Submissão: 31/05/2019 Aprovação: 24/06/2019
Publicação: 31/08/2019
Sabedoria Oriental
Māyā: apropriação e
influência
Māyā:
appropriation and influence
Fábio Luiz de Almeida Mesquita
Doutor em Filosofia pela Universidade de São
Paulo
fabiomes@hotmail.com
Resumo:
Esse artigo analisa a
apropriação e a influência do conceito Māyā na filosofia de Schopenhauer
durante o período de gênese de sua filosofia (1813-1818). Diferente das
análises meramente comparativas, nosso foco é apresentar uma pesquisa
histórico-filosófica a partir dos Manuscritos Juvenis e d’O Mundo
como Vontade e como Representação, assim como, delimitar a “Índia
schopenhaueriana” a partir das obras consultadas pelo filósofo durante o
referido período: Oupnek’hat, Asiatisches Magazin, Mythologie des Indous e Asiatick Researches. Nosso objetivo é demonstrar, cronologicamente,
como Schopenhauer se apropriou do conceito Māyā, utilizando-o com
sentidos e formas diferentes até consolidar o seu uso com a ideia de ilusão e
influenciar sua teoria da Representação.
Palavras-chave: Ilusão;
Māyā;
Representação.
Abstract: This
article analyzes the appropriation and influence of Māyā
concept in Schopenhauer's philosophy during the period of the genesis of his
philosophy (1813-1818). Unlike a merely comparative analyzes, our focus is to
present a historical-philosophical research of the Early Manuscripts and The
World as Will and Representation, as well as to delimit the
"Schopenhauerian India" based on the workpieces consulted by the
philosopher during that period: Oupnek’hat, Asiatisches Magazin, Mythologie des Indous e Asiatick Researches. Our goal is to demonstrate, chronologically, how
Schopenhauer appropriated the Māyā concept, using it
in different senses and forms until consolidating its use with the idea of
illusion and influencing his Representation theory.
Keywords: Illusion; Māyā;
Representation.
Māyā: apropriação e influência
Um estudo histórico-filosófico sobre a apropriação e a influência da
sabedoria indiana na obra de Schopenhauer durante o período da gênese de seu
pensamento (1813-1818) deve levar em consideração duas fontes históricas
distintas. A primeira refere-se ao próprio texto de Schopenhauer, aos diversos
fragmentos sobre a Índia expressos nos Manuscritos
Juvenis e em sua obra capital O Mundo
como Vontade e como Representação. A segunda restringe a “Índia
schopenhaueriana” a partir das quatro obras sobre o Oriente, as quais o
filósofo teve acesso durante o referido período. Essas obras são as Oupnek’hat,[1]
Asiatisches Magazin,[2]
Mythologie des Indous[3] e Asiatick
Researches.[4]
Elas foram consultadas pelo filósofo e tomadas de empréstimo nas bibliotecas de
Weimar e de Dresden, entre os anos de 1813 a 1816.[5]
Além disso, para uma abordagem histórico-filosófica é necessário
restringir os
conceitos indianos que podem ser analisados, distinguindo-os em dois grupos
possíveis. Aqueles que foram apropriados pelo filósofo e aqueles que, para além
da apropriação, também geraram uma influência em seu pensamento.
Uma das mais relevantes apropriação e influência feita por Schopenhauer
do pensamento indiano foi a do conceito Māyā. Isso se dá ao tomarmos como referência a
quantidade de citações, assim como a importância desta ideia indiana ao
influenciar a teoria da Representação (Vorstellung). Desde a primeira
citação, em 1814, até a publicação d’O mundo, em 1818, o filósofo se
utilizou da palavra Māyā mais do que trinta
vezes em seus textos (Manuscritos e O mundo) e a identificou com
diferentes ideias: ilusão da realidade (HN I, p. 104), amor no ato da criação (HN
I, p. 120), mundo
material (HN I, p. 136), fenômeno kantiano (HN I, p. 225), princípio de criação do mundo (HN I, p.
303), aquilo que
eternamente se transforma, mas nunca é (HN I, p. 380), principium
individuationis (HN I, p. 389), suicídio (HN I, p. 391), o mundo como
Representação submetido ao princípio de razão (SW II, p. 9), sonho (SW II, p.
20), mundo visível (SW
II, p. 498), dentre
outros.
Etimologicamente, o substantivo feminino Māyā se relaciona com o conceito “medida”. A raiz mā significa medir, mensurar, calcular, construir ou
criar. Nesse caso, para o hinduísmo, “medir é dar existência a uma coisa,
atualizá-la, dar-lhe realidade”.[6] Assim, Māyā foi concebida por muitas vertentes da filosofia
hindu como a causa da existência material, na qual todos os seres atuam. Nisso
se incluem também todos os seres humanos e os deuses da Trimūrti. No entanto, ao mesmo
tempo em que possui o poder da criação, Māyā também é a fluidez eterna do mundo fenomênico,
efeito de toda realidade, responsável pelo ciclo de saṃsāra (fluxo de incessantes renascimentos no mundo).
Em seus Manuscritos de 1814, Schopenhauer utilizou pela primeira
vez a palavra Māyā identificando-a com o amor, significado distinto ao do etimológico. É
importante notar que, durante esse ano, o filósofo havia entrado em contato com
três obras sobre a Índia: Asiatisches Magazin, Oupnek’hat e Mythologie
des Indous. Nessa primeira citação de Māyā, Schopenhauer escreveu:
que nós
queremos tudo é a nossa desgraça; não importa no mínimo o que nós queremos. Mas
querendo (o erro fundamental) podemos nunca estar saciado, e então nós nunca
paramos de querer e a vida é um permanente estado de dor e miséria, é
objetidade da Vontade. Nós constantemente imaginamos que os objetos desejados
podem pôr um fim em nossa Vontade, de preferência, fazem aquilo que apenas nós
mesmos podemos fazer, cessar o nosso querer. Essa (realização da Vontade)
ocorre através do melhor conhecimento, e assim a Oupnek’hat, volume II, p. 216 disse: tempore quo cognitio simul advenit amor e medio supersurrexit; - “O
momento do conhecimento aparece na cena, ao mesmo tempo, o amor surgiu no seio
das coisas” - aqui o amor (desejo)
significa Maja (Māyā), que é justamente
aquela vontade, aquele amor (por objetos), de quem a objetificação ou a
aparência é o mundo (HN I, p. 120).
Essa foi uma das raras ocasiões em que o filósofo citou a referência
utilizada na apropriação de uma ideia indiana. Nesse fragmento citado por
Schopenhauer da Oupnek’hat, o amor se dá simultaneamente com o
conhecimento dos seres. Māyā é o amor, possuindo sentido epistêmico e físico. A interpretação
schopenhaueriana relaciona Māyā aos desejos por objetos. Nesse ponto de vista, no momento em que temos
conhecimento do mundo, nos apegamos a ele, amamos a materialidade, somos
influenciados por Māyā em acreditar que todo o sofrimento cessará no instante que possuirmos
os bens materiais do mundo físico.
Um ano depois, em 1815, Schopenhauer alterou a sua compreensão do amor
em Māyā. Isso se torna
evidente a partir da aproximação que fez entre Eros e Māyā. Tais seres são
semelhantes ao possuir o amor no momento da gênese do mundo material. Para
Schopenhauer,
[o] mundo é a objetidade da Vontade (de vida). Essa Vontade é muito veemente fenômeno, é impulso sexual, o qual é o ερως (Eros) dos antigos. Então, os poetas e filósofos da antiguidade, de Hesíodo até Parmênides, de modo muito significativo dizem que ερως é a primeira coisa, o princípio do mundo, aquilo que o criou; a Maja (Māyā) dos indianos significa o mesmo. Note bem, não totalmente o mesmo; Maja (Māyā) é especialmente a objetidade da Vontade, fenômeno kantiano, conhecimento de acordo com o princípio de razão suficiente. Cf. Aristóteles, Metafísica, I, 4 (HN I, p. 303).
Na Teogonia grega, Hesíodo concebeu Eros como um dos deuses
primordiais. De acordo com essa obra, no início de tudo, quando apenas Caos
reinava absoluto, surgiram as primeiras criações e uma delas era Eros, símbolo
do amor. Eros é o amor existente na criação de todos os seres. De modo
semelhante, Māyā foi compreendida por
Schopenhauer a partir da mesma concepção de amor no ato de criação. Māyā se assemelha a Eros, mas para além de ser concebida como amor do impulso sexual na
criação do mundo, também é a própria objetidade da Vontade. Ou seja, Māyā é simultaneamente amor, origem, força de criação do mundo, impulso
sexual de gênese de Eros, mas, também, a Representação que os sujeitos do
conhecimento fazem de todos os seres a partir do princípio de razão suficiente.
Portanto aqui, Māyā está diretamente relacionada à epistemologia schopenhaueriana, à forma
com que o intelecto do sujeito concebe os objetos fenomênicos. Eis a razão de o
filósofo também ter associado esse conceito indiano ao fenômeno kantiano.
Todavia, esse mesmo intelecto é servo da Vontade, inconscientemente desejoso em
saciar os pequenos fins da vida. A Vontade de vida controla o pensar humano,
que ingenuamente acredita ser senhor de si próprio.
Se compararmos esses fragmentos, o de 1814 com o de 1815 dos Manuscritos,
é possível constatar uma alteração drástica na concepção schopenhaueriana do
amor em Māyā. Em um primeiro
momento, Māyā é o amor entendido de
modo negativo, semelhante ao desejo de possuir objetos fenomênicos. Essa
interpretação negativa foi a mais utilizada por Schopenhauer durante o período
de gênese de sua filosofia. No fragmento de 1814, oriundo da Oupnek’hat,
Māyā é o conhecimento do
mundo aparente, objetivado, origem do apego a toda materialidade, fazendo parte
da epistemologia schopenhaueriana. Em um segundo momento, no fragmento de 1815,
Māyā é o amor interpretado
de modo positivo, semelhante ao deus Eros, amor presente no ato de criação do
mundo fenomênico.
No fragmento de 1814, Schopenhauer menciona também que o “melhor conhecimento” entende
o mecanismo que opera a Vontade. A “melhor consciência” possui a lucidez de
compreender a força que rege todos os objetos. Ela nega a luta de todos contra
todos, na qual os seres do mundo inteiro estão inseridos. A solução é dada em
nada querer, nada desejar, nada temer e nada esperar, pura negação da Vontade.
Nesse sentido, Māyā pode ter auxiliado o
filósofo em elaborar sua ética da compaixão. Se libertar de Māyā, erro epistemológico,
pode, consequentemente, gerar ações de compaixão e empatia.
De modo semelhante, o
pensamento indiano, interpretado por intermédio da Oupnek’hat, apresenta
um problema filosófico crucial que está expresso no conflito entre o físico e o
metafísico, aparência e essência, mentira e verdade, mutabilidade e
imutabilidade. De um lado está Brahman, o ser absoluto, de outro está Māyā, a criadora. Em outro
trecho da Oupnek’hat, não utilizado pelo filósofo, fica evidente essa
questão: “Maīa que se diz constar em todas as partes do ser humano, opera
(trabalha) com Brahm (Brahman) na produção do mundo. Isto é, Brahm (Brahman, enquanto Māyā), projetando-se para fora, agindo, simplesmente aparece, é ilusão
(illusio), não faz nada
verdadeiramente”.[7]
O problema é resolvido dando à Māyā o significado de ilusão, mentira, mutabilidade e aparência. Por
outro lado, em complemento a essa solução, Brahman
é a realidade, verdade, imutabilidade e essência.
Para além da Oupnek’hat,
foram encontrados também outros fragmentos sobre Māyā nas demais obras indianas consultadas pelo filósofo durante o período
de gênese de suas teorias.
Como se sabe, a partir
de evidências históricas,[8] a Asiatisches
Magazin foi a primeira obra sobre a Índia a que Schopenhauer teve acesso.
Seu empréstimo ocorreu no final de 1813, na biblioteca de Weimar, e nela já
estava presente a Māyā dos hindus: “[t]odo este engano é igual a Māyā”. [9] Logo
depois, na mesma biblioteca, Schopenhauer tomou de empréstimo a Mythologie
des Indous. Nessa obra, Māyā foi mencionada em diversas passagens, a maioria como a “névoa que cobre o entendimento dos mortais”[10] .
Essas duas interpretações de Māyā (engano e névoa) corroboram com a interpretação contida na Oupnek’hat. Nessas três obras (Oupnke’hat, Mythologie des Indous e Asiatisches
Magazin), Māyā é o engano, a nuvem, a ilusão do intelecto na compreensão do
mundo representado. Os fenômenos se manifestam como a solução de todos os
males, todavia, eles mesmos são a origem de todo o sofrimento.
Infelizmente, os
diversos apontamentos feitos por Schopenhauer durante sua leitura dos nove
volumes das Asiatick Researches, tomados de empréstimo na biblioteca de
Dresden, nos anos de 1815 a 1816, foram dados por Hübscher como irrelevantes e,
dessa forma, não estiveram presentes na publicação dos Manuscritos.[11] O
primeiro apontamento de Schopenhauer sobre as Asiatick Researches se
refere diretamente à Māyā e seus atributos de criação, amor e ilusão do mundo. Esse apontamento
é a transcrição feita por Schopenhauer a partir do artigo de William Jones: Sobre os Deuses da Grécia,
Itália e Índia. Schopenhauer transcreveu esse trecho, em meados de
1815, momento em que lia o primeiro volume das Asiatick Researches. Eis
o fragmento:
p. 223. Máyá: essa
palavra explicada por estudiosos hindus significa “a primeira inclinação da
divindade para se diferenciar ao criar os mundos”. Imagina-se que ela seja a
mãe natureza universal de todos os deuses inferiores; de acordo com o que uma
pessoa da Cashemira me respondeu quando eu lhe perguntei por que Cama ou
Amor era representado com sendo seu filho: mas a palavra Máyá ou ilusão tem um significado mais sutil e mais obscuro na
filosofia Vedanta, na qual ela significa o sistema de percepções.[12]
Mais uma vez são
constatadas as aproximações entre o significado da palavra Māyā nas
obras Oupnke’hat, Mythologie des Indous, Asiatisches Magazin e Asiatick Researches. Como se pôde notar a
partir do trecho apresentado, o filósofo encontrou nas Asiatick Researches,
especificamente, nesse fragmento de Jones as mesmas ideias fundamentais para a
sua compreensão de Māyā. A primeira refere-se ao significado etimológico
do conceito associado ao poder de criação. Tal como foi analisado
anteriormente, um dos sentidos da raiz mā é criar. Por essa razão, Māyā não
possui uma interpretação desfavorável. Ela estaria
diretamente relacionada à inclinação sofrida por Brahman para se
diferenciar de sua essência transcendental e criar toda a materialidade. Por
isso, Māyā é a
mãe natureza que gerou todos os seres. A segunda ideia refere-se à associação
de Māyā ao
amor existente no ato de criação. Ainda não há uma intepretação negativa de Māyā, pois
o seu amor não está associado ao desejo por objetos materiais. Nesse contexto, Māyā cria
todos os seres a partir de um sentimento nobre que reside em seu ser. O
fragmento de William Jones está em acordo com a interpretação schopenhaueriana
de que Māyā “foi parafraseada por amor” (SW II, p. 389). Por fim, a terceira e última ideia
refere-se à ilusão. A mãe criadora e amorosa de todos os seres do universo é,
concomitantemente, a responsável por enganar a todos com truques, mágica e
ilusão. Essa é a única ideia apresentada por William Jones que dá a Māyā um
sentido desfavorável. De novo, é importante
dizer que foi essa última interpretação que se tornou a mais frequente nos
textos schopenhauerianos até 1818.
Nas Asiatick
Researches é possível encontrar muitas outras passagens sobre a Māyā hindu.
No artigo escrito pelo indólogo inglês J. D. Paterson, Of the Origin of the
Hindu Religion (Da origem da religião hindu), Māyā é
identificada como a grande mãe criadora do universo. Paterson escreveu que:
“[n]ão poderia o nome de MAYA ou MAHA MAYA (consorte do benevolente Síva)
ter dado origem a essa conjectura; esses termos hindus foram aplicados para
significar a mãe (MAYA), a grande mãe (MAHA MAYA)!” [13] Paterson busca em seu texto uma origem comum para todas as mitologias.
Por essa razão, associa Māyā com o titã grego Atlas, que foi condenado por Zeus
a carregar eternamente o mundo ou sustentar para sempre os céus. O sentido da
comparação feita por Paterson reside no fato de que, no hinduísmo, Māyā sustenta a percepção de todos os mortais no mundo
fenomênico, como se carregasse nas costas a forma segundo a qual os seres
humanos conseguem compreender a matéria. Na alegoria hindu, diferentemente do
mito de Atlas, Māyā está associada a uma faculdade do intelecto
humano. Brahman torna-se
imperceptível em razão dos enganos gerados por Māyā, que se utiliza de um véu para encobrir e
distorcer a percepção do real. O traço mais relevante apontado por Paterson foi
apresentá-la como a grande mãe de todos os seres. Nesse sentido, ela estaria
mais próxima da deusa primordial grega Gaia, do que do titã Atlas. Gaia
simboliza a geração dos seres no planeta terra, a natureza que se faz presente
em todos os lugares do mundo. Apesar das interessantes comparações entre Grécia
e Índia feitas por esse indólogo inglês, para nós, o principal valor de seu
artigo reside no fato de Paterson ter dado grande destaque à Māyā como sendo a grande MAHA MAYA (Grande Criadora),
contribuindo para a interpretação antagônica que Schopenhauer, aos poucos, foi
construindo dela.
Francis Wilford escreveu outro artigo[14]
nas Asiatick Researches que dá destaque a Māyā. Wilford teve como objetivo central em seu texto associar a mitologia
egípcia com a indiana. Para isso, ele fez diversas comparações, sendo que uma
delas foi a do deus egípicio Hórus com Māyā. Hórus representa os céus e é filho do deus Osíris com a deusa Ísis.
Wilford narra que, no combate de vingança travado com o seu tio Set, Hórus teve
ferido o seu olho esquerdo, que seria a Lua. Os egípcios explicam as fases da
Lua como efeitos do ferimento do olho esquerdo de Hórus. O outro olho, o
direito, simbolizaria o Sol. Por essa razão, Hórus foi associado a esses dois
astros celestes, Sol e Lua. Na sequência dessa narrativa sobre o deus egípcio,
Wilford narra outra história, essa de origem hindu, em que simboliza o poder do
“Sol material” associado à Māyā e o poder do “Sol metafísico” associado ao ser supremo Brahman.
Wilford escreveu que os hindus:
confessam, no entanto, por unanimidade, que o Sol é um
símbolo ou imagem das suas três grandes divindades de forma conjunta (Trimūrti) e individual,
isto é, Brahma (Brahman) ou o Supremo, que sozinho existe real e absolutamente; as
três divindades masculinas (Brahmā, Viṣṇu e Śiva) são apenas Máyà ou ilusão. O corpo material do Sol
eles consideram como Máyà; mas como
ele é o símbolo mais glorioso e ativo do Ser supremo, eles o respeitam como um
objeto de alta veneração. [15]
De acordo esse fragmento
de Wilford, o hinduísmo cria uma interpretação que apresenta a pluralidade do
real existente apenas na forma em que o intelecto humano opera. O entendimento
dos homens cria maneiras distintas de explicar um mesmo objeto, no caso, o Sol
material e o metafísico. Para esse indólogo, o hinduísmo não possui uma
autêntica dualidade, pois a única realidade reside em Brahman. Em um
primeiro momento, deve-se entender que a verdade absoluta existe e é expressa
pelo ser supremo, que pode ser associado de modo simbólico ao Sol. No entanto,
simultaneamente, os hindus notam que existe Māyā, que
rege e controla os deuses da Trimūrti. Ela seria o próprio
Sol, dado e compreendido de modo material. A narrativa de Wilford possui grande
valor, pois distingue dois modos de se entender um mesmo objeto. Característica
semelhante também foi usada por Schopenhauer em sua explicação do mundo
compreendido, de um lado, como Representação e, de outro, como Vontade. São
dois lados diferentes “de uma mesma moeda”, de um mesmo mundo.
Para o indólogo
contemporâneo Heinrich Zimmer, “Māyā é o poder supremo que
gera e anima a manifestação, aspecto dinâmico da substância universal. É, a um
só tempo, efeito (fluxo cósmico) e causa (poder criativo)”.[16]
Inserida nesse contexto de razão causal e consequência do mundo, Māyā possui o poder supremo de construir todo universo
e, simultaneamente, de reger todas as mutações da realidade, igualando-se à Brahman
e estando acima de Brahmā, Viṣṇu e Śiva. Porém, ao se identificar
com a existência de todos os seres criados, Māyā é concebida erroneamente como a verdade da própria
existência. Para Zimmer, o engano de concepção faz com que ela seja
negativamente identificada como uma força mágica[17] ou ilusória, que
esconde a autêntica realidade. Māyā não é Brahman,
mas se identifica com ele. Por essa razão, é comum encontrar explicações sobre Māyā que apresentam certo
antagonismo. É o caso, por exemplo, da definição expressa pelo indianista
Sibajiban Bhattacharji: “Māyā significa sabedoria,
poder extraordinário ou sobrenatural, mas também significa ilusão, irrealidade,
decepção, fraude, truque, feitiçaria, bruxaria e magia”.[18]
De fato, ela ilude a consciência e a percepção de todos ao se colocar como
idêntica à verdade que compõe a matéria. Sua mágica criadora oculta o ser
supremo Brahman, efetiva essência da realidade. Mas, simultaneamente,
ela é o poder da criação, possuindo atributos semelhantes aos do ser supremo e
absoluto.
Para corroborar ainda mais com
o antagonismo presente em Māyā, vale analisar a descrição oferecida pela filósofa indiana Indu
Sarin: “O conceito Māyā deve ser entendido
tanto em nível individual quanto cósmico. Em nível individual, é avidyā (o princípio epistemológico que
vicia a experiência perceptiva) e a nível cósmico, é o poder (Śakti) de Brahman. Nesse caso, Māyā aparece como o Brahman qualificado (saguna ou apara Brahman)”.[19] Nessa dupla concepção, Māyā se distingue de Brahman, pois seria a ilusão
da percepção do real, mas também se identifica com Brahman, pois é o seu
poder e a sua energia (Śakti). O
problema se configura em razão de Māyā também ser a realidade. No entanto, sendo fiel ao
pensamento hindu, ela é uma realidade concebida de outra maneira.
Algumas escolas antigas do pensamento hindu foram marcadas por essa
possível dualidade do real entre Māyā e Brahman. De
um lado, a realidade é composta a partir da existência de todos os objetos,
criados e geridos pelo amor supremo de Māyā. De outro, a realidade possui sua verdadeira
essência no poder supremo e transcendental de Brahman. Um dos propósitos dos hindus é conseguir romper com a primeira
camada da realidade que está envolta em uma espécie de véu que distorce a
verdade, para, assim, poder atingir a compreensão suprema de Brahman. Caso os ascetas hindus consigam
superar o véu de Māyā, eles também conseguirão acabar com o ciclo de saṃsāra, atingindo a compreensão do grande
pronunciamento Mahāvākya “Tat tvam
asi” (Isto és tu – Thou art that)
e criando a identificação entre Ātman e Brahman.
Com a finalidade de romper com a dualidade, outras escolas do hinduísmo
tiveram como objetivo destacar o caráter ilusório e enganador de Māyā. Denunciar esse caráter nocivo de Māyā é distinguir a ilusão
da realidade. A escola Advaita Vedānta, por exemplo, acredita que não existem duas
realidades, pois tudo é uma única verdade, tudo é Brahman. “Os deuses
(menores) e Māyā são parte de uma
realidade inferior. Assim, ambos não são autenticamente reais. A escola Advaita
Vedānta revela Māyā como confusão da falta de entendimento correto; a
confusão desaparecerá quando a libertação perfeita for alcançada”.[20] Sendo
assim, Māyā é uma realidade
menor, um obstáculo a ser superado, para que, assim, se atinja uma realidade
maior.
Em Schopenhauer, no entanto, o simples fato de compreender a Vontade
não gera a libertação humana dessa essência do mundo, criadora de todo o
sofrimento. A melhor consciência nota que o mundo não se resume em
representações. Por isso, utiliza o corpo como chave de acesso ao outro modo de
compreensão da realidade. O intelecto, livre da ilusão, percebe a Vontade
agindo em seu próprio ser, assim como em todos os demais. Incapazes de
controlar a Vontade, os seres humanos notam os conflitos existentes entre os desejos,
entre todos os seres. Isso faz com que
eles se percebam em uma luta sem trégua de todos contra todos. Apesar do Advaita
Vedānta crer que nesse
estágio de consciência o indivíduo supera todas as dores do mundo por
intermédio da conexão entre Brahman e Ātman,
em Schopenhauer, a Vontade continua a gerar todo o sofrimento da existência.
Por essa razão, de acordo com a descrição do filósofo, alguns negam a sua
própria Vontade a partir de dois caminhos possíveis: contemplação estética
(método paliativo) e ética da compaixão (método duradouro). No segundo caminho,
a negação da Vontade ocorre no indivíduo por meio de ações empáticas e
benevolentes que notam os sofrimentos de todos como sendo o seu próprio
sofrimento. Nesse estágio de compreensão, que se constitui por ações éticas e
não meramente correções epistêmicas, não existe diferença entre o eu e o outro.
Todos são um só; todos são Vontade.
Os livros sobre a Índia aos quais Schopenhauer teve acesso durante a
gênese de sua filosofia se aproximam da definição dada pelo Advaita Vedānta.
Por essa razão, a
filosofia dele também se aproximou da interpretação de Māyā como ilusão. Tanto em Schopenhauer quanto no Advaita
Vedānta existem críticas ao apego do mundo percebido que
resulta em sofrimento. “A iluminação para ambos é alcançada por intermédio do
desapego do mundo, da dissolução do ego e da não dualidade”.[21]
Em Schopenhauer, a Representação é um dos lados da compreensão do mundo,
que em alguns momentos foi literalmente concebida como ilusória. A coisa-em-si
constituída como Vontade é o outro lado do mesmo mundo, que sustenta e dá
sentido a todos os fenômenos. Representação e Vontade não devem ser entendidas
como duas realidades opostas, dois mundos em paralelo, como concebe uma
possível interpretação da filosofia platônica. Em um único e mesmo mundo, a
Representação é a forma segundo a qual o sujeito do conhecimento apreende os
objetos fenomênicos e a Vontade se constitui como a essência íntima desses
objetos. Compreender e explicar essas duas formas da realidade era o intuito de
Schopenhauer.
Não há dualidade no filósofo, assim como não há dualidade no Advaita
Vedānta. Para esta tradição filosófica da Índia, Māyā é a forma equivocada,
enganosa e ilusória de compreender a realidade. Os seres humanos, limitados
pelas restritas percepções e consciências de mundo, não compreendem diretamente
a verdade que se esconde por detrás de cada objeto. Essa forma empobrecida de
entender a realidade é Māyā, geradora de todas as
mazelas da vida. A isso se associa o saṃsāra, representado como
ignorância. Aqueles que estiverem envoltos no véu de Māyā e presos ao ciclo de
saṃsāra compreenderão o
mundo, dado no tempo e no espaço, como sendo a única realidade possível. Eis o
erro do intelecto no qual reside todo engano e ilusão. No entanto, o Advaita
Vedānta acredita que é possível se libertar dessas
distorções do entendimento e atingir a verdade residida em Brahman. Este
ser se configura, para aqueles que fizerem a correta compreensão do verdadeiro
eu (Ātman), como o entendimento
superior do mundo. De modo semelhante, em Schopenhauer também é possível
suprimir todas as dores da existência ao se negar a própria Vontade.
Parece-nos que no
início da relação do filósofo com a Índia, no ano de 1813-14, Schopenhauer
ainda não havia dado grande destaque à Māyā como sinônimo de
ilusão, algo que seria desenvolvido em sua teoria da Representação até 1818. A
princípio, sua principal preocupação era realizar comparações com o mundo
sensível platônico ou com o fenômeno kantiano. Desse modo, o início do uso do
conceito Māyā por Schopenhauer
estaria relacionado diretamente ao mundo representado subordinado ao princípio
de razão. Para confirmar essa teoria, apresenta-se outro fragmento dos Manuscritos
schopenhauerianos, datado do ano de 1814:
[e]le é (Maja
- Māyā). Nós, então,
temos distinguido três coisas: (1) a Vontade de vida por si mesma, (2) dela
objetidade perfeita a qual são as ideias (platônicas) e (3) a aparência
fenomênica dessas ideias platônicas na forma de quem a expressão é o princípio
de razão suficiente, isto é, o mundo atual, o fenômeno kantiano, a Maja (Māyā) dos Indianos (HN
I, p. 225).
Nesse fragmento, Schopenhauer apresenta três ideias diferentes de sua
filosofia: Vontade, objetidades perfeitas (ideias platônicas) e aparência
sensível das ideias perfeitas (representações). Schopenhauer fez outra
comparação parecida a essa em outra passagem dos Manuscritos. No ano de
1816, em Dresden, ele fez uma tabela comparativa, na qual ficam evidentes as
comparações entre o seu pensar e as filosofias nas quais seus leitores deveriam
ser versados.
|
|
Universal |
|
Particular |
Metafísica (HN I, p. 392) |
|
Ideia platônica |
|
Aquilo que se torna,
mas nunca é |
|
Coisa em si de Kant |
|
Fenômeno |
|
|
Sabedoria dos Vedas |
|
Māyā |
De 1814, ano da
primeira citação da palavra Māyā em seus Manuscritos, até 1816, o mundo como Representação não
possuía, de modo tão evidente, o atributo de ilusão. De forma semelhante, o uso
de Māyā por Schopenhauer era
apenas como equiparação das ideias já existentes nas filosofias ocidentais. Ele
havia se apropriado do conceito indiano Māyā, mas ainda não era possível assegurar uma influência significativa em
seu pensamento. Todavia, coincidência ou não, após a leitura das Asiatick
Researches, é possível notar que a utilização do conceito Māyā adquiriu
decisivamente a característica de ilusão e, por sua vez, o conceito de
Representação schopenhaueriano adquiriu fortemente tal atributo.
A primeira vez em que o filósofo associa Māyā com um mundo ilusório
foi em 1816, no seguinte fragmento:
[207] para o
homem que pratica atos de amor (compaixão), o véu (Schleier) de Maja (Māyā) cai de seus olhos
e a ilusão (Schein) do princípio de individuação
o deixa. Ele reconhece a si mesmo em todos os seres, em cada sofredor; [...]
Ser curado dessa errônea noção e desiludir-se de Maja (Māyā)
e praticar trabalhos de amor (compaixão) são a mesma coisa (HN I, p. 423).
Esse fragmento auxilia
na percepção da influência indiana sofrida por Schopenhauer durante o período
de gênese de sua filosofia. Isso porque Māyā deu ao mundo como representação schopenhaueriano
algo que o filósofo não havia encontrado no fenômeno kantiano, tampouco no
mundo sensível platônico. Māyā se difere e se
identifica com a realidade última que compõe o universo (Brahman), assim
como a filosofia schopenhaueriana associa e diferencia o mundo como
representação ao mundo como Vontade. Não são dois mundos em paralelo (sensível
e inteligível) como sustenta Platão, também não são discussões entre a
incognoscível coisa-em-si e o fenômeno desassociado da ilusão. Para Kant,
compreender os objetos fenomênicos não é estar iludido. Isso porque, “os predicados do espaço e do tempo são atribuídos aos objetos dos
sentidos como tais, e nisso não há ilusão (Schein)”.[22]
Michael Plicin questiona-se sobre a possibilidade de Schopenhauer “não ter
transformado o fenômeno do mundo do criticismo em um mundo da ilusão, digno dos
vedāntas. Se ele não confundiu vivamente Erscheinung (aparência do criticismo)
com Schein (ilusão dos vedāntas)?” [23]
Longe de assegurar essa confusão, o que nós vemos em Schopenhauer é uma equiparação entre a
essência do mundo composta pela Vontade com o mundo representado, que pode se
constituir como ilusão dada pelo intelecto humano. O ser humano é duplamente
iludido. Em um primeiro momento, por acreditar que a própria Representação é a
única verdade possível; e, em um segundo momento, por acreditar na
independência do intelecto frente à Vontade. Nesse ponto, Schopenhauer se
distancia de Platão e Kant e se aproxima ao pensamento indiano, que concebe a
verdade como sendo Brahman e a ilusão sendo Māyā. Todavia, a filosofia schopenhaueriana não é
idêntica ao hinduísmo. É importante frisar que, a Vontade se difere sob muitos
aspectos em relação ao supremo Brahman, assim como, a
Representação à Māyā.
Em 1818, Schopenhauer já tinha clara a ideia do que seria a Māyā hindu e como ela iria ajudá-lo a explicar suas
próprias teorias. A despeito de o filósofo ter associado inicialmente Māyā à criação do mundo material, assim como conferir-lhe o atributo de
amor, n’O mundo, as citações sobre Māyā ocorrem, na maior parte das vezes, de um modo um pouco diferente. Em
1818, o seu pensamento sobre a Índia encontrava-se mais elaborado e refinado. Havia
maior coerência entre os usos dos conceitos indianos. A primeira vez em que o
filósofo citou Māyā n’O mundo
referia-se ao caráter ilusório. De fato, no parágrafo três, de sua obra
capital, Schopenhauer escreveu que:
o essencial
dessa visão é antigo: Heráclito lamentava nela o fluxo eterno das coisas;
Platão desvalorizava seu objeto como aquilo que sempre vem-a-ser, sem nunca
ser; Espinosa o nomeou meros acidentes da substância única, existente e
permanente; Kant contrapôs o assim conhecido, como mero fenômeno, à
coisa-em-si; por fim, a sabedoria milenar dos indianos diz: trata-se de Maja (Māyā), o véu da ilusão,
que envolve os olhos dos mortais, deixando-lhes ver um mundo do qual não se
pode falar que é nem que não é, pois se assemelha ao sonho, ou ao reflexo do
Sol sobre a areia tomada à distância pelo andarilho como água, ou ao pedaço de
corda no chão que ele toma como uma serpente (SW II, p. 9).
É perceptível nesse fragmento que o filósofo retomou a definição criada
em 1816, durante a sua leitura das Asiatick
Researches. Māyā se assemelha a um véu que “envolve os olhos” dos
seres humanos, gerando sonhos, enganos e ilusões. Schopenhauer equipara a
alegoria hindu com as teorias de diversos filósofos ocidentais (Heráclito,
Platão, Espinosa e Kant). No entanto, de acordo com o texto de Schopenhauer, em
todas essas teorias está ausente o atributo da ilusão. Essa característica
aparece apenas com Māyā, que está diretamente associada ao mundo como
Representação. Esse fragmento auxilia a consolidação da tese de que
Schopenhauer foi influenciado pelo pensamento indiano durante o período de
gênese de sua filosofia, no caso específico, a partir do atributo de ilusão de Māyā em sua teoria da Representação.
É importante relembrar
que, em 1814, Schopenhauer já havia encontrado esse atributo de Māyā na Oupnek’hat:
“Maīa [...] é ilusão. [...] Brahman é o supremo”.[24]
Para Arthur Berriedale Keith, indólogo do século XX, “nas últimas Upaniṣads [...] o que nós temos é o germe da teoria da ilusão”.[25]
O indólogo ainda faz comentários específicos sobre a Oupnek’hat Sataster, que retrata todos os seres do mundo como
ilusão, excluindo apenas o ser que transcende a materialidade, o supremo Brahman. De acordo com Keith:
“o caráter preciso da natureza do mundo
externo é resumido finalmente na doutrina da Śvetāśvatara Upaniṣad (Oupnek’hat
Sataster), que vê no mundo à exceção do absoluto que conceitua de uma
maneira teísta - uma ilusão, Māyā, termo introduzido
primeiramente na filosofia das Upaniṣads”.[26]
Como já dito, na Mythologie des Indous, obra também consultada
por Schopenhauer em 1814, existem diversas passagens de Māyā associadas à “névoa
que se espalham pelo entendimento humano”.[27]
Seja na introdução redigida pela Mme. de Polier, seja nos diálogos
entre o sikh Ramtchund e o Coronel Polier, Māyā foi retratada sempre da mesma maneira: distorção da mente ou dos
sentidos. A despeito da ausência do conceito de ilusão na Mythologie des Indous, Māyā é o poder que altera a representação intelectual e sensorial dos
seres humanos. Na obra de Polier também não é utilizado o conceito “véu”, mas
nuvem ou névoa, que possui sentido semelhante.
O uso que Schopenhauer fez da Māyā hindu em sua filosofia e da ideia do mundo representado como ilusório
se assemelha em muitos aspectos com o seguinte trecho escrito pela Mme. de
Polier:
[e]ssa Māyā ou névoa que desempenha um grande papel, mesmo na mitologia
popular, é, segundo a explicação abstrata e metafísica dos brâmanes, a
intervenção dos sentidos sobre as faculdades intelectuais. Apenas quando os
indivíduos se colocam acima da operação deles é que Māyā se dissipa, e
que se obtém a luz que dá à razão sua clareza primitiva, estado no qual ela é
pura e transcendente.[28]
O filósofo concebe que o
mundo como Representação, “em verdade, é apenas uma imagem copiada
da sua essência, entretanto de natureza por completo diferente, e que agora
intervém na conexão de seus fenômenos” (SW II, pp. 179 e 180). Por isso, todos
estão sujeitos à ilusão e ao engano, são incapazes de compreender o mundo como
Vontade. Nesse cenário, o intelecto e a percepção se limitam apenas à
compreensão do fenômeno. O erro reside nos fenômenos falsearem as
exteriorizações manifestas da Vontade, que, por razões ilusórias, se constituem
como se fossem reais. “A ilusão dos sentidos (enganos do entendimento) ocasiona
o erro (engano da razão)” (SW II, p. 95).
Reafirma-se a ideia de
que, apenas em 1816, durante a leitura das Asiatick Researches,
Schopenhauer consolidou o uso de Māyā para referir-se explicitamente à ilusão do mundo como Representação.
Com a leitura das Asiatick Reseaches, o filósofo compreendeu que o
hinduísmo, especificamente, a filosofia Vedānta, aquela que veio depois dos Vedas, no caso,
as Upaniṣads, não consegue disassociar o “sujeito do
conhecimento” do “objeto materialmente percebido”. Todavia, essa relação
dialética entre sujeito-objeto não é uma verdade absoluta, mas sim, uma ilusão.
A realidade não pode ser concebida a não ser por intermédio das faculdades do
entendimento, às quais, todos os humanos estão submetidos. É necessário romper
com essa realidade, ajustar o intelecto para a “melhor consciência”, que, para
o hinduísmo, é possível ser encontrada a partir do ser supremo, que está
presente em todos os seres do universo. A frase pronunciada pelo brâmane ao seu
filho “Tat tvam asi” (tu és isto) é o
ensinamento necessário para a compreensão superior ou “melhor consciência” da
mesma realidade representada sensorial e intelectualmente.
Em outro artigo do primeiro volume das Asiatick Researches, escrito por William Jones, Schopenhauer
encontrou explicitamente a ideia Māyā vinculada à ilusão. No artigo Sobre a Ortografia de
Palavras Asiáticas (On the
Orthography of Asiatick Words),[29]
Jones apresentou uma introdução a diversos textos e conceitos indianos escritos
em sânscritos. O trecho específico lido por Schopenhauer foi: “[n]ão se gabem
de opulência, jovens assistentes; todo este tempo some em um piscar de olhos:
confirmando toda essa ilusão que foi criada por Májà (Māyā). Dirige o teu coração ao pé de BRAHME (Brahman), rapidamente ganhando conhecimento dele”.[30]
De fato, nos diversos volumes das Asiatick
Researches, tomados de empréstimo por Schopenhauer na biblioteca de Dresden
entre 1815 e 1816, “Māyā é a ilusão mundana”.[31] Além disso, Māyā também
auxiliou o filósofo na aprimoração de duas outras ideias: negação da Vontade e
melhor consciência. No volume três, das Asiatick Researches, Francis
Wilford escreveu que Brahman se constitui de:
“um modo incompreensível para as criaturas inferiores, pois elas estão
envolvidas no início da escuridão de Máyà, sujeitas a várias afeições mundanas;
(…). Elas precisam dissipar a ilusão por abnegação, renunciar ao mundo por
abstração intelectual”.[32]
Wilford mencionou nesse trecho essas duas ideias
importantes para a filosofia de Schopenhauer. A abstração intelectual a que se
refere Wilford pode ser entendida como semelhante à “melhor consciência”
schopenhaueriana, que coloca o corpo como uma via de acesso para a Vontade.
Essa percepção do próprio corpo, associada ao conhecimento teórico, gera a
“melhor consciência” que busca uma saída possível para os sofrimentos da
existência. A segunda ideia é a negação da Vontade entendida como abnegação. Māyā transforma-se em um contraponto
importante na filosofia de Schopenhauer para a formulação de sua ética
descritiva, que analisa a compaixão como virtude capital para a supressão das
dores do mundo. De um lado, temos “compaixão e contentamento”, de outro, “Māyā, cegar-se ou ofuscar-se” (HN I, p. 429).
Outra comparação que
fez Schopenhauer em relação ao conceito Māyā foi associa-la à expressão latina principium
individuationis. Em um artigo escrito por Mathias Koßler,[33]
o véu de Māyā é analisado a partir da relação existente entre os
conceitos schopenhauerianos Vontade e intelecto. Koßler compreende que a expressão indiana “véu de Māyā” foi construída como
correlata à ideia escolástica de principium individuationis (HN I, p. 282). Conforme Koßler constatou nos Manuscritos, tanto o
conceito Māyā quanto principium individuationis foram
utilizados pela primeira vez na filosofia de Schopenhauer no ano de 1814,
entretanto, apenas dois anos depois, em 1816, o filósofo os colocou como
correlatos. Utilizados em diversos momentos como sinônimos, Schopenhauer os
compreendeu como uma distorção do intelecto capaz de individualizar todos os
seres. Na verdade, esses dois conceitos possuem diferenças. Para o Advaita
Vedānta, Māyā é a ilusão do mundo
sustentada pelo intelecto. De sua parte, para os escolásticos, o principium
individuationis restringe-se ao poder de individualizar os seres, ou seja,
de identificar um objeto como distinto dos demais objetos. Apesar das
diferenças entre essas ideias oriundas da Índia antiga e da Europa medieval, em
Schopenhauer, o conceito indiano se apropriou da ideia de individuação da
escolástica, do mesmo modo que a ideia escolástica se apropriou da ilusão Vedānta. Como descreveu o filósofo em 1816:
[a] visão de
inumeráveis sofrimentos, acompanhados por uma penetração do princípio de
individuação ou de Maja (Māyā), determina a
Vontade que, ao mesmo tempo, tenta aliviar os sofrimentos e renunciar os
prazeres, os quais negados sempre levam a uma condição de alívio (HN I, p.
404).
A unidade de toda a matéria entendida pela escolástica como Deus e pelo
hinduísmo como Brahman encontra-se, em Schopenhauer, difusa pelo véu da
ignorância que individualiza todos os seres. Schopenhauer fundiu em sua própria
filosofia Ocidente e Oriente. Alterou seus autênticos significados a fim de
explicar o seu próprio pensamento. Isso não invalida a influência que ele
recebeu do pensamento indiano, mas mostra a complexidade das apropriações que
fez de algumas filosofias, sejam elas orientais ou ocidentais.
A apropriação de Māyā por Schopenhauer é um dos principais focos de toda
a discussão acerca da influência da Índia no período da gênese de sua
filosofia.[34]
Contrária ao consenso de parte dos comentadores sobre o assunto, este artigo
defende que, longe de ser uma mera apropriação, o filósofo foi, de fato,
influenciado pelo pensamento indiano. Após a leitura que fez da Oupnek’hat, Asiatisches Magazin, Mythologie des Indous e Asiatick Researches, Schopenhauer
entendeu que o mundo como Representação também poderia ser entendido como
ilusão ou engano do intelecto.
Referências
ANQUETIL-DUPERRON (trad.). Oupnek’hat, 1801 (primeiro tomo) e 1802 (segundo tomo).
APP, Urs. Notes and
excerpts by Schopenhauer related to volumes 1-9 of the Asiatick Researches, In Schopenhauer Jahrbuch
79, Würzburg, 1998 A, pp.11-33.
APP, Urs. Schopenhauer's Initial Encounter with Indian Thought, Schopenhauer-Jahrbuch 87, 2006 B, pp. 35–76.
BERGER, Douglas
L. “The Veil of Māyā”: Schopenhauer’s System and
Early Indian Thought, Global Academic Publishing, Binghamton, New York,
2004.
BHATTACHARYYA, Sibajiban. The Indian
Theogony – a compartative study of Indian Mythology
from the Vedas to the Purāṇas,
Cambridge at the University Press, London, 1970.
KANT, Immanuel. Crítica
da Razão Pura, – Fundação Calouste Gulbenkian, 4ª. Edição, 1997.
KEITH,
Arthur. The Religion and Philosopy of the Veda and
Upanishads, Delhi: Motilal Barsidass, 1976.
KLAPROTH, Julius (ed.). Asiatisches Magazin, dois volumes, Verlage
des Industrie Comptoirs, Weimar, 1802 e 1811.
KOßLER,
Matthias. The relationship between Will
and Intellect in Schopenhauer with particular regard to his use of the
expression “Veil of Māyā”, in BARUA, Arita;
GERHARD, Michael; KOβLER,
Matthias (Eds.). Understanding Schopenhuaer through the prism of indian
culture, Göttinngen, 2013, pp. 109-118.
LOCHTEFELD, James
G. The illustrated encyclopedia of
Hinduism, The Rosen Publishing, New York, 2002.
MESQUITA, Fábio. Schopenhauer
e a Índia, tese de doutorado, São Paulo, 2018
MOCKRAUER, Franz. Schopenhauer
und Indien, in Fünfzehntes Jahrbuch,
Heidelberg, 1928, pp. 3-26.
PLICIN, Michael. Prefácio (Avant-Propos)
da obra de Schopenhauer, De la Quadruple Racine du Príncipe de Raison Suffisante (Édition complete 1813-1847), Librairie Philosophique J. Vrin, 1991.
POLIER, Mme. Marie
Elisabeth de Polier (Antoine-Louis-Henri, colonel de): Mythologie Des
Indous, Volumes 1 e 2, Roudolstadt, Paris, 1809.
SARIN, Indu. Schopenhauer’s
Concept of Will and the Veil of Māyā, in Schoppenhauer
& Indian Philosophy – A Dialogue between India and Germany, Editora Arati Barua,
Northern Book Centre, New Delhi, 2008.
SCHOPENHAUER, Arthur. Schopenhauers Sämtliche Werke, 7 Bände, Wiesbaden, F. A. Brockhaus,
Edição de Arthur Hübscher, 1972.
SCHOPENHAUER,
Arthur. Der Handschriftliche Nachlass,
5 Bände, München, Deutcher
Taschenbuch, Edição de Arthur Hübscher, 1985.
SCHOPENHAUER, Arthur. O
mundo como vontade e como representação, Tomo I, tradução, apresentação,
notas e índices de Jair Barbosa, Editora UNESP, 2005.
SCHOPENHAUER, Arthur. O
Mundo como vontade e como representação, Tomo II, tradução, apresentação,
notas e índices de Jair Barbosa, Editora UNESP, 2015.
SCHOPENHAUER,
Arthur. Manuscript Remains, in four volumes, Edited by Hübscher, transleted by E. F. J.
Payne. Berg Publishers Limited, 1998.
SNODGRASS,
Adrian. The Symbolism of the Stupa,
Motilal Banarsidass Publishers, Delhi, 1992.
SOCIETY, The Asiatic. Asiatick
Researches, Volume 1,
edição consultada 1798, primeira edição 1788.
SOCIETY, The Asiatic. Asiatick
Researches, Volume 2,
edição consultada 1790, primeira edição 1790.
SOCIETY, The Asiatic. Asiatick
Researches, Volume 3,
edição consultada 1805, primeira edição 1793.
SOCIETY, The Asiatic. Asiatick
Researches, Volume 4, edição
consultada 1798, primeira edição 1795.
SOCIETY, The Asiatic. Asiatick
Researches, Volume 5,
edição consultada 1799, primeira edição 1797.
SOCIETY, The Asiatic. Asiatick
Researches, Volume 6,
edição consultada 1801, primeira edição 1799.
SOCIETY, The Asiatic. Asiatick
Researches, Volume 7,
edição consultada 1803, primeira edição 1802.
SOCIETY, The Asiatic. Asiatick
Researches, Volume 8,
edição consultada 1805, primeira edição 1805.
SOCIETY, The Asiatic. Asiatick
Researches, Volume 9,
edição consultada 1809, primeira edição 1807.
ZIMMER, Heinrich. Filosofias
da Índia, Editora Palas Athena, São Paulo, 2000.
[1] Tradução
latina de 1801-1802, realizada por Anquetil-Duperron, de 50 Upaniṣads, das 108 existentes.
Anquetil-Duperron utilizou como referência em sua tradução uma versão persa de
1656, realizada por Dārāṣekoh (Sultão Mohammed Dara Shikoh).
[2] Dois volumes publicados e
editados por Julius Klaproth (1783-1835) em 1802 (primeiro volume) e 1811
(segundo volume). Neles são encontrados textos de diversos autores sobre os
pensamentos da Índia e da China, em sua grande maioria, escritos por Friedrich Majer (1771-1818) e pelo próprio editor.
[3] Trabalho realizado em dois volumes por Mme. Marie Elisabeth de Polier (1742-1817) a partir dos manuscritos autênticos produzidos por Coronel Antoine-Louis Henri de Polier (1741–1795) em diálogo com o indiano da religião sikh denominado Ramtchund. Esse livro inclui comentários gerais sobre o hinduísmo escritos pela Mme. Polier, além de resumos desenvolvidos pelo Coronel Polier, a partir de três importantes textos hindus: Mahābhārata, Rāmāyaṇa e Bhāgavatam.
[4] Revistas publicadas pela The Asiatic Society fundada por William
Jones em 1784. São diversos os assuntos orientais abordados nesses periódicos.
Em 1829, o nome desse anuário foi alterado para The Journal of the Asiatic Society.
[5] Cf. MOCKRAUER, Schopenhauer und Indien, pp. 3-26; APP, Notes and excerpts by Schopenhauer related to volumes 1-9 of the Asiatick Researches, pp.11-33; APP, Schopenhauer's Initial Encounter with
Indian Thought, pp. 35–76.
[6] SNODGRASS, The
Symbolism of the Stupa, p. 29.
[7] Oupnek’hat, vol. II, p. 548.
[8] Cf. MOCKRAUER, Schopenhauer und Indien, pp. 3-26; APP, Schopenhauer's Initial Encounter with Indian
Thought, pp. 35–76.
[9] Asiatisches Magazin, Vol. 2, p. 266
[10] Mythologie des Indous, Vol. 1, pp. 413 e 414.
[11] Cf. APP,
Notes and excerpts by Schopenhauer related to volumes 1-9 of the Asiatick Researches, pp.11-33.
[12] MESQUITA, Schopenhauer e a Índia, Anexo B. Leitura das
Asiatick Researches, vol 1, p. 223
(Foram preservadas as palavras sublinhadas por Schopenhauer).
[13] Asiatick Researches, vol. 8, p. 71.
[14]Asiatick Researches,
volume 3, pp. 295-468.
[15] Asiatick Researches, vol. 3, p. 372. On Egypt and
the Nile from the Sanscrit (Sobre o Egito e o Nilo
do Sânscrito).
[16] ZIMMER, Filosofias da Índia, p. 30.
[17] Cf. KEITH, p. 247. Māyā -
representa a arte mágica; Śakti -
representa o poder de criar
semelhante ao poder do absoluto Brahman.
[18] BHATTACHARYYA, The Indian Theogony – a compartative
study of Indian Mythology from the Vedas to the Purāṇas, p. 35.
[19] SARIN, Schopenhauer’s
Concept of Will and the Veil of Māyā, p. 144.
[20] LOCHTEFELD, The
illustrated encyclopedia of Hinduism, p. 433.
[21] SARIN, Schopenhauer’s
Concept of Will and the Veil of Māyā, p. 138.
[22] KANT, Crítica da
Razão Pura, p. 85.
[23] PLICIN, Prefácio (Avant-Propos) da obra de
Schopenhauer, De la Quadruple Racine
du Príncipe de Raison Suffisante, p. 38.
[24] Oupnek’hat, I, p. 420.
[25] KEITH, The Religion and Philosopy of the Veda and
Upanishads, pp. 529 e 530.
[26] KEITH, The Religion and Philosopy of the Veda and
Upanishads, p. 531.
[27] Mythologie des Indous, vol. 1, pp. 130, 223, 414, 423, 426, 427, 428, 446, 447, 460, 466,
496, 548, 549 e 598.
[28] Mythologie des Indous, vol. 1, pp. 130 e 131.
[29] Asiatick Researches, vol. 1, pp. 1-56. Versão de 1798. Primeira
publicação em 1788.
[30] Asiatick Reserches, vol. 1,
p. 39. Versão de 1798. Primeira publicação em 1788.
[31] Asiatick Researches, vol. 4, p. 383.
[32] Asiatick Researches, vol. 3, pp. 372 e 373.
[33]
KOßLER, The
relationship between Will and Intellect in Schopenhauer with particular regard
to his use of the expression “Veil of Māyā”, pp. 109-118.
[34] Cf. BERGER, “The Veil of Māyā”:
Schopenhauer’s System and Early Indian Thought, p. 69.