DOI

Submissão: 24/08/2019 Aprovação: 24/11/2019 Publicação: 18/12/2019

 

by-nc-sa

 

Fluxo contínuo

 

O charlatanismo como problema estético-filosófico em Schopenhauer

 
Quackery as an aesthetic-philosophical problem in Schopenhauer

 

Danilo Bilate de Carvalho

Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ. Atualmente é pós-doutorando na Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, com bolsa CAPES.

danilobilate@gmail.com

 

Resumo: O objetivo deste texto é o de apresentar as questões filosóficas que giram em torno da acusação schopenhaueriana corriqueira de charlatanismo contra seus adversários. O estudo dessas questões-satélites mostra que o charlatanismo pode ser compreendido como um problema filosófico e não mero xingamento vazio de relevância teórica, como se entende comumente. Elas podem ser resumidas como questões estéticas ou retóricas, porque problematizam o estilo do texto filosófico, o seu uso e sua função comunicativa. Próximo do pedante e do sofista, o charlatão é aquele que abusa da obscuridade por conta de seu afastamento da concretude por uma opção pela escrita abstrata. 

Palavras-Chave: Estilo; Comunicação; Pedantismo; Obscuridade

 

Abstract: The purpose of this paper is to present the philosophical questions that revolve around the ordinary Schopenhauerian accusation of quackery against his opponents. The study of these satellite-questions shows that quackery can be understood as a philosophical problem and not merely an offense empty of theoretical relevance, as commonly understood. They can be summarized as aesthetic or rhetorical questions, because they problematize the style of the philosophical text, its use and its communicative function. Close to the pedant and the sophist, the charlatan is one who abuses obscurity because of his distancing from concreteness by an option for abstract writing.

Keywords: Style; Communication; Pedantry; Obscurity

 

1.

 

Como? Hegel, Fichte ou Schelling, charlatães[1]? O que isso quer dizer? Sabemos todos que o autor dessa execração é frequentemente rebaixado como um velho rabugento, um vaidoso ressentido por sua falta de prestígio, sendo esse conquistado precisamente pelos alvos de sua ira. Mas não seria muito suspeita uma explicação tão superficial? A denotação de amargura ao pensador pessimista por excelência é fácil e pueril; da mesma maneira, é uma denotação fácil a de vaidoso a um pensador que ataca nomes da plêiade a ele contemporânea, constituindo uma ofensiva, ademais, pública e contra compatriotas.

                A hipótese que nos guia é que haveria aí alguma coisa de muito mais séria, e mesmo de filosoficamente relevante, alguma coisa que não deveríamos apenas deixar passar: Schopenhauer poderia ser inserido em uma tradição mal localizada, talvez marginalizada, e por isso mesmo muito difícil de nomear: humanismo, classicismo[2]? De todo modo, o que importa é compreender que por detrás desses termos se apresenta uma tendência filosófica que tenta definir como se deve pensar e como se deve escrever para que se possa comunicar o produto desse ato: no fim das contas, trata-se de definir a filosofia ela mesma, como uma produção dialógica e comunitária, no sentido preciso de ser aberta ao diálogo público. Assim, a crítica schopenhaueriana à “filosofia universitária” poderia ser inserida, possivelmente a concluindo, em uma longa tradição[3] que foi quase totalmente ignorada e talvez justamente por isso Schopenhauer também o foi – sobretudo porque preferiu-se ver em suas críticas ao charlatanismo uma confrontação afetiva infantil, ao invés de, como defendemos, uma oposição madura e séria entre uma filosofia que valoriza a concretude contra uma crença no ideal, sempre abstrato e desligado do real.

Nesse sentido, consideramos compreensível, mas curioso, o fato de que um grande especialista no idealismo alemão como Alexis Philonenko se esforce todo o tempo por identificar supostas origens idealistas pós-kantianas para certas propostas schopenhauerianas; mas o que permanece misterioso, e também uma vez mais curioso, é a razão pela qual ele tenha escolhido escrever sobre nosso filósofo sem quase nunca fazer sequer referência às críticas dele contra o charlatanismo[4]. Por outro lado, concordamos com Richard Roos e consideramos certeiras as suas observações segundo as quais Schopenhauer seria mais facilmente aceito dentre os filósofos se ele tivesse usado o “jargão tradicional” ao invés de sua escrita reconhecidamente “elegante”[5].

De todo modo, se se quiser considerar as questões biográficas em torno dos ataques schopenhauerianos por ver neles motivos passionais, seria factível apostar que a reprimenda pública da Sociedade Real das Ciências da Dinamarca foi a responsável por uma intensificação considerável da amargura de Schopenhauer (pois ele via na referida instituição um hegelianismo sectário), que passou a ser muito mais significativa do que suas animosidades anteriores contra Fichte, seu antigo professor, ou contra Hegel, seu adversário de cadeira. É uma hipótese que ganha força com a leitura do prefácio de Os dois problemas fundamentais da ética e se nos lembrarmos também que o injurioso Sobre a filosofia nas universidades foi escrito depois daquela reprimenda[6]. Com efeito, o prefácio relembra a crítica da Sociedade Real quando essa fala das menções indecentes (indecenter commemorari) a propósito de distintos filósofos (summos philosophos) (E, Prefácio, p. xviii). Aliás, a expressão summos philosophos será muito usada por Schopenhauer, sempre de modo sarcástico, para nomear os idealistas pós-kantianos.

É digno de nota, enfim, que Heidegger também se indignará contra os ataques insultantes feitos por Schopenhauer e que ele, assim como a Sociedade Real, não por acaso desdenhará de seu relevante conteúdo ao mesmo tempo filosófico antiteológico e estilístico anti-obscurantista. Podemos nos perguntar até que ponto sua indignação é apenas o fruto de um sectarismo apaixonado, quando ele afirma, por exemplo, que Schopenhauer só escreveu “lugares comuns”[7] ou quando ele dá o extravagante argumento segundo o qual a obra capital do pessimista “está comprometida da maneira mais profunda possível com as obras centrais de Schelling e Hegel” ao que ele acrescenta que “a melhor prova disso está no vitupério desmedido e de completo mau gosto com o qual Schopenhauer investiu contra Hegel e Schelling durante toda a sua vida”[8].

 

2.

 

É fora de dúvida que as menções schopenhauerianas aos pós-kantianos não são exatamente amáveis. Podemos nos perguntar pelo porquê de um autor querer atacar outro, ao invés de simplesmente ignorá-lo. A resposta é definitiva: trata-se de diminuir a “influência pestilenta” de Hegel, pois, no fim das contas, “se nós permanecermos em silêncio, quem o dirá?” (E, “Prefácio”, xviii). Em suma, “rebaixar o que é ruim é um dever com o que é bom” (P II, “Sobre escritos e estilo”, § 281, 816). É o sentido de uma passagem de Gracián citada por Schopenhauer, onde o personagem Critilo, desgostoso do charlatão que realizava uma apresentação na praça, exclama a seu interlocutor, em uma paródia do dito mais famoso das Catilinárias de Cícero: “Até quando ele abusará de nossa paciência e até quando você se calará? Que vulgaridade sem vergonha é essa?”[9]. Essa falta de paciência com o abusivo explica também o sentido da utilização reiterada por Schopenhauer da palavra “hegeliaria” no lugar do nome próprio que é a sua raiz, para denominar uma linhagem de origem bem anterior ao pensador do Espírito. Essa linhagem é a causa “da degradação completa da filosofia e, por consequência, do declínio da alta literatura em geral” (P I, “Sobre a filosofia nas universidades”, 145) e Hegel apenas seu acabamento e, exatamente por isso, seu nome mais conhecido. Mas como explicar que haja aí uma “degradação”?

É preciso reconhecer que Schopenhauer tem razões filosóficas sérias para se confrontar aos pensadores que ele escolhe como alvos preferenciais, ainda que eventualmente com elas não se concorde. Os exemplos dessas razões podem ser resumidos pelo fato de que o idealismo pós-kantiano teria mantido o espírito teísta e, portanto, também teleológico, após a crítica definitiva de Kant – do cristão Kant, diga-se de passagem – contra esse tipo de metafísica: “Pois, da maneira a mais séria, em filosofia Kant colocou um termo no teísmo judeu, coisa que eles preferem abafar, dissimular, ignorar, pois sem esse teísmo eles não podem viver – eu quero dizer comer e beber” (Ibidem, 143). As referências crítico-teóricas mais particulares são mesmo numerosas[10], ainda que Schopenhauer não se dedique nunca a fazer suas compilações, o que explica a falta de desenvolvimento dessas propostas. Mas são sempre as questões do teísmo religioso, mesmo se ele se traveste de metafísica que se supõe puramente filosófica, que são atacadas por Schopenhauer. E esse travestimento, podemos dizê-lo, se efetua pela valorização da abstração.

“Também os sistemas filosóficos que se prendem aos conceitos gerais, sem retornar ao real, são quase que apenas jogos de palavras” (W II, § 6, 740). É esse o problema central. Esses jogos de palavras que caracterizam o charlatanismo se devem sempre ao fato de que se produz um saber fechado em si mesmo, divorciado do mundo empírico. Como escreve mais uma vez Gracián – mas em trecho não citado pelo filósofo alemão –, diante do charlatão da praça, em meio ao público, “houve um homem que disse que ele via o ente de razão de modo tão claro que ele poderia tocá-lo com as mãos”[11]. Tudo considerado, como o kantismo bem o demonstrou, “uma ciência tirada da simples comparação de conceitos, isto é, edificada com proposições gerais, não pode ser certa, a menos que todas as suas proposições sejam sintéticas a priori” (W II, § 7, 765). Fechando-se em si mesmo, posto que só faz comparar conceitos, esse tipo de saber realiza uma operação que

consiste em subsumir um conceito sob um outro conceito, sem remontar à sua origem, sem examinar a legitimidade e exclusividade de uma tal subsunção; graças a esse meio, chega-se quase sempre, depois de voltas mais ou menos longas, ao resultado arbitrário que se havia proposto como fim (Ibidem).

É o Schopenhauer das Luzes, especialmente voltairianas, que se desvela aqui. O infame a ser esmagado é sempre o mesmo: a mãe da superstição e do fanatismo – a crença:  “Como ciência, a filosofia não tem absolutamente nada a fazer com o que pode ou com o que deve ser crido, mas apenas com o que pode ser conhecido” (P I, “Sobre a filosofia nas universidades”, 122). E assim, os charlatães se distinguem dos verdadeiros pensadores, os filósofos autênticos, esses que procuram “a compreensão, e por ela mesma, porque eles aspiram ardentemente a se explicar de alguma maneira o mundo no qual eles vivem: eles não o procuraram para ensinar ou para tagarelar” (Ibidem, 135). Se explicar a eles mesmos e também a seus semelhantes: os filósofos autênticos se esforçam “sempre sinceramente” por comunicar o conhecimento “aos outros” (Ibidem, 138)[12]. Mas quem são os outros com quem se deve comunicar?

A razão principal pela qual Schopenhauer se inquieta com os charlatães é que eles transformam a filosofia em “proletária”, no sentido metafórico da palavra, isto é, que eles não constituem uma elite intelectual, essa que só poderia ser formada por aqueles que procuram sinceramente a verdade. É esse o sentido do termo “intrusão” na seguinte frase: “Sua perpétua intrusão, sua mania de dizer sua palavra, lembram aquelas dos surdos que se misturam a uma conversa” (Ibidem, 149). Ao dizer intrometidamente sua palavra, ao tagarelar, portanto, os charlatães decompõem a aristocracia instituída pela elite dos verdadeiros filósofos, isto é, daqueles que só fazem procurar a verdade. É importante ressaltar que o único critério schopenhaueriano de merecimento para a entrada nessa elite é o amor pela verdade e que a “proletarização” indevida se deve tão somente ao fato de vaidosos não interessados na verdade forçarem a entrada no socius erudito.

Ora, a acusação de popularização, em um sentido bem diferente, é frequente contra a tradição humanista após o Renascimento, quando as Luzes francesas se encontravam no momento de sustentar explicitamente esse projeto e, por isso mesmo, desfaleciam logo no início do século XIX, feridas pelos ataques escolásticos transfigurados em germanismo supostamente “kantiano”. O interessante aqui é que Schopenhauer ele mesmo também foi acusado de popularizar a complexidade filosófica de Kant. A chave de resolução do problema é a de convir sobre em relação ao quê é preciso ser “aristocrático”. Aqui Schopenhauer é mais uma vez claro: trata-se de valorizar a verdade. Evidentemente que seus adversários dirão a mesma coisa, mas sua acusação de charlatanismo vai diretamente ao ponto: para eles, trata-se de valorizar o prestígio e o poder dele decorrente. Assim, para eles, popularizar tem um sentido pejorativo e, inconfessadamente, não significa outra coisa senão dizer claramente, abrir a porta, dar acesso – justamente aquilo que a tradição humanista, as Luzes e mesmo o “aristocrata” Schopenhauer elogiam.

Se, entretanto, é tentador de ver aí uma intenção de democratizar o saber para os incultos, ao contrário, Schopenhauer argumentará que aqueles que procuram a verdade não podem fazer de outro modo: só resta a esses dizer claramente, pois eles pensam claramente e porque a verdade é clara. No final, como a atração pela verdade é rara, a democratização completa é impossível. É o problema da mediocridade do saber que se faz ver sobretudo pela incapacidade do público de reconhecer a verdade: “No fundo, o grande público nunca tem o senso do excelente e não tem, por conseguinte, nenhuma ideia da raridade infinita daqueles que são verdadeiramente capazes de produzir verdadeiramente alguma coisa em poesia, em arte ou em filosofia” (P II, “Sobre o julgamento, a crítica, as aclamações e a glória”, § 239, 772) – afirmação que se segue imediatamente às bem conhecidas e repetitivas injúrias contra os idealistas pós-kantianos. O risco aqui, como na política, é que “o forte sucumba sob as intrigas dos débeis e da massa” (Ibidem, § 242, 783). Inverte-se, pois, a preocupação: não é mais o público uma vítima, mas bem o parceiro do charlatão.

Dessa maneira, a intrusão charlatanesca é medíocre, porque ela banaliza o direito de falar como um verdadeiro sábio, um amante da verdade. Mas “para a imensa maioria dos doutos, o saber é um meio, não um fim” (P II, “Sobre o saber e os doutos”, §247, p. 792), ao contrário daquele “que se interessa diretamente por uma coisa, que a pratica con amore, [que] a leva totalmente à sério” (Ibidem, § 249, 731). De outro lado, o público confunde erudição tout court com sabedoria: “Estudantes e alunos de todo o tipo e de toda idade em geral só visam a informação, não a compreensão. [...] Não lhes vem à cabeça a ideia de que a informação é apenas um meio de compreensão” (Ibidem, § 245, 791). Ao público, portanto, porque não procura compreender, falta o amor pela verdade, assim como ao charlatão. Os parceiros são, assim, essencialmente similares.

 

3.

 

Ainda que sem amor pela verdade e sem compreensão do mundo e da vida, o intruso fala, ele escreve e ele o faz em demasia. Mas ele é incapaz de se comunicar de modo claro, porque ele não pensa claramente. É por isso que seu discurso manifesta um estilo bem particular:

Para dissimular sua falta de ideias reais, muitos se abrigam por detrás de um aparelho impondo longas palavras compostas, de frases embaralhadas, confusas, de imensos períodos, de expressões novas desconhecidas, todas coisas que em conjunto geram um jargão de aspecto erudito dos mais difíceis a se compreender (P I, “Sobre a filosofia nas universidades”, 134).

Pois o escritor que não tem uma ideia clara e precisa, empilha palavras sobre palavras, frases sobre frases, e não diz todavia nada, pois ele não tem nada a dizer, não sabe nada, não pensa nada. Entretanto, ele quer falar; ele escolhe, pois, suas palavras, não segundo o que elas exprimem suas ideias e julgamentos de um modo mais tocante, mas pelo que elas mais habilmente dissimulam seu vazio (Ibidem, 136).

É evidente que a coisa se passa de uma maneira bem diferente com os autores que amam a verdade. Como Schopenhauer o reconhece, é muito manifesto, mas é preciso redizê-lo todo o tempo, que “os bons escritores, ao contrário, se esforçam sempre por fazer o leitor pensar exatamente o que eles mesmos pensaram, pois aquele que tem alguma coisa de aproveitável a compartilhar tomará o cuidado para que essa coisa não se perca”. E mais flagrante ainda, mas sempre igualmente necessário de dizer, é que “a primeira condição de um bom estilo é que o redator tenha realmente alguma coisa a dizer” (Ibidem, 137). Consequência estilística, seus textos são invariavelmente claros:

As obras dos espíritos verdadeiramente dotados se distinguem das outras pelo seu caráter de decisão, de determinação, acrescentando aí a limpeza e a clareza que delas resultam; é que esses espíritos constantemente souberam de uma maneira clara o que eles queriam exprimir, quer seja em prosa, em verso ou em notas (P II, “Pensar por si mesmo”, § 265, 806).

De modo diverso, o mau escritor experimenta um tipo de autismo que Schopenhauer nomeia como “subjetividade do estilo”, que consiste “em que basta ao escritor saber ele mesmo o que ele pensa e o que ele quer dizer, ao leitor restando resolver o mistério o melhor que ele puder. Sem se preocupar com o leitor, o autor escreve como se ele construísse um monólogo; quando deveria ser um diálogo” (P II, “Sobre os escritores e o estilo”, § 284, 840). Reflexo estilístico do saber fechado em si mesmo pela simples comparação de conceitos? Talvez, pois o divórcio do mundo empírico não é outra coisa senão a separação do fundamento inegável, da pedra de toque, do kritêrium que permite a comunicação. É o sentido da seguinte passagem:

[...] seu modo de expressão consiste geralmente em conceitos abstratos, universais, extremamente largos, se exibindo sob a forma habitual de expressões vagas, indefinidas, ambíguas. Eles são forçados a essa marcha acrobática porque eles devem se guardar de tocar a terra, onde, reencontrando o real, o definido, o detalhe e o claro, eles se chocariam contra essas rochas perigosas que fariam naufragar seus barcos verbais. [...] eles só conhecem as mais altas abstrações tais como ser, essência, devir, absoluto, infinito, etc. Eles partem delas e constroem sistemas cujo conteúdo só alcança, no fim das contas, palavras. A bem dizer, essas palavras são apenas bolhas de sabão com as quais pode-se brincar num instante, mas que não podem tocar o chão da realidade sem estourar (P I, “Sobre a filosofia nas universidades”, 138).

E Schopenhauer é ainda mais explícito sobre isso, quando ele elogia Kant e argumenta de maneira suficientemente apropriada contra os idealistas pós-kantianos:

O autor filosófico é o guia, o leitor é o passeante. Se eles querem chegar juntos, eles devem, antes de tudo, partir juntos. Isso significa que o autor deve levar seu leitor a um ponto indubitavelmente comum aos dois, mas esse não pode ser outro que não a consciência empírica, comum a todos. Que o filósofo pegue seu leitor, pois, firmemente pela mão e veja qual altura, além das nuvens, eles podem alcançar, passo a passo, pela trilha da montanha. Kant procedia dessa maneira: ele parte da consciência bem comum das outras coisas, bem como a de seu próprio eu. Que absurdo querer partir do ponto de vista de uma pretensa intuição intelectual de relações hiperfísicas, ou mesmo de fatos, ou mesmo de uma razão que percebe o suprassensível, ou de uma razão absoluta se pensando a si mesma! Pois isso é o mesmo que partir do ponto de vista dos conhecimentos não imediatamente comunicáveis: desde o ponto de partida, o leitor ignora, pois, se ele está com seu autor ou a quilômetros dele (P II, “Sobre a filosofia e seu método”, § 5, 411-412. Cf. também W II, § 15, 833).

É claro, Schopenhauer considera que esse estado de coisas pode ser o resultado de uma atitude sincera, sendo apenas uma “estranha disposição em se contentar com palavras” (W II, § 15, 833). Parece-nos que se trata aí do pedantismo que, segundo Schopenhauer, consiste em se colocar “sob a tutela da razão, recorrendo a esta em todas as oportunidades, ou seja, sempre parte de conceitos universais, regras, máximas, e quer apegar-se a eles rigidamente na vida, na arte e, sim, nas boas condutas éticas”. Emprisionado por enunciados gerais, o pedante crê nas abstrações, colocando-as no lugar do mundo concreto, o que explica seu estilo: “A forma, a maneira de expressão e o modo de falar aderem ao pedantismo, substituindo por este o ser das coisas” (W I, § 13, 111). É digno de nota que esse posicionamento que subentende a diferença entre o pedante e o charlatão não é novo, como mostram, por exemplo, um dos enciclopedistas: “A diferença que há entre o pedante e o charlatão é que o charlatão conhece o pouco de valor que lhe cabe, enquanto que o pedante tira partido de bagatelas que ele toma sinceramente por coisas admiráveis”, ao que Diderot acrescenta: “para que o pedante seja um charlatão, é preciso, ao mesmo tempo, que ele tenha má fé”[13].

Como quer que seja, na maior parte dos casos, pode-se suspeitar da intenção de enganar. Paradoxalmente, aquele que produz esse discurso autista fechado em si mesmo, ao menos no caso da pessoa que engana conscientemente – isto é, não um pedante – visa sempre o seu público. É assim que se pode explicar a seguinte classificação: “Pode-se dividir os pensadores em dois: esses que pensam antes de tudo para si mesmos e esses que pensam imediatamente para os outros”. Essa distinção, já só ela, permite reconhecer o filósofo, por oposição àqueles que Schopenhauer nomeia de maneira tradicional como sofistas:

Os primeiros são verdadeiros pensadores pessoais, no duplo sentido da palavra; eles são os verdadeiros filósofos. [...] Os segundos são os sofistas; eles querem brilhar e procuram sua fortuna no que eles esperam assim obter dos outros (P II, “Pensar por si mesmo”, § 270, 807).

Exatamente como a crítica socrático-platônica bem conhecida, trata-se de se confrontar, como amante da verdade, aos amantes do poder e do dinheiro que se misturam ao universo dos doutos, tendo os sofistas um estilo confuso e obscuro, como todos os charlatães e pedantes (Cf. P II, “Sobre os escritores e o estilo, § 272).

 

4.

 

De resto, seja no caso do pedante, seja no caso do sofista, o obscurantismo estilístico não é contingente. É o “belo método” que se explica pelo fato de que, se o leitor não rejeita o livro em questão, “ele acaba por crer que o livro deve ser alguma coisa de muito hábil, ultrapassando sua capacidade de compreensão, e levantando as sobrancelhas, qualifica o autor de pensador profundo” (P I, “Sobre a filosofia nas universidades”, 137). Ainda que eventualmente inconsciente, trata-se bem de uma artimanha, portanto: “O truque consiste em artisticamente escrever de um modo obscuro, isto é, incompreensível. A verdadeira sutileza consiste em arranjar seu palavrório de maneira a fazer crer ao leitor que é ele que se engana se ele não entende” (Ibidem, 136). O artifício, que teria sido exacerbado pelos pós-kantianos, faz sucesso no mundo intelectual, de modo que seus sucessores continuaram a dele se servir.

O estratagema crucial aqui é a prolixidade que esconde a falta de ideias: “Seguindo nisso o método homeopático, o fraco mínimo de uma ideia se encontra aí diluído em uma corrente de palavras, sobre cinquenta páginas” (Ibidem, 137). Essa verdadeira verborragia fere o bom gosto e criticá-la comporta uma crítica estética[14]. Disso se segue que se pode ver um paralelo entre o estilo dos escritores e dos músicos, bem como dos arquitetos. Contra o excesso de “barulho”, é preciso promover o sentido:

Além disso, a falsa rota pega por nossa música é análoga àquela onde se perdia a arquitetura romana sob os últimos imperadores, quando o excesso de ornamentos escondia em parte e chegava mesmo até o ponto de desnaturalizar as proporções simples e essenciais: ela faz muito barulho, comporta muitos instrumentos, muita arte, mas pouco de ideias claras, profundas e surpreendentes. Encontra-se nas composições vazias de nossa época, desprovidas de sentido e de melodia, o mesmo gosto que favorece na escrita um estilo obscuro, vacilante, nebuloso, enigmático, ou mesmo desprovido de sentido, cuja origem é principalmente imputável à miserável hegeliaria e seu charlatanismo (P II, “Sobre a metafísica do belo e a estética”, § 219, 751. Cf. também o § 234 ou W I, § 47).

Em resumo, “quando a verdade fala pelos fatos eles mesmo, não se tem necessidade de lhe prestar o socorro com as palavras” (P II, “Sobre o julgamento, a crítica, as aclamações e a glória”, § 243, 789). Sobre isso, podemos lembrar do que Goethe, tão admirado por Schopenhauer, nos permite pensar. É talvez uma interpretação possível para o fato de que Fausto, antes da tentação, tenha afirmado:

Não é preciso tanto de arte para sustentar a razão e o bom senso, e se vós tendes alguma coisa de sério a dizer, não é de modo algum às palavras que é preciso vos aplicardes. Sim, vossos discursos tão brilhantes, onde vós exibis tão bem bagatelas da humanidade, são estéreis como o vento brumoso do outono que murmura por entre as folhas secas;

e é talvez também esse o sentido do fato de que seu tentador, muito ao contrário, demonstre ter essa outra posição:

O estudante: Contudo, uma palavra deve sempre conter uma ideia.

Mefistófoles: Muito bem! mas não é preciso se preocupar demasiadamente com isso, pois, onde faltam as ideias, uma palavra pode substituí-las satisfatoriamente; pode-se com palavras discutir muito convenientemente, com palavras construir um sistema[15].

Assim, a verborreia se opõe à inocência, pois a verdade exige a simplicidade. O texto schopenhaueriano mais importante sobre esse assunto é o § 283 dos Parerga. A inocência do estilo é aí muito elogiada, sendo considerada como “privilégio dos espíritos superiores e conscientes de si mesmos”. Em contrapartida, os homens ordinários disso são incapazes, porque eles “sentem que, então, a coisa poderia tomar um ar muito simplório” (P II, “Sobre os escritores e o estilo”, § 283, 820). Como todos os charlatães, eles “exprimem, pois, o que eles têm a dizer em torções de frases afetadas, emboladas, com a ajuda de palavras recentemente adquiridas, de períodos prolixos e complicados que dão voltas em torno da ideia e a dissimulam”. E isso porque eles “gostariam de embelezá-la de modo a lhe dar um ar erudito ou profundo para fazer crer que ela engloba mais coisas do que se pode dela perceber no momento” (Ibidem, 821). É exatamente o contrário para aqueles que possuem “realmente espírito”, para os quais “todos os artifícios mencionados são inúteis”. Um escritor que tem espírito, o único tipo que merece o adjetivo elogioso de naïf, “é livre para mostrar-se tal qual é”. E Schopenhauer acrescenta:

É por isso que a simplicidade sempre foi o atributo não apenas da verdade, mas mesmo do gênio. O estilo recebe sua beleza do pensamento que ele exprime, enquanto que entre os que se dizem pensadores, se supõe que os pensamentos se tornam belos pelo estilo (Ibidem, 822).

Se a beleza deve pertencer ao pensamento, posto que ela concerne à verdade, o discurso deve ser o mais simples para não impedir, como uma máscara, sua emergência, para não cobrir o desvelamento próprio ao verdadeiro ou obscurecer suas luzes. O desvelado sendo o fenômeno e o iluminado sendo a experiência, resta à abstração a indignidade de seu contrário: a sutileza tão ironizada pelos humanistas contra os escolásticos. “Eis porque eles escolhem em todos os casos a expressão mais abstrata, enquanto que as pessoas de espírito escolhem a mais concreta, a mais perceptível, que é a fonte de toda evidência” (Ibidem, 823).

Enfim, é preciso perguntar: “Aquele que tem alguma coisa de séria a dizer se esforçará por falar obscuramente ou claramente?” (Ibidem, 826). Não há dúvida quanto à resposta. E para falar claramente, é necessário falar a linguagem comum, mesmo para dizer o que pode ser excepcional. É assim que se pode compreender esse trecho:

Seria totalmente aproveitável aos escritores alemães compreender que se se deve tanto quanto possível pensar como um grande espírito, é preciso em contrapartida falar a mesma linguagem que todos: empregar palavras ordinárias e dizer coisas extraordinárias. Esses autores fazem o inverso (Ibidem, 825).

Trata-se, portanto, de valorizar a “castidade do estilo” (Ibidem, 827). De todo modo, a inocência não se confunde com a “secura brilhante” que Schopenhauer vê em Aristóteles e Kant. “Mas voltemos a Kant. Não se pode deixar de confessar que lhe falta totalmente a grandiosa simplicidade antiga, a ingenuidade, ingenuité, candeur” (W I, “Crítica da filosofia kantiana”, 540). Pelo estilo sóbrio, Kant “concebe os conceitos muito firmemente, escolhe-os com grande segurança”. Apesar disso, sua “exposição é amiúde pouco distinta, indeterminada, insuficiente e, às vezes, obscura” (Ibidem, 539). Se a sobriedade prova sua honestidade própria a um verdadeiro filósofo, isto é, a um amante da verdade, Kant é por vezes obscuro, o que o torna um “mau exemplo”. É isso que explica, segundo Schopenhauer, a maneira pela qual os pós-kantianos escrevem:

Mas a maior desvantagem da exposição ocasionalmente obscura de Kant é que ela faz efeito como exemplar vitiis imitabile, sim, ela foi erroneamente interpretada como autorização perniciosa. O público foi forçado a ver que o obscuro nem sempre é sem sentido. De imediato o sem-sentido refugiou-se atrás da apresentação obscura (Ibidem, 540).

Para concluir, perguntamos se não seria muito factível concordar com Schopenhauer quanto à acusação de degradação da filosofia causada pelo mau uso estético ou retórico do texto filosófico. É nesse sentido que gostaríamos de ler a seguinte passagem: “A deslealdade tomou uma tal predominância na literatura alemã em geral e na filosofia em particular, que se é permitido esperar que ela alcançou o ponto onde, tornada incapaz de enganar quem quer que seja daí em diante, ela ficará sem efeito” (P II, “Sobre o saber e os doutos”, § 251, 794-795). Igualmente, perguntamos se ele pode mesmo ter profetizado não apenas a continuação desse processo, como também as suas consequências previsíveis: por um lado, o descrédito do charlatanismo tornado obsoleto; por outro lado – consequência mais nefasta e indesejada por aqueles que amam a verdade –, o descrédito do próprio exercício filosófico.

 

Referências

 

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SCHOPENHAUER, Arthur. Suppléments. In: Le monde comme volonté et représentation. Trad. A. Burdeau. Paris: P.U.F., 2009.

 

SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga et Paralipomena. Trad. J-P. Jackson. Paris: CODA, 2010.

 

SCHOPENHAUER, Arthur. Die Beiden Grundprobleme der Ethik. In: Sämtliche Werke, Mannheim: F. A. Brockhaus, 1988, t. 4.

 

UCCIANI, Louis. Comment Heidegger évince Schopenhauer. In: Philosophique, 9, 2006, pp. 89-102.

 



[1] Classificação muito repetida por Schopenhauer e intercalada com a de “três sofistas” (por exemplo, em Sobre a filosofia nas universidades, p. 141. Como esse, todos os textos do livro Parerga et Paralipomena serão citados com a referência a seu título próprio).

[2] Schopenhauer escreve nos Suplementos (W II, § 12, 809): “É com correção que se chamou pelo nome de ‘humanidades’ o comércio com os autores da antiguidade, pois é graças a eles que o estudante se torna homem. [...] Vossa literatura, se ela não se forma pela escola dos antigos, degenerará em um palavrório vulgar e pedantesco”.

[3] Defendemos que essa inserção conclusiva explica a seguinte colocação de Clément Rosset: “Homem do passado e homem do futuro, Schopenhauer não sabe atualizar suas descobertas em uma filosofia nova: a história de sua filosofia é um pouco a de uma revolução interrompida. Demasiado moderna para ser clássica, demasiado clássica para ser moderna” (ROSSET, Schopenhauer, philosophie de l’absurde, p. 60).

[4] Em seu livro Schopenhauer, une philosophie de la tragédie. Paris: Vrin, 1999.

[5] Em sua introdução à edição francesa de O mundo, editada pela P.U.F.: “Dir-se-ia, diante de certos elogios debochados, que uma escrita elegante é necessariamente a marca de um pensador superficial e que teria bastado a Schopenhauer empregar o jargão tradicional para que se o aceitasse dentre os filósofos” (p. xv).

[6] Ainda que menos importante, esse é também o caso do prefácio à segunda edição de O mundo, escrito em 1844.

[7] HEIDEGGER, Nietzsche I, “Vontade de poder. A essência do poder”, p. 58.

[8] Ibidem, “O ser do ente como vontade na tradição metafísica”, p. 33. Sobre esse assunto, ver UCCIANI, Comment Heidegger évince Schopenhauer, pp. 89-102.

[9] O extrato citado por Schopenhauer em Os dois problemas fundamentais da ética é de Baltasar Gracián, El Criticón, Tercera Parte, Crisi IV, p. 141.

[10] Sobre essas críticas, especialmente a Hegel, recomendamos a leitura da tese de RAMOS, A “miragem” do absoluto: sobre a contraposição de Schopenhauer a Hegel.

[11] GRACIÁN, El Criticón, p. 146.

[12] É por isso que Schopenhauer lamenta o abandono da língua latina, o que proporcionou, segundo ele, “a entrada na barbárie”, de onde se explica o “adeus” ao “humanismo, gosto nobre e sentimento elevado” (P II, “Sobre o julgamento, a crítica, as aclamações e a glória”, § 255, 797-798).

[13] Artigo Charlatannerie, escrito por Diderot. Nesse ponto, Schopenhauer lembra também Johann Gottfried Büchner que, segundo Kivistö, distinguiu em 1718 o charlatanismo como um vício de vontade do pedantismus como um vício intelectual (Cf. KIVISTÖ, The vices of learning: morality and knowledge at early modern universities, p. 18, note 63).

[14] Assim, o termo “estética” que aparece, em sentido lato, aqui e no título (sempre em sua forma adjetivada) deste nosso artigo não se refere ao sentido estrito que normalmente intitula (em sua forma substantivada) a disciplina filosófica que Schopenhauer, como se sabe, preferia denominar “metafísica do belo”.

[15] GOETHE, Faust. A primeira citação é do capítulo “A noite” e a segunda do segundo capítulo que tem como título “Quarto de estudo”.