DOI

Submissão: 16/07/2019 Aprovação: 30/07/2018 Publicação: 31/08/2019

 


Sabedoria Oriental

 

Individuação como Filosofia Prática:  A Clínica da “Meia-Idade” de C. G. Jung e a Doutrina Indiana dos Puruṣārthas

 

Individuation as Practical Philosophy: C. G. Jung´s Clinic of the Second Half of Life and the Indian Doctrine of Puruṣārthas

 

Dilip Loundo

Doutor em Filosofia pela Universidade de Mumbai.

Professor na Universidade Federal de Juiz de Fora.

loundo@hotmail.com

 

Resumo: A intervenção histórica de Jung constitui, em nossa opinião, uma proposta de revitalização, na modernidade, de uma filosofia soteriológica que se ancora, estrategicamente, no contexto disciplinar de uma “psicologia científica”. Enquanto “clínica da meia-idade” ou “clínica da individuação”, o modelo que mais diretamente inspira a psicologia analítica de Jung é o athanasius pharmakon dos antigos - a “medicina da imortalidade”. Seu arcabouço conceitual, ao invés de uma teoria científica de pretensões universalizantes, consagra-se como linguagem-força que estrutura e sustenta, no Ocidente moderno, uma reflexão dialógica e conversacional analista-analisando (‘therapeia’), comprometida com a eliminação sistemática dos “invólucros falsos” que encobrem o Si-Mesmo (Self) e com a realização de uma verdade existencialmente transformadora que promove, em definitivo, a plenitude existencial. Para sustentar essa linha interpretativa, fazemos recurso à doutrina indiana dos Puruṣārthas (aspirações humanas), em especial ao processo de transição entre dharma (dever moral) e mokṣa (realização final).

Palavras-chave: Individuação; Função religiosa; Função transcendente; ātman; puruṣārtha.

 

Abstract: Jung's historical intervention is essentially a proposal to revitalize, in modernity, a soteriological philosophy that finds strategic shelter in the disciplinary context of a "scientific psychology". As "middle-age clinic" or "clinic of individuation", the paradigm that directly inspires Jung's analytical psychology is the athanasius pharmakon of ancients and classic western and eastern philosophers - the "medicine of immortality". Its conceptual framework, instead of a scientific theory of universal claim, constitutes itself as a power-language that structures and sustains, in modern West, a dialogical and conversational process of thinking between analyst and patient (therapeia), committed to the systematic elimination of "false sheets" that conceal the Self and the realization of an existentially transforming truth that promotes existential completeness. To support this interpretative line, we resort to the Indian doctrine of Puruṣārthas (human aspirations), especially to the process of transition between dharma (moral duty) and mokṣa (final realization).

Keywords: Individuation; Religious function; Transcendent Function; ātman; puruṣārtha.

 

I

 

Deixei as leituras sistemáticas de Jung faz alguns anos, em meio a uma imersão acadêmica mais profunda e definitiva no pensamento filosófico indiano. Reconhecia, à época, o quanto o pensamento de Jung nos abria a horizontes mais amplos do pensar. Foi-me, nesse sentido, uma aventura literária extremamente gratificante. Mas nutria, ao mesmo tempo, a opinião de que o “sistema conceitual” de Jung representava um reducionismo perigoso desses mesmos horizontes mais amplos a que nos impelia. No que tange especificamente às menções frequentes e reiteradas às tradições indianas, saltavam-me aos olhos o quanto as tentações grandiosas de uma história universal das “crenças e das ideias religiosas”, nos moldes do historiador das religiões Mircea Eliade, representavam uma agressão aos contextos históricos específicos de determinação de sentido e uma rendição à monotonia interpretativa de um iluminismo resiliente. De lá para cá, o mundo mudou e eu também. E por circunstâncias transversas, Jung voltou a atravessar meu percurso existencial e acadêmico. É dessa revisão, ainda preliminar, que gostaria de falar neste ensaio.

A suspeita inicial de que o reducionismo por mim atribuído a Jung não fazia justiça a certos desdobramentos intencionais e concretos de sua prática clínica, veio no bojo de uma apreciação deslocada envolvendo, de forma conjunta, as obras de três dos maiores pensadores do século XX, o filósofo Martin Heidegger, o sociólogo Max Weber e o próprio Jung. As noções de “esquecimento do Ser” de Heidegger, de “desencantamento do mundo” de Weber e de “depauperamento dos símbolos” de Jung operaram, de forma inusitada, como conceitos “purgadores” dos fundamentos cartesiano-protestante-iluminista do pensar filosófico e da ciência moderna. Uma sensibilidade extrema às limitações e à inadequação do método cartesiano na investigação de suas respectivas temáticas situou esses autores nas margens suas próprias disciplinas. Nelas se mantiveram, entretanto, por compromisso a uma herança destinal que a elas atribuiu tarefas e responsabilidade que em muito excediam seus recursos metodológicos. Pensadores de fronteira, eu diria, que eram e não eram “filósofos”, que eram e não eram “cientistas”.

A questão central que aqui me traz é a seguinte: Qual o sentido, as motivações e os objetivos do projeto psicoterapêutico de Jung? Para tanto, proponho-me a um redimensionamento do que acima denominei de “sistema conceitual” de Jung. Trata-se de uma tarefa eminentemente epistemológica cujo núcleo central, ao invés de um mero julgamento “técnico” da consistência interna do discurso, trata de investigar a contextualização genealógica, disciplinar e experiencial de alguns de seus conceitos-chave.

O redimensionamento do sistema conceitual de Jung a que me proponho, sugere, então, que o mesmo seja entendido como uma adequação necessária de uma problemática existencial fundamental, constitutiva e, por isso mesmo, meta-psicológica, a um discurso e a uma terminologia científicas, a saber, a disciplina da psicologia que, por circunstâncias históricas muito peculiares, se tornou seu território inconfortável de abrigo. Em outras palavras, ao invés de uma redução, Jung teria empreendido um reenquadramento histórico possível dessa mesma problemática fundamental. Com isso, o sistema conceitual que lhe é correlato se eximiria das interpretações que nele enxergam uma objetificação da subjetividade. A rejeição sistemática de Jung à possibilidade de que conceitos fundamentais por ele propostos – ‘inconsciente coletivo’, ‘Si-Mesmo (Self)’, ‘arquétipo’, etc. – possam comportam uma compreensão racional ou que suas manifestações (ditas) empíricas possam constituir os termos médios de um silogismo inferencial, daria testemunho de uma postura anticartesiana que aponta para uma dinâmica complexa da psyché que vai muito além de um mero somatório de relações entre componentes reificados. Decorreria daí um corolário que, me parece, inevitável ainda que inusitado: o sistema conceitual de Jung não seria, nem se proporia a ser, uma “teoria psicológica”. Mais do que isso, a condição de possibilidade de sua eficácia clínica exigiria que ele, efetivamente, não o fosse. Qual o status, então, desse sistema conceitual inusitado, cuja “cientificidade” assentaria numa formulação linguística não-científica e que tem na eficácia clínica o momento conclusivo de uma cadeia cognitiva? Para compreender o significado destas proposições sugestivas precisamos adentrar o cerne substancial da questão.

Qual a problemática existencial fundamental, meta-psicológica, que constitui a preocupação central de Jung? E que instâncias tradicionais de sua formulação, encaminhamento e resolução teriam, historicamente, entrado em retrocesso de forma a requerer seu reenquadramento no contexto da cientificidade moderna e, em particular, no contexto do discurso psicológico? Deixemos que Jung fale por si mesmo:

Esta problemática é nova, pois em todas as épocas precedentes acreditava-se em deuses de um modo ou de outro. Foi necessário um depau­peramento dos símbolos para que se descobrisse de novo os deuses como fatores psíquicos, ou seja, como arquétipos do inconsciente. (...) Desde que as estrelas caíram do céu e nossos símbolos mais altos empalideceram, uma vida secreta governa o incons­ciente. É por isso que temos hoje uma psicologia, e falamos do inconsci­ente. Tudo isto seria supérfluo, e o é de fato, numa época e numa forma de cultura que possui símbolos.[1]

As palavras de Jung são por demais convincentes. A imperiosidade de sua intervenção está indelevelmente comprometida com o cumprimento de que denominaria de “função religiosa”, ao passo que o reenquadramento desta na esfera de uma “psicologia” está destinalmente inscrita numa história ocidental de “depauperamento dos símbolos”. Que testemunho maior poderia haver de que o sistema conceitual de Jung não aspira ao estatuto universalista de uma “teoria psicológica”, já que em culturas que possuem símbolos, diz ele, “tudo isso (i.e., a psicologia do inconsciente) seria supérfluo”? Em outras palavras, o inconsciente proposto por Jung não trata, em última análise, nem de uma manifestação psíquica de uma transcendência chamada “deuses”, nem de uma explicação racional e universalmente substitutiva dos mesmos, mas ao invés é ele mesmo um modo de ser desses deuses, dessa transcendência, desse mistério, adequado às circunstâncias históricas do Ocidente.

 

II

 

Identificada a função religiosa como genuinamente (e não metaforicamente) fundante de seu arcabouço conceitual, cabe-nos, em seguida, esmiuçá-la em seus componentes fundamentais. Para tanto, faz-se necessário destrinchar o emaranhado de confusão e perversão funcional moderna que contaminou as instâncias tradicionais do Ocidente antigo, clássico e até mesmo medieval, e seus dois principais componentes de encaminhamento: (i) a religião propriamente dita (sentido estrito); e a (ii) filosofia enquanto sua instância de aprofundamento último. Para nos ajudar nesse desiderato faremos recurso, enquanto suporte epistemológico, à doutrina pan-indiana dos puruṣārthas que apresenta uma tipologia das aspirações básicas da existência humana e que funda, numa perspectiva eminentemente fenomenológica, a genealogia e a ordenação orgânica das principias disciplinas cognitivas do subcontinente indiano.

A doutrina dos puruṣārthas (lit. “aspirações humanas”)[2] postula a existência de quatro aspirações fundamentais da condição existencial. A primeira, kāma, refere-se à busca de objetos que satisfaçam nossos instintos orgânico-sexuais. A segunda, artha, refere-se à busca de objetos que satisfaçam nossa sede de poder e riqueza materiais. E as duas últimas – dharma e mokṣa – são aquelas que constituem, propriamente, singularidades da condição humana. Seu corte qualitativo reside no fato de ambas se relacionarem com procedimentos que não se orientam na direção de objetos existentes à contemporaneidade da demanda.

Dharma é o que acima denominamos de “religião num sentido estrito”: um conjunto de práticas rituais e morais que se pretendem causa instrumental na produção e na aquisição futura, post mortem, ou “em outra vida”, de um objeto muito especial, linguisticamente expresso por conceitos de totalidade objetiva como “paraíso”, “reino divino”, e em cuja narrativa mítica se dimensionam as articulações constitutivas de nossa existência relacional, dependente e limitada. A dimensão objetiva puramente imaginal deste objeto totalizante, i.e., sua carência de contrapartida material imediata, promessa que é de fruição futura, instaura um processo de renúncia que aponta para um mistério (de sentido), ou, na terminologia de Jung, para um “símbolo”. Do ponto de vista existencial, corresponde à admissibilidade por parte do sujeito da existência de um princípio de totalidade transcendente que é percebido, inicialmente, como algo externo e, ainda assim, organicamente integrado. Neste estágio inicial, a religião constitui a instância social, por excelência, de apresentação, reiteração e preservação do mistério da existência.

E, finalmente, quarta e última aspiração, mokṣa, tem na filosofia seu encaminhamento privilegiado enquanto dimensão de aprofundamento último da função religiosa. A reflexão que a constitui transcorre enquanto racionalidade crítica, apofática, eliminativa das clivagens e distinções que subsistem, na literalidade da narrativa mítico-religiosa que constitui o estágio inicial, entre a interioridade do princípio constitutivo da subjetividade (ātman) e a exterioridade do princípio constitutivo da objetividade (brahman), o Absoluto. Neste segundo e derradeiro estágio, a religião assume a forma de uma hermenêutica existencializada do mito, de um adentramento no mistério, no símbolo, que culmina com a realização do princípio de unicidade ou não-dualidade ontológica que congrega, aqui e agora e desde toda a eternidade, o sujeito e o Absoluto (ātman brahman). Do ponto de vista existencial, a função precípua da filosofia, estágio último da religião, é o esclarecimento cognitivo último, por parte do sujeito, do caráter imanente do Absoluto.

A sequencialidade hierárquica que se instaura entre os dois principais componentes da função religiosa, a saber, a religião (sentido estrito) (dharma) e a filosofia (mokṣa), decorre do fato de que o exercício da segunda depende de um esgotamento das expectativas objetificadas da primeira, que se cumpre com o  abandono de todo e qualquer anseio por objetos, humanos ou divinos, materiais ou imaginais, presentes ou futuros. Daí que o exercício da filosofia, enquanto hermenêutica verdadeiramente soteriológica, exija dos neófitos requisitos específicos de desprendimento, de desapego, como condição sine qua non para a compreensibilidade e eficácia dos textos e das pedagogias que lhe são correlatas - os Upaniṣads e seus desdobramentos comentariais -, e cuja funcionalidade linguístico-conceitual possui um caráter estritamente instrumental, indicativo e instigador, ao invés de jurídico-proposicional ou doutrinário.

O recurso crítico às noções indianas de dharma e mokṣa como correlato dos dois principais componentes da função religiosa, prevalentes no Ocidente antigo, clássico e até mesmo medieval – a saber, respectivamente, a religião propriamente dita (sentido estrito) e a (ii) filosofia – não se justifica apenas enquanto pertinência epistemológica para iluminar a proposta junguiana da psicologia analítica: o próprio Jung recorre ao Oriente em geral, e à Índia em particular, para evidenciar a eficácia contemporânea de empreendimentos comprometidos com um aprofundamento gradual e integrado da função religiosa. Os inúmeros estudos que realizou nesse sentido visaram, acima de tudo, promover, no Ocidente, uma rememoração de um modelo estruturante da função religiosa, permeado por instâncias graduais e integradas.

O corolário das considerações acima está, exuberantemente, estampado na noção fundacional da psicologia analítica enquanto método terapêutico: a “função transcendente”. Com efeito, as duas dimensões de sentido da função religiosa que constituem, a meu ver, a retaguarda destinal de toda a psicologia de Jung encontram seu justo correlato no duplo vetor em que se desdobra a função transcendente: “[a função transcendente] trata-se, ao mesmo tempo, de um processo e de um método. A produção de compensações inconscientes é um processo espontâneo, ao passo que a realização consciente é um método.” [3] O primeiro vetor – i.e., a função transcendente como processo - é veiculado através do “espaço religioso [que] providencia uma ponte para a constituição (...) dos símbolos”.[4] Assim se institui a dimensão litúrgica, ritual e ético-moral das religiões e seus sistemas de constituição e preservação de símbolos. O segundo vetor – i.e., a função transcendente como método - é veiculado através do “espaço religioso [que] providencia uma ponte para (...) a ressignificação dos símbolos”.[5] Assim se institui a dimensão filosófica das religiões e seus sistemas de elaboração e hermenêutica de símbolos.

A pertinência dos termos “religião” e “filosofia” como tradução dos cognatos sânscritos dharma e mokṣa não reflete as idiossincrasias do tradutor, mas as exigências do sentido histórico e etimológico dessas palavras no Ocidente. Ao leitor atento de Jung, não escapará o fato de que a herança destinal da função religiosa no âmbito da psicologia reflete, na opinião de Jung, o enfraquecimento e o declínio moderno das instâncias tradicionalmente responsáveis por ela. Ora, as duas instâncias que emergem como alvo preferencial da crítica junguiana são, precisamente, os desdobramentos da religião cristã e da filosofia na modernidade ocidental.

Diferentemente da crítica iluminista à primeira (i.e., a religião), que nela enxerga um erro histórico a ser sanável pelo racionalismo humanista, e da crítica romântica a ambas (i.e., a religião e a filosofia) que as responsabiliza pelo extermínio de um individualismo monádico e libertário, a crítica de Jung envereda por um caminho radicalmente distinto cujo foco central é a denúncia de um desvio significativo de seus propósitos, funções e eficácias. Em outras palavras, no entendimento de Jung, tanto a religião cristã quanto a filosofia modernas teriam deixado de cumprir as funções históricas que lhes são inerentes de dar encaminhamento adequado às duas dimensões do que chamamos de “função religiosa”, cujo compromisso civilizacional remonta à tradição antiga e clássica greco-romana.

Não surpreende assim que, em muitos de seus episódios críticos, Jung retome as narrativas religiosas e filosóficas pré-modernas do Ocidente - e outras que adentram a modernidade na contramão das hegemonias - para relembrar o compromisso originário de organicidade entre religião e filosofia. Dos pré-socráticos a Aristóteles, dos Mistérios Eleusinos aos Mistérios Pitagóricos, da Grécia a Roma, e de Roma a vertentes significativas do cristianismo gnóstico e da tradição hermética, primitiva e medieval - o fato que ressalta é que os encaminhamentos filosóficos dessas tradições, ao invés de propugnar uma superação histórica das narrativas mítico-religiosas, consagraram-se como hermenêuticas soteriológicas das mesmas, i.e., disciplinas do bom pensar que, ancoradas em requisitos e meritocracias espirituais, promovem avanços verticais na compreensão do sentido profundo, anagógico, dessas narrativas.

Foi com esse espírito mesmo de interlocução perquisitiva que Jung se debruçou sistematicamente sobre as tradições religioso-filosóficas orientais, com destaque para a Índia, que apresentavam, além do mais, a singularidade única de possuírem desdobramentos contemporâneos, tradições vivas. Ao invés das interpretações impositivas, típicas dos orientalismos de sua época e vertentes atuais da “psicologia da religião”, a preocupação central de Jung é de identificar, nas civilizações orientais, sistemas análogos de articulação orgânica entre essas duas dimensões da função religiosa, com ênfase na dimensão avançada da filosofia hermenêutica, e outras tantas parcerias contemporâneas não-ocidentais que lhe ajudassem na rememoração e na revivificação simbólica no Ocidente.

 

III

 

Quais são, então, no entendimento de Jung, os problemas cruciais da religião cristã e da filosofia modernas que atestam o afastamento de seus compromissos originários? E por que estranhos descaminhos teria sua temática, em certa medida, sido herdada, no Ocidente, pela disciplina moderna da psicologia?

A organicidade que amarra, originariamente, as duas instâncias em tela –religião e filosofia - implica que seus desvios têm que ser necessariamente entendidos de forma dialética, i.e., elas nutrem-se mutuamente em seus descaminhos. No que tange ao cristianismo, o problema central é a dissolução progressiva dos elos orgânicos que a vinculam, processualmente, às instâncias filosóficas de uma hermenêutica soteriológica. O expurgo significativo de seus sistemas de “elaboração de símbolos” não resultou de um mero distanciamento em face de circunstancialidades extrínsecas, mas de desenvolvimentos doutrinários internos que culminaram na reificação absoluta de um Deus enquanto objetificação numinosa de um outro mundo, remoto e inacessível, e em cuja vontade (Graça), imprevisível, imponderável e destituída de “razões”, fez-se ancorar a resolubilidade da problemática soteriológica. A absolutização objetiva da Graça, que se acentua com alguns dos desdobramentos do protestantismo, desqualificou e, até mesmo, eliminou a necessidade de instâncias pedagógicas avançadas de exercício hermenêutico no desvendamento existencializado do mistério de Deus. Com isso, as narrativas míticas passaram, inevitavelmente, a constituir uma literalidade absoluta, uma uni-dimensionalidade. Ainda que vivo nos rituais e nos atos morais, o símbolo moderno ocidental acha-se irremediavelmente enfraquecido, carente de sua potencialidade instigadora de promover, naqueles que cumprem os necessários requisitos, a imersão em seus níveis profundos de sentido. Com isso, as pedagogias de iniciação à elaboração de símbolos estão ausentes ou ocultas, expurgadas que foram do horizonte mais amplo da civilização ocidental moderna. A absolutização objetiva da Graça é, finalmente, a proscrição da hermenêutica filosófica, da razão meditativa sobre a existencialidade sofredora e, enquanto tal, a imposição de uma incompreensibilidade e de uma irracionalidade trágicas.

Ao despotencializar o símbolo com a postulação da absolutização da Graça, a religião desqualificou a tarefa essencial da filosofia. A reação desta tomou dois rumos distintos. Em certas esferas, submeteu-se totalmente à religião (sentido estrito) limitando sua funcionalidade a uma condição subalterna enquanto teologia escolástica, disciplina racional encarregada de formular argumentos sugestionadores sobre a existência de Deus e a plausibilidade da ação imprevisível e imponderável da Graça. E, em outras esferas, tratou de se “vingar” da religião e declarar sua emancipação com relação aos mitos constitutivos da existencialidade e se apresentar como autossuficiência explicativa de um mundo des-divinizado e desencantado, i.e., um mundo ontologicamente fragmentado, destituído de qualquer princípio de unidade e, consequentemente, descompromissado com a problemática subjetiva da consciência e do sofrimento. Nesse mundo des-divinizado, que é agora um somatório de partes ontologicamente reificadas, a filosofia moderna despede-se de sua função mais nobre e passa a restringir sua ação reflexiva à fundamentação epistemológica dos novos departamentos cognitivos, as ciências modernas, que se encarregam, por sua vez, de conhecer essas mesmas partes e pretensamente esgotá-las em sua objetividade reificante.

Ao desqualificar o princípio de unicidade constitutivo das narrativas míticas e das práticas rituais, fundamento do caráter celebratório e amoroso das interações sujeito-objeto, a filosofia moderna abre caminho para a refutação lógica das mesmas, submetendo-as às leituras compartimentalizadas das ciências empíricas assim constituídas. Sociologismos, psicologismos, historicismos, fisicalismos, quimicalismos, etc., etc., avançam num território que vai muito além das onticidades legítimas: pretendem-se substitutivos das tarefas hermenêuticas e empreendem, com suas explicações causais e objetivas, o esfacelamento dos textos sagrados, como é caso das exegeses historicistas da bíblia cristã. Finalmente, é a própria filosofia quem se encarrega de rejeitar o resquício “decaído” das instâncias expurgadas de “elaboração do símbolo”, a saber, a teologia, ao denunciar, com eficiência, as falácias inferenciais sobre a existência de Deus e da Graça. No pensamento de Kant, vamos encontrar o golpe derradeiro: nenhuma ação humana guarda, em definitivo, qualquer conexão com o divino transcendente. Não existe mistério: sua postulação é o escape dos ignorantes ou a arma do engodo político.  

Em suma, se a religião cristã, em seus desdobramentos modernos, enfraqueceu os símbolos, a filosofia por ela desqualificada, vingou-se assassinando-os. É essa dupla circunstância da história moderna do Ocidente – a saber, (i) uma religião de rituais mecânicos e deuses moribundos e (ii) uma filosofia iluminista apologética de uma racionalidade egóica – o que incita, responsavelmente, à intervenção de Jung. É ela, portanto, quem deveria nos servir de guia condutor no entendimento de sua obra e, em especial, a pertinência e a natureza de seu envolvimento com a psicologia e, finalmente, o status epistemológico de sua discursividade conceitual. Embora partícipe de um quadro geral de ontologização indevida de objetos fragmentados, a temática da psicologia herdou resquícios nominais de algumas das questões tradicionalmente afetas à religião e à filosofia agonizantes. Seu objeto declarado, a psyché, evoca, nas mentes atentas aos ecos etimológicos do grego, tanto o princípio subjetivo da ação no mundo, quanto, e essencialmente, o mistério origens e afiliações divinas deste último. Por outro lado, o caráter terapêutico que lhe é inerente, e que transcorre necessariamente em contextos dialógicos restritos (analista-analisando), envolvendo mecanismos de realização de sentido, evoca, nessas mesmas mentes, a pertinência de uma hermenêutica da existencialidade nos moldes da filosofia terapêutica dos gregos e romanos antigos e clássicos, e de vertentes do cristianismo gnóstico e alquímico, primitivo e medieval. Sabedor das limitações definitórias da disciplina, Jung teve em mira, em minha opinião, tirar partido dessas afinidades nominais, de forma a desenvolver, no seu interior, um nicho de exercício da função religiosa que restituísse o mistério ao objeto (psyché) e restaurasse, através da terapia, o exercício de uma hermenêutica cognitiva e soteriológica efetiva.

 

IV

 

Se, portanto, como temos sustentado, a preocupação central de Jung é a reativação da função religiosa, seus objetivos fundamentais são os seguintes: (i) rememorar as formas originárias da religião e da filosofia pré-modernas ocidentais como inspiração positiva na constituição de seu sistema conceitual; (ii) exercer  a crítica aos desdobramentos debilitados e funcionalmente ineficazes da religiosidade cristã e da filosofia ocidental na modernidade. Poderíamos mesmo afirmar que toda a obra de Jung tem por referência fundamental esse viés crítico-restaurador que se exerce segundo o duplo vetor em que se desdobra a função religiosa ou função transcendente: o processo de constituição e preservação de símbolos, de um lado, e o método de elaboração e realização do seu sentido último, de outro.

No que tange ao primeiro, representado pela religião cristã e seus símbolos “depauperados” - deuses “moribundos” e rituais desacreditados -, o papel de Jung é necessariamente limitado, já que qualquer mudança significativa de percurso dependeria do envolvimento de um largo espectro social. O que basicamente se almeja é uma revitalização das potencialidades simbólicas dos rituais e das narrativas míticas - o dharma do quadro de referência indiano acima descrito – e a sugestionabilidade de seu sentido profundo. Em outras palavras, trata-se de uma tarefa de redespertar o mistério enquanto tal nos espaços institucionais já existentes das religiosidades ocidentais, em especial o cristianismo. Em várias passagens, Jung nos relata o quanto a reflexão analítica funcionou, em seus analisandos e, em especial, nas mentes céticas seduzidas pelo espírito do cientificismo, como instrumento mediador de reativação da fé e das crenças religiosas, e de criação de um entusiasmo redobrado no desempenho cotidiano dos rituais e das ações morais. Ele afirma: “O crente tem na Igreja, ainda hoje, a ocasião de viver os símbolos”.[6] Em outras passagens, ele chega a soar como um verdadeiro reformador religioso: “Não me dirijo aos beati possidentes (felizes donos) da fé, mas às numerosas pessoas para as quais a luz se apagou, o mistério submergiu e Deus morreu”[7] ou

I think we must give it time to infiltrate into people from many centers, to revive among intellectuals a feeling for symbol and myth, ever so gently to transform Christ back into the soothsaying god of the vine, which he was, and in this way absorb those ecstatic instinctual forces of Christianity for the one purpose of making the cult and the sacred myth what they once were — a drunken feast of joy where man regained the ethos and holiness of an animal. [8]

Mas é a segunda dimensão da função religiosa, a saber, a reflexão filosófica como tarefa essencial de um sistema de elaboração de símbolos, que constitui, efetivamente, o cerne e a teleologia da atuação intelectual e terapêutica de Jung. Ao situar historicamente sua psicologia do inconsciente, Jung é de uma clareza extraordinária com relação às continuidades que a informam. Imune ao evolucionismo dominante do cientificismo da época, ele aponta para uma irmandade histórica de projetos entre a psicologia analítica e a tradição das chamadas “filosofias herméticas” ou “filosofias religiosas” do Ocidente, em especial o gnosticismo e a alquimia, cujas origens remontam à tradição antiga e clássica grego-romana e às articulações orgânicas por elas estabelecidas com o cristianismo emergente. É essa, em minha opinião, a chave para o entendimento epistemológico do sistema conceitual de Jung: um modo de ser, na modernidade, da filosofia hermética que é ela mesma, ao invés de uma mera fonte de inspiração para uma “psicologia científica”, o verdadeiro respaldo epistemológico e soteriológico da psicologia analítica, seu termo antecedente numa cadeia ininterrupta, e ainda que por vezes oculta, de uma filosófica prática da transformação do ser. Teríamos, assim, na obra de Jung, uma proposta de reedição de uma filosofia autêntica que, por circunstâncias históricas de debilitação dos espaços nominais das filosofia modernas, se abriga no território da “ciência da psicologia”.

Para esmiuçar os elementos estruturais dessa proposta de filosofia hermética/hermenêutica nas obras de Jung, faremos uso de um modelo pedagógico, amplamente difundido entre as escolas iniciáticas da filosofia soteriológica da Índia, que visa à compreensão e aplicação hermenêutica dos conhecimentos contidos nas fontes escritas e orais tradicionais. Nele se explicitam quatro pilares que condicionam o processo cognitivo (anubandha catuṣṭaya): (i) a meta a ser alcançada (prayojana); (ii) as qualificações necessárias do buscador (adhikārin); (iii) a temática ou objeto de investigação (viṣaya); (iv) e a relação entre a temática e a meta que garante a eficácia do processo (sambandha).[9]

 

V

 

Vamos, então, à primeira questão. Qual é o objetivo central (prayojana), a meta precípua do sistema conceitual de Jung?

A correlação dialética entre a consolidação do sistema conceitual de Jung e sua “história de um inconsciente que se realizou”[10] determina, em meu entendimento, que a chave interpretativa para a avaliação do sentido e da operacionalidade terapêutica da narrativa “téorica” da psicologia analítica esteja contida, sobremaneira, em suas obras maduras. São elas que devem ditar, retrospectivamente, o sentido de sua aplicabilidade pragmática no contexto de uma teleologia existencial de realização definitiva de um bem-estar no mundo. Pois bem, o núcleo catalisador que mobiliza toda a sua obra, e cuja explanação mais radical se encontra, precisamente, em sua obra memorialista Memórias, Sonhos e Reflexões, é a noção de individuação enquanto explicitação propedêutica do método de “realização consciente” do Si-Mesmo (Self) que constitui o pináculo da função transcendente.

Não cabe aqui uma explicitação detalhada da noção de individuação. Quero ressaltar apenas os seguintes aspetos. Ao classificá-la como a “solução definitiva, em relação à qual todos os outros caminhos se comportam apenas de modo auxiliar e provisório”[11], Jung tem em mente um processo sistemático de descentramento do ego que desemboca na realização do Si-Mesmo (Self) como seu substrato fundamental. Fica claro, em vários de seus escritos, que o Si-Mesmo (Self) está longe de ser uma subjetividade ampliada, mas o principio de irradiação universal de toda a experiência existencial. Um dos modelos inspiradores foi, precisamente, a noção indiana de ātman[12] - pronome reflexivo do sânscrito que significa, literalmente, “si-mesmo” -, usada nos Upaniṣads para designar a essência não-dual de toda a Realidade (brahman) “O Si-Mesmo (Self), diz ele, não está apenas em mim, mas em todos os seres, como o Ātman, como o Tao”.[13]

Como consequência, a individuação é um processo de realização da totalidade da existência (Si-Mesmo) enquanto unicidade que preside, como retaguarda semântica, toda a experiência de um mundo de objetos e sujeitos. Com isso, o sentido maior do adjetivo “coletivo” na expressão “inconsciente coletivo” é o de um “princípio universal”, meta-social e meta-individual que é condição de possibilidade do aparecer de ambos – sujeitos e objetos - enquanto aspectos interdependentes da experiencialidade existencial. Com isso, ao invés de apontar para uma busca objetiva, a individuação põe em marcha um processo dinâmico de esclarecimento e compreensão analíticas daquilo que está eternamente presente em nós, como condição de possibilidade da consciência e da experiência de mundo. Ao invés de um afastamento ou de uma interiorização, a individuação promove uma aproximação, um congraçamento do ego com a totalidade do universo. Diz Jung: “Quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, é como se essa estranheza que há tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo.[14] Portanto, ao promover submissão consciente do ego ao Si-Mesmo (Self), a individuação é um evento único e irrepetível. É aqui que reside seu caráter clínico propriamente dito, enquanto resolução, enquanto cura de uma “alienação” muito especial que está na raiz de todas as patologias do sujeito: a ignorância “positiva” do ego que, delirantemente, se enxerga a si-mesmo como Deus. Em meio ao sofrimento inevitável, o ego é instado a uma reflexão investigativa sobre sua real natureza e, subsequentemente, à (re-)descoberta de sua condição, sempre presente, de interdependência amorosa com a alteridade que o cerca. Fica claro, do acima exposto, que não precisaríamos nem mesmo da referência explicita de Jung acima citada – a saber, a correlação entre o Si-Mesmo (Self)  e o ātman, versão conceitual indiana do princípio não-dual constitutivo da totalidade subjetiva e objetiva - para podermos, legitimamente, enxergar na individuação uma modalidade, historicamente determinada no Ocidente moderno, da problemática soteriológica universal, que tem na aspiração por mokṣa na Índia sua contraparte tradicional e, simultaneamente, contemporânea.

Vamos agora à segunda questão. Quais os requisitos para o empreendimento da tarefa proposta (adhikārin)? A quem se dirige, primariamente, o sistema conceitual de Jung enquanto artifício instrumental no processo de individuação?

Trata-se, evidentemente, de uma questão fundamental qualquer que seja a perspectiva clínica. A eficácia na aplicação de um método terapêutico depende do enquadramento correto da condição “patológica” do paciente. Quais os sintomas, então, que potencializam o esquema proposto por Jung? A resposta é clara ao longo de toda a sua obra. A “crise da meia-idade” é a denominação dada por ele à condição existencial que potencializa o deflagrar do processo de individuação enquanto método de “realização consciente” da função transcendente. Em que consiste, então, a “crise da meia-idade” que se institui como transição orgânica entre a “primeira metade da vida” e a “segunda metade da vida”, tal como sustentado por Jung em seu ensaio “As Etapas da Vida Humana”?[15] Ela reflete uma condição aparentemente paradoxal. Por um lado, pressupõe a realização generalizada das principais demandas objetivas da existência, tais como a sexualidade, a obtenção de prole, a prosperidade material, o sucesso profissional, o cumprimento das responsabilidades familiares e comunitárias, aí se incluindo os imperativos morais e rituais de fundo religioso. E, por outro, envolve uma insatisfação existencial inarredável que reflete a conscientização definitiva do caráter eminentemente efêmero de todo o prazer oriundo do intercurso com os objetos de aquisição privada. Essa insatisfação, que é propulsora da angústia, dá um golpe mortal nas expectativas de um encaminhamento objetificador do problema do sofrimento, e faz surgir a determinação inabalável por uma investigação sobre a real natureza do sujeito e seus objetos de relação, muito além da fragmentação experienciada e numa perspectiva que aponta para um compartilhamento ontológico de fundo unicista representado pela ideia de um Deus imanente ou Si-Mesmo (Self).

A espontaneidade do impulso à individuação na segunda metade da vida  reflete seu caráter inato, enquanto disposição universal tão inerente à condição humana quanto os demais impulsos objetivos: seu despertar e persecução, entretanto, depende do prévio encaminhamento bem sucedido daqueles, constitutivos da primeira metade da vida. Impulso dos impulsos, a individuação pressupõe, como requisito, um sentimento de indiferença relativo com relação aos objetos do mundo e a consequente suspeição epistemológica sobre sua pretensa substancialidade ontológica. Do despertar do impulso à sua efetiva persecução, o processo de individuação exige a consolidação de uma vontade consciente e sistemática, de uma determinação inquebrantável e heroica, de empreender a dolorosa e perigosa aventura de desconstrução analítica do ego: a hermenêutica filosófica que consiste, essencialmente, no “despojar o Si-Mesmo (Self) dos invólucros falsos da persona”[16] e no redescobrir, teleologicamente, o “sentimento de parentesco com todas as coisas”.[17] Desnecessário enfatizar que a referência à meia-idade implica, primordialmente, o contexto qualitativo acima realçado e só secundariamente a dimensão cronológica que lhe é inerente em função do fato de que nossas experiências se dão, necessariamente, no tempo. No quadro de referência indiana dos puruṣārthas, é precisamente esse o sentido maior que justifica a necessidade de uma vivência plena da mundanidade (kāma e artha) e da religiosidade ritual e moral (dharma): tais vivências constituem requisito para o despertar e a persecução do empreendimento filosófico-soteriológico (mokṣa).

 

VI

 

Vamos, finalmente, para nossa última questão. Quais as peculiaridades temáticas (viṣaya) do sistema conceitual de Jung e sob que condições ele alcança seus desígnios (sambandha), i.e., a realização consciente da meta da individuação (prayojana) de um sujeito situado na segunda metade de sua vida (adhikārin)?

Fiel ao princípio que radica na individuação o centro de irradiação interpretativo de sua obra, sustento que o sistema conceitual de Jung, em sua gênese e consolidação, está umbilicalmente comprometido com a realização desse desiderato. Para ser mais claro: a meta da individuação enquanto “clínica” da “segunda metade da vida” não é, em minha opinião, um mero componente, mesmo que o mais importante, de uma teoria psicológica de aplicabilidade múltipla; ela é o compromisso fulcral que condiciona seu sentido precípuo. Em outras palavras, a validade heurística do sistema conceitual de Jung, sua “psicologia analítica”, está fundamentalmente circunscrita a uma intervenção e eficácia terapêuticas muito singulares enquanto “clínica” soteriológica da segunda metade da existência. A impossibilidade de se lhe reivindicar um caráter científico, nos moldes das epistemologias positivas modernas, radica-se na impossibilidade de atribuição de qualquer dimensão objetiva aos conceitos-chave que o integram.

Em inúmeras passagens de sua obra, Jung nos adverte das limitações proposicionais e das condições singulares de aplicabilidade de conceitos-chave como “arquétipo”, “Si-Mesmo (Self)”, “inconsciente coletivo”, etc. Vamos a algumas delas: “quando aplicamos a Deus a denominação de arquétipo nada exprimimos sobre sua natureza própria”[18]; “à medida que me exprimo miticamente, ‘mana’, ‘demônio’, ‘deus’ são sinônimos de inconsciente, pois sabemos a respeito dos primeiros tanto ou tão pouco quanto do último”[19]; “a ideia do Si-Mesmo (Self) é em si e por si um postulado transcendente que (...) não pode ser demonstrado de modo científico”.[20] Se estas frases bastariam para colocar sob suspeita, à luz do paradigma positivo-empirista, todo o arcabouço teórico da psicologia analítica, nem por isso haveria algo a lamentar. Como já ressaltado, a “cientificidade” da obra de Jung não se mede pelo valor proposicional de seus conceitos-chave, mas pela instrumentalidade estratégica de implementação de uma proposta que se institui, fundamentalmente, como continuidade histórica das tradições religiosas de aprofundamento filosofico-soteriológico. Essas “limitações” objetivas são, portanto, inerentes a um quadro epistemológico que mira, essencialmente, a realização de uma meta supraobjetiva que se faz eternamente presente como substrato e condição de possibilidade de toda a experiência subjetiva de um mundo.

Qual a funcionalidade, portanto, dos conceitos-chave acima enunciados? Ao classificá-los de “postulados transcendentes”, refratários a demonstrações “de um  modo científico”, Jung pretende ressaltar, de um lado, seu caráter inobjetificável e racionalmente incompreensível e, de outro, seu potencial empático de articulação íntima com a experiencialidade existencial. Nasce daí seu poder simbólico. Enquanto narrativa discursiva, propositora de territórios que transcendem o ego, o sistema conceitual de Jung seria, em sua própria terminologia, uma narrativa mítica ancilar, de caráter compensatório, vis-à-vis as narrativas religiosas “depauperadas” e “moribundas” da modernidade ocidental.

Entretanto, como sustentado acima, o sistema conceitual de Jung aspira a muito mais do que uma mera narrativa discursiva. Trata-se de um artifício terapêutico no contexto de uma clínica especialmente destinada a dar continuidade histórica, no ocidente moderno, à dimensão filosófica da função religiosa: trata-se, enfim, de um processo de elaboração e análise de símbolos, conducente à realização do postulado transcendente primordial, a saber, o Si-Mesmo (Self) que tudo une e abarca. Esse compromisso compensatório, como resposta ao enfraquecimento das religiosidades tradicionais na modernidade ocidental, faz da proposta da psicologia analítica um legítimo continuador dos filósofos antigos e clássicos grego-romanos, dos gnósticos cristãos e dos alquimistas medievais; e, igualmente, um parceiro contemporâneo legítimo de filósofos indianos e de muitas outras religiosidades orientais. Ao ressaltar a enorme responsabilidade herdada pela psicologia analítica na modernidade ocidental, Jung afirma:

Nossas religiões sempre foram, no passado, essas escolas da meia-idade, mas quantos são aqueles que hoje as reconhecem como tal? Quantos de nós, de meia-idade, cresceram e se prepararam nessas escolas para o segundo estágio da vida, para a velhice, para a morte e a eternidade?[21]

Partícipe estratégico do cientificismo psicologista que desemboca na noção obscura de “inconsciente”, o sistema conceitual da psicologia analítica de Jung visa restaurar a dignidade transcendental dessa noção, em linha de continuidade com as religiosidades tradicionais de um Ocidente pré-moderno. Por seu caráter “coletivo”, o “inconsciente” junguiano projeta-se num patamar “psicóide”, i.e., vai além dos confinamentos da subjetividade psíquica[22] e recupera, com isso, a centralidade da questão religiosa de Deus enquanto mistério alojado na alma. Cumpridos os requisitos qualitativos da “meia-idade”, a operacionalidade do sistema de intervenção terapêutica consubstancia-se numa analítica da existencialidade e, mais especificamente, numa hermenêutica filosófica dos mitos religiosos constitutivos do Ocidente, suas narrativas doutrinárias, suas práticas e moralidades. O enquadramento histórico desses mitos, de origem plural e de enorme amplitude cultural e geográfica, consolidou-se no que designamos genericamente por tradição judaico-cristã. Daí ser o Ocidente, como ressalta Jung, “fundamentalmente cristão”, i.e., um ente civilizacional plural que não se restringe juridicamente a uma religião determinada (Cristianismo), e que congrega, em seu seio, o “paganismo” grego-romano e o messianismo de origem semita.

Fiel à contextualização das narrativas religiosas em seus espaços civilizacionais específicos, Jung é, essencialmente, um hermeneuta, um mistagogo da tradição cristã. Sua proposta de “iniciação” moderna a seus mistérios faz recurso pedagógico a um sistema conceitual que se insere, estrategicamente, no contexto da disciplina científica da “psicologia”. Sua dinâmica operacional, entretanto, dá-se enquanto linguagem-força: mais do que uma ciência dos símbolos, a psicologia analítica projeta-se como um saber simbólico. Seu caráter não-proposicional e não-universalizante é, precisamente, o que a habilita a funcionar como proposta cognitiva e transformadora. Vivenciado clinicamente na dialogia analista-analisando, o sistema conceitual de Jung age como linguagem-força que impele à desconstrução e eliminação sistemática dos “invólucros falsos” que encobrem o Si-Mesmo (Self), das ilusões de uma pretensa exterioridade ontológica do objeto e de uma pretensa interioridade ontológica do sujeito.

 

VII

 

Em síntese, a intervenção histórica de Jung constitui, essencialmente, uma proposta de revitalização, na modernidade, de uma filosofia soteriológica que se ancora, estrategicamente, no contexto disciplinar de uma “psicologia científica”. Enquanto “clínica da meia-idade” ou “clínica da individuação”, o modelo que mais diretamente inspira a psicologia analítica de Jung é o athanasius pharmakon dos antigos - a “medicina da imortalidade”. Seu arcabouço conceitual, ao invés de uma teoria científica de pretensões universalizantes, consagra-se como linguagem-força que estrutura e sustenta, no Ocidente moderno, uma reflexão dialógica e conversacional analista-analisando (‘therapeia’), comprometida com a eliminação sistemática dos “invólucros falsos” que encobrem o Si-Mesmo (Self) e com a realização de uma verdade existencialmente transformadora que promove, em definitivo, a plenitude existencial. Em outras palavras, a psicologia analítica e sua teleologia da individuação trata-se de um desdobramento histórico específico da função religiosa, num contexto ocidental marcado por um processo de enfraquecimento dos sistemas simbólicos tradicionais e suas metodologias avançadas de aprofundamento ou elaboração simbólica. Se isso for correto, a utilização do sistema conceitual de Jung fora deste quadro de contextualização – por exemplo, em contextos históricos não-ocidentais ou em práticas clínicas atinentes a demandas pontuais e objetivas (i.e., outras que não a individuação) - deverá ser cercada de extremo cuidado e reserva.

 

Referências

 

JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. (Obra Completa, Vol. 9/1). Trad. Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2014.

 

JUNG, C. G. Civilização em Transição. (Obra Completa, Vol.10/3). Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2011.

 

JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. (Obra Completa Vol. 7/2). Trad. Dora Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2008.

 

JUNG, C. G. A Natureza da Psique. (Obra Completa, Vol. 8/2). Trad. Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes. 2000.

 

JUNG, C. G. Fundamentos de Psicologia Analítica. Obra Completa Vol. 11/1. Trad. Araceli Elman. Petrópolis: Vozes, 1991.

 

JUNG, C. G. Psicologia e Religião. (Obra Completa Vol. 11/1). Trad. Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes, 1978.

 

JUNG, C. G. Memórias, Sonhos e Reflexões. Trad. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

 

MCGUIRE, W. (org.). Jung-Freud Letters. Trad. Ralph Manheim (Inglês). New Jersey: Princeton University Press, 1988.

 

SADĀNANDA. Vedāntasāra. (original sânscrito e tradução inglesa de Swami Nikhilananda). Almora (India): Advaita Ashrama, 1931.

 

SCATOLIN, Henrique Guilherme. Symbols of Transformation: Preludes Analysis of a Schizophrenia (Summary of Volume 05, of Carl Gustav Jung Book). Psychology Research, Vol. 5, No. 2, 205, p. 148-151.

 



[1] JUNG,  Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, p. 32, grifos nossos.

[2] A doutrina dos puruṣārthas é recorrente nos textos sagrados dos Vedas - Upaniṣads e Brāhmanas - e esmiuçada nos Dharmaśāstras (tratados relativos aos deveres sociais) e nos épicos Rāmāyana and Mahābhārata.

[3] JUNG,  Fundamentos de Psicologia Analítica, p. 15, grifos nossos.

[4] SCATOLIN, Symbols of Transformation: Preludes Analysis of a Schizophrenia (Summary of Volume 05, of Carl Gustav Jung Book), p. 148, tradução nossa.

[5] SCATOLIN, Symbols of Transformation: Preludes Analysis of a Schizophrenia (Summary of Volume 05, of Carl Gustav Jung Book, p. 148, tradução nossa.

[6] JUNG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 27.

[7] JUNG, Psicologia e Religião, p. 94. 

[8] JUNG apud MCGUIRE, Jung-Freud Letters, p. 491.

 

[9] SADĀNANDA, Vedāntasāra, I.4-29, p. 3-17. Esses princípios estão especialmente codificados na escola Advaita Vedānta (Não-Dualidade), que constitui um empreendimento hermenêutico sobre os textos dos Upaniṣads, dimensão filosófica e soteriológica da tradição indiana dos Vedas.

[10] JUNG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 19.

[11] JUNG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, p. 293.

[12] Princípio constitutivo de toda a subjetividade que coincide com o princípio constitutivo de toda a objetividade (Brahman). Junto com a palavra brahman, ātman é a palavra usada nos Upaniṣads para designar a essência não-dual de toda a realidade.

[13] JUNG, Civilização em Transição, p. 210.

[14] JUNG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 310, grifos nossos.

[15] In JUNG, A Natureza da Psique, p. 343-360.

[16] JUNG, O Eu e o Inconsciente, p. 61.

[17] JUNG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 310.

[18] JUNG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 300.

[19] JUNG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 291.

[20] JUNG, O Eu e o Inconsciente, p. 131.

[21] JUNG,  A Natureza da Psique, p. 163.

[22] JUNG,  A Natureza da Psique, p. 55.