DOI

Submissão: 18/05/2019 Aprovação: 23/06/2019 Publicação: 31/08/2019

 

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Fluxo contínuo

 

Pessimismo como postura: o elemento afetivo da tese do pior dos mundos possíveis

 

Pessimism as posture: the affective element of the thesis of the worst of possible worlds

 

Marcelo Vieira Lopes

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria.

marcelovieiralopes16@gmail.com

 

Resumo: O objetivo geral deste trabalho é abordar a tese pessimista encontrada na filosofia de Arthur Schopenhauer a partir da noção de postura. Nesta abordagem exponho os traços característicos de sua metafísica da Vontade e a implicação para a avaliação deste mundo como o “pior dos mundos possíveis”. Em seguida pretendo abordar a ligação entre filosofia e temperamento, a partir de alguns vieses identificados em alterações afetivas, bem como avaliar como ocorre essa ligação na filosofia pessimista de Schopenhauer. Após essa análise será possível avaliar o pessimismo schopenhaueriano a partir da tese metafilosófica de que o temperamento é parte constitutiva de posturas filosóficas, as quais devem ser levadas em consideração na análise do alcance de teses filosóficas gerais.

Palavras-chave: Pessimismo; Sofrimento; Schopenhauer; Sentimento.

 

Abstract: The main aim of this work is to address the pessimistic thesis found in Arthur Schopenhauer’s philosophy starting from the notion of posture. I expose here the distinctive traits of his Metaphysics of the Will and the implication for the evaluation of the world as the “worst of all possible worlds.” Next I address the connection between philosophy and temperament, from a few biases identified in affective changes, as well as to evaluate how this connection occurs in the pessimistic philosophy of Schopenhauer. After this analysis it will be possible to evaluate the schopenhauerian pessimism from the metaphilosophical thesis which states that temperament is part of philosophical postures, which must be taken into account in the analysis of the scope of general philosophical theses.

Keywords: Pessimism; Suffering; Schopenhauer; Feeling.

 

A Metafísica da Vontade

 

            A tese pessimista presente na obra de Schopenhauer é ampla o suficiente para afirmar que a não-existência em geral é preferível a qualquer tipo de existência. Para compreender a motivação de uma afirmação tão forte como esta é necessário que se apresente a tese metafísica de onde deriva esta avaliação da vida e do mundo como um todo. A filosofia de Schopenhauer pode ser caracterizada, em linhas muito gerais, como uma filosofia que coloca e responde a questão sobre o sentido da vida e o valor da existência.[1] A filosofia schopenhauriana, no entanto, para além desta questão prática, engloba ainda um empreendimento teórico, entendido como um esforço metafísico de fundamentação da realidade como um todo. Contra a corrente filosófica de sua época, Schopenhauer sustenta que é possível chegarmos ao conhecimento da coisa-em-si, acessando o fundamento da realidade como um todo.[2]

Quero mostrar brevemente que todo o edifício da filosofia schopenhaueriana, bem como suas derivações mais significativas, o pessimismo e sua teoria ética, são consequências diretas de seus postulados metafísicos. Se o pessimismo consiste na afirmação de que a vida é nada mais do que um imenso redemoinho de sofrimento, isto é porque o ser humano é cativo de uma vontade cósmica, insaciável e incessante.[3] A filosofia da Vontade de Schopenhauer pode ser expressa como uma filosofia de duas faces complementares. Se por um lado o questionamento ético se assenta na questão sobre o valor da vida, por outro, essa questão só pode ser respondida através de um inquérito metafísico sobre a estrutura da realidade.[4] O ponto de partida da metafísica schopenhaueriana é a afirmação do conhecimento da realidade, tal como ela é em si mesma. Mas como sustentar essa tese? Quais as adequações necessárias para sustentar tal afirmação após o legado da filosofia transcendental kantiana? Sabidamente, é Kant quem decreta senão a morte, ao menos uma limitação essencial nas pretensões de conhecimento metafísico.[5]

Herdeiro do legado kantiano, Schopenhauer está de acordo com o postulado da Razão Pura. Também para Schopenhauer o conhecimento deve inserir-se nos limites da experiência possível. Não obstante o acordo com a limitação da investigação metafísica no sentido tradicional, Schopenhauer sustenta a possibilidade de um outro tipo de metafísica. Metafísica, no sentido schopenhaueriano, não diz respeito à especulação sobre o incondicionado para além da experiência, mas antes, refere-se a uma investigação imanente, entendida como interpretação daquilo que é dado na experiência.[6] Uma metafísica imanente, portanto, permanece comprometida com a investigação dos fenômenos que se dão no limite da experiência possível. O que é dado na experiência pode, no entanto, ser investigado de duas maneiras diferentes. Pode-se perguntar por que algo existe ou em quê esse algo consiste. Enquanto o primeiro tipo de investigação diz respeito à ciência natural, o segundo, pertence ao domínio da investigação metafísica. O trabalho da metafísica, portanto, consiste menos em conhecer as causas primeiras do que a essência das coisas, conforme são dadas na experiência.[7]

Surge aqui uma questão imediata: como esse tipo de metafísica pode responder pelo conhecimento da realidade, se o que é dado à experiência são unicamente fenômenos e, no limite, apenas aparências? Aqui o clássico problema kantiano da coisa-em-si aparece em primeiro plano. A interpretação schopenhaueriana sustenta que a coisa-em-si não é uma entidade para além das aparências, mas aquilo mesmo que se mostra nas aparências (W I, §53, p.323). Apesar da formulação um tanto confusa, a coisa-em-si, nessa interpretação é nada mais nada menos do que o conteúdo, a essência daquilo que nos aparece na experiência.[8] A relação entre as aparências e a coisa-em-si, portanto, repousa sobre a distinção fundamental entre o que se manifesta e aquilo que possibilita essa manifestação. Metafísica, no sentido schopenhaueriano, se aproxima assim de uma ciência da experiência. Em outras palavras, a pedra fundamental e o ponto de partida schopenhaueriano encontram-se alocados no interior da experiência imediata, isto é, de um conhecimento interno, direto da essência do mundo. Esse acesso imediato e direto a si aponta para um fato fundamental que será a base de justificativa última de toda sua metafísica, a saber, o conhecimento do próprio querer. Através desse fato, aparentemente psicológico, relativo a cada indivíduo, Schopenhauer extrai uma forte conclusão metafísica sobre a essência do mundo. Este, para além da representação particular é, também e acima de tudo, manifestação da Vontade.

Uma questão inicial diz respeito assim aos termos do acesso a essa dimensão mais básica. Schopenhauer responde a este questionamento através de uma distinção entre dois tipos de conhecimento do próprio corpo. Por um lado, é possível descrever o próprio corpo como um objeto externo, a partir do que se convencionou chamar atualmente de ponto de vista em terceira pessoa. Por outro lado, há um tipo de acesso especial ao próprio corpo, uma vez que é possível descrevê-lo desde uma perspectiva interna, isto é, em primeira pessoa (W I, §18, pp.119-124). É através desta forma de autoconhecimento que é possível acessar a essência da Vontade, identificada com a coisa-em-si kantiana. Para além de uma afirmação sobre um tipo de experiência transcendente, a equiparação entre autoexperiência e coisa-em-si diz respeito ao conhecimento do conteúdo da própria experiência, do conhecimento do que aparece, oposto a como aparece.[9] O que se mostra, em perspectiva direta e privilegiada é assim prova fundamental, para Schopenhauer, de que a volição é a forma básica e pervasiva do conteúdo do mundo.[10]  Em seguida este argumento é generalizado para os outros seres humanos. O procedimento argumentativo é simples e consiste em uma analogia baseada na assunção da similaridade da experiência que tenho de meu corpo com a que outros seres humanos têm dos seus próprios corpos. Não há em Schopenhauer, portanto, o problema do acesso a outras mentes (W I, §19, pp.123-125). Não obstante a vontade se manifeste de maneira individual, em experiências particulares, ela deve ser entendida a partir do quadro teórico da metafísica da vontade como una e indivisível. A vontade, portanto, entendida como o substrato metafísico do mundo não pode ser individuada justamente porque não está sujeita ao principium individuationis. A vontade metafísica, diferentemente da vontade psicológica individual é única, singular e indivisível.[11] O passo adicional consiste em ampliar o argumento analógico da manifestação da vontade, não apenas para os outros seres humanos, mas para todo o reino natural, como animais, plantas e minerais. A manifestação da vontade na totalidade do reino material apresenta assim a tendência de um impulso cego, inconsciente e totalizante, que abarca a totalidade daquilo que há (W I, §22, p.132). Esboçado este quadro geral da metafísica schopenhaueriana, quero apresentar agora as conclusões pessimistas decorrentes da metafísica da Vontade.

 

O pior dos mundos possíveis

 

Pretendo mostrar agora que o pessimismo de Schopenhauer decorre de maneira natural de sua metafísica da vontade. Uma vez que a essência mais íntima do mundo é entendida em termos de uma vontade cega, também o ser humano se apresenta como criatura essencialmente desejante e, portanto, carente. Nesses termos, toda a satisfação e felicidade só podem apresentar-se em termos negativos, isto é, como privação e falta, como expressão do querer mais básico que constitui a essência do mundo. A partir desta perspectiva teórica, as consequências práticas daí derivadas certamente não serão as mais estimulantes. Estas consequências apontam diretamente para uma atitude negativa com relação à vida. Em decorrência da metafísica da Vontade que se expressa principalmente a partir da experiência de dor e sofrimento, a vida não vale a pena ser vivida, e uma consequência prática é a afirmação da predileção pela não-existência em vez existência.[12] Uma questão importante diz respeito a como esta compreensão da negatividade da vida pode ser entendida como expressão de caráter pessoal do autor. Beiser (2016) alerta para o caráter nocivo, do ponto de vista interpretativo, da compreensão da filosofia de Schopenhauer como decorrência de uma personalidade enferma.[13] Este tipo de interpretação se caracteriza imediatamente como um tipo de falácia ad hominem, na qual a filosofia schopenhaueriana não passaria de uma decorrência da personalidade neurótica do autor. Pessimismo, nesses termos, equivaleria mais a uma atitude pessoal, até mesmo derivada de uma patologia do que uma posição filosófica relevante. Beiser sustenta, no entanto, que a filosofia de Schopenhauer pode ser entendida ainda como uma reflexão do autor para com sua vida pessoal. Nestes termos, embora a filosofia schopenhaueriana dependa em grande medida da postura pessoal do seu autor ela, não obstante, não deveria ser avaliada unicamente com base nestes termos, implicando uma postura redutivista e eliminando assim questões filosóficas importantes da sua obra.[14]

Para fugir do redutivismo deste tipo de interpretação é necessário considerar com certo vagar os argumentos fornecidos para uma visão pessimista de mundo. O pessimismo é entendido, em termos gerais, como a antítese do otimismo leibniziano, sustentando que dentre todos os mundos possíveis, este em que vivemos é certamente o pior.[15] Há também n’O Mundo como Vontade e Representação uma espécie de cálculo eudemônico entre os prazeres e dores da vida humana, no qual as dores ultrapassam em peso e medida os prazeres disponíveis. Há também um argumento moral que afirma que a simples existência de qualquer mal, em absoluto, já se apresenta como suficiente para negar o valor geral da vida[16]. O apelo de plausibilidade de tal argumento baseia-se na intuição de que mesmo o menor sofrimento de uma pessoa não pode servir de justificativa para a felicidade de muitos. Schopenhauer, nesse sentido, pode ser considerado um antiutilitarista.[17]

            Beiser salienta também o caráter clássico dos argumentos schopenhauerianos a favor do pessimismo, baseado nas tradições estoicas e epicuristas. Central para estes argumentos é a análise do traço essencialmente desejante da vida humana. Antes de criaturas cognitivas, somos criaturas conativas, desejantes, preenchidas por uma necessidade que aponta para uma falta estrutural.[18] Ora, é este experimentar, este sentir a falta que promove a dor (Schmerz) na vida humana. A dor deve ser entendida em termos muito gerais, como uma espécie de desconforto, anseio ou frustração. Toda a luta humana estaria assim comprometida com uma cruzada contra esse sentimento pervasivo, na busca de prazer ou satisfação que os encubra. A satisfação e o prazer, não obstante, são somente paliativos dessa estrutura desejante mais básica e, portanto, apenas estados excepcionais nos quais o ser humano se consola brevemente do fardo do querer.[19] O argumento, porém, não acaba por apontar essa insatisfação. Ainda que se considere uma satisfação hipotética dos desejos humanos, o resultado final não seria uma ausência completa de sofrimento; pelo contrário, a satisfação mesma desses desejos, na medida em que rapidamente satisfeitos, dá origem a outro tipo de sofrimento: o tédio. O prazer possível de ser alcançado nestes termos possui assim um estatuto meramente negativo, a saber, unicamente como uma forma de privação temporária do desejo. Prazer só é prazer na ausência da dor. É possível sustentar com base nisso, que a justificativa de todos os argumentos fornecidos a favor do pessimismo repousa sobre um sentimento muito fundamental de que a tessitura da vida é o sofrimento. A única conclusão possível, segundo Schopenhauer, é de que todo o sofrimento, explícito nesta visão pessimista, deriva da tentativa humana incessante de alcançar o objeto do desejo, que sempre se renova. Após o exame da condição humana, o resultado é de que a vida, tal como se apresenta neste quadro geral, não tem finalidade e, portanto, carece de um sentido último.

Através dessa breve reconstrução de temas centrais da filosofia de Schopenhauer, foi possível elucidar em que sentido uma tese metafísica sobre a estrutura fundamental do mundo pode fornecer elementos para uma elucidação de temas existenciais, como o sentido da vida e o valor da existência, por exemplo. Suspendendo por um momento a tese de Beiser, que considera falaciosa e reducionista a análise da filosofia de Schopenhauer a partir de elementos pessoais e contingentes da vida do autor, valho-me, a seguir de uma breve avaliação de alguns tipos de enfermidade para avaliar o alcance dessa crítica.

 

Pessimismo e verdade: o que mostram as experiências de depressão?

 

Um importante expediente metodológico da tradição fenomenológica da escola de Husserl se encontra na ideia de redução, e um sentido específico deste procedimento consiste na ideia de epoché. Em linhas gerais praticar a epoché significa abandonar todos os comprometimentos teóricos de uma determinada posição, a fim de avaliá-la de acordo com a experiência direta do fenômeno em questão; significa “pôr entre parênteses” as teses propostas para voltar o olhar para os fenômenos tal como eles se nos aparecem. O objetivo desse expediente consiste fundamentalmente em descrever o modo como os fenômenos relevantes para a investigação se mostram do ponto de vista da primeira pessoa, sem o intermédio de teorias que possam vir a descaracterizar os fenômenos. Assumindo esse expediente como relevante, quero realizar uma epoché com relação à tese de Beiser. Meu objetivo, com isto, será mostrar como certa gama de fenômenos afetivos pode ser descrita como interferindo em nossa relação com a realidade e, por conseguinte, em nossa descrição teórica desta mesma realidade. Como forma de ilustrar esta sugestão, recorro a algumas descrições de casos de depressão que sugerem uma transformação pessoal, na qual é possível identificar uma alteração na estrutura geral da experiência enferma.

Inúmeras abordagens em primeira pessoa descrevem a experiência da depressão como o “habitar em um mundo diferente”.[20] O que essas pessoas referem, quando usam a palavra “mundo”, envolve um aspecto da experiência que alguns fenomenólogos tematizaram exaustivamente. “Mundo” indica o plano de fundo familiar constitutivo da experiência cotidiana das coisas, dos outros, e de si. Experimentar o mundo, nesse sentido, não é experimentar um (grande) ente, mas diz respeito, antes, a um sentido habitual que molda nossas experiências e pensamentos. Sustenta-se que o “mundo”, o “sentido de realidade” ou o “pertencimento” não é completamente perdido na depressão, mas sim profundamente alterado.[21] Sugere-se ainda que a experiência da depressão envolve, portanto, uma mudança na própria estrutura do perceber, sentir, crer, lembrar, etc. Esta experiência também é geralmente descrita a partir de uma variedade de sintomas como desespero, desconforto corpóreo, incapacidade de agir, culpa, inutilidade, angústia e o estranhamento de outras pessoas.[22] Esses sintomas sugerem assim um tipo de mudança na qual certos tipos de experiência familiar são alteradas. O distúrbio decorrente da depressão se mostra, na maior parte das vezes, como um sentimento perdido de estar confortavelmente imerso no mundo. Da mesma forma os sintomas pelos quais se manifesta esta perda de imersão não são meros acompanhamentos da experiência, mas sim aspectos inseparáveis e constituintes de uma mudança unitária no modo como alguém se encontra no mundo.[23]

Essas variações afetivas consistem em um tipo de sentimento que não é adequadamente descrito a partir de categorias tradicionais como “emoção” e “humor”. Ratcliffe (2008) lança mão da noção de sentimento existencial (existential feeling) como uma estrutura interpretativa unificante dessa modificação geral na estrutura da experiência. Estes sentimentos indicam experiências intencionais com objetos muito gerais ou pré-intencionais, que determinam os tipos de estados intencionais que somos capazes de ter e são equivalentes à “forma” que toda a experiência assume. São variantes do sentimento existencial, por exemplo, o sentimento de x, onde x pode ser uma única palavra, tal como “não-familiaridade”, “estranhamento”, ou “destacamento”. Fala-se também de sentir ser x, onde x pode ser “isolado de todos”, “por trás de uma janela de vidro”, “sufocado”, ou por contraste, “em casa no mundo”. Um tema relativamente recorrente nas descrições de depressão é o sentimento de estranheza ou de indiferença.[24]  De acordo com esta literatura, portanto, a depressão pode ser entendida como uma modificação operada nesse nível existencial muito básico. Se isto é assim, um passo adicional na descrição consiste em avaliar se alguns desses sentimentos possuem um status privilegiado com relação à autoavaliação ou à avaliação do “mundo” do depressivo em questão:

Imagine alguém sem qualquer aspiração de ser melhor, sem qualquer esperança de melhorar sua situação ou qualquer sentimento que instigue projetos de longo prazo. As únicas possibilidades de esperança que a vida lhe oferece estão associadas a prazeres e distrações passageiras. Embora não seja uma perda total de esperança, isso envolve ao menos uma mudança estrutural na esperança pré-intencional, uma privação, uma limitação nos tipos de esperança de que ela é capaz de ter.[25]

A situação descrita nessa passagem envolve a mudança em um sentimento muito básico que tem a ver com a capacidade de experimentar a esperança e que, não obstante, assemelha-se à perspectiva negativa da vida expressa pelo pessimismo. Dado esse quadro de mudança afetiva geral, a probabilidade da ocorrência de certas experiências negativas é certamente acentuada. Um tema recorrente nessas descrições é o sentimento expresso de que se atingiu uma "verdade real e incontestável".[26] A depressão parece trazer consigo, assim, a certeza de uma verdade sobre a essência dolorosa da vida humana, inacessível para aqueles que não enfrentaram tal experiência. Esta descrição coloca em questão os supostos benefícios epistêmicos da depressão, cuja manifestação traria consigo o reconhecimento de verdades unicamente acessíveis ao enfermo. Este tema é relevante porque levanta a questão sobre como a depressão afeta a capacidade de fazer juízos avaliativos, inclusive sobre a própria condição. Uma primeira versão do chamado “realismo depressivo” foi claramente expresso por Freud:

Quando, em uma exacerbada autocrítica, ele [o enfermo] se descreve como um homem mesquinho, egoísta, desonesto e dependente, que sempre só cuidou de ocultar as fraquezas de seu ser, talvez a nosso ver ele tenha se aproximado bastante do autoconhecimento e nos perguntamos por que é preciso adoecer para chegar a uma verdade como essa.[27]

            Deste ponto de vista, a experiência enferma desempenharia um papel fundamental no acesso à verdade, não só sobre si mesmo, mas também sobre o mundo e a realidade. Mantendo ainda suspensa a tese de Beiser, é possível ponderar sobre a semelhança desse tipo de certeza afetivamente motivada e aquela expressa por Schopenhauer, quando garante o acesso teórico ao “pior dos mundos possíveis”. É plausível, portanto, a partir do exposto até aqui, sugerir que também os estágios da investigação intelectual são motivados e guiados por sentimentos de vários tipos, tais como a curiosidade, dúvida, admiração, surpresa e satisfação. Dado que a depressão diminui, ou mesmo extingue a capacidade de alguns destes sentimentos, ela certamente interfere significativamente no processo de formação de crenças, especialmente no que diz respeito a juízos de valor.

Para que seja possível avaliar competentemente um estado de coisas como sendo p em vez de q, deve-se primeiro ser capaz de compreender a possibilidade de q, e então descartá-la. Se a capacidade de considerar q é perdida, então o comprometimento com p refletirá apenas incapacidade, em vez da plausibilidade relativa de p.[28] Nesse caso é possível elucidar a estrutura de certos sentimentos de certeza que surgem na depressão e que são, ao mesmo tempo, frequentemente enganosos. A crença de que a recuperação é impossível, por exemplo, deriva de uma incapacidade de contemplar algo que não é apenas possível, mas também provável.[29] É a incapacidade de contemplar alternativas, portanto, que leva a uma avaliação reduzida do “mundo” que se apresenta como certa. Por outro lado, se o acesso às alternativas fosse restaurado, a avaliação se mostraria ela mesma como uma avaliação contingente. Novamente, pode-se perguntar se há aqui alguma semelhança com este tipo de avaliação patológica e a avaliação de Schopenhauer sobre o pior dos mundos possíveis. Esta dificuldade constitui a chamada assimetria epistêmica na qual se torna difícil, ou mesmo impossível avaliar uma dada situação competentemente durante a imersão na própria situação, sendo necessário uma perspectiva avaliativa externa.[30] Caso se considere esta assimetria, o aparente benefício epistêmico da depressão se mostra como sintoma de uma limitação contingente, em vez de uma fonte de revelação.[31] Nosso sentimento existencial oscila de maneira muito sutil, mas a maioria de nós, em experiências saudáveis, mantém um sentimento de que algumas formas de se encontrar no mundo são mais bem fundadas em como as coisas “realmente são” do que outras. No entanto, é possível que alterações corporais ou ambientais venham a desestabilizar tais sentimentos e, com isto, uma mudança no próprio “mundo”, seja durante a fadiga, doença ou mal-estar:

[...] um pequeno resfriamento da excitabilidade e do instinto animal, uma perda insignificante da resistência animal, uma leve fraqueza irritadiça e o decréscimo do limiar da dor levará um verme ao âmago de todas as nossas fontes de deleites, à plena luz, e nos converterão em metafísicos melancólicos.[32]

A tese expressa por James é forte e sugere que de mudanças corporais podem decorrer também transformações filosóficas. Curiosamente, uma tese similar pode ser encontrada no §19 d’O Mundo como Vontade e Representação. Ao analisar a dúvida cética sobre a realidade do mundo exterior, Schopenhauer afirma que este “egoísta teórico” em vez de refutação, precisa, ao contrário, de uma cura (W I, §19, p.125).[33] Essa formulação parece indicar minimamente o modo como certas posições filosóficas podem ser avaliadas mediante sua conexão íntima com traços pessoais daqueles que as sustentam.[34]

Após essa breve suspensão da tese de Beiser, de que o pessimismo schopenhaueriano deve ser dissociado de qualquer postura pessoal e patologizante, pretendo avaliá-la à luz dos resultados que acabei de fornecer. Uma consequência imediata será a de que essas variações afetivas encontradas em diferentes tipos de temperamentos poderão ser avaliadas como determinantes inclusive de posições filosóficas muito gerais.

 

O Pessimismo como postura

 

Nesta seção quero atentar à tese originalmente proposta por James (1987) e aprimorada mais recentemente por Ratcliffe (2008), de que certas instâncias afetivas internas à experiência podem desempenhar um papel importante na assunção de posturas filosóficas. Esta tese geral decorre de uma tese metafilosófica que sustenta que filosofia e filósofo(a) são integralmente dependentes. Nesta perspectiva, os sentimentos, centrais para a vida do(a) filósofo(a) são também centrais e constituintes da sua filosofia.

Para considerar e avaliar a tese jamesiana é necessário uma rápida descrição de sua concepção sobre as emoções. Emoções podem ser descritas como estados do sujeito, e também como formas nas quais os objetos aparecem. Emoções, no entanto, não são apenas ingredientes particulares da experiência de mundo, mas apresentam o vínculo entre a experiência e padrões conceituais, que os imbui de significância e motivação para agir. Este modo de entender as emoções aparece como pré-condição para a significatividade do mundo constituído conceitualmente. Em outras palavras, as emoções fornecem as condições pré-conceituais que possibilitam todos os atos de conceptualização, na medida em que operam em um nível da experiência subjacente a todo pensamento conceitual.[35] Dado esse quadro geral, meu objetivo é apresentar o modo como sentimentos e emoções podem operar como orientações existenciais, e como essas orientações podem motivar e parcialmente constituir posições filosóficas, equivalentes a certa disposição filosófica. Caso tenha sucesso, será possível mostrar em que medida o pessimismo de Schopenhauer pode ser entendido como uma postura filosófica afetivamente motivada diante do mundo.

            De acordo com o que apresentei na seção anterior, certos modos afetivos de estar no mundo operam como disposições pré-articuladas. Para James, as afirmações filosóficas gerais, que pretendem descrever como o mundo efetivamente é, ou afirmações sobre como obtemos acesso a ele, não podem ser avaliadas unicamente por meio de argumentos racionais. A plausibilidade de uma perspectiva é, portanto, primeiramente uma questão de como ela é sentida.[36] Se isto é assim, doutrinas filosóficas gerais, como racionalismo, empirismo, etc., são constituídas por certos tipos de sentimentos não-articulados e que não podem ser completamente descritas em termos de compromissos proposicionais.[37] Existiriam, assim, sentimentos que operam como plano de fundo do teorizar explícito e que determinam o tipo de debate que é considerado digno de engajamento filosófico.[38] Teorias e sistemas filosóficos, nesse sentido, são constituídos por sentimentos que, por sua vez, são sintomáticos de disposições subjacentes, as quais James chama de “temperamentos”, operantes antes mesmo dos argumentos mais sofisticados serem postos em jogo:

[...] a filosofia que é tão importante em cada um de nós não é uma questão técnica; ela é o nosso senso mais ou menos comum do que a vida honesta e profundamente significa. Ela é apenas parcialmente retirada dos livros, ela é a nossa maneira individual de ver e sentir a carga e pressão total do cosmos.[39]

A enunciação dessa tese sugere que James entende a história da filosofia como um tipo de “colisão de temperamentos”[40], da qual é possível oferecer diagnósticos de como os indivíduos particulares moldam seus comprometimentos metafísicos. É possível, assim, avaliar que certa crença do filósofo na natureza do universo deriva diretamente de seu desejo de que o universo se encaixe nesta mesma visão. Os sentimentos abrem, por assim dizer, um espaço de possibilidades filosóficas que as torna ao mesmo tempo atraentes. Deste modo, a identificação e aceitação dos sentimentos componentes dos comprometimentos filosóficos aparecem, elas mesmas, como parte do projeto filosófico em questão.[41] Essa elucidação dos sentimentos constitutivos de posições teóricas desempenha um papel metodológico fundamental na pesquisa filosófica ao clarificar a origem de diferenças conceituais irrespondíveis unicamente do ponto de vista argumentativo. Deste modo, uma posição filosófica pode ser descrita, em vez de mero conjunto de proposições e crenças, como uma postura, isto é, uma atitude, um comprometimento, uma abordagem, etc., e não unicamente como uma equação de crenças e asserções sobre o que há.[42] Esta abordagem possibilita também a compreensão da adoção de posturas irrefletidas. A adoção implícita de uma postura dispõe o filósofo, por assim dizer, em direção à adoção de certas crenças e atitudes explícitas, em vez de outras. Uma postura é entendida, assim, como um plano de fundo implícito, pré-articulado, anterior ao framework conceitual propriamente elaborado em uma posição filosófica.

            A pergunta a ser feita neste contexto, diz respeito à “disposição epistêmica” que certos sentimentos desempenham implicitamente na tomada de decisão explícita do agente do conhecimento, como no caso da dúvida. Pode-se dizer que a dúvida sobre esta ou aquela questão não é determinada apenas como uma insatisfação intelectual, mas aparece justamente como uma dúvida sentida. Dúvidas sentidas, portanto, não são meras abstrações intelectuais, tal como a dúvida cética, por exemplo, mas sim sentimentos corporais de insatisfação, tensão, inquietação, etc. Muitas avaliações têm, portanto, este caráter sentido, habitual e pré-articulado. Por outro lado, também as respostas fornecidas precisam se adequar a esse caráter sentido. Para que seja possível sustentar comprometimentos consistentes de longo prazo, é necessário que haja assim sentimentos de convicção. Nesse caso, alguns sentimentos constituem um sentido de satisfação com uma conclusão teórica, que pode muitas vezes mostrar-se como suficiente para as perguntas colocadas. O juízo habilidoso, portanto, é ordinariamente uma questão de estar afinado a um tipo de situação de uma maneira corporal, pré-reflexiva, em vez de ser mecanicamente capaz de pesar evidências e desempenhar inferências complexas.[43] É possível avaliar agora se o pessimismo de Schopenhauer pode ser elucidado desde essa perspectiva e interpretar em que medida a tese de Beiser pode ser qualificada.

 

Conclusão

 

Conforme sustenta Beiser, para avaliar corretamente o pessimismo de Schopenhauer, dever-se-ia dissociá-lo de posições que o reduzam a mero reflexo de uma personalidade melancólica, introspectiva, ou mesmo patologicamente condicionada. Longe de fazer qualquer afirmação nestes termos, meu objetivo foi, num primeiro momento, suspender a tese de Beiser. Para isso, analisei algumas modificações na estrutura da experiência decorrente de algumas patologias psiquiátricas. Foi possível, assim, mostrar que há, em um nível muito fundamental, uma dependência entre certos tipos de sentimentos e as crenças que alguém pode vir a sustentar. Mais tarde, foi possível ampliar esse diagnóstico a partir da consideração da tese jamesiana de que posições filosóficas podem ser explicitadas a partir dos temperamentos a elas subjacentes. Para além de uma posição redutivista, o que se mostrou foi o alcance de uma tese metafilosófica que identifica certos sentimentos como componentes intrínsecos dos comprometimentos filosóficos. Essa elucidação dos sentimentos constitutivos de posições filosóficas desempenha um papel metodológico fundamental na pesquisa filosófica, na medida em que serve para clarificar as diferenças entre convicções filosóficas irrespondíveis unicamente do ponto de vista argumentativo.

A partir dessa perspectiva, acredito ser possível sustentar uma tese similar no caso de Schopenhauer. Derivado de sua metafísica da Vontade, o pessimismo exibe um juízo avaliativo que se pretende verdadeiro sobre o mundo e o significado da vida, tendo o sofrimento como decorrência necessária de todo o querer. Este caráter pervasivo do sofrimento não é caracterizado, no entanto, como decorrente unicamente de circunstâncias externas, mas pelo contrário,

[...] tanto no conhecimento, quanto no sentimento referentes ao sofrer e ao bem-estar, uma parte bem grandes deles já foi, a priori, subjetivamente determinada. A jovialidade de ânimo e a melancolia não são obviamente determinadas por circunstâncias externas, riqueza ou posição social [...] (W I, §57, pp.373-4, ênfase minha).

Nesse sentido, o sofrimento ou o bem-estar são descritos como disposições que poderiam, “vez ou outra, em diferentes tempos, experimentar um acréscimo ou decréscimo, porém, no todo, permaneceria a mesma e nada mais seria aquilo senão determinado temperamento” […] (W I, §57, pp.373-4, ênfase minha). Se isto é assim, não é difícil concluir que tais disposições e temperamentos reconhecidos pelo autor influenciaram significativamente a postura filosófica que culmina no pessimismo. Longe de avaliar a correção de tal postura, resta apenas apontar uma implicação importante no caso do pessimismo de Schopenhauer. Assim como nos casos de enfermidade em que certos aspectos da realidade aparecem de forma mais saliente do que outros, a postura pessimista favorece a visualização de certos setores desta mesma realidade. Como dirá Simmel, com Schopenhauer “pela primeira vez a dor deixa de ser um acidente do Ser para tornar-se o próprio Ser refletido em sentimentos”.[44] Aqui uma objeção óbvia pode ser formulada. Se posições filosóficas são sempre afetivamente motivadas, uma consequência direta é a inexistência de um padrão avaliativo externo que possa decidir entre duas posições conflitantes. A realidade, por outro lado, parece exigir descrições unívocas. O resultado da tese metafilosófica sobre a natureza das posturas teóricas parece implicar, assim, certo relativismo, na medida em que posturas afetivas podem condicionar teses filosóficas. Essa objeção é importante e pode-se respondê-la apelando para os diferentes níveis de avaliação aí envolvidos. Em termos dos níveis do discurso filosófico, a análise das disposições filosóficas não compartilha com teses e proposições o mesmo âmbito de justificação. Justificáveis, portanto, são apenas as premissas de uma determinada tese. As disposições que motivam tais premissas, por outro lado, ocupam um espaço pré-conceitual e não estão sujeitas a esse tipo de avaliação. No nível das posturas filosóficas se pode unicamente buscar por explicitação. Explicitar uma postura, neste caso, difere da avaliação do valor de verdade de proposições e tem a ver somente com a evidenciação e coerência de certos comprometimentos que uma determinada postura oferece.

 

Referências

 

BEISER, F. Weltschmerz: Pessimism in German Philosophy, 1860–1900. Oxford University Press, 2016.

 

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[1] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.25.

[2] Beiser (2016) apresenta a posição metafísica de Schopenhauer na contracorrente filosófica de sua época, em completa oposição às tendências neokantianas e positivistas vigentes, as quais reafirmavam com veemência as críticas kantianas à metafísica, ver: BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.25.

[3] A discussão acerca do estatuto do pessimismo schopenhauriano é vasta e me limito a observar a relação de derivação dessa postura a partir de suas teses metafisicas. Há no Brasil uma literatura considerável sobre a temática, que por razões de espaço não avaliarei neste trabalho. Apenas cito, entre estes, o trabalho de Debona (2016) que ao distinguir entre "pessimismo metafísico" e "pessimismo pragmático" chamou atenção para os aspectos eudemonológicos da noção, essenciais para uma compreensão mais abrangente do tema. Também  Moraes (2017), ao caracterizar o "pessimismo moral" analisa as teses sobre a imutabilidade do caráter e a impossibilidade de aprimoramento moral derivadas das teses metafísicas do autor.

[4] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.26.

[5] Metafísica, nesse sentido, é entendida como a pretensão de conhecimento a priori de questões ligadas à Razão pura incondicionada. O conhecimento delimitado na Crítica da Razão Pura, por outro lado, deve dar-se unicamente dentro dos limites da experiência. A metafísica tradicional, entendida como a busca de conhecimento sobre Deus, a liberdade e a existência da alma, portanto, torna-se um empreendimento ilegítimo na medida em que tais temas ultrapassam, obviamente, os limites da experiência possível.

[6] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.27.

[7] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.28.

[8] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.29.

[9] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.32.

[10] Uma observação que será importante nas seções subsequentes é que a vontade não precisa ser entendida como ato consciente de decisão ou deliberação. Pode-se considerar também (e de maneira privilegiada, quero sugerir) como manifestação da vontade as emoções ou sentimentos, sensações de prazer ou dor como formas desta mesma Vontade, ver: BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.32.

[11] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.36.

[12] Nietzsche dá expressão mitológica a este sentimento n’O Nascimento da Tragédia ao descrever a resposta de Sileno à pergunta sobre a melhor vida para o homem. O melhor para o homem, responde Sileno, seria em primeiro lugar não ter nascido e em segundo lugar, morrer o mais breve possível, ver: NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, ou Helenismo e Pessimismo, p.36.

[13] Beiser identifica esta falácia na obra de Kuno Fischer, Der Philosoph des Pessimismus: Ein Charakterproblem, segundo a qual o pessimismo derivaria da personalidade neurótica de Schopenhauer, extraindo daí a consequência de que o pessimismo está mais ligado a uma atitude pessoal ou a uma patologia do que a uma posição filosófica justificada, ver: BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.46.

[14] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.46.

[15] O argumento se estrutura nos seguintes termos: 1. O pior de todos os mundos é o que possui a quantidade máxima de mal compatível com a existência do mundo; 2. A compatibilidade da existência do mal com o mundo significa que se for acrescentado a este uma quantia mínima adicional de mal, o mundo cessará de existir. 3. É um fato de que se a menor quantidade de mal fosse adicionada ao mundo, p. ex. se a temperatura da terra subisse dez graus, o mundo cessaria de existir. 4. Portanto, nosso mundo é o pior dos mundos possíveis. Beiser explora algumas das fragilidades do argumento que não tenho condições de analisar aqui, ver: BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.47.

[16] Para Dörpinghaus (1999) a atestação argumentativa do pior dos mundos possíveis deriva de um silogismo retórico. A tese do mundus pessimus, portanto, não é necessariamente verdadeira, mas expressa um juízo problemático, contingente, que deve ser avaliado na forma de um "epiquerema". Outra observação importante diz respeito à chamada prova do ethos, na qual a credibilidade daquele que enuncia a tese é avaliada através da plausibilidade com o restante de sua obra. Por outro lado, um ingrediente essencial para a recepção do pessimismo consiste em certa disposição do leitor e da recusa do ceticismo prévio com relação às teses anunciadas.

[17] Segundo Malter, é possível reconhecer uma função crítica do pessimismo schopenhaueriano que diz respeito à maneira de compreender o mundo empírico através de dois aspectos. No primeiro caso o pessimismo é entendido como crítica do eudemonismo e no segundo, como crítica ao otimismo derivado da Teodiceia. O pessimismo assume, nestes termos, um valor corretivo e indica a fragilidade prática e teórica de tais posições, ver: MALTER, Il pessimismo: un concetto critico, p.625.

 

[18] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.49.

[19] BEISER, Weltschmerz Pessimism in German Philosophy, 1860–1900, p.49.

[20] As descrições em primeira pessoa provém de autobiografias, da literatura médica e de um questionário elaborado por Matthew Ratcliffe e colegas, a partir do qual é possível avaliar o tipo de mudança operante nas experiências de depressão. Neste questionário figuram questões como: “Descreva suas emoções e humores durante o período em que esteve deprimido”; “O mundo parecia diferente quando você esteve deprimido? Se sim, como?”; “Outras pessoas, incluindo amigos e familiares apareciam diferentes quando você estava deprimido?”; “Como você sentia seu corpo quando estava deprimido?”, ver: RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.26.

[21] RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.2.

[22] RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.14.

[23] RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.15.

[24] RATCLIFFE, Experiences of Depression, p.36-7.

[25] RATCLIFFE, What is it to lose hope?, p.13, tradução e ênfase minha.

[26] TOLSTOY, A Confession, p. 18.

[27] FREUD, Luto e Melancolia, p. 55, ênfase minha.

[28] RATCLIFFE, Experiences of Depression, p.274.

[29] RATCLIFFE, Experiences of Depression, p.274.

 

[30] Curiosamente, este procedimento é recorrentemente usado por Schopenhauer, mas visando a conclusão oposta, a saber, de que a realidade fenomênica é ela mesma ilusória: “Embora os sonhos isolados se separem da vida real pelo fato de não intervirem na concatenação da experiência que transcorre com constância pela vida, e o despertar indica tal diferença, justamente aquela concatenação da experiência já pertence à vida real como sua forma; ora, o sonho também possui em si uma concatenação. Assim, caso se tome o ponto de vista do julgamento exterior a ambos, então não se encontra em sua essência nenhuma diferença mais determinada, e somos obrigados a conceder aos poetas que a vida é um longo sonho(W I, §5, p.21). Por outro lado, podemos não estar conscientes de que sonhamos enquanto sonhamos, mas podemos usualmente fazer a distinção de maneira confiante quando despertos, quando as limitações do mundo dos sonhos se tornam prontamente aparentes. A certeza da verdade nos casos de depressão, sustenta-se, está muito próxima do mundo dos sonhos, na medida em que é alheia à sua deficiência de contemplar alternativas.

[31] RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.276.

[32] JAMES, William James Writings, 1902-1910, p. 140.

[33] Agradeço a Gabriel Dietrich por chamar minha atenção para este ponto.

[34] No §6 de Além do Bem e do Mal, Nietzsche sustenta uma perspectiva bastante similar: "Gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas; e também se tornou claro que as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira. De fato, para explicar como surgiram as mais remotas afirmações metafísicas de um filósofo é bom (e sábio) se perguntar antes de tudo: a que moral isto (ele) quer chegar?" ver, NIETZSCHE, Além do Bem e do Mal, p. 12. Agradeço ao comentário de um avaliador anônimo pela referência ao texto de Nietzsche.

[35] Ratcliffe (2008) fornece um quadro geral da teoria jamesiana das emoções no qual: 1. Emoções são sentimentos de mudanças corporais disparados na percepção; 2. Os sentimentos são parcialmente constitutivos da orientação prática em direção às coisas; 3. Essa orientação prática estrutura toda a experiência e conceptualização; 4. Emoções são, assim, componentes da intencionalidade; 5. Emoções não são nem subjetivas, nem objetivas, mas aparecem anteriormente a estas distinções na experiência; e 6. Emoções estruturam como experimentamos, pensamos e agimos no mundo. Algumas delas constituem o nosso senso de realidade e pertencimento que opera como um plano de fundo de toda a experiência de mundo, ver: RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.234.

[36] RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.243.

[37] James (1987) distingue entre o que ele identifica como os dois temperamentos predominantes na filosofia. Por um lado o espírito terno (tender-minded) é racionalista e compromete-se com princípios, à maneira intelectualista. Tende a sustentar certo tipo de idealismo e também um otimismo. Orienta suas posições de acordo com a religião e sustenta, de maneira geral, uma tese monista sobre a realidade. Já o espírito duro (tough-minded) é empirista, segue os fatos e orienta-se pelos sentidos. Tende, portanto, a sustentar uma tese materialista e certo pessimismo. Caracteriza-se pela irreligiosidade de suas posições e tende a comprometer-se com teses pluralistas sobre a realidade, ver: JAMES, William James Writings, 1902-1910, p. 491.

[38] RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.243.

[39] JAMES, William James Writings, 1902-1910, p. 7.

[40] JAMES, William James Writings, 1902-1910, p. 488.

[41] RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.246.

[42] VAN FRAASSEN, The Empirical Stance, pp.47-8.

[43] RATCLIFFE, Feelings of Being, Phenomenology, Psychiatry and the Sense of Reality, p.258.

[44] SIMMEL, Schopenhauer & Nietzsche, p.73.