DOI

Submissão: 31/05/2019 Aprovação: 24/06/2019 Publicação: 31/08/2019

 


Sabedoria Oriental

 

Māyā: apropriação e influência

 

Māyā: appropriation and influence

 

Fábio Luiz de Almeida Mesquita

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo

fabiomes@hotmail.com

 

Resumo: Esse artigo analisa a apropriação e a influência do conceito Māyā na filosofia de Schopenhauer durante o período de gênese de sua filosofia (1813-1818). Diferente das análises meramente comparativas, nosso foco é apresentar uma pesquisa histórico-filosófica a partir dos Manuscritos Juvenis e d’O Mundo como Vontade e como Representação, assim como, delimitar a “Índia schopenhaueriana” a partir das obras consultadas pelo filósofo durante o referido período: Oupnek’hat, Asiatisches Magazin, Mythologie des Indous e Asiatick Researches. Nosso objetivo é demonstrar, cronologicamente, como Schopenhauer se apropriou do conceito Māyā, utilizando-o com sentidos e formas diferentes até consolidar o seu uso com a ideia de ilusão e influenciar sua teoria da Representação.

Palavras-chave: Ilusão; Māyā; Representação.

 

Abstract: This article analyzes the appropriation and influence of Māyā concept in Schopenhauer's philosophy during the period of the genesis of his philosophy (1813-1818). Unlike a merely comparative analyzes, our focus is to present a historical-philosophical research of the Early Manuscripts and The World as Will and Representation, as well as to delimit the "Schopenhauerian India" based on the workpieces consulted by the philosopher during that period: Oupnek’hat, Asiatisches Magazin, Mythologie des Indous e Asiatick Researches. Our goal is to demonstrate, chronologically, how Schopenhauer appropriated the Māyā concept, using it in different senses and forms until consolidating its use with the idea of ​​illusion and influencing his Representation theory.

Keywords: Illusion; Māyā; Representation.

 

Māyā: apropriação e influência

 

Um estudo histórico-filosófico sobre a apropriação e a influência da sabedoria indiana na obra de Schopenhauer durante o período da gênese de seu pensamento (1813-1818) deve levar em consideração duas fontes históricas distintas. A primeira refere-se ao próprio texto de Schopenhauer, aos diversos fragmentos sobre a Índia expressos nos Manuscritos Juvenis e em sua obra capital O Mundo como Vontade e como Representação. A segunda restringe a “Índia schopenhaueriana” a partir das quatro obras sobre o Oriente, as quais o filósofo teve acesso durante o referido período. Essas obras são as Oupnek’hat,[1] Asiatisches Magazin,[2] Mythologie des Indous[3] e Asiatick Researches.[4] Elas foram consultadas pelo filósofo e tomadas de empréstimo nas bibliotecas de Weimar e de Dresden, entre os anos de 1813 a 1816.[5]

Além disso, para uma abordagem histórico-filosófica é necessário restringir os conceitos indianos que podem ser analisados, distinguindo-os em dois grupos possíveis. Aqueles que foram apropriados pelo filósofo e aqueles que, para além da apropriação, também geraram uma influência em seu pensamento.

Uma das mais relevantes apropriação e influência feita por Schopenhauer do pensamento indiano foi a do conceito Māyā. Isso se dá ao tomarmos como referência a quantidade de citações, assim como a importância desta ideia indiana ao influenciar a teoria da Representação (Vorstellung). Desde a primeira citação, em 1814, até a publicação d’O mundo, em 1818, o filósofo se utilizou da palavra Māyā mais do que trinta vezes em seus textos (Manuscritos e O mundo) e a identificou com diferentes ideias: ilusão da realidade (HN I, p. 104), amor no ato da criação (HN I, p. 120), mundo material (HN I, p. 136), fenômeno kantiano (HN I, p. 225), princípio de criação do mundo (HN I, p. 303), aquilo que eternamente se transforma, mas nunca é (HN I, p. 380), principium individuationis (HN I, p. 389), suicídio (HN I, p. 391), o mundo como Representação submetido ao princípio de razão (SW II, p. 9), sonho (SW II, p. 20), mundo visível (SW II, p. 498), dentre outros.

Etimologicamente, o substantivo feminino Māyā se relaciona com o conceito “medida”. A raiz mā significa medir, mensurar, calcular, construir ou criar. Nesse caso, para o hinduísmo, “medir é dar existência a uma coisa, atualizá-la, dar-lhe realidade”.[6] Assim, Māyā foi concebida por muitas vertentes da filosofia hindu como a causa da existência material, na qual todos os seres atuam. Nisso se incluem também todos os seres humanos e os deuses da Trimūrti. No entanto, ao mesmo tempo em que possui o poder da criação, Māyā também é a fluidez eterna do mundo fenomênico, efeito de toda realidade, responsável pelo ciclo de sasāra (fluxo  de incessantes renascimentos no mundo).

Em seus Manuscritos de 1814, Schopenhauer utilizou pela primeira vez a palavra Māyā identificando-a com o amor, significado distinto ao do etimológico. É importante notar que, durante esse ano, o filósofo havia entrado em contato com três obras sobre a Índia: Asiatisches Magazin, Oupnek’hat e Mythologie des Indous. Nessa primeira citação de Māyā, Schopenhauer escreveu:

que nós queremos tudo é a nossa desgraça; não importa no mínimo o que nós queremos. Mas querendo (o erro fundamental) podemos nunca estar saciado, e então nós nunca paramos de querer e a vida é um permanente estado de dor e miséria, é objetidade da Vontade. Nós constantemente imaginamos que os objetos desejados podem pôr um fim em nossa Vontade, de preferência, fazem aquilo que apenas nós mesmos podemos fazer, cessar o nosso querer. Essa (realização da Vontade) ocorre através do melhor conhecimento, e assim a Oupnek’hat, volume II, p. 216 disse: tempore quo cognitio simul advenit amor e medio supersurrexit; - “O momento do conhecimento aparece na cena, ao mesmo tempo, o amor surgiu no seio das coisas” - aqui o amor (desejo) significa Maja (Māyā), que é justamente aquela vontade, aquele amor (por objetos), de quem a objetificação ou a aparência é o mundo (HN I, p. 120).

Essa foi uma das raras ocasiões em que o filósofo citou a referência utilizada na apropriação de uma ideia indiana. Nesse fragmento citado por Schopenhauer da Oupnek’hat, o amor se dá simultaneamente com o conhecimento dos seres. Māyā é o amor, possuindo sentido epistêmico e físico. A interpretação schopenhaueriana relaciona Māyā aos desejos por objetos. Nesse ponto de vista, no momento em que temos conhecimento do mundo, nos apegamos a ele, amamos a materialidade, somos influenciados por Māyā em acreditar que todo o sofrimento cessará no instante que possuirmos os bens materiais do mundo físico.

Um ano depois, em 1815, Schopenhauer alterou a sua compreensão do amor em Māyā. Isso se torna evidente a partir da aproximação que fez entre Eros e Māyā. Tais seres são semelhantes ao possuir o amor no momento da gênese do mundo material. Para Schopenhauer,

[o] mundo é a objetidade da Vontade (de vida). Essa Vontade é muito veemente fenômeno, é impulso sexual, o qual é o ερως (Eros) dos antigos. Então, os poetas e filósofos da antiguidade, de Hesíodo até Parmênides, de modo muito significativo dizem que ερως é a primeira coisa, o princípio do mundo, aquilo que o criou; a Maja (Māyā) dos indianos significa o mesmo. Note bem, não totalmente o mesmo; Maja (Māyā) é especialmente a objetidade da Vontade, fenômeno kantiano, conhecimento de acordo com o princípio de razão suficiente. Cf. Aristóteles, Metafísica, I, 4 (HN I, p. 303).

Na Teogonia grega, Hesíodo concebeu Eros como um dos deuses primordiais. De acordo com essa obra, no início de tudo, quando apenas Caos reinava absoluto, surgiram as primeiras criações e uma delas era Eros, símbolo do amor. Eros é o amor existente na criação de todos os seres. De modo semelhante, Māyā foi compreendida por Schopenhauer a partir da mesma concepção de amor no ato de criação. Māyā se assemelha a Eros, mas para além de ser concebida como amor do impulso sexual na criação do mundo, também é a própria objetidade da Vontade. Ou seja, Māyā é simultaneamente amor, origem, força de criação do mundo, impulso sexual de gênese de Eros, mas, também, a Representação que os sujeitos do conhecimento fazem de todos os seres a partir do princípio de razão suficiente. Portanto aqui, Māyā está diretamente relacionada à epistemologia schopenhaueriana, à forma com que o intelecto do sujeito concebe os objetos fenomênicos. Eis a razão de o filósofo também ter associado esse conceito indiano ao fenômeno kantiano. Todavia, esse mesmo intelecto é servo da Vontade, inconscientemente desejoso em saciar os pequenos fins da vida. A Vontade de vida controla o pensar humano, que ingenuamente acredita ser senhor de si próprio.

Se compararmos esses fragmentos, o de 1814 com o de 1815 dos Manuscritos, é possível constatar uma alteração drástica na concepção schopenhaueriana do amor em Māyā. Em um primeiro momento, Māyā é o amor entendido de modo negativo, semelhante ao desejo de possuir objetos fenomênicos. Essa interpretação negativa foi a mais utilizada por Schopenhauer durante o período de gênese de sua filosofia. No fragmento de 1814, oriundo da Oupnek’hat, Māyā é o conhecimento do mundo aparente, objetivado, origem do apego a toda materialidade, fazendo parte da epistemologia schopenhaueriana. Em um segundo momento, no fragmento de 1815, Māyā é o amor interpretado de modo positivo, semelhante ao deus Eros, amor presente no ato de criação do mundo fenomênico.

No fragmento de 1814, Schopenhauer menciona também que o “melhor conhecimento” entende o mecanismo que opera a Vontade. A “melhor consciência” possui a lucidez de compreender a força que rege todos os objetos. Ela nega a luta de todos contra todos, na qual os seres do mundo inteiro estão inseridos. A solução é dada em nada querer, nada desejar, nada temer e nada esperar, pura negação da Vontade. Nesse sentido, Māyā pode ter auxiliado o filósofo em elaborar sua ética da compaixão. Se libertar de Māyā, erro epistemológico, pode, consequentemente, gerar ações de compaixão e empatia.

De modo semelhante, o pensamento indiano, interpretado por intermédio da Oupnek’hat, apresenta um problema filosófico crucial que está expresso no conflito entre o físico e o metafísico, aparência e essência, mentira e verdade, mutabilidade e imutabilidade. De um lado está Brahman, o ser absoluto, de outro está Māyā, a criadora. Em outro trecho da Oupnek’hat, não utilizado pelo filósofo, fica evidente essa questão: Maīa que se diz constar em todas as partes do ser humano, opera (trabalha) com Brahm (Brahman) na produção do mundo. Isto é, Brahm (Brahman, enquanto Māyā), projetando-se para fora, agindo, simplesmente aparece, é ilusão (illusio), não faz nada verdadeiramente”.[7] O problema é resolvido dando à Māyā o significado de ilusão, mentira, mutabilidade e aparência. Por outro lado, em complemento a essa solução, Brahman é a realidade, verdade, imutabilidade e essência.

Para além da Oupnek’hat, foram encontrados também outros fragmentos sobre Māyā nas demais obras indianas consultadas pelo filósofo durante o período de gênese de suas teorias.

Como se sabe, a partir de evidências históricas,[8] a Asiatisches Magazin foi a primeira obra sobre a Índia a que Schopenhauer teve acesso. Seu empréstimo ocorreu no final de 1813, na biblioteca de Weimar, e nela já estava presente a Māyā dos hindus: “[t]odo este engano é igual a Māyā”. [9] Logo depois, na mesma biblioteca, Schopenhauer tomou de empréstimo a Mythologie des Indous. Nessa obra, Māyā foi mencionada em diversas passagens, a maioria como a “névoa que cobre o entendimento dos mortais”[10] .

Essas duas interpretações de Māyā (engano e névoa) corroboram com a interpretação contida na Oupnek’hat. Nessas três obras (Oupnke’hat, Mythologie des Indous e Asiatisches Magazin), Māyā é o engano, a nuvem, a ilusão do intelecto na compreensão do mundo representado. Os fenômenos se manifestam como a solução de todos os males, todavia, eles mesmos são a origem de todo o sofrimento.

Infelizmente, os diversos apontamentos feitos por Schopenhauer durante sua leitura dos nove volumes das Asiatick Researches, tomados de empréstimo na biblioteca de Dresden, nos anos de 1815 a 1816, foram dados por Hübscher como irrelevantes e, dessa forma, não estiveram presentes na publicação dos Manuscritos.[11] O primeiro apontamento de Schopenhauer sobre as Asiatick Researches se refere diretamente à Māyā e seus atributos de criação, amor e ilusão do mundo. Esse apontamento é a transcrição feita por Schopenhauer a partir do artigo de William Jones: Sobre os Deuses da Grécia, Itália e Índia. Schopenhauer transcreveu esse trecho, em meados de 1815, momento em que lia o primeiro volume das Asiatick Researches. Eis o fragmento:

p. 223. Máyá: essa palavra explicada por estudiosos hindus significa “a primeira inclinação da divindade para se diferenciar ao criar os mundos”. Imagina-se que ela seja a mãe natureza universal de todos os deuses inferiores; de acordo com o que uma pessoa da Cashemira me respondeu quando eu lhe perguntei por que Cama ou Amor era representado com sendo seu filho: mas a palavra Máyá ou ilusão tem um significado mais sutil e mais obscuro na filosofia Vedanta, na qual ela significa o sistema de percepções.[12]

Mais uma vez são constatadas as aproximações entre o significado da palavra Māyā nas obras Oupnke’hat, Mythologie des Indous, Asiatisches Magazin e Asiatick Researches. Como se pôde notar a partir do trecho apresentado, o filósofo encontrou nas Asiatick Researches, especificamente, nesse fragmento de Jones as mesmas ideias fundamentais para a sua compreensão de Māyā. A primeira refere-se ao significado etimológico do conceito associado ao poder de criação. Tal como foi analisado anteriormente, um dos sentidos da raiz mā é criar. Por essa razão, Māyā não possui uma interpretação desfavorável. Ela estaria diretamente relacionada à inclinação sofrida por Brahman para se diferenciar de sua essência transcendental e criar toda a materialidade. Por isso, Māyā é a mãe natureza que gerou todos os seres. A segunda ideia refere-se à associação de Māyā ao amor existente no ato de criação. Ainda não há uma intepretação negativa de Māyā, pois o seu amor não está associado ao desejo por objetos materiais. Nesse contexto, Māyā cria todos os seres a partir de um sentimento nobre que reside em seu ser. O fragmento de William Jones está em acordo com a interpretação schopenhaueriana de que Māyā foi parafraseada por amor(SW II, p. 389). Por fim, a terceira e última ideia refere-se à ilusão. A mãe criadora e amorosa de todos os seres do universo é, concomitantemente, a responsável por enganar a todos com truques, mágica e ilusão. Essa é a única ideia apresentada por William Jones que dá a Māyā um sentido desfavorável. De novo, é importante dizer que foi essa última interpretação que se tornou a mais frequente nos textos schopenhauerianos até 1818.

Nas Asiatick Researches é possível encontrar muitas outras passagens sobre a Māyā hindu. No artigo escrito pelo indólogo inglês J. D. Paterson, Of the Origin of the Hindu Religion (Da origem da religião hindu), Māyā é identificada como a grande mãe criadora do universo. Paterson escreveu que: “[n]ão poderia o nome de MAYA ou MAHA MAYA (consorte do benevolente Síva) ter dado origem a essa conjectura; esses termos hindus foram aplicados para significar a mãe (MAYA), a grande mãe (MAHA MAYA)!” [13] Paterson busca em seu texto uma origem comum para todas as mitologias. Por essa razão, associa Māyā com o titã grego Atlas, que foi condenado por Zeus a carregar eternamente o mundo ou sustentar para sempre os céus. O sentido da comparação feita por Paterson reside no fato de que, no hinduísmo, Māyā sustenta a percepção de todos os mortais no mundo fenomênico, como se carregasse nas costas a forma segundo a qual os seres humanos conseguem compreender a matéria. Na alegoria hindu, diferentemente do mito de Atlas, Māyā está associada a uma faculdade do intelecto humano. Brahman torna-se imperceptível em razão dos enganos gerados por Māyā, que se utiliza de um véu para encobrir e distorcer a percepção do real. O traço mais relevante apontado por Paterson foi apresentá-la como a grande mãe de todos os seres. Nesse sentido, ela estaria mais próxima da deusa primordial grega Gaia, do que do titã Atlas. Gaia simboliza a geração dos seres no planeta terra, a natureza que se faz presente em todos os lugares do mundo. Apesar das interessantes comparações entre Grécia e Índia feitas por esse indólogo inglês, para nós, o principal valor de seu artigo reside no fato de Paterson ter dado grande destaque à Māyā como sendo a grande MAHA MAYA (Grande Criadora), contribuindo para a interpretação antagônica que Schopenhauer, aos poucos, foi construindo dela.

Francis Wilford escreveu outro artigo[14] nas Asiatick Researches que dá destaque a Māyā. Wilford teve como objetivo central em seu texto associar a mitologia egípcia com a indiana. Para isso, ele fez diversas comparações, sendo que uma delas foi a do deus egípicio Hórus com Māyā. Hórus representa os céus e é filho do deus Osíris com a deusa Ísis. Wilford narra que, no combate de vingança travado com o seu tio Set, Hórus teve ferido o seu olho esquerdo, que seria a Lua. Os egípcios explicam as fases da Lua como efeitos do ferimento do olho esquerdo de Hórus. O outro olho, o direito, simbolizaria o Sol. Por essa razão, Hórus foi associado a esses dois astros celestes, Sol e Lua. Na sequência dessa narrativa sobre o deus egípcio, Wilford narra outra história, essa de origem hindu, em que simboliza o poder do “Sol material” associado à Māyā e o poder do “Sol metafísico” associado ao ser supremo Brahman. Wilford escreveu que os hindus:

confessam, no entanto, por unanimidade, que o Sol é um símbolo ou imagem das suas três grandes divindades de forma conjunta (Trimūrti) e individual, isto é, Brahma (Brahman) ou o Supremo, que sozinho existe real e absolutamente; as três divindades masculinas (Brahmā, Viṣṇu e Śiva) são apenas Máyà ou ilusão. O corpo material do Sol eles consideram como Máyà; mas como ele é o símbolo mais glorioso e ativo do Ser supremo, eles o respeitam como um objeto de alta veneração. [15]

De acordo esse fragmento de Wilford, o hinduísmo cria uma interpretação que apresenta a pluralidade do real existente apenas na forma em que o intelecto humano opera. O entendimento dos homens cria maneiras distintas de explicar um mesmo objeto, no caso, o Sol material e o metafísico. Para esse indólogo, o hinduísmo não possui uma autêntica dualidade, pois a única realidade reside em Brahman. Em um primeiro momento, deve-se entender que a verdade absoluta existe e é expressa pelo ser supremo, que pode ser associado de modo simbólico ao Sol. No entanto, simultaneamente, os hindus notam que existe Māyā, que rege e controla os deuses da Trimūrti. Ela seria o próprio Sol, dado e compreendido de modo material. A narrativa de Wilford possui grande valor, pois distingue dois modos de se entender um mesmo objeto. Característica semelhante também foi usada por Schopenhauer em sua explicação do mundo compreendido, de um lado, como Representação e, de outro, como Vontade. São dois lados diferentes “de uma mesma moeda”, de um mesmo mundo.

Para o indólogo contemporâneo Heinrich Zimmer, “Māyā é o poder supremo que gera e anima a manifestação, aspecto dinâmico da substância universal. É, a um só tempo, efeito (fluxo cósmico) e causa (poder criativo)”.[16] Inserida nesse contexto de razão causal e consequência do mundo, Māyā possui o poder supremo de construir todo universo e, simultaneamente, de reger todas as mutações da realidade, igualando-se à Brahman e estando acima de Brahmā, Viṣṇu e Śiva. Porém, ao se identificar com a existência de todos os seres criados, Māyā é concebida erroneamente como a verdade da própria existência. Para Zimmer, o engano de concepção faz com que ela seja negativamente identificada como uma força mágica[17] ou ilusória, que esconde a autêntica realidade. Māyā não é Brahman, mas se identifica com ele. Por essa razão, é comum encontrar explicações sobre Māyā que apresentam certo antagonismo. É o caso, por exemplo, da definição expressa pelo indianista Sibajiban Bhattacharji: “Māyā significa sabedoria, poder extraordinário ou sobrenatural, mas também significa ilusão, irrealidade, decepção, fraude, truque, feitiçaria, bruxaria e magia”.[18] De fato, ela ilude a consciência e a percepção de todos ao se colocar como idêntica à verdade que compõe a matéria. Sua mágica criadora oculta o ser supremo Brahman, efetiva essência da realidade. Mas, simultaneamente, ela é o poder da criação, possuindo atributos semelhantes aos do ser supremo e absoluto.

Para corroborar ainda mais com o antagonismo presente em Māyā, vale analisar a descrição oferecida pela filósofa indiana Indu Sarin: “O conceito Māyā deve ser entendido tanto em nível individual quanto cósmico. Em nível individual, é avidyā (o princípio epistemológico que vicia a experiência perceptiva) e a nível cósmico, é o poder (Śakti) de Brahman. Nesse caso, Māyā aparece como o Brahman qualificado (saguna ou apara Brahman)”.[19] Nessa dupla concepção, Māyā se distingue de Brahman, pois seria a ilusão da percepção do real, mas também se identifica com Brahman, pois é o seu poder e a sua energia (Śakti). O problema se configura em razão de Māyā também ser a realidade. No entanto, sendo fiel ao pensamento hindu, ela é uma realidade concebida de outra maneira.

Algumas escolas antigas do pensamento hindu foram marcadas por essa possível dualidade do real entre Māyā e Brahman. De um lado, a realidade é composta a partir da existência de todos os objetos, criados e geridos pelo amor supremo de Māyā. De outro, a realidade possui sua verdadeira essência no poder supremo e transcendental de Brahman. Um dos propósitos dos hindus é conseguir romper com a primeira camada da realidade que está envolta em uma espécie de véu que distorce a verdade, para, assim, poder atingir a compreensão suprema de Brahman. Caso os ascetas hindus consigam superar o véu de Māyā, eles também conseguirão acabar com o ciclo de sasāra, atingindo a compreensão do grande pronunciamento MahāvākyaTat tvam asi” (Isto és tu – Thou art that) e criando a identificação entre Ātman e Brahman.

Com a finalidade de romper com a dualidade, outras escolas do hinduísmo tiveram como objetivo destacar o caráter ilusório e enganador de Māyā. Denunciar esse caráter nocivo de Māyā é distinguir a ilusão da realidade. A escola Advaita Vedānta, por exemplo, acredita que não existem duas realidades, pois tudo é uma única verdade, tudo é Brahman. “Os deuses (menores) e Māyā são parte de uma realidade inferior. Assim, ambos não são autenticamente reais. A escola Advaita Vedānta revela Māyā como confusão da falta de entendimento correto; a confusão desaparecerá quando a libertação perfeita for alcançada”.[20] Sendo assim, Māyā é uma realidade menor, um obstáculo a ser superado, para que, assim, se atinja uma realidade maior.

Em Schopenhauer, no entanto, o simples fato de compreender a Vontade não gera a libertação humana dessa essência do mundo, criadora de todo o sofrimento. A melhor consciência nota que o mundo não se resume em representações. Por isso, utiliza o corpo como chave de acesso ao outro modo de compreensão da realidade. O intelecto, livre da ilusão, percebe a Vontade agindo em seu próprio ser, assim como em todos os demais. Incapazes de controlar a Vontade, os seres humanos notam os conflitos existentes entre os desejos, entre todos os seres.  Isso faz com que eles se percebam em uma luta sem trégua de todos contra todos. Apesar do Advaita Vedānta crer que nesse estágio de consciência o indivíduo supera todas as dores do mundo por intermédio da conexão entre Brahman e Ātman, em Schopenhauer, a Vontade continua a gerar todo o sofrimento da existência. Por essa razão, de acordo com a descrição do filósofo, alguns negam a sua própria Vontade a partir de dois caminhos possíveis: contemplação estética (método paliativo) e ética da compaixão (método duradouro). No segundo caminho, a negação da Vontade ocorre no indivíduo por meio de ações empáticas e benevolentes que notam os sofrimentos de todos como sendo o seu próprio sofrimento. Nesse estágio de compreensão, que se constitui por ações éticas e não meramente correções epistêmicas, não existe diferença entre o eu e o outro. Todos são um só; todos são Vontade.

Os livros sobre a Índia aos quais Schopenhauer teve acesso durante a gênese de sua filosofia se aproximam da definição dada pelo Advaita Vedānta. Por essa razão, a filosofia dele também se aproximou da interpretação de Māyā como ilusão. Tanto em Schopenhauer quanto no Advaita Vedānta existem críticas ao apego do mundo percebido que resulta em sofrimento. “A iluminação para ambos é alcançada por intermédio do desapego do mundo, da dissolução do ego e da não dualidade”.[21]

Em Schopenhauer, a Representação é um dos lados da compreensão do mundo, que em alguns momentos foi literalmente concebida como ilusória. A coisa-em-si constituída como Vontade é o outro lado do mesmo mundo, que sustenta e dá sentido a todos os fenômenos. Representação e Vontade não devem ser entendidas como duas realidades opostas, dois mundos em paralelo, como concebe uma possível interpretação da filosofia platônica. Em um único e mesmo mundo, a Representação é a forma segundo a qual o sujeito do conhecimento apreende os objetos fenomênicos e a Vontade se constitui como a essência íntima desses objetos. Compreender e explicar essas duas formas da realidade era o intuito de Schopenhauer.

Não há dualidade no filósofo, assim como não há dualidade no Advaita Vedānta. Para esta tradição filosófica da Índia, Māyā é a forma equivocada, enganosa e ilusória de compreender a realidade. Os seres humanos, limitados pelas restritas percepções e consciências de mundo, não compreendem diretamente a verdade que se esconde por detrás de cada objeto. Essa forma empobrecida de entender a realidade é Māyā, geradora de todas as mazelas da vida. A isso se associa o sasāra, representado como ignorância. Aqueles que estiverem envoltos no véu de Māyā e presos ao ciclo de sasāra compreenderão o mundo, dado no tempo e no espaço, como sendo a única realidade possível. Eis o erro do intelecto no qual reside todo engano e ilusão. No entanto, o Advaita Vedānta acredita que é possível se libertar dessas distorções do entendimento e atingir a verdade residida em Brahman. Este ser se configura, para aqueles que fizerem a correta compreensão do verdadeiro eu (Ātman), como o entendimento superior do mundo. De modo semelhante, em Schopenhauer também é possível suprimir todas as dores da existência ao se negar a própria Vontade.

Parece-nos que no início da relação do filósofo com a Índia, no ano de 1813-14, Schopenhauer ainda não havia dado grande destaque à Māyā como sinônimo de ilusão, algo que seria desenvolvido em sua teoria da Representação até 1818. A princípio, sua principal preocupação era realizar comparações com o mundo sensível platônico ou com o fenômeno kantiano. Desse modo, o início do uso do conceito Māyā por Schopenhauer estaria relacionado diretamente ao mundo representado subordinado ao princípio de razão. Para confirmar essa teoria, apresenta-se outro fragmento dos Manuscritos schopenhauerianos, datado do ano de 1814:

[e]le é (Maja - Māyā). Nós, então, temos distinguido três coisas: (1) a Vontade de vida por si mesma, (2) dela objetidade perfeita a qual são as ideias (platônicas) e (3) a aparência fenomênica dessas ideias platônicas na forma de quem a expressão é o princípio de razão suficiente, isto é, o mundo atual, o fenômeno kantiano, a Maja (Māyā) dos Indianos (HN I, p. 225).

Nesse fragmento, Schopenhauer apresenta três ideias diferentes de sua filosofia: Vontade, objetidades perfeitas (ideias platônicas) e aparência sensível das ideias perfeitas (representações). Schopenhauer fez outra comparação parecida a essa em outra passagem dos Manuscritos. No ano de 1816, em Dresden, ele fez uma tabela comparativa, na qual ficam evidentes as comparações entre o seu pensar e as filosofias nas quais seus leitores deveriam ser versados.

 

 

Universal

 

Particular    

Metafísica

(HN I, p. 392)

 

 

Ideia platônica

 

Aquilo que se torna, mas nunca é

 

 

Coisa em si de Kant

 

 

 

Fenômeno

 

 

Sabedoria dos Vedas

 

 

Māyā

 

De 1814, ano da primeira citação da palavra Māyā em seus Manuscritos, até 1816, o mundo como Representação não possuía, de modo tão evidente, o atributo de ilusão. De forma semelhante, o uso de Māyā por Schopenhauer era apenas como equiparação das ideias já existentes nas filosofias ocidentais. Ele havia se apropriado do conceito indiano Māyā, mas ainda não era possível assegurar uma influência significativa em seu pensamento. Todavia, coincidência ou não, após a leitura das Asiatick Researches, é possível notar que a utilização do conceito Māyā adquiriu decisivamente a característica de ilusão e, por sua vez, o conceito de Representação schopenhaueriano adquiriu fortemente tal atributo.

A primeira vez em que o filósofo associa Māyā com um mundo ilusório foi em 1816, no seguinte fragmento:

[207] para o homem que pratica atos de amor (compaixão), o véu (Schleier) de Maja (Māyā) cai de seus olhos e a ilusão (Schein) do princípio de individuação o deixa. Ele reconhece a si mesmo em todos os seres, em cada sofredor; [...] Ser curado dessa errônea noção e desiludir-se de Maja (Māyā) e praticar trabalhos de amor (compaixão) são a mesma coisa (HN I, p. 423).

Esse fragmento auxilia na percepção da influência indiana sofrida por Schopenhauer durante o período de gênese de sua filosofia. Isso porque Māyā deu ao mundo como representação schopenhaueriano algo que o filósofo não havia encontrado no fenômeno kantiano, tampouco no mundo sensível platônico. Māyā se difere e se identifica com a realidade última que compõe o universo (Brahman), assim como a filosofia schopenhaueriana associa e diferencia o mundo como representação ao mundo como Vontade. Não são dois mundos em paralelo (sensível e inteligível) como sustenta Platão, também não são discussões entre a incognoscível coisa-em-si e o fenômeno desassociado da ilusão. Para Kant, compreender os objetos fenomênicos não é estar iludido. Isso porque, “os predicados do espaço e do tempo são atribuídos aos objetos dos sentidos como tais, e nisso não há ilusão (Schein)”.[22] Michael Plicin questiona-se sobre a possibilidade de Schopenhauer “não ter transformado o fenômeno do mundo do criticismo em um mundo da ilusão, digno dos vedāntas. Se ele não confundiu vivamente Erscheinung (aparência do criticismo) com Schein (ilusão dos vedāntas)?” [23] Longe de assegurar essa confusão, o que nós vemos em Schopenhauer é uma equiparação entre a essência do mundo composta pela Vontade com o mundo representado, que pode se constituir como ilusão dada pelo intelecto humano. O ser humano é duplamente iludido. Em um primeiro momento, por acreditar que a própria Representação é a única verdade possível; e, em um segundo momento, por acreditar na independência do intelecto frente à Vontade. Nesse ponto, Schopenhauer se distancia de Platão e Kant e se aproxima ao pensamento indiano, que concebe a verdade como sendo Brahman e a ilusão sendo Māyā. Todavia, a filosofia schopenhaueriana não é idêntica ao hinduísmo. É importante frisar que, a Vontade se difere sob muitos aspectos em relação ao supremo Brahman, assim como, a Representação à Māyā.

Em 1818, Schopenhauer já tinha clara a ideia do que seria a Māyā hindu e como ela iria ajudá-lo a explicar suas próprias teorias. A despeito de o filósofo ter associado inicialmente Māyā à criação do mundo material, assim como conferir-lhe o atributo de amor, n’O mundo, as citações sobre Māyā ocorrem, na maior parte das vezes, de um modo um pouco diferente. Em 1818, o seu pensamento sobre a Índia encontrava-se mais elaborado e refinado. Havia maior coerência entre os usos dos conceitos indianos. A primeira vez em que o filósofo citou Māyā n’O mundo referia-se ao caráter ilusório. De fato, no parágrafo três, de sua obra capital, Schopenhauer escreveu que:

o essencial dessa visão é antigo: Heráclito lamentava nela o fluxo eterno das coisas; Platão desvalorizava seu objeto como aquilo que sempre vem-a-ser, sem nunca ser; Espinosa o nomeou meros acidentes da substância única, existente e permanente; Kant contrapôs o assim conhecido, como mero fenômeno, à coisa-em-si; por fim, a sabedoria milenar dos indianos diz: trata-se de Maja (Māyā), o véu da ilusão, que envolve os olhos dos mortais, deixando-lhes ver um mundo do qual não se pode falar que é nem que não é, pois se assemelha ao sonho, ou ao reflexo do Sol sobre a areia tomada à distância pelo andarilho como água, ou ao pedaço de corda no chão que ele toma como uma serpente (SW II, p. 9).

É perceptível nesse fragmento que o filósofo retomou a definição criada em 1816, durante a sua leitura das Asiatick Researches. Māyā se assemelha a um véu que “envolve os olhos” dos seres humanos, gerando sonhos, enganos e ilusões. Schopenhauer equipara a alegoria hindu com as teorias de diversos filósofos ocidentais (Heráclito, Platão, Espinosa e Kant). No entanto, de acordo com o texto de Schopenhauer, em todas essas teorias está ausente o atributo da ilusão. Essa característica aparece apenas com Māyā, que está diretamente associada ao mundo como Representação. Esse fragmento auxilia a consolidação da tese de que Schopenhauer foi influenciado pelo pensamento indiano durante o período de gênese de sua filosofia, no caso específico, a partir do atributo de ilusão de Māyā em sua teoria da Representação.

É importante relembrar que, em 1814, Schopenhauer já havia encontrado esse atributo de Māyā na Oupnek’hat: Maīa [...] é ilusão. [...] Brahman é o supremo”.[24] Para Arthur Berriedale Keith, indólogo do século XX, “nas últimas Upaniads [...] o que nós temos é o germe da teoria da ilusão”.[25] O indólogo ainda faz comentários específicos sobre a Oupnek’hat Sataster, que retrata todos os seres do mundo como ilusão, excluindo apenas o ser que transcende a materialidade, o supremo Brahman. De acordo com Keith:

 “o caráter preciso da natureza do mundo externo é resumido finalmente na doutrina da Śvetāśvatara Upaniad (Oupnek’hat Sataster), que vê no mundo à exceção do absoluto que conceitua de uma maneira teísta - uma ilusão, Māyā, termo introduzido primeiramente na filosofia das Upaniads”.[26]

Como já dito, na Mythologie des Indous, obra também consultada por Schopenhauer em 1814, existem diversas passagens de Māyā associadas à “névoa que se espalham pelo entendimento humano”.[27] Seja na introdução redigida pela Mme. de Polier, seja nos diálogos entre o sikh Ramtchund e o Coronel Polier, Māyā foi retratada sempre da mesma maneira: distorção da mente ou dos sentidos. A despeito da ausência do conceito de ilusão na Mythologie des Indous, Māyā é o poder que altera a representação intelectual e sensorial dos seres humanos. Na obra de Polier também não é utilizado o conceito “véu”, mas nuvem ou névoa, que possui sentido semelhante.

O uso que Schopenhauer fez da Māyā hindu em sua filosofia e da ideia do mundo representado como ilusório se assemelha em muitos aspectos com o seguinte trecho escrito pela Mme. de Polier:

[e]ssa Māyā ou névoa que desempenha um grande papel, mesmo na mitologia popular, é, segundo a explicação abstrata e metafísica dos brâmanes, a intervenção dos sentidos sobre as faculdades intelectuais. Apenas quando os indivíduos se colocam acima da operação deles é que Māyā se dissipa, e que se obtém a luz que dá à razão sua clareza primitiva, estado no qual ela é pura e transcendente.[28]

O filósofo concebe que o mundo como Representação, “em verdade, é apenas uma imagem copiada da sua essência, entretanto de natureza por completo diferente, e que agora intervém na conexão de seus fenômenos” (SW II, pp. 179 e 180). Por isso, todos estão sujeitos à ilusão e ao engano, são incapazes de compreender o mundo como Vontade. Nesse cenário, o intelecto e a percepção se limitam apenas à compreensão do fenômeno. O erro reside nos fenômenos falsearem as exteriorizações manifestas da Vontade, que, por razões ilusórias, se constituem como se fossem reais. “A ilusão dos sentidos (enganos do entendimento) ocasiona o erro (engano da razão)” (SW II, p. 95).

Reafirma-se a ideia de que, apenas em 1816, durante a leitura das Asiatick Researches, Schopenhauer consolidou o uso de Māyā para referir-se explicitamente à ilusão do mundo como Representação. Com a leitura das Asiatick Reseaches, o filósofo compreendeu que o hinduísmo, especificamente, a filosofia Vedānta, aquela que veio depois dos Vedas, no caso, as Upaniads, não consegue disassociar o “sujeito do conhecimento” do “objeto materialmente percebido”. Todavia, essa relação dialética entre sujeito-objeto não é uma verdade absoluta, mas sim, uma ilusão. A realidade não pode ser concebida a não ser por intermédio das faculdades do entendimento, às quais, todos os humanos estão submetidos. É necessário romper com essa realidade, ajustar o intelecto para a “melhor consciência”, que, para o hinduísmo, é possível ser encontrada a partir do ser supremo, que está presente em todos os seres do universo. A frase pronunciada pelo brâmane ao seu filho “Tat tvam asi” (tu és isto) é o ensinamento necessário para a compreensão superior ou “melhor consciência” da mesma realidade representada sensorial e intelectualmente.

Em outro artigo do primeiro volume das Asiatick Researches, escrito por William Jones, Schopenhauer encontrou explicitamente a ideia Māyā vinculada à ilusão. No artigo Sobre a Ortografia de Palavras Asiáticas (On the Orthography of Asiatick Words),[29] Jones apresentou uma introdução a diversos textos e conceitos indianos escritos em sânscritos. O trecho específico lido por Schopenhauer foi: “[n]ão se gabem de opulência, jovens assistentes; todo este tempo some em um piscar de olhos: confirmando toda essa ilusão que foi criada por Májà (Māyā). Dirige o teu coração ao pé de BRAHME (Brahman), rapidamente ganhando conhecimento dele”.[30]

De fato, nos diversos volumes das Asiatick Researches, tomados de empréstimo por Schopenhauer na biblioteca de Dresden entre 1815 e 1816, Māyā é a ilusão mundana”.[31] Além disso, Māyā também auxiliou o filósofo na aprimoração de duas outras ideias: negação da Vontade e melhor consciência. No volume três, das Asiatick Researches, Francis Wilford escreveu que Brahman se constitui de:

um modo incompreensível para as criaturas inferiores, pois elas estão envolvidas no início da escuridão de Máyà, sujeitas a várias afeições mundanas; (…). Elas precisam dissipar a ilusão por abnegação, renunciar ao mundo por abstração intelectual”.[32]

Wilford mencionou nesse trecho essas duas ideias importantes para a filosofia de Schopenhauer. A abstração intelectual a que se refere Wilford pode ser entendida como semelhante à “melhor consciência” schopenhaueriana, que coloca o corpo como uma via de acesso para a Vontade. Essa percepção do próprio corpo, associada ao conhecimento teórico, gera a “melhor consciência” que busca uma saída possível para os sofrimentos da existência. A segunda ideia é a negação da Vontade entendida como abnegação. Māyā transforma-se em um contraponto importante na filosofia de Schopenhauer para a formulação de sua ética descritiva, que analisa a compaixão como virtude capital para a supressão das dores do mundo. De um lado, temos “compaixão e contentamento”, de outro, “Māyā, cegar-se ou ofuscar-se” (HN I, p. 429).

Outra comparação que fez Schopenhauer em relação ao conceito Māyā foi associa-la à expressão latina principium individuationis. Em um artigo escrito por Mathias Koßler,[33] o véu de Māyā é analisado a partir da relação existente entre os conceitos schopenhauerianos Vontade e intelecto. Koßler compreende que a expressão indiana “véu de Māyā” foi construída como correlata à ideia escolástica de principium individuationis (HN I, p. 282). Conforme Koßler constatou nos Manuscritos, tanto o conceito Māyā quanto principium individuationis foram utilizados pela primeira vez na filosofia de Schopenhauer no ano de 1814, entretanto, apenas dois anos depois, em 1816, o filósofo os colocou como correlatos. Utilizados em diversos momentos como sinônimos, Schopenhauer os compreendeu como uma distorção do intelecto capaz de individualizar todos os seres. Na verdade, esses dois conceitos possuem diferenças. Para o Advaita Vedānta, Māyā é a ilusão do mundo sustentada pelo intelecto. De sua parte, para os escolásticos, o principium individuationis restringe-se ao poder de individualizar os seres, ou seja, de identificar um objeto como distinto dos demais objetos. Apesar das diferenças entre essas ideias oriundas da Índia antiga e da Europa medieval, em Schopenhauer, o conceito indiano se apropriou da ideia de individuação da escolástica, do mesmo modo que a ideia escolástica se apropriou da ilusão Vedānta. Como descreveu o filósofo em 1816:

[a] visão de inumeráveis sofrimentos, acompanhados por uma penetração do princípio de individuação ou de Maja (Māyā), determina a Vontade que, ao mesmo tempo, tenta aliviar os sofrimentos e renunciar os prazeres, os quais negados sempre levam a uma condição de alívio (HN I, p. 404).

A unidade de toda a matéria entendida pela escolástica como Deus e pelo hinduísmo como Brahman encontra-se, em Schopenhauer, difusa pelo véu da ignorância que individualiza todos os seres. Schopenhauer fundiu em sua própria filosofia Ocidente e Oriente. Alterou seus autênticos significados a fim de explicar o seu próprio pensamento. Isso não invalida a influência que ele recebeu do pensamento indiano, mas mostra a complexidade das apropriações que fez de algumas filosofias, sejam elas orientais ou ocidentais.

A apropriação de Māyā por Schopenhauer é um dos principais focos de toda a discussão acerca da influência da Índia no período da gênese de sua filosofia.[34] Contrária ao consenso de parte dos comentadores sobre o assunto, este artigo defende que, longe de ser uma mera apropriação, o filósofo foi, de fato, influenciado pelo pensamento indiano. Após a leitura que fez da Oupnek’hat, Asiatisches Magazin, Mythologie des Indous e Asiatick Researches, Schopenhauer entendeu que o mundo como Representação também poderia ser entendido como ilusão ou engano do intelecto.

 

Referências

 

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[1] Tradução latina de 1801-1802, realizada por Anquetil-Duperron, de 50 Upaniads, das 108 existentes. Anquetil-Duperron utilizou como referência em sua tradução uma versão persa de 1656, realizada por Dārāṣekoh (Sultão Mohammed Dara Shikoh).

[2] Dois volumes publicados e editados por Julius Klaproth (1783-1835) em 1802 (primeiro volume) e 1811 (segundo volume). Neles são encontrados textos de diversos autores sobre os pensamentos da Índia e da China, em sua grande maioria, escritos por Friedrich Majer (1771-1818) e pelo próprio editor.

[3] Trabalho realizado em dois volumes por Mme. Marie Elisabeth de Polier (1742-1817) a partir dos manuscritos autênticos produzidos por Coronel Antoine-Louis Henri de Polier (1741–1795) em diálogo com o indiano da religião sikh denominado Ramtchund. Esse livro inclui comentários gerais sobre o hinduísmo escritos pela Mme. Polier, além de resumos desenvolvidos pelo Coronel Polier, a partir de três importantes textos hindus: Mahābhārata,  Rāmāyaa e Bhāgavatam.

[4] Revistas publicadas pela The Asiatic Society fundada por William Jones em 1784. São diversos os assuntos orientais abordados nesses periódicos. Em 1829, o nome desse anuário foi alterado para The Journal of the Asiatic Society.

[5] Cf. MOCKRAUER, Schopenhauer und Indien, pp. 3-26; APP, Notes and excerpts by Schopenhauer related to volumes 1-9 of the Asiatick Researches, pp.11-33; APP, Schopenhauer's Initial Encounter with Indian Thought, pp. 35–76.

[6] SNODGRASS, The Symbolism of the Stupa, p. 29.

[7] Oupnek’hat, vol. II, p. 548.

[8] Cf. MOCKRAUER, Schopenhauer und Indien, pp. 3-26; APP, Schopenhauer's Initial Encounter with Indian Thought, pp. 35–76.

[9] Asiatisches Magazin, Vol. 2, p. 266

[10] Mythologie des Indous, Vol. 1, pp. 413 e 414.

[11] Cf. APP, Notes and excerpts by Schopenhauer related to volumes 1-9 of the Asiatick Researches, pp.11-33.

[12] MESQUITA, Schopenhauer e a Índia, Anexo B. Leitura das Asiatick Researches, vol 1, p. 223 (Foram preservadas as palavras sublinhadas por Schopenhauer).

[13] Asiatick Researches, vol. 8, p. 71.

[14]Asiatick Researches, volume 3, pp. 295-468.

[15] Asiatick Researches, vol. 3, p. 372. On Egypt and the Nile from the Sanscrit (Sobre o Egito e o Nilo do Sânscrito).

[16] ZIMMER, Filosofias da Índia, p. 30.

[17] Cf. KEITH, p. 247. Māyā - representa a arte mágica; Śakti - representa o poder de criar semelhante ao poder do absoluto Brahman.

[18] BHATTACHARYYA, The Indian Theogony – a compartative study of Indian Mythology from the Vedas to the Purāṇas, p. 35.

[19] SARIN, Schopenhauer’s Concept of Will and the Veil of Māyā, p. 144.

[20] LOCHTEFELD, The illustrated encyclopedia of Hinduism, p. 433.

[21] SARIN, Schopenhauer’s Concept of Will and the Veil of Māyā, p. 138.

[22] KANT, Crítica da Razão Pura, p. 85.

[23] PLICIN, Prefácio (Avant-Propos) da obra de Schopenhauer, De la Quadruple Racine du Príncipe de Raison Suffisante, p. 38.

[24] Oupnek’hat, I, p. 420.

[25] KEITH, The Religion and Philosopy of the Veda and Upanishads, pp. 529 e 530.

[26] KEITH, The Religion and Philosopy of the Veda and Upanishads, p. 531.

[27] Mythologie des Indous, vol. 1, pp. 130, 223, 414, 423, 426, 427, 428, 446, 447, 460, 466, 496, 548, 549 e 598.

[28] Mythologie des Indous, vol. 1, pp. 130 e 131.

[29] Asiatick Researches, vol. 1, pp. 1-56. Versão de 1798. Primeira publicação em 1788.

[30] Asiatick Reserches, vol. 1, p. 39. Versão de 1798. Primeira publicação em 1788.

[31] Asiatick Researches, vol. 4, p. 383.

[32] Asiatick Researches, vol. 3, pp. 372 e 373.

[33] KOßLER, The relationship between Will and Intellect in Schopenhauer with particular regard to his use of the expression “Veil of Māyā, pp. 109-118.

[34] Cf. BERGER, “The Veil of Māyā”: Schopenhauer’s System and Early Indian Thought, p. 69.