Submissão: 30/08/2019 Aprovação: 04/12/2019
Publicação: 18/12/2019
Dossiê
Filosofias da memória
“A gênese da ideia de tempo”, de Henri Bergson[1]
BERGSON,
Henri. “La genèse de l'idée de temps”. Revue Philosophique de la France et de
l’Étranger, Paris, t. 31, jan.-juin, 1891, pp.
185-190.
João Paulo Maldonado de Souza
Mestre em Filosofia pela Universidade
Federal de Pernambuco.
E-mail: josepaulomaldonado@gmail.com
Gabriel Kafure da Rocha
Professor de Filosofia do Instituto Federal do Sertão Pernambucano.
E-mail: gabriel.rocha@ifsertao-pe.edu.br
Neste pequeno livro muito interessante
(publicado sob os cuidados do Sr. Fouillée), o Sr. Guyau se propôs a mostrar
como o sentido da duração evolui na consciência. O autor primeiramente
distingue entre a forma passiva e o
fundo ativo da noção de tempo; ele opõe o leito
do
tempo a seu curso. Considerada do
primeiro ponto de vista, a ideia de tempo compreende quatro elementos: diferenças, semelhanças, número e grau. Numa massa homogênea, com efeito,
nada poderia fazer nascer a ideia de tempo; a duração só começa com certa
variedade de efeitos. Mas, por outro lado, a heterogeneidade absoluta, se ela
fosse possível, excluiria também o tempo, que tem por principal característica
a continuidade. Ora, a percepção das diferenças e das semelhanças tem por
resultado a noção de dualidade, e com a dualidade se constrói o número[2]. Quanto à noção de grau, ela está estreitamente ligada a de momento, pois cada momento do tempo pressupõe um grau na atividade
e na sensibilidade[3]. De sorte que, em definitivo, o quadro em que o tempo
parece mover-se, a forma do tempo, é uma ordem de representações a uma só vez
diferentes e semelhantes, formando uma pluralidade de graus[4].
Resta determinar o que o autor chama de “fundo ativo da noção de tempo”.
Este fundo ativo é a própria consciência, enquanto distingue um passado, um
presente e um futuro. Mas esta distinção é ela mesma adquirida; remonta, em
última análise, ao sofrer e ao agir. “Quando experimentamos uma dor e
reagimos para afastá-la, começamos a cortar o tempo em dois, em presente e em
futuro. Essa reação com relação aos prazeres e às dores, quando se torna
consciente é a intenção. E, segundo
pensamos, é a intenção espontânea ou refletida, que engendra simultaneamente as
duas noções de espaço e de tempo”[5]. “O futuro, na origem, é o devendo ser, é aquilo que não tenho e de que tenho desejo ou
necessidade. (...) Na origem, o curso do tempo é, portanto, apenas a distinção
entre o desejado e o possuído, que se reduz ela mesma à intenção seguida de um
sentimento de satisfação”[6]. Esta
intenção é ela mesma primeiramente força ou esforço. O futuro é o aquilo que
está diante do animal e o que ele busca agarrar; o passado é aquilo que
está está atrás e o que ele não mais
vê[7]. De sorte que, em última análise, a sucessão é um abstrato do esforço motor exercido no espaço,
esforço que, tornado consciente, é a intenção.
O Sr. Guyau é, portanto, gradualmente
levado a procurar no espaço a origem ou a explicação da disposição das imagens
no tempo. “Se eu vou do ponto A para o ponto B e volto do ponto B para o ponto
A, obtenho assim duas séries de sensações, de que cada termo corresponde a um
dos termos da outra série. Apenas esses termos correspondentes se encontram
ordenados em meu espírito, algumas vezes em relação ao ponto B, tomado como
finalidade, outras vezes em relação ao ponto A. Só tenho então que aplicar as
duas séries uma sobre a outra, virando-as, para que elas coincidam
perfeitamente de uma ponta a outra. Essa total coincidência entre dois grupos
de sensações, como se sabe, é o que melhor distingue o espaço do tempo. Quando
não considero essa coincidência possível ou real, tenho na memória apenas uma
série de sensações, organizadas segundo uma ordem de clareza. [...]. Assim
estabelece-se uma perspectiva interior que vai para frente em direção ao futuro”[8].
O Sr. Guyau conclui desta análise que a
ideia de tempo se depreende da de espaço, e que o movimento serve de intermédio. “Pode-se, portanto, dizer que o tempo é uma
abstração do movimento, da χίηεσις,
uma fórmula através da qual resumimos um conjunto de sensações ou de esforços
distintos uns dos outros”[9]. E vai um pouco mais longe: “É o movimento no espaço
que cria o tempo na consciência humana. Sem movimento, não existe tempo”[10]. A própria localização das lembranças no tempo é
feita por intermédio do espaço, pois o quadro da lembrança é antes de tudo um
lugar, que provoca a lembrança de uma data[11]. Se os Srs. Ribot e Taine nos mostraram que
utilizamos pontos de referência para
localizar de maneira precisa as imagens no tempo, resta acrescentar, segundo o
Sr. Guyau, que estes pontos de referência são sempre tomados da extensão ou ligados à extensão. Mesmo que se tome por
ponto de referência alguma grande dor moral ou alguma grande alegria, esta dor,
esta alegria está inevitavelmente localizada no espaço, e é
somente por meio deste que aquela poderá ser localizada no tempo, depois de servir ela mesma como ponto de referência à novas localizações no tempo[12]. Não há somente analogia, há identidade entre as duas
localizações no tempo e no espaço. Pois é somente por intermédio do espaço que
podemos mensurar o tempo. “Vocês se lembrarão daquilo que fizeram durante um
certo tempo em tal meio e compararão essa lembrança com as suas impressões
presentes, para dizer: ‘É de comprimento quase igual ou desigual’”[13].
Mas, então, como distinguir o tempo do
espaço? O sentido externo que mais serviu para operar esta distinção, segundo o Sr. Guyau, é a audição, precisamente porque a audição não localiza
senão muito vagamente no espaço, enquanto localiza admiravelmente na duração[14]. Depois da
audição vem a imaginação. “Nós não fazemos movimentos apenas com as nossas
pernas, os fazemos com as nossas representações [...] e não tardamos a
distinguir essas espécies de passeios interiores da locomoção exterior”[15].
Se a estimativa da duração é apenas um
fenômeno de “óptica interior”, ela será essencialmente relativa. Ligada, com efeito: 1) à intensidade
das imagens representadas; 2) à intensidade das diferenças entre essas imagens; 3) ao número dessas imagens e ao número de suas diferenças; 4) à velocidade da sucessão das imagens; 5)
às relações mútuas entre essas imagens; 6) ao tempo necessário para a concepção
dessas imagens e suas relações; 7) à intensidade de nossa atenção a essas
imagens e às emoções de prazer e de pena, aos desejos ou afecções, que
acompanham essas imagens; 8) à relação dessas imagens com nossa atenção, com nossa previsão. O Sr. Guyau
consagra um capítulo especial àquilo que chama de “ilusões do tempo”; e analisa
com rara engenhosidade alguns dos erros que cometemos na apreciação da duração.
Ora explica estes erros por meio das ilusões de
perspectiva, análogas às da percepção do espaço, ora
as relaciona à causas afetivas. Citamos em particular a bem conhecida
explicação da ilusão, assinalada por Stevens, que consiste em encurtar os
tempos curtos e alongar os tempos longos. “Quando o intervalo a ser reproduzido
está abaixo do ponto de indiferença, tentamos em vão representá-lo primeiramente mais longo do que ele é, percebemos que
ele é rápido e imprimimos a nós mesmos na reprodução motora, uma velocidade que
tem como finalidade não permanecer abaixo do tipo. Essa velocidade termina por encurtar
os intervalos já curtos. Ao contrário, quando o intervalo de tempo está acima
do ponto de indiferença, ele parece longo apesar do encurtamento que a
imaginação faz contra a vontade dela, e a vontade imprime um movimento lento,
um movimento contido, por medo de precipitar-se muito”[16]. Se um ano cheio de eventos marcantes e diversos
parece mais longo, é porque o comprimento aparente do tempo apreciado à
distância aumenta em razão do número de diferenças nítidas e intensas
percebidas nos eventos rememorados[17]. Enfim, se os anos nos parecem tão longos na
juventude e tão curtos na velhice, é sobretudo porque as impressões da
juventude são vivas, novas e numerosas; os anos, portanto, são cheios,
diferenciados de mil maneiras[18].
A conclusão do Sr. Guyau é que “o tempo
não é uma condição, mas um simples efeito da consciência. Ele não a constitui,
ele provém dela. Não é uma forma a priori
que nós imporíamos aos fenômenos, é um conjunto de relações que a experiência
estabelece entre eles. [...] É uma diferenciação introduzida nas coisas. […] É
a reprodução de efeitos análogos em um meio diferente ou de efeitos diferentes
em um meio análogo. […] O tempo é a
fórmula abstrata das mudanças do universo”[19].
Encontramos a mesma conclusão desenvolvida
na notável introdução que o Sr. Fouillée escreveu para o volume. O Sr. Fouillée
ataca vigorosamente a teoria kantiana das formas puras da sensibilidade. A
noção de tempo não nos é dada a priori;
é um produto refinado da reflexão humana, como as noções de infinito,
imensidão, causalidade universal. Ela resulta do aperfeiçoamento da
inteligência, de “representações primeiramente isoladas, que se elevam em graus
à representação de uma série intensiva, extensiva e protensiva”[20].
Nesta análise do trabalho do Sr. Guyau e
da introdução do Sr. Fouillée, deixamos de lado certo número de observações
originais, de comparações engenhosas, para levar em conta apenas a tese
fundamental. Se então procurássemos destacar
o princípio desta teoria, descobriríamos, cremos nós, que ela consiste
essencialmente em considerar o tempo como uma realidade dada ou proposta à
consciência, e em determinar o processo por meio do qual chegamos a distinguir
um passado, um presente e um futuro. Quando o Sr. Guyau fala de uma perspectiva no tempo, não é apenas uma
metáfora. A verdade é que ele toma o tempo do mesmo
modo que poderia tomar
o espaço, e se propõe, sobretudo, a descrever o mecanismo da operação por meio
da qual distinguimos os planos sucessivos neste espaço de novo gênero. O Sr.
Guyau procede, portanto, à maneira dos psicólogos evolucionistas; mostra-nos a
adaptação progressiva do conhecimento a seu objeto.
Ora, pode-se aplicar este método, a nosso
ver, a muitos problemas psicológicos, mas não ao do tempo. Questionar-se, com efeito, por meio de qual processo chegamos a
conhecer um objeto, é supor este objeto invariável e de algum modo exterior à
consciência. Mas semelhante suposição se torna contraditória em se tratando da
duração, cuja essência é escoar sem cessar, e, por conseguinte, de existir apenas para uma consciência e uma
memória. Aqui, portanto, não se pode
mais colocar a questão de reconstituir por
síntese a evolução do sentido do tempo; pelo contrário, é preciso,
por um esforço de análise, dissociar a sucessão pura, a intuição imediata do
tempo, das formas com as quais a envolvemos para maior
comodidade do pensamento discursivo e da linguagem.
Se nos colocássemos nesse ponto de vista,
descobriríamos que o tempo puro não tem momentos separados ou distintos, que
nenhuma de suas partes nem começa nem termina, propriamente falando, mas que
cada uma delas se prolonga e se continua em todas as
outras, à maneira das nuances sucessivas do espectro solar. A sucessão distinta,
tal qual aparece à consciência refletida, é apenas a dissociação e a
justaposição, no espaço homogêneo, de imagens extensas que substituem a
penetração mútua de nossos estados de consciência. Esta substituição seria
ademais impossível se não houvesse fora de nós, no espaço, mudanças
descontínuas, cuja sucessão além de não possuir analogia alguma com nossos
estados de consciência, corta em fatias distintas a série indivisa dos estados
interiores dos quais são contemporâneos. A simultaneidade é, portanto, o traço
de união, o ponto de contato entre a duração interior, que é a duração real, e
o tempo exterior, do qual não percebemos
senão clarões instantâneos, isto é, partes que
não duram.
Por não ter seguido este método, somente aplicável aqui, é que o Sr. Guyau
atribui ao tempo características que pertencem, em realidade, ao espaço. Ele
distingue o espaço do tempo, sobretudo pelo fato de que as séries espaciais
podem retornar, ao passo que a perspectiva interior segue de trás para frente,
em um sentido determinado: “As mesmas sensações repetidas, os esforços
repetidos no mesmo sentido, com a mesma intenção, constituem uma série cujos
primeiros termos são menos distintos e os últimos, mais…”[21] - Mas uma série, no sentido em que o Sr. Guyau toma a palavra, seria
concebível fora do espaço? A representação de uma série de termos que se
sucedem sem dúvidas implica uma
sucessão, mas também, por outro lado, uma justaposição, porque retemos e
imobilizamos os termos que passam para os dispor ao lado dos que se seguem. Ora, justaposição e imobilidade só podem ser
concebidas no espaço. Uma série pensada sempre
o é mais ou menos no espaço; na duração pura, de alguma maneira, há somente
séries vividas.
O Sr. Guyau bem compreendeu que o tempo,
tal como o percebe a consciência refletida, é uma tradução da
duração em espaço; mas parece não ter percebido nem como esta tradução é feita,
nem porque ela é possível, nem sobretudo no que consiste a duração
real, abstração feita do espaço que a simboliza. Como é feita esta tradução? Por intermédio, cremos nós, das simultaneidades, que são o traço de
união entre o tempo e o espaço. Por que ela é possível? Porque nossos estados
psíquicos e os estados do mundo exterior são contemporâneos. Enfim, o que seria a duração pura sem o espaço? Uma
multiplicidade de estados que nada tem em comum com a multiplicidade de
unidades de um número, uma multiplicidade vivida,
não numerada. - Para o Sr. Guyau, ao contrário, o tempo é “uma fórmula por meio da qual
resumimos um conjunto de sensações ou esforços distintos uns dos outros”[22]. Ele parece não ter percebido que a “distinção” já
supõe os termos separados uns dos outros por intervalos vazios e, por
conseguinte, disseminados no espaço. - O curso do tempo seria ainda, em sua
origem, a “distinção do desejado e do possuído”. Mas antes bem poderíamos dizer que é a distinção do atualmente presente e do
simplesmente pensado, do real e do possível, do percebido e do reconhecido, - e
depois a ideia mesma de uma distinção precisa e numérica já implica a intuição
de um espaço vazio, onde os dois termos distinguidos justapõem-se.
Para dizer a verdade, a questão essencial
é colocada da seguinte maneira: haveria somente uma espécie de multiplicidade -
a multiplicidade numérica -, ou poderíamos conceber ou perceber uma outra? Se
nos colocarmos na primeira hipótese - e é o que parece fazer o Sr. Guyau -, é
inútil querer representar o tempo sem o espaço, pois já começamos colocando o
espaço no tempo: quem diz multiplicidade numérica, diz multiplicidade de
justaposição, multiplicidade no espaço. Se, pelo contrário, o tempo é
radicalmente distinto do espaço e concebível sem ele, somente pode sê-lo sob uma condição: que ao lado da multiplicidade
numérica haja uma outra multiplicidade, uma em que não haja nem distinção precisa,
nem justaposição. O psicólogo deverá, então, nos mostrar como a
multiplicidade da penetração se exprime
na multiplicidade da justaposição. E não será capaz de resolver este problema senão, por um lado, analisando a consciência
nos raros momentos em que ela é recobrada, e por outro, interrogando a ciência
positiva, a física, a astronomia e a mecânica sobre o papel do tempo fora da
consciência.
O Sr. Fouillée parece levar a análise mais
longe que o Sr. Guyau quando diz em sua introdução que: “Um ser que muda
passando do prazer à dor pode sentir-se em mudança
mesmo que ele ainda não conceba o tempo
nem a relação entre os dois termos da mudança”[23]. Ele tem igualmente razão em considerar o tempo como
um dado da experiência imediata, e não, como queria Kant, uma forma a priori da sensibilidade. Levando a
termo esta ideia, ele teria descoberto que a teoria de Kant consiste
precisamente em uma confusão da duração real com seu símbolo espacial, e que o
problema colocado entre os filósofos é sempre o de saber se há duas espécies de
multiplicidade ou se somente
percebemos uma.
Referências
BERGSON, Henri. La genèse de l’idée de temps.
Revue Philosophique de la France et de
l’Étranger, Paris, t. 31, jan.-juin, 1891, pp.
185-190.
FOUILLÉ, Alfred. La psychologie des idées-force. Tomo 2. Paris: Félix Alcán, 1893.
GUYAU, Jean-Marie. La genèse de l’idée de temps: avec une
introduction par Alfred Fouillée; Paris: Félix Alcán,
1890.
GUYAU, Jean-Marie. A gênese da ideia de tempo e outros escritos. Trad. Regina Schöpke & Mauro Baladi. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
[1]
A presente tradução refere-se à resenha
de Henri Bergson ao livro
de
Jean-Marie Guyau, La genèse de l'idée de temps (1890). Para efeitos
de adaptação do texto, a indicação das páginas das citações
diretas e indiretas, bem como a reprodução de
trechos das citações diretas e a opção pela
correspondência de certos termos, foram
baseadas
na edição brasileira de A gênese da ideia de tempo e outros
escritos (2010), com tradução, organização e notas por Regina
Schöpke e Mauro Baladi. Os tradutores
agradecem a leitura de Amanda Gioriatti (Graduanda em Antropologia - UFPB),
Eduardo Nascimento (Graduando em Letras - UFPB) e Heloisa Gabrielly (Graduanda
em Filosofia - UFCG) (N.T.).
[2]
GUYAU, A gênese da ideia de tempo e
outros escritos, p. 61-62.
[3] Ibid., p. 63.
[4] Ibid., p. 64.
[5] Ibid., p. 68-69.
[6] Ibid., p. 69-70.
[7] Ibid., p. 73.
[8] Ibid., p. 74-75.
[9] Ibid., p. 73-74.
[10] Ibid., p. 83.
[11] Ibid., p. 96.
[12] Ibid., p. 99.
[13] Ibid., p. 104.
[14] Ibid., p. 104.
[15] Ibid., p. 105.
[16] Ibid., p. 122.
[17] Ibid., p. 104.
[18]
Ibid., p. 400.
[19]
Ibid., p. 141-143.
[20]
FOUILLÉE, La psychologie des idées-forces,
Tomo 2, p. 120, tradução nossa (N.T.).
[21]
GUYAU, op. cit., p. 75
(N.T.).
[22] Ibid., p. 73-73 (N.
T.).
[23] Ibid., p. 41 (N. T.).