Submissão: 19/08/2019 Aprovação: 20/08/2019
Publicação: 31/08/2019
Resenhas
O jovem Schopenhauer e a
origem da metafísica da vontade
Resenha da obra Il giovane
Schopenhauer. L’origine della metafisica
della volontà de Alessandro Novembre (Milão, Udine: Mimesis, 2018, 624 p.)
Flamarion Caldeira RamosI
Doutor em Filosofia pela Universidade de São
Paulo com estágio na Johannes Gutemberg Universität
Mainz.
Professor na Universidade Federal do ABC.
flamarioncr@yahoo.com.br
Embora a pesquisa acadêmica
sobre a filosofia de Schopenhauer já tenha oferecido ótimos frutos,
principalmente nos últimos trinta anos (por ocasião do seu segundo centenário
em 1988, quando surgiu o volume mais extenso do tradicional Schopenhauer- Jahrbuch), ainda faltava um trabalho de fôlego que
conseguisse reconstruir em todos os seus aspectos a gênese de sua “metafísica
da vontade”. Com a publicação do livro Il giovane
Schopenhauer. L’origine della
metafisica della volontà (Milão,
Udine: Mimesis, 2018, 624 p.), de Alessandro Novembre, essa lacuna foi
preenchida com grande êxito. Trata-se de uma obra riquíssima que promete e
realiza uma leitura profunda e sistemática de todas as fontes ora disponíveis
para a pesquisa sobre a origem da filosofia de Schopenhauer.
É verdade que alguns passos na
direção dessa tarefa já haviam sido dados e nesse sentido podemos citar
trabalhos como o seminal livro de Arthur Hübscher, Denker gegen den Strom (Bonn: Bouvier,
1973), que contém importantes contribuições para o estudo do “jovem
Schopenhauer”; o livro de Yasuo Kamata Der junge Schopenhauer: Genese
der Grundgedankens der Welt
als Wille und Vorstellung
(Freiburg/München, Verlag Karl Aber,
1988), que faz uma perspicaz leitura dos Manuscritos Póstumos e oferece
uma interpretação original da primeira edição de O mundo como vontade e
representação; a biografia de Rüdiger Safranski (Schopenhauer und
die wilden Jahre der Philosophie, Carl Hanser Verlag, Munique-Viena, 1987; Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia. Tradução
Willian Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011), que, partindo da leitura
dos escritos póstumos e da correspondência reconstrói os dados biográficos de
Schopenhauer. Nos últimos anos surgiram algumas importantes contribuições para
a compreensão da presença de Schelling na gênese da
metafísica de Schopenhauer, como os trabalhos de Jair Barboza Infinitude Subjetiva e Estética: Natureza e
Arte em Schelling e Schopenhauer (São Paulo: Unesp, 2015) e de R. Jan Berg Objektiver Idealismus und Voluntarismus in der Metaphysik Schellings und Schopenhauers (Würzburg, K & N, 2003). É possível
encontrar, além disso, contribuições sobre a presença do “pensamento oriental”
na origem da filosofia de Schopenhauer, a saber no período que vai do
início de seus estudos (1803-1804) até a redação de O mundo
como
Vontade e Representação (1814-1818).
Nos últimos anos, além de estudos que versam sobre as primeiras leituras que
Schopenhauer empreendeu das obras de Platão e Kant, têm surgido pesquisas sobre
a importância de Schulze e Fichte na gênese de
algumas concepções fundamentais da filosofia de Schopenhauer. O livro em
questão surgiu justamente da tese de doutorado de Alessandro Novembre sobre a
presença de Fichte no pensamento do jovem Schopenhauer: Il giovane Schopenhauer
e Fichte. La duplicità della
coscienza (Lecce/Mainz,
2011). Mas o êxito alcançado com a presente publicação, que justifica a
ampliação do título, se dá pelo fato de que não se trata mais “apenas” (como se
fosse pouco) de rastrear os traços fichtianos do
jovem Schopenhauer. Novembre conseguiu desdobrar todos os laços da gênese da
metafísica da vontade de Schopenhauer. Não apenas a relação do jovem filósofo
com Fichte, Schelling, ou o impacto de Schulze em sua formação filosófica. O autor reconstruiu com
grande apuro filológico todos os passos do jovem Schopenhauer, da sua formação pietista ao encontro com o pensamento oriental; da leitura
dos românticos ao confronto com “o divino Platão e o assombroso Kant”, e ainda
mais.
O
livro percorre em ordem cronológica os manuscritos do jovem Schopenhauer, desde
as primeiras linhas do primeiro volume que contém as anotações dos anos
1804-1811, passa pelas anotações das aulas de Schulze
e Fichte, a descoberta do pensamento oriental, acompanha a elaboração da dissertação
de 1813 e desemboca nos primeiros esboços (a partir de 1814) da obra magna O mundo como vontade e representação (obra que, como se sabe, foi publicada no final de
1818 já com a data de 1819). Para dar conta da amplitude desta temática, o
livro foi estruturado em quatro grandes partes: a primeira delas tem como
título “Os manuscritos dos anos 184-1811: da formação pietista
ao estudo da filosofia”. Nela, o autor persegue a “pré-compreensão
do mundo” do joveníssimo Schopenhauer e o dualismo entre o temporal e o eterno
(capítulo 1). Constituinte da primeira visão de mundo que Schopenhauer
desenvolve nesses primeiros escritos é a contraposição entre a ordem do tempo e
a ordem das coisas eternas, a partir da qual surgem as questões metafísicas
sobre a distinção entre o sensível e o suprassensível, o mundo corpóreo e o
mundo dos espíritos e, na esfera da moralidade, entre o bem e o mal. Ao final
deste primeiro capítulo, Novembre analisa a distinção entre duas concepções de
vontade, que surge dessa visão dualista do mundo. Assim, “em relação ao
problema do mal, Schopenhauer admite, como os maniqueístas, a possibilidade de
que uma potência divina que quer o bem (cuja vontade é “boa”) coexista com uma
potência divina que quer o mal (cuja vontade é “má”)”(p.
61). A partir desse dualismo, Novembre reconstrói os dois sentidos de vontade
na história da filosofia, a primeira enquanto boúlesis, que é a vontade moral orientada para o bem, tal
como elaborada e desenvolvida na tradição da filosofia moral antiga, nomeadamente
Platão e Aristóteles até a recepção estóica de Cícero
que a traduz como voluntas e a concebe como “quae
quid cum ratione desiderat” (p. 64). A tradição
judaico-cristã, por sua vez, conceberá a possibilidade de um querer que se
dirige não apenas para o bem, mas conscientemente ao mal (thélema). Será principalmente com Agostinho que essa
possibilidade será inteiramente desdobrada a fim de explicar o “pecado
original” e, exatamente por isso, o bispo de Hipona é considerado o “inventor
da vontade” nesse sentido dualista que permitiria pensar num querer voltado não
só para o bem, mas também para o mal (Ibid,
p. 64-5). Como comprovam os textos posteriores de
Schopenhauer, sua concepção de vontade deve ser compreendida antes como thélema do que como boúlesis.
Após
esse primeiro passo, o segundo percorre as anotações das aulas de Schulze em Göttingen, cujos
cursos de metafísica e psicologia, o jovem Schopenhauer acompanha a partir do
semestre de inverno de 1810-1811. De modo paralelo, o autor rastreia as
primeiras leituras que Schopenhauer empreendeu de Platão, Schelling
e Kant. Como se sabe, Schopenhauer seguirá o conselho de Schulze
de dedicar-se antes de tudo e exclusivamente
à leitura de Platão e Kant. O que se nota menos, e
essa é uma importante contribuição da investigação de Novembre, é que a leitura
da Geschichte der Philosophie de Tennemann foi
determinante na leitura que Schopenhauer fez dos dois filósofos: desde então o
filósofo lia Platão e Kant como complementares e identifica phainomenon e Erscheinung, por um lado, e coisa em si e Ideia, por outro.
Com a análise desses elementos, Novembre conclui a primeira parte de seu livro
afirmando que “todo o desenvolvimento sucessivo do pensamento de Schopenhauer,
até o fim da primeira elaboração de seu sistema maduro, é a resultante
problemática destas duas forças contrastantes: o vetor (em sentido amplo)
platônico – afirmação da possibilidade, da parte do homem, de conhecer a realidade
absoluta – e o vetor (em sentido estrito) kantiano – afirmação dos limites da
faculdade humana cognoscente, ou seja, da impossibilidade, da parte do homem, de conhecer a realidade
absoluta” (p. 102).
A
segunda parte do livro tem como título: “O confronto com Fichte e Schelling (1811/12): do entusiasmo inicial à definitiva
aversão”. Trata-se agora de investigar a estadia de Schopenhauer em Berlim,
para onde ele se transfere “na esperança de encontrar em Fichte um verdadeiro
filósofo e um grande espírito” (p. 102, Cf. GB, p. 261). De fato, Schopenhauer
acompanha em Berlim pelo menos três cursos de Fichte entre 1811 e 1812: um
curso introdutório chamado “Sobre o estudo da filosofia”, o curso “Sobre os
fatos da consciência” e o curso “Sobre a Doutrina-da-Ciência”. É pela
transcrição de Schopenhauer que se conhecem tais cursos (HN II, p. 16-216).
Como nota Kossler, “pode-se dizer que Schopenhauer,
que mais tarde em seus escritos publicados insultou Fichte chamando-o sobretudo
de “fanfarrão”, foi um ouvinte extremamente atento e sério, que, no entanto,
logo traduzia o que ouvia para o seu pensamento intuitivo, ligando-o a uma
ordem de ideias já existente. (...) Não obstante, Schopenhauer assistiu ao
curso inteiro e jamais deixou de justificar a ausência de um registro”[1]. De
fato, ainda que rejeite boa parte do que absorve desses cursos fichtianos, o confronto com o autor da Wissenschaftslehre foi
de fundamental importância para o desenvolvimento intelectual de Schopenhauer.
Novembre se detém principalmente na reflexão de Schopenhauer, a partir das
aulas de Fichte, sobre o conhecimento do absoluto, e para isso desempenha papel
central a discussão sobre a noção de intuição e o conhecimento para além dos
limites da filosofia crítica kantiana. É nesse contexto que a relação entre
gênio e loucura, como dois modos de conhecimento fora da circunscrição do saber
fenomênico surge no pensamento de Schopenhauer. Novembre não deixa de fazer uma
digressão sobre o modo como o pensamento romântico (em Jean Paul e E. T. A Hoffmann) tratou a questão. Ainda mais essencial,
porém, é nesse contexto a tematização sobre o conceito de Besonnenheit[2]. Esse conceito, central para a compreensão da
filosofia de Schopenhauer como um todo, surge a partir dos cursos de Fichte.
Para este, a Besonnenheit é compreendida como a “consciência superior”
constitutiva da filosofia definida como “saber do saber”. É a consciência da
consciência, contraposta à mera consciência empírica. Enquanto a consciência comum
está voltada para as coisas, a absolute Besonnenheit volta-se para a consciência da consciência das
coisas, para o saber, a percepção. De fato, se quase todos os comentários de
Schopenhauer sobre o curso de Fichte são críticos, pelo menos um ponto parece
encontrar a concordância do jovem filósofo: a existência de um ponto de vista
superior ao do senso comum, da consciência empírica. Daí o significado do termo
Besonnenheit – que encontrará todo um desenvolvimento em O Mundo como Vontade e Representação.
Paralelamente
aos cursos de Fichte, Schopenhauer empreendeu a leitura de diversas obras de Schelling. O interesse por Schelling
pode ser explicado por sua admissão da cognoscibilidade da coisa em si, o que
estava em conformidade com as lições que Schulze
oferecia de sua filosofia. Portanto, foi com grande expectativa que o jovem
Arthur se interessou pelos dois filósofos: havia a promessa de uma nova
metafísica que, não obstante pretenda estar legitimada diante do criticismo,
pudesse resgatar o conhecimento e, de certa forma, contornar o “pesadelo” da
crítica kantiana. Em seu intuito de unificar Kant e Platão, Schopenhauer estava
em busca justamente dessa nova metafísica. O entusiasmo, porém, cedeu lugar à
decepção e, no final das contas, o jovem Schopenhauer considerou fraudulenta a
promessa de Fichte e Schelling (o assim chamado
“idealismo alemão”): ambos fazem um “uso transcendente do intelecto”, o que
torna suas filosofias ilegítimas do ponto de vista do criticismo kantiano
(capítulo 6). Nessa parte do trabalho, Novembre reconstrói a crítica de
Schopenhauer às filosofias de Fichte e Schelling,
prescindindo do sarcasmo e do rancor com que ele quase sempre se exprime, e
focalizando, antes, as razões propriamente teóricas de suas críticas. “No
fundo, permanece sempre a mesma objeção: o uso transcendente do intelecto” (p.
215). Concepções tais como a de “intuição intelectual” e “absoluto”,
fundamentais para Fichte e Schelling (e também para Hegel) são rejeitadas e suas filosofias
rebaixadas ao nível da filosofia pré-crítica. Por
isso, afirma Schopenhauer, a “doutrina de Schelling
deve rejeitar-se pelo mesmo motivo pelo qual deve rejeitar-se a dogmática de
Wolff: pelo uso
transcendente das categorias e das leis da sensibilidade pura” (HN, II, p. 328, citado por Novembre, p. 210).
A
partir da terceira parte do livro, chamada “Uma primeira tentativa de
metafísica pós-kantiana: a teoria da ‘consciência melhor’”, Novembre passa a
detalhar a concepção própria que Schopenhauer começa a esboçar em 1812. Essa
empresa é desdobrada em dois momentos. Num primeiro (capítulo 7), trata-se de
investigar o surgimento de um pensamento autônomo no projeto de um “verdadeiro
criticismo” e na figura da “consciência melhor”. Num segundo momento (capítulo
8), são analisados os manuscritos de 1813 em que a teoria da consciência melhor
é desenvolvida sistematicamente. Nessa parte da obra, portanto, trata-se de
acompanhar, desde suas origens até seu desaparecimento, a teoria de
Schopenhauer sobre a “consciência melhor” (besseres Bewußtsein), constitutiva do primeiro esboço de sistema que o
jovem filósofo desenvolveu entre 1812 e 1813. Novembre investiga a gênese dessa
teoria, rastreia suas origens, visíveis já nas anotações das aulas de Fichte,
seu apogeu em certo momento dos escritos juvenis, até seu desaparecimento, por
conta do resultado da tensão constitutiva da experiência intelectual do jovem
Schopenhauer: a tensão entre a “alma platônica” e a “alma kantiana”. Ao fim
desse tensionamento, resultará que a noção de “consciência melhor” não será
apta para desenvolver uma metafísica que estivesse à altura de um “verdadeiro e
completo criticismo” e nem cumprirá os requisitos especulativos para a
“decifração do enigma do mundo” – a noção de “sujeito puro do conhecimento”
elaborada a partir de 1814 assumirá o protagonismo e cumprirá aquilo que era
visado pela noção juvenil de “consciência melhor”. Com isso, vê-se que, ainda
que tenha sido fundamental a reflexão sobre a filosofia de Fichte no período
berlinense, a filosofia madura de Schopenhauer se constitui à medida que sua
contraposição ao autor da Doutrina-da-Ciência fica mais evidente. O mesmo pode ser dito sobre
sua relação com Schelling: se ainda na Dissertação sobre a quadrúplice
raiz do princípio de razão suficiente[3]
de 1813 é possível encontrar traços de Schelling no conceito de “vontade” e de “caráter
inteligível”, da mesma forma, a concepção madura de Schopenhauer sobre a
“vontade de viver” como “coisa em si” se constitui em seu afastamento da
filosofia do autor das Investigações
filosóficas sobre a essência da liberdade humana.
Com
isso, chegamos à parte quarta e final da obra, chamada “O abandono da teoria da
consciência melhor e a origem da metafísica da vontade”. No nono capítulo,
Novembre analisa os conceitos de vontade e caráter
inteligível na Dissertação de 1813. À luz do que foi visto até aqui, ou seja,
após a análise sistemática dos manuscritos de Schopenhauer até 1813, sua visão
da filosofia kantiana – bastante influenciada pela leitura cética de Schulze, seu impulso platônico em direção ao conhecimento
da “verdade” que ele identifica com o âmbito do “suprassensível”, Novembre
interpreta a primeira edição da Dissertação de 1813 como resultante de uma leitura crítica de
duas obras seminais do “idealismo alemão”: o System
der Sittenlehre
de Fichte e o Freihetsschrift[4] de Schelling. Com isso, fica mais ainda mais claro o sentido
da passagem aludida acima, do jovem Schopenhauer se contrapondo à via seguida
pela filosofia do idealismo alemão – sobretudo Fichte e Schelling,
cujo conhecimento profundo Schopenhauer desde então já possuía, como a pesquisa
historiográfica vem demonstrando há algum tempo,– e amadurecendo seu próprio pensamento rumo ao
“sistema” que vem à luz em 1818 com O mundo
como vontade e representação.
Concluído
esse movimento, Novembre passa então a dedicar sua investigação aos “pródromos da metafísica da vontade”, no décimo capítulo
volta-se para os manuscritos de 1814 centralizando sua análise no
desenvolvimento da doutrina do caráter inteligível. Em seguinda,
no décimo primeiro capítulo, tematiza o estudo do Oupnek´hat e o encontro com a sabedoria indiana. É nesse
mesmo contexto que o conceito de uma universal “vontade de viver” é elaborado,
o que dará as condições de possibilidade de nascimento do “sistema” na mesma medida
em que a teoria da “consciência melhor” é definitivamente abandonada. Com essa
reconstrução genética da filosofia de Schopenhauer, o autor encontra-se em
condições de fornecer “uma chave explicativa particularmente fecunda” para
resolver alguns pontos problemáticos da obra magna do filósofo. À análise
desses pontos e ao desenvolvimento dessa chave interpretativa é dedicado o
último capítulo do livro, intitulado “Dos manuscritos juvenis a O mundo como vontade e representação”. Com esse último passo, percebe-se que a
contribuição oferecida pela obra de Novembre vai além de uma investigação doxográfica sobre as fontes do pensamento de Schopenhauer,
sua interpretação de outros filósofos e a aparição de alguns conceitos chaves
em seus manuscritos. Tem-se em vista uma reconstrução da filosofia de Schopenhauer que tornaria possível
lidar com suas aporias ao menos de modo diverso daquele que muitas vezes
aparece na literatura crítica: ao invés de desconsiderar o momento aporético na filosofia de Schopenhauer, ou de enfatizá-lo
ao ponto de tornar o sistema contraditório e,
portanto, inconsistente, ou ainda esboçar interpretações ou soluções que, por mais
engenhosas e refinadas que sejam, se fundam em uma conceitualidade
ou numa terminologia estranha ao pensamento de Schopenhauer, o que se propõe é,
mesmo reconhecendo a presença e a efetividade do “momento aporético”,
“uma explicação conceitual e terminologicamente intrínseca ao pensamento de Schopenhauer, considerado não
apenas ‘sincronicamente’, mas em todo o processo de sua evolução” (p. 27). O
leitor que acompanhar o percurso de Novembre nessa reconstrução genética da
filosofia de Schopenhauer até o fim descobrirá que a chave interpretativa
proposta está na doutrina do caráter inteligível: seu papel silenciosamente
fundador será destacado na interpretação do momento crucial da metafísica da
vontade, a saber, o argumento de analogia e a passagem da vontade como fenômeno
à vontade como coisa em si. Não é o caso, nesta breve resenha, de desdobrar os
termos do problema e nem mesmo resumir a argumentação de Novembre em favor da
centralidade da teoria do caráter inteligível[5] na
metafísica da vontade de Schopenhauer. Faço questão apenas de indicar esse
passo como exemplo das muitas contribuições que essa obra monumental oferece ao
estudo da filosofia de Schopenhauer. Embora não se possa dizer do trabalho de
Novembre – e nem de nenhum outro – que ele tenha conseguido dar conta de toda a
riqueza intrínseca à experiência intelectual de Schopenhauer na elaboração de
sua metafísica da vontade (em sua primeira versão), é certo que todo estudioso
da gênese de sua filosofia terá que necessariamente se remeter a esse trabalho.
Certo é, também, que o material presente nos escritos póstumos de Schopenhauer
é constituído de uma riqueza inesgotável, o que nos deve manter atentos para as
novas edições que estão sendo publicadas agora. Enfim, com sua obra Novembre
certamente não disse tudo que era possível dizer sobre o pensamento do jovem
Schopenhauer, mas o pesquisador que quiser desbravar esse período da filosofia
do autor de O mundo
como vontade e representação
terá a partir de agora esse estudo precioso no mínimo como incontornável ponto
de partida.
[1] KOSSLER, M. “A única intuição
– o único pensamento: Sobre a questão do sistema em Fichte e em Schopenhauer”.
Revista Dois Pontos: Curitiba, São Carlos, vol. 4, n. 1, p. 153-173, abril,
2007, p. 158.f
[2] Ao traduzir o artigo “Sobre o
papel do discernimento [Besonnenheit] na estética de Arthur Schopenhauer” de
Mathias Kossler (In: DEBONA, Vilmar et
al. (Orgs.). Dogmatismo e antidogmatismo: filosofia crítica, vontade e
liberdade. Uma homenagem a Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. Curitiba:
Editora UFPR, 2015, pp. 19-35), optamos por traduzir Besonnenheit por “discernimento”, ao invés de “lucidez” ou
“reflexão”, ou mesmo “clarividência” ou “clareza de consciência” tal como essa
palavra foi traduzida por Jair Barboza em sua tradução de O mundo como vontade e representação (São Paulo: Unesp, segunda edição, 2015, 2 vols). A tradução
por “discernimento” é de fato contestável e hoje eu reveria essa opção. Como me
alertou sobretudo o Professor Oswaldo Giacoia Jr, “discernimento” caracteriza
sobretudo uma operação do entendimento contrária ao que tenta expressar
a Besonnenheit. De qualquer forma, por conta da polissemia dessa palavra
e pelo fato de que o próprio Novembre a menciona sempre no original e apresenta
uma miríade de traduções possíveis, deixarei a mesma aqui sem tradução.
[3] Acaba de ser publicada pela
Editora Unicamp a tradução da dissertação de Schopenhauer (a partir da segunda
edição de 1847) com o título Sobre a quadrúplice raiz do princípio de razão suficiente
- Uma dissertação filosófica. Trad.
Oswaldo Giacoia Jr. e Gabriel Valladão Silva.
[4] Philosophischen Untersuchungen
über das Wesen der menschlichen Freiheit und die damit zusammenhängenden
Gegenstände (1809).
[5] A interpretação de Novembre se alinha a
algumas interpretações recentes que destacam o papel central da teoria do
caráter na filosofia de Schopenhauer, como John E. Atwell, Schopenhauer on
the Character of the World, The Metaphysics of Will, Berkeley u. a., 1995;
e Matthias Kosler, “Die Philosophie Schopenhauers als Erfahrung des Charakters,
in: Birnbacher (Hg.): Schopenhauer im Kontext, Deutsch-polnisches
Schopenhauer-Symposion 2000, Wurzburg, 2002, 91-112.