível divisar um relativo consenso sobre a
existência de dois tipos gerais de memória declarativa [Tabela 1].
‘Lembrar
de’ |
‘Lembrar
que’ |
Proposto por |
Memória
episódica (experiência
autoconsciente) |
Memória
semântica (experiência
consciente) |
Tulving [8] |
Memória
experiencial (experiências
passadas) |
Memória
proposicional (lembrança
de que p é o caso) |
Malcolm[9] |
Tabela 1: Algumas classificações de tipos de memória
declarativa[10].
Apesar da aparente concordância geral, as distinções
na Tabela 1 utilizam critérios muito diferentes e, por consequência, apresentam
tipos com intensões e mesmo extensões diferentes. Por exemplo, enquanto a
distinção entre memória experiencial e proposicional diz respeito ao objeto da
lembrança (experiência passada ou proposição) a distinção entre memória
episódica e semântica diz respeito ao tipo de experiência envolvida na lembrança:
[Memória episódica] torna possível uma viagem mental
através do tempo subjetivo, do presente para o passado, tornando possível,
então, que voltemos a experimentar, através de uma consciência autonoética,
nossas experiências passadas[11].
Construções como “viagem no tempo mental” são
altamente metafóricas, mas, tanto quanto eu entendo, o que Tulving está
defendendo é que uma lembrança episódica envolve uma reconstrução mental
(talvez, uma imagem mental) de uma experiência passada. No que se segue, uso
‘lembrança’ (entre aspas simples) para me referir à experiência fenomênica
envolvida numa lembrança episódica. Suponho que essa experiência seja
representativa.
Nesse artigo, pretendo tratar na coluna do ‘lembrar
de’. Apesar de a maioria dos casos de memória episódica ser de casos de
‘lembrar de’ (e, creio, vice-versa), aparentemente existem casos de memória proposicional
que são episódicos[12]. Como quero tratar dos casos não-proposicionais de
memória episódica, vou utilizar a noção de memória de indivíduos utilizada por Dantas[13] e Rebello[14]. A lembrança de um indivíduo é uma lembrança
declarativa cujo objeto é um indivíduo concreto, como uma pessoa, um objeto, um
evento (evento mental ou não mental), etc.
Como (creio) toda lembrança de um indivíduo é uma
lembrança episódica, o foco em memória de indivíduos não deve influenciar a
avaliação do simulacionismo (Michaelian trata de memória episódica). No caso da
teoria causal, a situação é um pouco diferente. Robins parece tratar de memória
episódica, mas Bernecker trata de memória proposicional. Quero deixar claro que
as conclusões desse artigo dizem respeito à memória de indivíduos e podem não
se aplicar diretamente à memória proposicional (episódica ou não). Na
conclusão, especulo que algumas das características da posição de Bernecker
resultam do foco em memória proposicional.
Teoria
causal
A teoria causal afirma que a lembrança de um indivíduo
deve estar numa relação causal adequada com uma experiência anterior (ex.
percepção) daquele indivíduo. Na formulação clássica da teoria causal, um
sujeito lembra de “uma coisa passada” somente se os seguintes critérios são
satisfeitos:
1. Dentro de certos limites de acurácia o sujeito
representa a coisa passada.
2. Se a coisa foi pública, então o sujeito observou o
que agora a representa. Se foi privada, então ele a experimentou.
3. Sua experiência passada foi operativa em produzir
um estado ou uma sucessão de estados no sujeito que são operativos em produzir
a sua representação[15].
A noção de ser “operativa” deve ser entendida como uma
relação causal. Critérios semelhantes foram propostos por Bernecker e Robins.
Como uma simplificação, suponho que a percepção também envolve uma relação
causal e falo livremente da lembrança de um indivíduo como devendo estar numa
relação causal com o indivíduo ele mesmo[16]. Robins propõe uma taxonomia dos erros de memória que
utiliza esses critérios para distinguir entre lembrança verídica, lembrança
falsídica e confabulação (falsídica) [Tabela 3][17].
|
Acurácia |
Critério causal |
Lembrança Verídica |
Sim |
Sim |
Lembrança Falsídica |
Não |
Sim |
Confabulação (Falsídica) |
Não |
Não |
Tabela 2: Classificação causal para (alguns) erros de
memória[18].
Uma lembrança (verídica) é uma ‘lembrança’ acurada que
está numa relação causal com o indivíduo ‘lembrado’. No que se segue, utilizarei
outras duas simplificações. A teoria causal tende a tomar a memória como um
processo preservativo. Mas, devido ao crescente consenso de que a memória é um
processo construtivo[19], essas teorias tendem a incluir alguma margem de erro
para acurácia. Não vou me aprofundar sobre esse ponto. Além disso, a acurácia
de uma ‘lembrança’ é geralmente medida em relação a uma experiência passada do indivíduo
‘lembrando’. No que se segue, suponho que a experiência passada é maximamente
acurada e trato a acurácia da ‘lembrança’ diretamente em relação ao indivíduo ‘lembrado’.
No contexto da teoria causal, o conteúdo da
‘lembrança’ de um indivíduo a pode ser modelado da seguinte
maneira[20]:
P1a
& P2a & … & Pna,
em que P1, P2, …, Pn
modelam as propriedades (supostamente, do indivíduo lembrado) representadas na
‘lembrança’. A que função ‘&’ se refere depende da margem de erro adotada.
Se não há qualquer margem de erro, ‘&’ se refere à conjunção da lógica
clássica.
A teoria causal tem diferentes implementações. Em sua
versão direta, lembrar envolve ter acesso direto ao indivíduo ‘lembrado’,
acesso que seria independente de representações ou inferências[21]. Essa característica é modelada pela presença da
constante individual a no conteúdo da ‘lembrança’, especialmente porque,
numa teoria causal dos nomes próprios, a se refere diretamente a um indivíduo
(independentemente de representações ou inferências)[22].
Uma lembrança falsídica ocorre quando uma ‘lembrança’
que está numa relação causal com um indivíduo descreve inacuradamente esse indivíduo.
No modelo, há lembrança falsídica quando uma ‘lembrança’ tem conteúdo P1a
& P2a & … & Pna,
mas está numa relação causal com um indivíduo a tal que ¬Pia
para um número de Pi’s (dependendo da margem de erro). Robins[23] cita como exemplos de lembrança falsídica os casos de
DRM, em que sujeitos estudam listas de palavras tematicamente relacionadas e
‘lembram’ de palavras não estudadas.
O termo ‘confabulação’ foi introduzido no começo do
século XX para descrever sintomas de pacientes com síndrome de Korsakoff[24], mas posteriormente foi utilizado para lidar com um conjunto
mais amplo de fenômenos[25]:
Confabulação é um sintoma que às vezes é encontrado em
pacientes amnésicos e consiste na produção involuntária e inconsciente de
‘falsa lembranças’, que é a lembrança de episódios, que nunca, de fato,
aconteceram ou que ocorreram num contexto espaço-temporal diferente daquele
referido pelo paciente[26].
Para a teoria causal, uma confabulação ocorre quando
uma ‘lembrança’ não está numa relação causal com o indivíduo ‘lembrado’, seja
porque esse indivíduo não existe ou porque qualquer convergência entre o indivíduo
que causa uma ‘lembrança’ e o conteúdo dessa ‘lembrança’ se dá por algum tipo
de coincidência. No modelo, uma confabulação ocorre quando uma ‘lembrança’ cujo
conteúdo contém a, mas não está numa relação causal com a.
Robins cita como exemplos de confabulação (falsídica)
casos do tipo “perdido no shopping”, em que a ‘lembrança’ não teria “qualquer
influência da informação retida do evento passado”[27]. Causalistas tendem a distinguir casos de
confabulação ‘normal’ e de confabulação clínica[28].
Simulacionismo
No simulacionismo, lembrar é gerar uma representação
(“simulação”) mais ou menos semelhante ao indivíduo lembrado (dependendo da
margem de erro). Essa simulação pode ser gerada a partir de informações
adquiridas durante experiências passadas do sujeito, mas a ‘lembrança’ não
precisa estar causalmente ligada ao indivíduo lembrado em específico.
Michaelian propõe uma taxonomia dos erros de memória
utilizando três fatores: acurácia, confiabilidade e internalidade do processo
mnêmico [Tabela 4][29].
|
Acurácia |
Confiabilidade |
Lembrança Verídica |
Sim |
Sim |
Lembrança Falsídica |
Não |
Sim |
Confabulação (Falsídica) |
Não |
Não |
Tabela 4: Classificação simulacionista para (alguns)
erros de memória[30].
Uma lembrança (verídica) é uma ‘lembrança’ acurada
gerada por um processo mnêmico confiável. Um processo mnêmico é confiável
quando tende a gerar simulações acuradas. No que se segue, suponho que o
sistema mnêmico humano (sob condições e em funcionamento normais) implementa
processos mnêmicos confiáveis. Por isso, falo em sistemas mnêmicos confiáveis.
No simulacionismo, acurácia funciona mais ou menos
como na teoria causal. Porém, o modo como o simulacionismo descreve o
funcionamento da memória tem consequências para o modo como o conteúdo da
‘lembrança’ deve ser modelado. Diferentemente da teoria causal, o
simulacionismo não requer que a ‘lembrança’ de um indivíduo esteja causalmente
ligada a esse indivíduo em específico. Por isso, a maneira simulacionista de
modelar o conteúdo da ‘lembrança’ não usa constantes individuais, tais como a,
b, c, mas a quantificação existencial individual de Whitehead e
Russell[31], que utiliza o símbolo ‘℩’ para formalizar descrições definidas. O conteúdo da
‘lembrança’ deve ser modelado da seguinte maneira:
℩x(P1x
& P2x & … & Pnx),
em que o quantificador ℩x deve
ser lido como ‘o x tal que’. A expressão ℩x(Px) é
equivalente a ∃x(Px ˄ ∀y (Py → x = y)). Ou seja, a lembrança é sobre ‘o x’, qualquer que
seja, que tenha sido experienciado anteriormente pelo sujeito e que tenha as
propriedades representadas por P1, P2, …, Pn
(considerando a margem de erro).
Esse modelo está de acordo com o fato de que
simulacionistas tendem a defender uma teoria indireta da memória (ex.
Michaelian). O uso de descrições
definidas para modelar o caráter indireto dessa teoria é adequado porque o
significado de uma descrição pode ser explicado sem mencionar indivíduos (nem
mesmo o indivíduo, se há um e somente um, que satisfaz a descrição). O
conteúdo ℩x(P1x
& P2x & … & Pnx)
não nos dá qualquer acesso direto a qualquer indivíduo. Na conclusão, avalio a teoria
causal indireta à luz dos casos discutidos.
Uma lembrança falsídica ocorre quando uma ‘lembrança’
gerada por um sistema confiável tem um conteúdo do tipo ℩x(P1x
& P2x & … & Pnx),
mas ou (i) não há um x que tenha sido experieciado no passado e tenha as
propriedades representadas por P1, P2, …, Pn ou (ii) há mais de um x
experieciado no passado que tenha as propriedades P1, P2, …, Pn (considerando a margem
de erro). Nesse último caso (que é mais intrigante), o sujeito talvez lembre de
todos os indivíduos que cumprem a descrição, mas essa lembrança seria falsídica
porque seu conteúdo da representaria os indivíduos lembrados como sendo um e o
mesmo (‘o x tal que’).
Para Michaelian, tanto os casos de DRM quanto os de
“perdido no shopping” são casos de lembrança falsídica. Ou seja, há uma
discordância entre a teoria causal e o simulacionismo em relação a se casos de
“perdido no shopping” são de confabulação (falsídica) ou lembrança falsídica
(respectivamente). Para a teoria simulacionista, uma confabulação ocorre quando
uma ‘lembrança’ é gerada por um sistema mnêmico não confiável, ou seja, um
sistema que tende a gerar simulações inacuradas de indivíduos. No
simulacionismo, “confabulação’ diz respeito principalmente aos casos de
confabulação clínica, o que está de acordo com o uso inicial do termo.
Caso 1:
Deese-Roediger-Mcdermott (DRM)
Robins cita como exemplos paradigmáticos de lembrança
falsídica os casos de DRM. Michaelian concorda com esse diagnóstico.
O paradigma DRM é composto de duas fases. Na primeira
fase, os experimentadores apresentam aos participantes listas de palavras
semanticamente relacionadas. Na segunda fase, os experimentadores pedem que os
participantes lembrem tantas palavras apresentadas na primeira fase quanto eles
conseguirem. O resultado típico é que participantes ‘lembrem’ de uma
palavra-isca (“lure”), que não foi estudada na primeira fase, mas que serve de
um tipo de foco semântico da lista. Esse é um exemplo de lista apresentada por
Roediger e McDermott[32], em que ‘king’ é a isca:
(King)
queen, England, crown, prince, George, dictator, palace, throne, chess, rule,
subjects, monarch, royal, leader, reign.
Teoria causal
Para a teoria causal, casos de DRM são de lembrança
falsídica. Sendo assim, estes devem ser casos de ‘lembranças’ inacuradas que
cumprem o critério causal. A descrição mais natural dos casos de DRM seria a de
que as palavras estudadas na primeira fase causam a ‘lembrança’ da isca na
segunda (talvez, por causa das propriedades semânticas em comum). No modelo, a ‘lembrança’ teria conteúdo P1a
& P2a & … & Pna,
em que a se refere à isca e P1, P2, …, Pn representam a suas
propriedades fonéticas, morfológicas, semânticas, etc. Essa descrição não está
disponível para a teoria causal porque uma lembrança falsídica da isca
precisaria ser causada pela isca ela mesmo e não pelas palavras estudadas na
primeira fase.
Uma alternativa para
a teoria causal seria tomar o conteúdo da lembrança como sendo sobre a lista de
palavras como um todo: P1a & P2a
& … & Pna, em que a se refere a uma
lista de palavras e P1, P2, …, Pn
individuam as palavras que compõem a lista (talvez, representando propriedades
que individuem a primeira, segunda, etc palavra da lista e também a isca).
Nesse caso, a lembrança seria causada pela lista estudada na primeira fase, mas
teria um conteúdo inacurado porque ¬Pia para as
propriedades que individuam a isca como parte da lista.
Essa descrição é
problemática porque os participantes do estudo relatam lembrar não apenas das
palavras estudadas, mas também do evento do estudo de cada palavra em
específico.
Os participantes confiantemente relembraram e
reconheceram palavras que não foram apresentadas e também reportaram lembrar
a ocorrência desses eventos[33].
A descrição da teoria
causal trataria os eventos de estudo de cada palavra como propriedades do
evento geral de estudo da lista. Porém, a relação entre esses eventos é de
parte-todo (ex. a extensão espaço-temporal de cada um dos eventos específicos está
contida na do evento geral) e não uns sendo aspectos de outros. O estudo de
cada palavra é um indivíduo concreto (um evento) e não uma propriedade (propriedade
são às vezes tomadas como universais
abstratos) do evento geral de estudo da lista.
Restam duas
estratégias para a teoria causal:
·
Erro de
atribuição de coordenada espaço-temporal;
·
Erro de monitoramento de fonte.
A estratégia do erro de atribuição de
coordenada espaço-temporal consiste em tomar o conteúdo da ‘lembrança’ como
sendo, de fato, sobre a isca e tomar uma experiência anterior qualquer da isca
como sendo a causa da ‘lembrança’ (ex. a leitura da isca num livro qualquer).
Nesse caso, a lembrança seria falsídica porque seu conteúdo representaria a
isca como tendo sido estudada na primeira fase. Essa descrição é artificial
porque apela para um evento indeterminado de estudo da isca. Porém, essa
artificialidade não me parece ser evidência conclusiva contra a teoria causal,
especialmente porque essa estratégia pode ser aplicada mais naturalmente a
casos próximos aos de DRM[34].
A estratégia do erro de monitoramento de fonte[35] consiste em tomar o conteúdo da ‘lembrança’ como
sendo, de fato, sobre a isca e tomar uma imaginação anterior da isca como sendo
a causa da ‘lembrança’. A imaginação da isca poderia ter ocorrido, por exemplo,
durante a primeira fase do experimento (ex. suscitada pelas propriedades
semânticas das palavras estudadas). Nesse caso, a lembrança seria falsídica
porque seu conteúdo representaria a isca como tendo sido estudada (e não
meramente imaginada). Essa explicação me parece mais natural porque não depende
da suposição de um evento indeterminado de estudo da isca. Além disso, essa
estratégia é suportada por evidência empírica[36].
Simulacionismo
O diagnóstico simulacionista para os casos DRM é idêntico
ao da teoria causal: lembrança falsídica. Porém, creio que a descrição
simulacionista para os casos DRM é mais simples e natural que qualquer uma das
descrições causais.
Se casos de DRM são de lembrança falsídica, esses
casos devem ser de ‘lembranças’ inacuradas geradas por um sistema mnêmico
confiável. O conteúdo da ‘lembrança’ da isca seria algo do tipo ℩x(P1x
& P2x & … & Pnx) em que P1, P2, …, Pn representariam
propriedades (fonéticas, morfológicas, semânticas, etc) da isca, bem como a
propriedade de ter sido estudada na primeira fase. Como nenhuma das palavras
estudadas na primeira fase tem as propriedades fonéticas, morfológicas,
semânticas, etc da isca e a isca não foi estudada na primeira fase, o conteúdo
da lembrança é inacurado. Por outro lado, casos de DRM ocorrem em sistemas
mnêmicos humanos sob condições e em funcionamento normais[37].
Caso 2: perdido no shopping
Robins cita como exemplos paradigmáticos de
confabulação (falsídica) os casos do tipo “perdido no shopping”. Michaelian não
concorda com esse diagnóstico. Para os simulacionistas, casos de “perdido no
shopping” são de lembrança falsídica.
Loftus e Pickrell[38] recrutaram 24 pares de parentes, com idades entre 18
e 53 anos. Os parentes mais velhos relataram aos mais novos quatro histórias
sobre eventos da infância dos mais novos (três das histórias eram verdadeiras,
enquanto uma era sobre o evento não ocorrido em que o parente mais novo se
perdia num shopping). Os experimentadores pediram, então, que os parentes mais
novos ‘lembrassem’ dos quatro eventos (em duas entrevistas, realizadas entre
duas e quatro semanas depois de eles terem estudado as histórias). Na aplicação
mais famosa do paradigma[39], Chris, um garoto de 14 anos, foi informado por seu
irmão mais velho, Jim, que, quando ele (Chris) tinha 5 anos, ele havia se
perdido num shopping na cidade de Spokane, Washington, onde sua família fazia
compras, e que ele estava chorando bastante quando foi resgatado por um homem
idoso e então reunido a sua família. Nos dias seguintes, Chris ‘lembrou’ de
mais e mais detalhes sobre quando se perdeu no shopping. Ele ‘lembrou’ que o
homem que o resgatou era “muito bacana”. ‘Lembrou’ de ter ficado com muito medo
de nunca mais ver sua família novamente. E ‘lembrou’ de sua mãe ter ficado
zangada com ele.
Teoria causal
Para a teoria causal, casos de “perdido no shopping”
são casos de confabulação (falsídica). Sendo assim, casos de “perdido no
shopping” devem ser casos de ‘lembranças’ inacuradas que não cumprem o critério
causal. Existe uma descrição natural disponível para a teoria causal em que
esse é o caso. O conteúdo da ‘lembrança’ de Chris seria algo do tipo P1a & P2a & … & Pna,
em que a se refere ao evento em que Chris se perdeu num shopping em
Spokane aos cinco anos, etc e P1, P2, …, Pn representam as
propriedades desse evento. Como esse evento não ocorreu, ele não poderia ter
causado a ‘lembrança’ de Chris. Além disso, como esse evento não ocorreu, ele
não poderia ter as propriedades representadas por P1, P2, …, Pn. Apesar de haver um problema
na interpretação de ¬Pia numa teoria causal dos nomes
próprios, essa descrição me parece natural.
Porém, se a estratégia do erro de monitoramento de
fonte está disponível para casos de DRM, a mesma estratégia poderia ser
utilizada para casos de “perdido no shopping”. De fato, é essa a descrição
defendida por Loftus e Pickrell:
O desenvolvimento da falsa lembrança de ter se perdido
no shopping pode ter evoluído primeiramente quando uma mera sugestão de ter se
perdido deixa um traço de memória no cérebro. Mesmo se essa informação tenha
sido originalmente rotulada como uma sugestão em vez de um fato histórico…
enquanto o tempo passa o rótulo que indica que ter se perdido no shopping era
uma mera sugestão se deteriora. … Agora, você ‘lembra’ de ter se perdido no
shopping quando criança[40].
Nesse caso, porém, a ‘lembrança’ de Chris seria uma
lembrança falsídica (e não uma confabulação). O conteúdo da lembrança seria
algo do tipo P1a & P2a & … & Pna,
em que a se refere a um evento imaginado (provavelmente, enquanto Jim
descrevia o caso) e P1, P2, …, Pn representam as
propriedades desse evento, além da propriedade de ter ocorrido no passado de
Chris. O conteúdo da ‘lembrança’ seria inacurado porque o evento imaginado não
ocorreu no passado de Chris. Porém, a ‘lembrança’ de Chris teria sido causada
pelo evento imaginado. Para evitar essa possibilidade, uma opção é limitar o
critério causal de modo que apenas eventos concretos (não-imaginários) possam
causar lembranças. Mas, nesse caso, a estratégia do erro de monitoramento de
fonte não estaria disponível para os casos de DRM, onde ela é a estratégia mais
natural disponível.
Essa dificuldade não é conclusiva contra a teoria
causal. Há a possibilidade de limitar o critério causal de modo que apenas
eventos concretos possam causar lembranças (barrando a estratégia do erro de
monitoramento de fonte), utilizar a estratégia do erro de atribuição de
coordenada espaço-temporal para descrever os casos de DRM e utilizar a estratégia
natural para escrever os casos de “perdido no shopping” − mantendo, assim, os
diagnósticos de Robins. Porém, essa solução implica sustentar uma descrição
artificial para os casos de DRM e barrar a estratégia de monitoramento de
fonte, que, além de ser a descrição preferida por Loftus e Pickrell, é
amplamente estudada e aplicada na literatura[41].
Simulacionismo
O diagnóstico da teoria simulacionista para casos de
“perdidos no shopping” é de lembrança falsídica. O conteúdo da ‘lembrança’ de
Chris seria algo do tipo ℩x(P1x & P2x
& … & Pnx) em que P1, P2, …, Pn representariam
propriedades do evento em que Chris se perdeu num shopping em Spokane aos cinco
anos, etc (incluindo a propriedade de ter ocorrido no passado de Chris). Como
não há um evento com essas propriedades que tenha ocorrido no passado de Chris,
o conteúdo da ‘lembrança’ é inacurado. Por outro lado, erros do tipo “perdido
no shopping” ocorrem em sistemas mnêmicos humanos sob condições e em
funcionamento normais[42].
Uma diferença entre casos de “perdido no shopping” e
os casos paradigmáticos de confabulação clínica é que esses últimos ocorrem por
falha no sistema mnêmico. Por outro lado, utilizando a estratégia do erro de
monitoramento de fonte, os casos de “perdido no shopping” não envolveriam erros
do sistema mnêmico, mas apenas erros de julgamento[43]:
Nos casos de “perdido no shopping”, quando o sujeito
imagina inicialmente um evento, ele constrói uma representação de um evento que
ele não experienciou, mas ele não está tentando construir uma representação de
um evento que ele experienciou. Aqui, inacurácia não resulta do erro e a
questão do mal funcionamento não se coloca. Em casos de confabulação clínica,
em contraste, quando o sujeito imagina inicialmente o evento, ele constrói uma
representação de um evento que ele não experienciou, mas ele está tentando
construir uma representação de um evento que ele experienciou. Aqui, inacurácia
resulta de erro e o erro se deve a mal funcionamento [do sistema mnêmico][44].
No geral, teoria causal e o simulacionismo discordam
acerca de erros de monitoramento de fonte. Para causalistas, esses são casos de
confabulação; para simulacionistas, esses são casos de lembrança (geralmente,
falsídica). A diferença de diagnóstico se deve, em parte, à noção de
‘confabulação’ adotada. Para simulacionistas, ‘confabulação’ se aplica mais
diretamente aos casos clínicos, enquanto causalistas insistem num uso mais
amplo do termo. Por esse motivo, penso que a diferença de diagnóstico em
relação aos casos de ‘perdido no shopping’ não é evidência conclusiva a favor
de uma ou outra teoria. É plausível descrever esses casos como lembrança
falsídica quando ou confabulação, na noção mais
ampla de ‘confabulação’ causalista.
Caso 3: erro de conjunção de
conteúdo
Num caso típico de erro de conjunção de conteúdo, um
sujeito experiencia dois itens “aparentados” e tem uma ‘lembrança’ cujo
conteúdo é construído a partir de elementos dos dois itens estudados.
O experimento 6 de Reinitz et al[45] testou o fenômeno dos erros de conjunção de conteúdo
utilizando imagens de faces. Reinitz et al. testaram 48 participantes usando
desenhos simples de faces humanas construídos a partir de um “identikit”
produzido pelos experimentadores. Na fase de estudo, os experimentadores
apresentaram para cada participante seis faces humanas selecionadas
aleatoriamente, uma de cada vez, por 30 segundos cada. Depois da fase de
estudo, os experimentadores apresentaram aos participantes oitos estímulos para
a fase de reconhecimento: duas faces estudadas anteriormente (estímulo de tipo
1); duas faces construídas a partir de características de outras duas faces
estudadas anteriormente (tipo 2); duas faces construídas a partir de
características de uma face estudada anteriormente e características novas
(tipo 3) e duas faces completamente novas (tipo 4). Os participantes
responderam ‘sim’ ou ‘não’ à questão ‘essa face foi estudada anteriormente?’. A
frequência relativa de resposta ‘sim’ para estímulos de tipo 1, 2, 3 e 4 foram
de 0,71, 0,52, 0,19 e 0,13 (respectivamente). Chamarei os últimos três casos de
erros de tipo 2, 3 e 4 (respectivamente).
Figura 1: Caso de erro de conjunção de conteúdo.
Depois estudar as duas primeiras faces (mas não a terceira), 52% dos
participantes ‘lembram’ da terceira. Erro do tipo 2[46].
Suponha que Reinitz et al. tenham apresentado ao
participante S as duas primeiras faces da Figura 1 e perguntado se ele
‘lembrava’ da terceira. No que se segue, chamamos a primeira face de a,
a segunda de b e a terceira de c. A face c é composta pela
conjunção em proporções iguais de características de a (cabelos soltos,
orelhas cobertas, boca fechada, etc) e b (sobrancelhas finas, olhos
arredondados, nariz pequeno, etc).
Teoria causal
Suponha que o diagnóstico da teoria causal para os
casos de erro de conjunção de conteúdo seja de lembrança falsídica. Se esse é o
caso, a ‘lembrança’ de S deve ser inacurada, apesar de ser sobre indivíduo
que está numa relação causal com essa ‘lembrança’. Nesse caso, há duas
possibilidades de descrição do conteúdo da ‘lembrança’ de S disponíveis
ao causalista:
P1a & P2a
& … & Pna
e
P1b & P2b
& … & Pnb.
Em ambos os casos, teríamos uma lembrança falsídica.
Supondo que P1, P2, …, Pm
são acuradas em relação a (mas não a b) e Pm+1, Pm+2, …, Pn são acuradas em relação a b
(mas não a a), teríamos (respectivamente) uma lembrança causada por a
mas que descreve inacuradamente a e uma lembrança causada por b
mas que descreve inacuradamente b. Porém, não há maneira razoável de
decidir qual dessas fórmulas descreve o conteúdo da ‘lembrança’ (supondo que n
= 2m).
Porém, casos de erro de conjunção de conteúdo levantam
um problema mais sério para a teoria causal. Se as fórmulas acima são
indistinguíveis enquanto descrições do conteúdo da ‘lembrança’, esse não é o
caso quando o critério causal é levado em consideração. No primeiro caso, a
‘lembrança’ seria causalmente dependente de a (mas não de b); no
segundo caso, a ‘lembrança’ seria causalmente dependente de b (mas não
de a). Porém, a ‘lembrança’ de S parece ser causalmente
dependente tanto de a quanto de b. De fato, a explicação de
Reinitz et al. para seus resultados explora essa dupla dependência causal:
Os resultados, portanto, nos dão forte evidência
contra qualquer modelo que propõe que evocação envolva a ativação de um traço
de memória único que representa o estímulo previamente experienciado[47].
Bernecker[48] define o critério causal como uma noção
contrafactual: a ‘lembrança’ que um sujeito S tem de um indivíduo a
é causada por uma experiência anterior que S tem de a sse se
fosse o caso de S não ter experienciado a anteriormente, então S
não teria ‘lembrado’ de a. Na teoria “clássica” dos contrafactuais (cf. Lewis[49]), um contrafactual é verdadeiro quando seu
consequente é verdadeiro em todos os mundos possíveis maximamente
similares ao mundo atual em que seu antecedente o é. Nesse caso, nem a experiência
de a, nem a experiência de b causariam a ‘lembrança’ que S
tem de c porque, em 19% dos mundos possíveis maximamente similares ao
mundo atual[50], S ‘lembra’ de c mesmo não havendo
experienciado a (alternativamente, b) na primeira fase do estudo[51]. Bernecker[52] aceita a análise clássica dos contrafactuais. Para
lidar com esses casos, é necessária alguma noção probabilística de causalidade
(ex. Reichenbach[53]), já que o (não) estudo de a e b apenas modifica a
probabilidade da ‘lembrança’ de c,
não determinando se essa ‘ lembrança’ acontece ou não.
Porém, nesse caso o problema é outro: é difícil
expressar a dupla dependência causal no conteúdo da lembrança. Uma maneira de
fazê-lo seria a seguinte:
P1c & P2c
& … & Pnc & c=a & c=b.
Nesse caso, o conteúdo da ‘lembrança’ de S
resulta, de fato, inacurado. Não existe tal c concreto tal que P1c
& P2c & … & Pnc
& c=a & c=b, especialmente por causa da parte que afirma que c=a
e c=b. Porém, se estamos assumindo que um c imaginário não
pode causar lembranças (verídicas ou falsídicas), o critério causal não é
satisfeito. Nesse caso, o diagnóstico da teoria causal para casos de erro de
conjunção de conteúdo seria de confabulação (falsídica). Não consigo pensar
numa representação do conteúdo da ‘lembrança’ que resulte noutro diagnóstico.
Não me parece razoável tomar casos de erro
de conjunção de conteúdo como casos de confabulação (mesmo na noção causalista
de ‘confabulação’). A noção causalista de ‘confabulação’ diz respeito a
‘lembranças’ que falham em estar ancoradas na experiência passada do sujeito.
Mas casos de erro de conjunção de conteúdo são ancoradas na experiência passada
do sujeito (no estudo de a e b). Uma maneira de expressar esse
problema é o seguinte: se S não tivesse aprendido a face b
(alternativamente, a face a) na primeira fase do estudo, a teoria causal
teria descrito a ‘lembrança’ de S como lembrança falsídica[54]. Além disso, se c fosse composto
de mais propriedades de a (alternativamente, de b), haveria razão
para escolher a primeira fórmula (alternativamente, a segunda) e, novamente, o
diagnóstico da teoria causal seria de lembrança falsídica. Não me parece
razoável supor que ter visto mais faces na primeira fase do estudo (ou a
composição da terceira face ser levemente diferente) transforme uma lembrança
falsísica numa confabulação (falsídica), mesmo na noção causalista de
‘confabulação’.
Simulacionismo
O diagnóstico simulacionista para casos de erro de
conjunção de conteúdo é de lembrança falsídica. O conteúdo da ‘lembrança’ de S
seria algo do tipo ℩x(P1x
& P2x & … & Pnx),
em que os predicados P1, P2, …, Pn
representariam propriedades da face ‘lembrada’. Não existe ‘o x’ tal que
P1x, P2x, …, Pnx[55]. Por
isso, o conteúdo da ‘lembrança’ seria inacurado. Por outro lado, os erros de
conjunção de conteúdo ocorrem em sistemas mnêmicos humanos sob condições e em
funcionamento normais.
Conclusão
A principal diferença entre a teoria causal e o
simulacionismo é o critério causal: no causalismo, a lembrança de um indivíduo deve
estar numa relação causal como o indivíduo em questão; no simulacionismo, não é
necessário que essa relação causal
exista. Nesse artigo, defendi que essa diferença tem consequências para o modo
como a teoria causal (especialmente, em sua versão direta) e o simulacionismo
descrevem o conteúdo da ‘lembrança’ de um indivíduo.
Nos casos de DRM, as teorias concordam no diagnóstico
de lembrança falsídica. Porém, enquanto o diagnóstico do simulacionismo é único
e natural, há diferentes maneiras de descrever esses casos na teoria causal (e
as maneiras que retornam o diagnóstico desejado não são naturais). Nos casos de
“perdido no shopping”, as teorias discordam. O diagnóstico simulacionista (consistente
com o anterior) é de lembrança falsídica. O diagnóstico (pretendido pelo) causalista
é o de confabulação. Mas, para obter esse diagnóstico, a teoria causal precisa
barrar a estratégia de erro de monitoramento de fonte, que, além de ser uma das
estratégias que retornam o diagnóstico desejado para os casos de DRM, é o
diagnóstico utilizado por Loftus e Pickrell para descrever seus resultados.
A discordância entre a teoria causal e simulacionismo
sobre se os casos de “perdido no shopping” são de confabulação (falsídica) ou
lembrança falsídica (respectivamente) não é evidência conclusiva para uma ou
outra teoria, já que estas supõem noções diferentes de ‘confabulação’. O mesmo
não acontece em relação aos casos de erro de conjunção de conteúdo. O diagnóstico
simulacionista (consistente com os anteriores) é de lembrança falsídica. Qual
seja o diagnóstico causalista é uma questão complicada. Se o diagnóstico é de
lembrança falsídica, então a teoria causal prevê duas descrições diferentes,
mas indecidíveis, do conteúdo da ‘lembrança’. A outra opção acaba sendo um
diagnóstico de confabulação. Porém, esse diagnóstico não me parece consistente
com a noção causalista de ‘confabulação’.
Os problemas relatados nesse artigo talvez não tenham
passado pela cabeça de Bernecker pelo motivo de ele estar diretamente
interessado em memória proposicional. No caso da memória proposicional, não há
relação direta entre o conteúdo da ‘lembrança’ e o evento de aprendizado
anterior. Por exemplo, se eu lembro (episodicamente) que Cabral “descobriu” o
Brasil, o conteúdo dessa ‘lembrança’ não está diretamente relacionado ao evento
em que aprendi esse fato (provavelmente, na escola primária). Mas o caso é
diferente para a memória de indivíduos, em que o conteúdo da ‘lembrança’ de a
precisaria estar causalmente relacionado a uma experiência anterior de a.
Robins, por outro lado, não trata de memória proposicional.
Enquanto Bernecker adota expressamente uma teoria
direta da memória, Robins não o faz. A princípio, seria possível pensar numa
teoria causal indireta em que o conteúdo da ‘lembrança’ é tal qual o do
simulacionismo:
℩x(P1x
& P2x & … & Pnx).
A diferença entre uma teoria causal indireta e o
simulacionismo é que, na primeira teoria (mas não na segunda), ‘o x’ tal
que P1x & P2x & …
& Pnx deve ser a causa da ‘lembrança’.
Essa modificação não resolve nossos problemas. Nos
casos de DRM, a explicação mais natural continua não funcionando. As palavras
estudadas continuam não podendo ser a causa da ‘lembrança’. Restam a estratégia
do erro de atribuição de coordenada espaço-temporal e a estratégia de erro de
monitoramento de fonte. Porém, essa última estratégia deve ser barrada, caso
contrário os casos de “perdido no shopping” não seriam casos de confabulação.
Até aqui, a situação da teoria causal indireta é estritamente paralela à da
teoria causal direta.
Nos casos de erro de conjunção de conteúdo, a situação
da teoria causal indireta é, num certo sentido, pior que a da teoria causal
direta, já que a teoria causal indireta classifica esses erros inequivocamente
como casos de confabulação (falsídica). O conteúdo da ‘lembrança’ seria algo do
tipo ℩x(P1x & P2x
& … & Pnx), em que os predicados P1, P2, …, Pn representariam
propriedades da face ‘lembrada’. Não existe ‘o x’ tal que P1x
& P2x & … & Pnx. Por
isso, o conteúdo da ‘lembrança’ seria inacurado. Porém, exatamente porque não
há ‘o x’ tal que P1x & P2x
& … & Pnx (supondo que xs
imaginários não causam lembranças de indivíduos não-mentais), esse x não
pode ter causado a ‘lembrança’. Resultado:
confabulação (falsídica). De fato, nessa teoria todo caso de ‘lembrança’
incacurada é um caso de confabulação (não há ‘o x' que possa causar a
lembrança).
A conclusão, então, é
a de que a dificuldade que a teoria causal tem de lidar com os casos de DRM,
“perdido no shopping” e erro de conjunção de conteúdo deve-se mesmo ao critério
causal. Num próximo artigo, pretendo investigar como construir uma teoria
causal indireta cujo critério causal não resulte nesses problemas.
Ao Prof. Jaime Parera Rebello, que, além de ter me
iniciado nas artes da memória e Filosofia da Linguagem, orientou a dissertação
na qual esse artigo é baseado.
Referências
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[1] BERNECKER,
The Metaphysics of Memory.
[2] ROBINS,
Misremembering.
[3] MICHAELIAN,
Mental Time Travel: Episodic Memory and Our Knowledge of the Personal Past.
[4] DEESE.
On the Prediction of Occurrence of Certain Verbal Intrusions in Free Recall.
[5] ROEDIGER
& MCDERMOTT. Creating False Memories: Remembering Words Not Presented in
Lists.
[6] LOFTUS
& PICKRELL. The Formation of False Memories.
[7] REINITZ,
LAMMERS, & COCHRAN. Memory-Conjunction Errors: Miscombination
of Stored Stimulus Features Can Produce Illusions of Memory.
[8] TULVING.
Episodic Memory: From Mind to Brain.
[9] MALCOLM.
Memory and Mind.
[10]DANTAS. Memória Incerta:
Lembranças, Falsas Lembranças e as Ciências da Memória, p. 11.
[11] TULVING.
Episodic Memory: From Mind to Brain, p. 5.
[12] BERNECKER.
A Causal Theory of Mnemonic Confabulation, p. 3, nota de rodapé 4.
[13] DANTAS. Memória
Incerta: Lembranças, Falsas Lembranças e as Ciências da Memória, p. 15.
[14] REBELLO.
Elementos para uma Análise do Recordar.
[15] MARTIN
& DEUTSCHER. Remembering, p. 166, tradução minha.
[16] Se a
experiência passada é uma alucinação (uma imaginação, etc), o indivíduo
lembrado é um evento mental.
[17] Existem casos
de confabulação verídica (cf. MICHAELIAN. Confabulating,
Misremembering, Relearning: The Simulation Theory of Memory and Unsuccessful
Remembering, p. 4),
mas não vou tratar desses casos.
[18] ROBINS.
Mnemonic Confabulation, p. 4.
[19] Cf. SCHACTER
& ADDIS. The Ghosts of Past and Future: A Memory That Works by Piecing
Together Bits of The Past May Be Better Suited to
Simulating Future Events Than One That Is A Store of Perfect Records.
[20] Não estou
afirmando que o conteúdo da ‘lembrança’ de a tenha essa forma (ex. não
estou afirmando que o conteúdo da ‘lembrança’ de a seja proposicional).
Esse é apenas um modelo (muito) simplificado usado para chamar a atenção para
as diferenças relevantes entre a teoria causal e o simulacionismo.
[21] BERNECKER,
The Metaphysics of Memory, p. 62.
[22] Na Conclusão,
discuto a possibilidade de uma teoria causal indireta. Os problemas tratados
aqui não são resolvidos por essa modificação.
[23] ROBINS,
Misremembering, p. 434.
[24] Cf. BERRIOS. Confabulations: A
Conceptual History.
[25] Nem toda
confabulação é sobre o passado e nem toda confabulação envolve erros de
memória. Trato aqui de confabulações mnêmicas (que envolvem erros de
memória).
[26] DALLA BARBA. Memory, Consciousness and Temporality,
p. 28, tradução minha.
[27] ROBINS,
Misremembering, p. 434.
[28] ROBINS.
Mnemonic Confabulation, p. 9.
[29] Não vou
tratar desse terceiro parâmetro porque ele se destina a distinguir casos de
reaprendizado de casos de lembranças (verídicas e falsídicas) e confabulação
(verídica e falsídica).
[30] MICHAELIAN.
Confabulating, Misremembering, Relearning: The Simulation Theory of Memory
and Unsuccessful Remembering, p. 8.
[31] WHITEHEAD
& RUSSELL. Principia Mathematica.
[32] ROEDIGER
& MCDERMOTT. Creating False Memories: Remembering Words Not Presented in
Lists, p. 814.
[33] Idem, p. 812, com tradução e ênfase minha.
[34] Em 1992, o
então candidato à presidência dos EUA, Ross Perot desistiu da concorrência, que
chegou a liderar com 39%. Poucos dias depois, Levine
(cf. LEVINE. Reconstructing
Memory for Emotions) entrevistou
227 correligionários de Perot, para saber como eles se sentiam sobre a
desistência de seu candidato. Em outubro daquele mesmo ano, Perot resolveu
voltar à disputa e terminou as eleições com 18% dos votos. Após o final das
eleições, Levine pediu a 147 dos correligionários entrevistados anteriormente
que eles lembrassem de como eles se sentiam em julho e que relatassem também
seus sentimentos atuais sobre o tema. A conclusão foi que os correligionários
que voltaram à campanha ‘lembraram’ de sentir menos raiva do que sentiram,
enquanto os que abandonaram definitivamente a campanha ‘lembraram’ de ter menos
esperança do que tiveram. Para explicar seus dados, Levine afirma que o que os
participantes ‘lembravam’ de sentir era influenciado pelo que eles sentiam no
presente. Ou seja, os participantes ‘lembraram’ de um sentimento que tiveram no
passado próximo, mas localizaram erradamente esse sentimento no tempo.
[35] Cf. JOHNSON,
HASHTROUDI, & LINDSAY. Source Monitoring. Psychological
Bulletin.
[36] Johnson et al. (JOHNSON,
RAYE, WANG, & TAYLOR. Fact and Fantasy: The Roles of Accuracy and
Variability) pediram que os participantes contassem quantas vezes eles viram e
quantas vezes imaginaram uma determinada figura. Os experimentadores, então,
variaram o número de vezes em que a figura era mostrada e o número de vezes em
que pediam aos participantes que eles imaginassem a figura. Os pesquisadores
concluíram que, quanto mais era pedido que os participantes imaginassem a
figura, maior era o número de vezes em que eles estimavam tê-la visto.
[37] O efeito DRM
tem sido replicado extensivamente e pode ser obtido a partir de diferentes
formas de similaridade (categórica, fonológica, ortográfica); tipos de estímulo
(figura, faces, matrizes de ponto); intervalos entre as fases de estudo e
reconhecimento (horas, dias, meses), etc. Cf. ROBINS, Misremembering, p. 434.
[38] LOFTUS
& PICKRELL. The Formation of False Memories, p. 721.
[39] LOFTUS, COAN, & PICKRELL.
Manufacturing False Memories Using Bits of Reality.
[40] LOFTUS
& PICKRELL. The Formation of False Memories, P. 724, tradução minha.
[41]Ex. JOHNSON,
FOLEY, & LEACH. The Consequences for Memory of Imagining in Another
Person's Voice.
[42]Por exemplo, a
testemunha de um crime pode afirmar reconhecer a face de um indivíduo quando
ela, de fato, viu diferentes faces que, em conjunto, têm as características da
face do acusado. Brown et al. (cf. BROWN, DEFFENBACHER, & STURGILL. Memory for Faces and the Circumstances of Encounter) testou essa
possibilidade em condições mais próximas das ecológicas.
[43]Michaelian (MICHAELIAN. Confabulating,
Misremembering, Relearning: The Simulation Theory of Memory and Unsuccessful
Remembering,
p. 6) discute melhor esse ponto. Para ele, há
uma diferença entre casos de DRM e de “perdidos no shopping”, porém essa
diferença não implica classificar uns como lembranças falsídicas e outros como
confabulação (falsídica).
[44] MICHAELIAN.
Confabulating, Misremembering, Relearning: The Simulation Theory of Memory
and Unsuccessful Remembering, p. 7, tradução minha.
[45] REINITZ,
LAMMERS, & COCHRAN. Memory-Conjunction Errors: Miscombination
of Stored Stimulus Features Can Produce Illusions of Memory, p. 8.
[46] Idem, p. 6.
[47] Idem, p. 9, tradução minha.
[48] BERNECKER.
A Causal Theory of Mnemonic Confabulation, p. 9.
[49] LEWIS. Counterfactuals.
[50] Esse é o
caso, por exemplo, se utilizamos o critério de similaridade “clássico”,
proposto por Lewis (cf. LEWIS. Counterfactual Dependence and Time’s Arrow, p. 472), já
que, dado esse critério, nos mundos possíveis próximos, generalizações nômicas
são mantidas intactas.
[51] Estou tomando
os resultados de Reinitz et al. como expressando a frequência em que um
sistema mnêmico humano normal comete esses erros. No caso específico, refiro-me
aos erros do tipo 3, em que participantes ‘lembram’ de faces compostas por
algumas características de faces estudadas e outras características
não-estudadas (frequência de 0,19). Também estou supondo que há uma relação
entre probabilidade e mundos possíveis próximos e que probabilidades expressam
proporções desses mundos. Por isso, interpreto o resultado do experimento como
implicando que 19% dos mundos possíveis maximamente similares ao mundo atual, S
‘lembra’ de c mesmo não havendo experienciado a (alternativamente, b) na
primeira fase do estudo.
[52] BERNECKER. Memory: A
Philosophical Study, p. 98.
[53] REICHENBACH. The Direction
of Time.
[54] O conteúdo da
‘lembrança’ de S seria P1a & P2a & …
& Pna, em que, para metade dos Pi, ¬Pia (inacurado),
porém a ‘lembrança’ seria inequivocadamente causada por a.
[55] No caso de a
margem de erro permitida ser muito alta, há dois indivíduos que satisfazem essa
descrição (a e b). No caso de a margem de erro ser mais baixa,
não há nenhum. Em
ambos os casos, o conteúdo é inacurado.