Submissão: 30/07/2019 Aprovação: 24/11/2019
Publicação: 18/12/2019
Fluxo
contínuo
Complacência
estética e satisfação do querer na metafísica do belo em Schopenhauer
Aesthetic complacency and satisfaction of will in
Schopenhauer's metaphysics of the beauty
Jarlee
Oliveira Silva Salviano
Professor de Filosofia na Universidade Federal da
Bahia, Salvador, BH
Resumo: Seguindo os passos de Kant,
Schopenhauer erige sua Metafísica do belo a partir da concepção de arte
“desinteressada”. O conhecimento determinado por motivos proporciona ao
espectador da arte o “excitante” e a mera satisfação empírica, mas não o belo
ou o sublime. O gênio, representação mais potente e eficaz da subjetividade
pura do conhecimento, é descrito no Livro III de O mundo como vontade e
representação de modo aparentemente ambíguo: como o Willenlos
(isento de vontade), como aquele “livre da tempestade das paixões” e do “ímpeto
dos desejos”. Mas, ao mesmo tempo, como aquele “submetido a afetos veementes e
paixões irracionais”. No entanto, trata-se, na vivência estética do gênio ou do
contemplador da arte, de um prazer desinteressado, de uma complacência de outra
ordem que a do homem do senso comum e de ciência. O artigo procura, então,
analisar o conceito de complacência ou satisfação estética em Schopenhauer e
seu enraizamento na filosofia de Kant.
Palavras-chave: Schopenhauer; Kant; Desinteresse; Complacência
Abstract: Following in the footsteps
of Kant, Schopenhauer builds his Metaphysics of the beauty from the conception
of art “disinterested”. Knowledge determined by motives gives to the
spectator of art the “exciting” and the mere empirical satisfaction, but not
the beauty or the sublime. The Genius, most potent and effective representation
of the Pure Subjectivity of Knowledge is described in the Book III of The world as will and representation in an
apparently ambiguous way: as the Willenlos
(free of will), like that free of the storm of the passions and the impetus of
desires. But at the same time as that subjected to vehement affections and
irrational passions. However, it is, in the aesthetic experience of the genius
or the contemplator of art, a disinterested pleasure, a complacency of another
order than that of the man of common sense and science. The article then seeks
to analyze Schopenhauer’s concept of aesthetic complacency or satisfaction and
its roots in Kant’s philosophy.
Keywords: Schopenhauer; Kant; Disinterest; Complacency
Partindo da distinção
kantiana entre fenômeno e coisa-em-si, e da teoria das formas eidéticas de
Platão, Schopenhauer constrói sua filosofia da arte centralizada na cisão do
agente estético em, por um lado, uma subjetividade metafísica e, por outro
lado, a individualidade empírica. Outra distinção importante consiste na
diferenciação estratégica entre representação e fenômeno (efetivação da Vontade
noumênica tecida pelas formas do tempo, espaço e causalidade). As Ideias
platônicas, por exemplo, mediação ontológica entre a Vontade e os fenômenos,
são representações, mas constituídas de uma única forma: a de
ser-objeto-para-um-sujeito. Elas são, conforme neologismo postulado por ele, objetidade
(Objektität) da vontade – o termo “objetividade” (Objektivität)
será usado em sua obra exclusivamente para a referência à forma de conhecimento
do gênio, a orientação objetiva do espírito, não degradada pelas formas
sensíveis do conhecimento. O primeiro tem, portanto, um sentido ontológico; o
segundo, epistemológico.
Diante desse panorama
bem conhecido da estética schopenhaueriana (em que pese a inadequação
desta expressão em relação à preferência do autor por “metafísica do belo”), o
presente escrito faz algumas reflexões, em vista da aproximação com Kant, sobre
alguns conceitos-chave deste andar do edifício filosófico do pessimista
irresoluto. Seguiremos como fio condutor o conceito de complacência ou
satisfação estética.
Tanto em Kant quanto em
Schopenhauer, o fundamento da valoração estética, assim como da valoração
moral, está relacionado ao modo de satisfação proporcionado ao sujeito na sua
relação com a representação do objeto.
Vejamos como isto se dá
em Kant.
No início da Analítica
do belo de sua Crítica da faculdade de julgar, Kant apresenta a
diferença entre a forma de satisfação (ou complacência, Wohlgefallen)[1] relacionada ao sujeito empírico, ao
sujeito estético e ao sujeito ético. Diz o filósofo: “Cada um tem de reconhecer
que aquele juízo sobre beleza, ao qual se mescla o mínimo interesse, é muito
faccioso e não é nenhum juízo-de-gosto puro”[2]. Em oposição à forma de
complacência do sujeito empírico (a satisfação do prazer oriundo das sensações,
que é sempre subjetivo, portanto, interessado) pode-se afirmar que no juízo de
gosto se trata de um prazer desinteressado, objetivo, mediado pela reflexão. A
complacência sensível, portanto, o agradável, é sempre interessada,
ligada a um prazer subjetivo, ao modo como somos afetados pelo objeto e o
sentimento de prazer que advém desta percepção.
Por outro lado, o
sujeito ético é também interessado, mas seu interesse não está ligado às
inclinações (daí nenhuma objetividade e valor moral pode resultar), mas se
direciona ao conceito de lei moral apenas, à pura normatividade transcendental a priori dada pela razão. Trata-se de um
interesse objetivo, ao passo que o sujeito empírico, impulsionado pelas
inclinações, liga-se ao objeto com interesse subjetivo. Neste caso, ainda que
esteja conforme à lei, sua ação não tem qualquer valor moral, pois se serve
dela apenas como meio para seus fins egoístas. “Somente através do que o homem
faz sem consideração do gozo”, diz Kant, “em inteira liberdade e
independentemente do que a natureza também passivamente poderia
proporcionar-lhe, dá ele um valor absoluto à sua existência enquanto existência
de uma pessoa; e a felicidade, com a inteira plenitude de sua amenidade (Annehmlichkeit),
não é de longe um bem incondicionado”[3].
Em suma, são três as
formas de satisfação relativamente ao prazer ou desprazer, ou seja, três formas
de complacência: o agradável (Angenehm), a satisfação advinda das
sensações do sujeito empírico; o bom (Gut), a ação motivada tão somente
pela lei moral, sem qualquer influência das inclinações; e o belo (Schön),
a única complacência desinteressada, diferentemente das duas primeiras. O
agradável é aquilo que deleita (vergnügt); o bom é aquilo que é estimado
(geschätzt); e o belo é o que apraz (gefällt). Entre estes três,
“única e exclusivamente o do gosto pelo belo é uma complacência desinteressada
e livre; pois nenhum interesse, quer o dos sentidos, quer o da razão, arranca
aplauso”[4].
A distinção entre o bom
e o agradável já se apresenta, de fato, na Fundamentação da metafísica dos
costumes:
Praticamente bom
é porém aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão, por
conseguinte, não por causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer, por
princípios que são válidos para todo o ser racional como tal. Distingue-se do agradável,
pois que este só influi na vontade por meio da sensação em virtude de causas
puramente subjetivas que valem apenas para a sensibilidade deste ou daquele, e
não como princípio da razão que é válido para todos[5].
Pode-se ainda perceber
nesta tríade kantiana a expressão clara de seu sistema Crítico: do sujeito
empírico inserido na fenomenalidade (como ser natural, e da forma de
conhecimento a ele adequada: sempre interessada) tratou a Crítica da razão
pura. Do sujeito ético, e sua relação respeitosa com a lei moral imperativa
inscrita na racionalidade, tratou a Crítica da razão prática. E,
finalmente, do sujeito do juízo de gosto, desinteressado, tratou a Crítica
da faculdade do juízo.
Vejamos como se desenha,
no Livro III de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, esta
arquitetura de sua metafísica do belo relativamente à concepção de satisfação
do sujeito na sua relação com o objeto (a arte ou a bela natureza), em
comparação às formas de satisfação do sujeito empírico e do sujeito ético.
Perceberemos que as traduções disponíveis deste momento da obra
schopenhaueriana, por não levarem em conta esta aproximação com Kant (sabemos
da importância da terceira Crítica deste para a concepção de conceitos
fundamentais da estética de Schopenhauer, como o belo e o sublime), dificultam
ao leitor o acesso a certas nuances desta discussão sobre a satisfação
estética.
De início, já no
primeiro parágrafo do referido terceiro Livro, Schopenhauer estabelece a
distinção entre sujeito e indivíduo. O segundo é a subjetividade empírica,
manifestação fenomênica da Vontade noumênica; o primeiro é a subjetividade que
equivalerá ao nível da transcendentalidade de Kant, mas, com a ajuda da
doutrina das Ideias de Platão, este sujeito do conhecimento schopenhaueriano é
a objetidade adequada da Vontade, da qual o indivíduo empírico é uma
mera manifestação no tempo. Trata-se de uma espécie de subjetividade desindividualizada,
“olho cósmico” (Weltauge) da Vontade, dirá o filósofo. É este sujeito
puro do conhecimento que acessa as Ideias na atividade estética, na criação e
na contemplação: “caso as Ideias devam se tornar objeto de conhecimento, isso
só pode ocorrer pela supressão da individualidade no sujeito cognoscente” (W I,
236). A arte é, assim, autoconhecimento da Vontade.
Do mesmo modo, estabelece
a diferença entre o fenômeno (Erscheinung) empírico e a representação (Vorstellung),
para ser mais preciso, um tipo específico de representação: a Ideia platônica.
As Ideias são representações, mas não são fenômenos (estes são
espaço-temporais, sob a regência da causalidade). Assim, pertence às Ideias uma
única forma, a do ser-objeto-para-um-sujeito (Objekt-für-ein-Subjekt-sein).
Como indivíduos, na intuição
mediada por um corpo, o conhecimento está a serviço da Vontade. Não percebe
as coisas como são em si, mas nas suas relações com outras coisas, através do
princípio de razão. E na relação das coisas com sua própria corporeidade, na
mediação com o tempo, o espaço e a causalidade, “pois somente mediante estes o
objeto é INTERESSANTE para o indivíduo, isto é, possui uma relação com a
Vontade” (W I, 244, destaque do autor).
Eis, então, que surge o
estado estético, assim descrito pelo filósofo:
Quando, elevados
pela força do espírito, abandonamos o modo comum de consideração das coisas,
cessando de seguir apenas suas relações mútuas conforme o princípio de razão,
cujo fim último é sempre a relação com a própria vontade; logo, quando não mais
consideramos o Onde, o Quando, o Porquê e o Para Quê das coisas, mas única e
exclusivamente o seu QUÊ […] a gente se PERDE por completo nesse objeto, isto
é, esquece o próprio indivíduo, o próprio querer, e permanece apenas como claro
espelho do objeto […] justamente por aí, ao mesmo tempo, aquele que concebe na
intuição não é mais indivíduo, visto que o indivíduo se perdeu nessa intuição,
e sim o atemporal PURO SUJEITO DO CONHECIMENTO destituído de Vontade e
sofrimento (W I, 246)[6].
Diferentemente da arte,
obra do gênio (o suprassumo da subjetividade pura do conhecimento), a ciência
incessantemente segue a cadeia causal do princípio de razão: “de cada fim
alcançado é novamente atirada mais adiante, nunca alcançando um fim final, ou
uma satisfação completa” (W I, 253)[7]. O gênio é o único a alcançar um
esquecimento completo de si mesmo:
[…] a GENIALIDADE
nada é senão a OBJETIVIDADE (Objektivität) mais perfeita, ou seja,
orientação objetiva do espírito, em oposição à subjetiva que vai de par com a
própria pessoa, isto é, com a vontade. Por consequência, a genialidade é a
capacidade de proceder de maneira puramente intuitiva, de perder-se na intuição
e afastar por inteiro dos olhos o conhecimento que existe originariamente
apenas a serviço da Vontade – ou seja, de seu interesse, querer e fins (W I,
236).
No homem comum, esse produto
de fábrica da natureza, diz ele, predomina a sujeição à Vontade, e o
conhecimento e a ação determinados por motivos (Motive) – toda
mola propulsora empírica, cognitiva ou prática. No entanto, paradoxalmente, o
gênio é descrito constantemente pelo filósofo ao mesmo tempo como sujeito
desinteressado e também como aquele submetido a afetos veementes e paixões
irracionais, dada esta proximidade da intuição genial às cercanias da
Vontade como coisa-em-si, fonte de todo desassossego e sofrimento – daí sua
natureza melancólica. Em contraposição ao tormento (Qual), das mazelas
do homem cotidiano, o homem de gênio vive a inescapável presença do sofrimento
(Leiden) advindo das entranhas da noumenalidade.
De todo modo, seja na
criação do gênio, seja na contemplação da obra de arte ou da bela natureza, há
um contentamento, uma satisfação vetada ao indivíduo fenomênico e possível
apenas ao sujeito estético. Esta passagem do terceiro Livro de sua obra magna
(em que aparece o primeiro relato de seu pessimismo – no Livro anterior, o
conflito das forças na natureza indica o aspecto trágico de sua
filosofia, certamente apreciado por Nietzsche) dá conta desta tese:
Desses
dois componentes do modo de conhecimento estético [Ideia e Sujeito Puro do
Conhecimento] resulta também a SATISFAÇÃO (Wohlgefallen) despertada pela
consideração do belo e, na verdade, satisfação mais em face de um ou de outro,
conforme o objeto da contemplação […]. Todo QUERER nasce de uma
necessidade, portanto de uma carência, logo, de um sofrimento. A satisfação (Erfüllung)
põe um fim ao sofrimento; todavia, contra cada desejo satisfeito permanecem
pelo menos dez que não o são. Ademais, a nossa cobiça dura muito, as nossas
exigências não conhecem limites; a satisfação (Erfüllung), ao contrário,
é breve e módica. Mesmo a satisfação (Befriedigung) final é
apenas aparente, o desejo satisfeito (erfüllt) logo dá lugar a um novo:
aquele é um erro conhecido, este um erro ainda desconhecido. Objeto algum
alcançado pelo querer pode fornecer uma satisfação (Befriedigung)
duradoura, sem fim, mas ela se assemelha sempre apenas a uma esmola atirada ao
mendigo, que torna sua vida menos miserável hoje, para prolongar seu tormento (Qual)
amanhã – Daí, portanto, deixar-se inferir o seguinte: pelo tempo em que o
querer preenche a nossa consciência, pelo tempo em que estamos entregues ao
ímpeto dos desejos com suas contínuas esperanças e temores, por conseguinte,
pelo tempo em que somos sujeito do querer, jamais obtemos felicidade duradoura
ou paz. E em essência é indiferente se perseguimos ou somos perseguidos, se
tememos a desgraça ou almejamos o gozo: o cuidado pela Vontade sempre exigente,
não importa em que figura, preenche e move continuamente a consciência. Sem
tranquilidade, entretanto, nenhum bem-estar verdadeiro é possível. O sujeito do
querer, consequentemente, está sempre atado à roda de Íxion que não cessa de
girar, está sempre enchendo os tonéis das Danaides, é o eternamente sedento
Tântalo (W I, 266).
Infelizmente a tradução
de Jair Barboza, ao verter estes conceitos distintos igualmente por “satisfação”, não ajuda o leitor a perceber
uma importante conceituação de Schopenhauer (a tradução de Maria Lúcia
Cacciola, da coleção Os Pensadores, também não atenta para esta distinção):
diferentemente de Kant, para quem o termo Wohlgefallen foi utilizado
para significar a satisfação de um modo geral (a complacência em suas três
configurações), em Schopenhauer o conceito Wohlgefallen
serve ao filósofo exclusivamente para a designação da satisfação estética.
Por outro lado, a satisfação empírica (o malogrado contentamento do sujeito do
querer) é grafada como Erfüllung ou Befriedigung. Mais adiante,
no quarto Livro (noutra impressionante apresentação de seu pessimismo
ontológico) encontramos este comentário sobre a satisfação fenomênica:
Há muito reconhecemos esse esforço, constitutivo do
núcleo, do em-si de toda coisa, como aquilo que em nós mesmos se chama VONTADE
e aqui se manifesta da maneira mais distinta na luz plena da consciência.
Nomeamos SOFRIMENTO a sua travação por um obstáculo, posto entre ela e o seu
fim passageiro; ao contrário, nomeamos SATISFAÇÃO (Befriedigung),
bem-estar, felicidade, o alcançamento do fim […] Pois todo esforço nasce da
carência, do descontentamento com o próprio estado e é, portanto, sofrimento
pelo tempo em que não for satisfeito (befriegt); nenhuma satisfação (Befriedigung),
todavia é duradoura, mas antes sempre é um ponto de partida de um novo esforço,
o qual, por sua vez, vemos travado em toda parte de diferentes maneiras, em
toda parte lutando, e assim, portanto, sempre como sofrimento: não há nenhum
fim último do esforço, portanto não já nenhuma medida e fim do sofrimento (W I,
399).
Em alguns casos, como na passagem do terceiro Livro em
que analisa a hierarquia dos sentidos a partir de sua facilitação ou dificultação
para a vivência estética (a visão estando no topo da hierarquia), Schopenhauer
lança mão do termo Angenehm, utilizado por Kant (citado nesta passagem)
para designar a complacência empírica, o agradável: “O odor, entretanto,
é sempre agradável (Angenehm) ou desagradável; o paladar ainda mais.
Portanto, estes dois últimos sentidos são os mais intimamente ligados à
vontade. Eis por que sempre foram chamados de sentidos menos nobres e, por
Kant, de sentidos subjetivos” (W I, 271).
Enfim, no mesmo sentido de Erfüllung ocorre
também em Schopenhauer o termo Gewährung, como no parágrafo 40 do
terceiro Livro, em que faz uma análise do excitante enquanto aquilo que
se opõe diametralmente ao sublime, pois enquanto este eleva o espectador da
terrível ameaça da natureza desfavorável à vontade, o excitante desce o sujeito
estético da pura contemplação exigida (tanto no aspecto positivo, objetos que
excitam e atraem a vontade; quanto do negativo, o “repugnante”, especialmente
reprovável na arte). “Entendo sob este termo”, afirma Schopenhauer,
referindo-se ao excitante, “aquilo que estimula a vontade,
apresentando-se diretamente à sua satisfação (Gewährung), ao seu
preenchimento (Erfüllung) (W I, 280)”.
Ademais, outra diferença
entre os dois autores diz respeito ao conceito de interesse. Para Kant a única
atividade do sujeito absolutamente desinteressada é o juízo de gosto estético.
Para Schopenhauer tanto a fruição da arte como a ação moral podem ser
desinteressadas: no fenômeno da compaixão (na ética de Schopenhauer: o critério
para o julgamento moral da ação) o agente já está despido de sua
individualidade, age tão somente motivado pela dor alheia, sem qualquer
resquício de egoísmo, portanto desinteressadamente. Tendo rejeitado
veementemente a possibilidade do respeito pela lei moral (toda legislação
imperativa tem um fundamento teológico, portanto se assenta no medo ou
esperança de recompensa, no egoísmo), a única motivação que conduz a uma
valoração moral positiva, para ele, é o esquecimento de si e a inserção desinteressada
no infortúnio alheio, para amenizá-la ou suprimi-la. Mas concordam também as
duas filosofias em que todo eudaimonismo fundado na motivação empírica, nas
sensações do sujeito empírico, leva ao interesse e exclui toda
possibilidade de valoração positiva, ética ou estética.
Nas pesquisas sobre
Schopenhauer no Brasil, há dois artigos elucidativos sobre a questão do
desinteresse em Schopenhauer que podem vir em apoio desta discussão. O artigo
“O conceito de interesse”, de Maria Lúcia Cacciola, e o artigo “Desinteresse e comprazimento estético:
considerações acerca da apreciação da estética kantiana por Schopenhauer face
às de Hegel e Heidegger”, de Dax Moraes. O último se apresenta, afirma o autor,
como uma extensão da defesa de Schopenhauer diante das críticas de Heidegger,
realizada pelo artigo anterior.
A crítica heideggeriana busca mostrar que houve uma
distorção da terceira Crítica
kantiana por parte de Schopenhauer ao inserir o caráter ético na estética do
filósofo de Königsberg, visando a um niilismo ascético de desapego do mundo, “uma espécie de primeira etapa da
negação da Vontade”[8]. Por um lado, na verdade, não há
deturpação nesta interpretação de Schopenhauer sobre o desinteresse, defende
Cacciola: “A sua leitura do desinteresse é bem mais radical, na medida em que é
por meio do belo desinteressado que se torna possível um conhecimento
verdadeiro, não de um algum referente oculto, de algo real, mas sim daquilo que
é ideal”[9]. A preocupação de Schopenhauer é a
de excluir qualquer presença de elemento racional abstrato na contemplação
estética que, segundo ele, haveria na concepção kantiana de juízo reflexionante
e a sua pretensa universalidade. Se há, por outro lado, uma aproximação entre a
ética e a estética em Schopenhauer, uma não subsume a outra: pode-se dizer,
além disso, que é a estética que fundamenta a ética, pois esta também lidará
com o desinteresse, ao apresentar a compaixão desinteressada como fundamento da
moral.
É curioso notar que, a despeito da crítica de
Heidegger, e da aproximação aqui defendida entre Kant e Schopenhauer, é
justamente este segundo que lamenta no primeiro a mistura malsã de ética e
estética quando, ao tratar do sublime matemático (reconhecendo a origem
kantiana da nomenclatura), afirma seu distanciamento dele “na explicitação da
essência íntima dessa impressão, isentando-a seja de reflexões morais, seja de
hipóstases da filosofia escolástica” (W I, 278). Mas, um pouco adiante, acaba
se contradizendo: “Sim, também ao ético se deixa transmitir a nossa explanação
do sublime, a saber, àquilo que se descreve como caráter sublime” (W I, 279) -
de quem considera os homens de modo puramente objetivo.
Por outro lado, Dax
Moraes, em seu artigo, procura mostrar que a indisposição de Heidegger em
relação a Schopenhauer é artificiosa, que somente uma incompreensão por parte
de Heidegger não o permitiu perceber que também em Schopenhauer o fenômeno
estético se explica a partir desta tomada do objeto a partir do florescimento
de seu caráter objetivo, independente de toda apropriação utilitária.
Mas vai além disso. Em Heidegger, “portanto, é na medida em que deixamos que o objeto seja por-si que sua beleza aparece enquanto
dignidade própria, podendo-se dizer que nisto consiste o que ele denomina
‘relação real com o objeto’, ou seja, o modo próprio da relação sujeito-objeto,
na qual nenhum dos dois se retira, como teria dito Schopenhauer”[10]. Ao passo que em Schopenhauer, também
em Kant, não se trata mais da manutenção de certa relação real entre
sujeito e objeto, mas de sua superação, de sua subsunção.
Referências
CACCIOLA,
Maria Lúcia. O conceito de interesse. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, Vol. 5, 1999, pp. 5-15.
KANT,
Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e António
Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
KANT,
Immanuel. Fundamentação da metafísica dos
costumes. Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Col. Os
Pensadores).
MORAES,
Dax. Desinteresse e comprazimento estético: considerações
acerca da apreciação da estética kantiana por Schopenhauer face às de Hegel e
Heidegger. O que nos faz pensar,
Rio de Janeiro, Vol. 28, 2010, p. 145-167.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sämtliche Werke. Textkritisch
bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr. Löhneysen. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1968.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação (W I). Trad. Jair Barboza. São Paulo:
Editora da Unesp, 2005.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação.
Livro III. Trad. Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. São Paulo: Abril
Cultural, 1980 (Col. Os Pensadores).
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento
da moral. 2ª ed. Trad. Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[1] Na sua tradução
da Crítica da faculdade do juízo, Valério Rohden fundamenta bem sua
opção para verter Wohlgefallen por complacência, mostrando que em alguns
escritos, como na Antropologia, Kant mesmo fez seguir à expressão Wohlgefallen,
entre parênteses, o latim complacentia (na própria Crítica da faculdade
do juízo é utilizado o termo Komplazenz, em substituição a Wohlgefallen).
[2] KANT, Crítica da faculdade do juízo, p. 50.
[3] Idem, p. 53.
[4] Idem, p. 55.
[5] KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes,
p. 124.
[6] Em caso de não sinalização em contrário, todos os
destaques em caixa alta nas citações são do autor.
[7] Platão e
Aristóteles são as personagens, entre os antigos, escolhidas por Schopenhauer
para representar o gênio e o cientista, respectivamente.
[8] CACCIOLA, O
conceito de interesse, p.
5.
[9] Idem, p.
9.
[10] MORAES, Desinteresse e comprazimento estético: considerações
acerca da apreciação da estética kantiana por Schopenhauer face às de Hegel e
Heidegger,
p. 156.